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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, por si e em representação dos seus filhos menores B e C, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Segurança, de 22 de Julho de 2005, que, em recurso hierárquico, confirmou decisão do Comandante Substituto do Corpo de Polícia Segurança Pública, que indeferiu pedido de autorização de permanência em Macau dos referidos menores.
Por acórdão de 22 de Junho de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformados, interpõem os recorrentes recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1. Quer a Lei Básica da RAEM quer a Lei n.° 6/94/M, de 1 de Agosto - Lei de Bases da Política Familiar - consagram o direito a constituir família como um direito fundamental.
2. Os filhos da recorrente estudavam na Escola Primária sendo que o filho mais novo é deficiente e nas Filipinas não tem quem possa tomar conta deles.
3. A decisão recorrida viola o disposto no art.° 1.º n.° 1 e 3.º da Lei 6/94/M de 1 de Agosto, mormente o direito que a lei confere aos cidadãos de constituírem família devendo a Administração reconhecer a função da família como elemento fundamental da sociedade, donde por errada interpretação da lei, foram violados direitos fundamentais legalmente protegidos, designadamente os constantes da Convenção sobre os Direitos da Criança, o que ora se argui, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.° 1 e 2 do art.° 123.º do CPA.
4. Tanto a recorrente como seu marido foram contratados para trabalharem em Macau, como trabalhadores não-residentes, sendo ambos empregados no Hotel.
5. Nos termos do disposto no n.° 5.º do art.° 8 da Lei 4/2003 de 17 de Março, é permitida a autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM.
6. Em 2002, foi autorizada a contratação quer da recorrente quer de seu marido para virem trabalhar para Macau como não-residentes tendo então sido equacionada, comprovada e aprovada a sua qualificação para poderem ser considerados como trabalhadores especializados cuja contratação interessou e continua até a interessar à RAEM dado que os seus contratos e autorização de permanência têm sido sucessivamente renovados.
7. Trata-se de profissionais do ramo hoteleiro que exercem há vários anos e por diversas partes do mundo, designadamente na Arábia Saudita onde residiram cerca de dois anos, com grande arte e mestria um metier para o qual se tiram cursos em Escolas Hoteleiras e Institutos de Formação Turística, dominando a recorrente quatro línguas: tagalo, inglês, cantonense e árabe.
A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu douto parecer no qual se pronuncia pela improcedência do recurso, nos seguintes termos:
- Entende que não se verifica a violação do direito fundamental à constituição de família;
- Considera que a recorrente e o marido não são trabalhadores especializados, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
- em 20.05.2005, A, requereu autorização de permanência em Macau para os seus filhos menores B e C; (cfr. fls. 25 e segs. do proc. instrutor).
- em 27.05.2005. por despacho do Comandante Substituto do C.P.S.P. foi o pedido indeferido; (cfr., fls. 22 a 23).
- notificada do assim decidido e por "expediente" datado de 23.06.2005, pediu a mesma requerente e o seu marido D a reapreciação do pedido antes deduzido por parte do EXMO SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA; (cfr. fls. 18 a 20).
- sobre o referido pedido, elaborou-se a informação seguinte:
"1. Tendo o presente Serviço recebido em 23/06/2005 um pedido entregue por um casal dos trabalhadores não-residentes filipinos, A (requerente) e D, solicitando a autorização de permanência em Macau dos seus dois filhos, B e C para reunião familiar. Indeferido o pedido da autorização de permanência por este CPSP, o casal interpôs ao Exm.º Sr. Secretário para a Segurança, no prazo legal, recurso hierárquico, no qual formulou os seguintes fundamentos, pedindo ao Exm.º Sr. Secretário para a Segurança que seja autorizada a permanência em Macau dos seus familiares.
1) Desejam que os dois filhos possam estudar em Macau.
2) Não há ninguém que pode tomar conta dos seus filhos porque a avó que tem cuidado deles nas Filipinas é idosa e está doente.
3) Um dos seus filhos (C) sofre de asma e é deficiente (os dedos das mãos estão grudados e não tem dedos no pé direito, vide as impressões das mãos e do pé anexas ao recurso), pelo que, ele tem adoecido frequentemente desde os 5 meses de idade, o que influencia o plano de operação, e se ele puder permanecer em Macau, ele não só pode ser cuidado pelos pais, como também pode ter uma melhor condição da vida e isso tem vantagem de curar a doença de que sofre.
4) O outro filho (B) também deseja ficar com os pais todos os dias, por isso, pede permanecer e viver em Macau.
5) O casal está a trabalhar em Macau, por isso, tem capacidade para suportar as despesas diárias.
2. O presente Serviço, através da Informação n.° XXX XXX/XXXX/XXX, relatou as situações desta trabalhadora não-residente, A, e na altura, o Exm.° Senhor Secretário para a Segurança proferiu um parecer desfavorável ao referido pedido pela razão de que a profissão da trabalhadora não-residente em causa é empregada de quartos não especializada, e por causa disso, o requerimento da "autorização especial de permanência" em Macau dos dois filhos desta trabalhadora não-residente foi indeferido pelo Director Substituto em 29/04/2005. Em 20/06/2005, a referida trabalhadora não-residente A recebeu e assinou a notificação em que foi notificada que o requerimento da "autorização especial de permanência" em Macau dos seus dois filhos foi indeferido.
3. Compulsados os processos, verificou-se que
1) A trabalhadora não-residente A, portadora do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente n.° XXXXXX/XXXX, cujo processo de renovação está em andamento, com o prazo de validade até 15/05/2007, desempenha actualmente a função de empregada de quartos não especializada no Hotel.
2) O seu marido D, portador do Título de Identificação de Trabalhador Não-Residente n.° XXXXXX/XXXX, cujo processo de renovação está em andamento, com o prazo de validade até 15/05/2007, desempenha actualmente a função de recepcionista no Hotel.
3) Foi enviada a Notificação n.° XXXXXX/XXXX/XXX aos dois filhos desta traba1hadora não-residente, B (nascido a 08/05/1998 nas Filipinas) e C (nascido a 17/04/2001 nas Filipinas) no prazo da permanência autorizada e eles estão a aguardar o resultado do pedido em causa.
4. A trabalhadora não-residente A declarou que a família dela é composta por 4 elementos (ela própria, marido e dois filhos).
5. Considerando que a trabalhadora não-residente A não está preenchida o requisito consagrado no artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003: "trabalhador não-residente especializado, cuja contratarão tenha sido do interesse da RAEM", acrescentando que os fundamentos formulados pela mesma não constituem condições para a autorização especial, pelo que, sugiro que deva ser mantido o indeferimento do pedido da permanência em causa"; (cfr. fls. 15 a 16 e 62 a 64 dos presentes autos).
- após parecer concordante, proferiu o Exm.º Secretário para a Segurança decisão com o seguinte teor:
"Indeferido o seu pedido da autorização de permanência, os interessados interpuseram recurso hierárquico necessário, solicitando a nova apreciação do seu pedido.
Ao abrigo do artigo 8.º n.° 5 da Lei n.° 4/2003, pode ser autorizada a permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM. A Autoridade tem aplicado o disposto acima referido com certa flexibilidade, nomeadamente no tratamento dos antigos casos de pemanência autorizada por longo tempo ou dos novos pedidos muito especiais.
Como os pais dos interessados não são trabalhadores não-residentes especializados, não estão preenchidos o requisito previsto na Lei acima mencionada. Nestes termos, ao abrigo do disposto supracitado e do artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo, decido manter o despacho do indeferimento do referido pedido, proferido pelo Director Substituto do Corpo de Polícia de Segurança Pública."
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
As questões a apreciar
As questões a apreciar são as seguintes:
A primeira, a saber se a recorrente A e o marido devem ser considerados trabalhadores especializados, nos termos e para os efeitos do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003.
A segunda, a de saber se a decisão recorrida viola o disposto no art. 1.º n.° 1 e 3.º da Lei 6/94/M de 1 de Agosto, mormente o direito que a lei confere aos cidadãos de constituírem família.

2. Trabalhador especializado
A recorrente requereu que, ao abrigo do art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003, fosse autorizada a permanência em Macau, dos seus dois filhos menores.
A Lei n.º 4/2003 estabelece os princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
O art. 8.º trata da autorização especial de permanência na RAEM.
No seu n.º 5, dispõe que:
“5. A autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado, cuja contratação tenha sido do interesse da RAEM, é concedida pelo período pelo qual o referido trabalhador estiver vinculado, sob parecer da entidade competente para a autorização da contratação de mão-de-obra não-residente”.
O Acórdão recorrido considerou provado que a contratação da recorrente e de seu marido, como trabalhadores não-residentes, foi autorizada para o desempenho de funções de empregada de quartos e de recepcionista de hotel, respectivamente.
No presente recurso jurisdicional, o Tribunal de Última Instância apenas conhece de matéria de direito (arts. 47.º, n.º 1 da Lei de Bases da Organização Judiciária e 152.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), não lhe sendo lícito censurar a decisão de facto do Tribunal recorrido desde que, como é o caso, não tenha ocorrido violação de disposição legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (n.º 2 do art. 649.º do Código de Processo Civil).
O trabalhador especializado ou especialista é aquele que possui determinadas habilidades ou conhecimentos especiais em determinada prática, actividade, ramo do saber, ocupação ou profissão. Opõe-se ao trabalhador indiferenciado, que é o que não pratica uma actividade que exija conhecimentos ou habilidade particular.
Pois bem, uma empregada de quartos e um recepcionista de hotel não podem ser considerados trabalhadores especializados, sendo, manifestamente, trabalhadores indiferenciados.
Nem se diga, como faz a recorrente, que, por terem sido contratados ao abrigo do Despacho n.º 49/GM/88, Boletim Oficial de 16 de Maio de 1988, têm de ser considerados trabalhadores especializados.
Não é assim. O mencionado Despacho ocupa-se da importação de mão-de-obra não-residente, quer se trate de trabalhadores especializados quer “de trabalhadores que, consideradas as condições do mercado de trabalho local, não se encontram normalmente disponíveis em Macau”. Daqui, decorre, portanto, que o Despacho n.º 49/GM/88 não se refere apenas à importação de trabalhadores não-residentes especializados.
E, tendo a recorrente e seu marido sido contratados para trabalhar como empregada de quartos e de recepcionista de hotel, não sendo trabalhadores especializados, bem andou o Acórdão recorrido ao considerar não lhes ser aplicável o disposto no art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003.

3. O direito de constituição de família
Os recorrentes entendem que a decisão recorrida – ao não autorizar a permanência dos filhos da recorrente em Macau - viola o disposto no art. 1.º n.° 1 e 3.º da Lei 6/94/M de 1 de Agosto, mormente o direito que a lei confere aos cidadãos de constituírem família.
É fora de dúvida que a Lei Básica confere aos residentes a liberdade de contrair casamento e o direito de constituir família e de livre procriação (art. 38.º, 1.º parágrafo).
O direito a constituir família significa que duas pessoas de sexo oposto, em idade de procriar, têm o direito de estabelecer vida em comum.
Recorde-se que de acordo com o n.º 1 do art. 23.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção da sociedade e do Estado”. E, dispõe o n.º 2 do mesmo art. 23.º do mencionado Pacto que “O direito de se casar e de fundar uma família é reconhecido ao homem e à mulher a partir da idade núbil”.
Embora o direito a constituir família já implique o direito à livre procriação, a Lei Básica reconhece expressamente este último direito.
Os direitos mencionados são reconhecidos aos residentes, entendendo-se por estes os residentes permanentes e os residentes não permanentes. Os residentes permanentes têm direito à residência na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e os residentes não permanentes não têm direito a tal residência (art. 24.º da Lei Básica).
A Lei Básica, no seu art. 43.º, equipara as pessoas que não sejam residentes de Macau, mas se encontrem na Região, aos residentes, para o efeito do gozo dos direitos e liberdades dos residentes previstos no Capítulo III da Lei Básica.
Contudo, há uma importante diferença entre o gozo dos direitos fundamentais previstos na Lei Básica por parte dos residentes e por parte dos não residentes: quanto aos residentes, a lei ordinária não pode restringir o conteúdo dos direitos previstos na Lei Básica, a menos que esta expressamente o admita. Mas já o pode fazer quanto aos não residentes, pois que, nos termos do referido art. 43.º, o gozo dos direitos fundamentais por parte dos não residentes é feito “em conformidade com a lei”. Quanto aos não residentes, a lei – entendendo-se aqui a expressão como significando lei formal da Assembleia Legislativa - pode prescrever discriminações entre residentes e não-residentes e, portanto, pode prever excepções e limitações ao princípio da equiparação entre residentes e não residentes.
De qualquer maneira, ainda que a recorrente fosse uma residente – e não é – não teria um direito a que os seus filhos permanecessem em Macau, desde que estes não tivessem, por si, o direito a residir na Região, como é o caso.
É que, se é certo que, tanto a Lei Básica (art. 38.º ), como o art. 1.º, n.º 1 da Lei de Bases da Política Familiar (Lei n.º 6/94/M, de 1 de Agosto) reconhecem a todos o direito a constituir família, este direito não abrange o direito à permanência dos filhos em Macau.
Uma coisa é a liberdade de contrair casamento e de procriar livremente, que são reconhecidos aos que residam ou permaneçam em Macau. Coisa diferente é o direito dos residentes ou não-residentes a ter os seus filhos em Macau, que não existe genericamente, a não ser nos casos previstos na lei.
Aliás, como observa a Ex. ma Procuradora-Adjunta, nada obsta a que a recorrente regresse ao seu país de origem, para tomar conta dos filhos e exercer o seu direito à reunião familiar.
Por outro lado, em outras regiões ou países – como Portugal - que também reconhecem o princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros ou apátridas quanto ao gozo dos direitos fundamentais e em que existe um direito constitucional à constituição de família (art. 36.º, n.º 1 da Constituição portuguesa), se considera que “os filhos de um estrangeiro ou apátrida que resida legalmente em território nacional não têm, ipso facto, um direito constitucional a residir em Portugal”1.
Por outro lado, o art. 3.º da Lei de Bases da Política Familiar, que reconhece a família como elemento fundamental da sociedade, também não parece ter a virtualidade de derrogar norma (art. 8.º, n.º 5 da Lei n.º 4/2003), aliás posterior àquela, que só admite a autorização de permanência do agregado familiar de trabalhador não-residente especializado.
Bem andou, pois, o Acórdão recorrido em negar a pretensão dos recorrentes.

   IV - Decisão
   Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso.
   Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC.
   Ao Ex.mo Patrono, atribui-se a quantia de MO$1,500,00 (mil e quinhentas patacas) a título de honorários no recurso jurisdicional.
   Macau, 10 de Janeiro de 2007.
   
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, Tomo I, 2005, p. 424.
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14
Processo n.º 39/2006