Proc. nº 206/2014
(Suspensão de eficácia)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 30 de Abril de 2014
Descritores:
-Suspensão de eficácia
-Prejuízo de difícil reparação
-Grave lesão para o interesse público
-Falta de contestação ou de alegação da lesão
-Factos notórios
SUMÁRIO:
I - Verifica-se o prejuízo de difícil reparação a que respeita a alínea a), do nº2, do art. 121º do CPAC se for negada a renovação de residência a um agregado familiar, em que dois membros são crianças que necessariamente terão que abandonar a escola que frequentam, com os inerentes prejuízos no progresso escolar, no desenvolvimento psíquico de cada uma, bem como formação da sua personalidade em razão da abrupta separação dos seus pequenitos amigos escolares.
II - Insere-se na mesma linha de prejuízos o afastamento dessas crianças da avó paterna, o que tornará os laços familiares mais ténues, o que não é nada bom para os valores intrínsecos da família, para a ideia de uma união consanguínea permanente e para os princípios de respeito, afecto e veneração pelos anciãos.
III - Os factos notórios não carecem de prova, face ao disposto no art. 434º, nº1, do CPC
IV - Se a entidade requerida não apresentar contestação ou se, apresentando-a, não alegar grave lesão para o interesse público em resultado da suspensão, deve entender-se que não impugna o requisito a que se refere a alínea b), do mesmo nº2. Nesse caso, de acordo com o disposto no art. 129º, nº1 do CPAC o tribunal deve considerar verificado o requisito constante dessa alínea a não ser que, não obstante essa falta de contestação, o tribunal considere ostensiva a verificação da lesão.
Proc. nº 206/2014
(Suspensão de eficácia)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A, viúva, de nacionalidade Indonésia, titular do Passaporte da República da Indonésia n.º VXXXXX5, com residência em Macau, na Avenida do XX, Edifício XX, Bloco XX, XX.º andar, fracção XX, vem, por si e em representação das suas filhas menores, B, titular do Passaporte da Austrália n.º NXXXXX8, e C, titular do Passaporte da Austrália n.º NXXXXX1, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 123.º e do artigo 120.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, requerer, a suspensão de eficácia do despacho do Ex.mo Senhor Secretário para a Segurança, de 27 de Fevereiro de 2014, notificado pessoalmente à ora Requerente, em 22 de Março de 2014, pelo Serviço de Migração do Corpo de Polícia de Segurança Pública com a Ref. NOT.520/14/E, despacho esse que lhe indeferiu o pedido de Renovação de Autorização de Residência com alegado fundamento na alínea 3) do n.º 2 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003 e no n.º 2 do art.º 22.º do Regulamento Administrativo 5/2003 e, simultaneamente, declarou caducada a Autorização de Residência concedida às suas supra citadas filhas, com alegado fundamento na alínea 3) do n.º 2 do art.º 9.º da Lei n.º 4/2003 e no n.º 1 do art.º 24.º do Regulamento Administrativo 5/2003.
Invocou que o acto em causa lhes causa prejuízo de difícil reparação, que inexiste grave lesão para o interesse público caso seja decretada a suspensão e que não há fortes indícios de ilegalidade do recurso.
Juntou documentos.
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Na resposta, a entidade requerida defendeu a improcedência da pretensão.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido do deferimento da requerida suspensão em termos que aqui damos por reproduzidos para todos os legais efeitos.
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Cumpre decidir.
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II - Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão bem representadas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III - Os Factos
- A Requerente e o seu falecido marido, D, contraíram casamento na Austrália em 16 de Abril de 2003 (Documento n.º 8, a fls. 35).
- D, de nacionalidade chinesa, cresceu em Macau, sendo titular de Passaporte e de Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau (conforme Documentos nºs 9 e 10 a fls. 36 e 37).
- A Requerente veio residir para Macau, com o seu marido, em 2006, por motivo de junção conjugal.
- Em Agosto de 2007, a família deixou de viver em Macau com carácter habitual, tendo passado a viver entre Jakarta, Indonésia e Xiamen, China, onde o marido da Requerente mantinha um negócio familiar.
- As duas filhas do casal, B e C, nasceram na Austrália, respectivamente, em 24 de Maio de 2007 e 17 de Dezembro de 2009 (documentos n.ºs 11 e 12 a fls. 38 e 39).
- Em Fevereiro de 2011, a D foi diagnosticado com um tumor maligno nas vias hepáticas, altura em que a família decidiu fixar residência em Xiamen, China.
- Após procedimentos cirúrgicos e várias tentativas de tratamento em Shanghai, a Requerente e os seus familiares ficaram cientes de que a morte do D seria um evento inevitável, tendo a família decidido regressar para Macau, em Fevereiro de 2012, para aqui o D passar os seus últimos dias.
- Assim, em inícios de 2012, D voltou a requerer a residência para a sua mulher e filhas por motivo de junção conjugal.
- D faleceu em 2/06/2012 no hospital XX vítima de neoplasia do fígado e dos ductos biliares (fls. 42 a 44).
- A mãe do falecido D, de nome E, é titular de Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau nº 7XXXXX9 (0) (fls. 45).
- Foi concedido à requerente o BIR Não Permanente de Macau em 6 de Setembro de 2012 com validade até 11/07/2013 (fls. 33).
- E as filhas passaram a ser titulares de idêntico título em 6/09/2012, com validade até 6/09/2017 (fls. 40 e 41).
- Depois da morte do seu marido e chefe de família, a Requerente continuou a viver com as suas filhas em Macau, residindo em casa que é propriedade da sogra.
- E, sogra da requerente, além de lhe prestar ajuda financeira, ainda paga todas as suas despesas diárias, incluindo a escola das crianças.
- A Requerente é titular única de um depósito bancário que lhe permite fazer face a qualquer imprevisto (Vd. Documento 19 a fls. 49 a 51).
- Assim, embora a Requerente não se encontre neste momento a trabalhar, tem condições económicas para permanecer em Macau e sustentar as suas filhas, sem dificuldades.
- A Requerente é licenciada em Marketing pela Universidade XX, Austrália (Cfr. Documento 20 a fls. 52).
- A Requerente tem permanecido em Macau honestamente, encontrando-se as menores a estudar na Macau XX College e na XX com bons resultados (Vd. Documentos 21 e 22 a fls. 53 e 54).
- A Requerente e as suas filhas encontram-se plenamente integradas a todos os níveis em Macau, designadamente, familiar, social e económico.
- Em 11 de Junho de 2013 a requerente requereu a renovação da autorização de residência.
- No respectivo procedimento administrativo foi então emitido o parecer pelo Serviço de Migração contido na Informação nº MIG.1112ª/2013/E, que tem o seguinte teor:
“1. Foram autorizadas a residir na R.A.E.M. em 12 de Julho de 2012, a interessada A e suas filhas B e C, a fim de se juntarem ao seu cônjuge/pai.
2. A interessada A, ao tratar das formalidades sobre a sua Renovação de Autorização de Residência, apresentou Certidão de Óbito do seu cônjuge, de onde consta que seu cônjuge, D faleceu com 02 de Junho de 2012, condição esta que se afasta do pressuposto inicial pelo qual lhe foi concedida a autorização de residência (junção conjugal), pelo que é de indeferir o respectivo pedido de Renovação da Autorização de Residência, e de declarara caducidade a Autorização de Residência concedida às duas filhas.
3. A interessada apresentou declaração a este Serviço, após audiência escrita.
4. Após a análise global do caso, consta que o cônjuge da interessada faleceu antes da data em que a esta foi concedida a Autorização de Residência, pelo que, atendendo aos factos e às disposições da alínea 3 do n.º 2 do art.º 9º da Lei 4/2003 e do n.º 2 do art.º 22º do Regulamento Administrativo 5/2003, propõe-se o indeferimento do presente pedido de Renovação de Autorização de Residência, simultaneamente, face às disposições da alínea 3 do n.º 2 do art.º 9º da Lei 4/2003 e do n.º 1 do art.º 24º do Regulamento Administrativo 5/2003, propõe-se a caducidade da Autorização de Residência concedida às duas filhas.”
- O Ex.mo Secretário para a Segurança em 27/02/2014 exarou despacho de indeferimento do pedido e simultaneamente declara caducada a Autorização de Residência concedida, às filhas B (titular passaporte de Austrália n.º NXXXXX8) e da C (titular de aparte de Austrália n.º NXXXXX1).
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IV - O Direito
Os requisitos para a concessão da providência encontram-se no art. 121º do CPAC, que apresenta a seguinte redacção:
“1. A suspensão de eficácia dos actos administrativos, que pode ser pedida por quem tenha legitimidade para deles interpor recurso contencioso, é concedida pelo tribunal quando se verifiquem os seguintes requisitos:
a) A execução do acto cause previsivelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso;
b) A suspensão não determine grave lesão do interesse público concretamente prosseguido pelo acto; e
c) Do processo não resultem fortes indícios de ilegalidade do recurso.
2. Quando o acto tenha sido declarado nulo ou juridicamente inexistente, por sentença ou acórdão pendentes de recurso jurisdicional, a suspensão de eficácia depende apenas da verificação do requisito previsto na alínea a) do número anterior.
3. Não é exigível a verificação do requisito previsto na alínea a) do n.º 1 para que seja concedida a suspensão de eficácia de acto com a natureza de sanção disciplinar.
4. Ainda que o tribunal não dê como verificado o requisito previsto na alínea b) do n.º 1, a suspensão de eficácia pode ser concedida quando, preenchidos os restantes requisitos, sejam desproporcionadamente superiores os prejuízos que a imediata execução do acto cause ao requerente.
5. Verificados os requisitos previstos no n.º 1 ou na hipótese prevista no número anterior, a suspensão não é, contudo, concedida quando os contra-interessados façam prova de que dela lhes resulta prejuízo de mais difícil reparação do que o que resulta para o requerente da execução do acto.”
No caso dos autos, é conservatória a providência em apreço, cuja procedência depende, geralmente, da verificação cumulativa1 dos requisitos vazados no art. 121º, um positivo (alínea a), do nº1), outros negativos (alíneas b) e c), do mesmo nº1).
E por serem de verificação usualmente cumulativa, bastará a falta de algum deles, para que a providência não possa já ser decretada.
A afirmação acabada de fazer só cederá nos casos em que no caso concreto concorra alguma das excepções previstas nos nºs 2 a 4 do art. 121º do CPAC. Porém, na situação dos autos, não estamos seguramente perante a situação do nº2, nem a do nº3. Por outro lado, o nº 4 do art. 121º também não merece ser aqui convocado, na medida em que ele parte do pressuposto da existência de um grave prejuízo para o interesse público - o mesmo é dizer, da falta de prova do requisito da alínea b), por parte do requerente -, ainda que desproporcionadamente inferior ao que para o requerente resultaria da não suspensão, i.e., da imediata execução do acto.
Em face de tais circunstâncias, continuaria a impor-se-nos a indagação acerca da existência conjunta dos apontados requisitos.
Todavia, quando a entidade requerida não apresenta contestação ou se, apresentando-a, não alega grave lesão para o interesse público em resultado da suspensão, deve entender-se que não impugna o requisito a que se refere a alínea b), do mesmo nº2. Nesse caso, de acordo com o disposto no art. 129º, nº1 do CPAC o tribunal deve considerar verificado o requisito constante dessa alínea a não ser que, não obstante essa falta de contestação, o tribunal considere ostensiva a verificação da lesão2.
Ora, no caso dos autos, visto que a entidade requerida, na sua contestação, não alegou que a suspensão de eficácia cause grave lesão do interesse público, sendo certo, por outro lado, que o caso não é de modo nenhum de gravidade “manifesta ou ostensiva” dessa lesão, temos que dar por ocorrido o requisito da alínea b), do nº1, do citado artigo, à luz do citado normativo (art. 129º, nº1, do CPAC).
Em abono da verdade, mesmo que tivéssemos que o conhecer, seríamos obrigados a ponderar que a situação de facto não parece levar a concluir que o retardamento na execução do acto pelo tempo por que durar o recurso contencioso seja de molde a trazer qualquer lesão ao interesse público relevante, porquanto nenhuns fins de segurança e tranquilidade, bem como nenhuns outros ligados à necessidade do respeito pelas regras de convivência social estão em risco. O mesmo é dizer que não custa pensar que o interesse público em nada fica beliscado com a permanência da requerente e das suas filhas na RAEM até ao momento em que for decidido o recurso contencioso com trânsito em julgado3.
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Por outro lado, não sentimos que o recurso contencioso dirigido ao acto suspendendo possa estar enfermado de “ilegalidade” na sua interposição do ponto de vista processual ou adjectivo. Deste modo, somos a dar por verificado o requisito da alínea c), do nº1, do art. 121º citado.
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Deixamos para o fim, propositadamente, o requisito que no preceito surge em primeiro lugar (nº1, al. a)) para dizer que nem ele parece constituir obstáculo ao deferimento do pedido.
É verdade aquilo que a entidade requerida aduz: que a autorização da residência à requerente e às filhas foi subordinada ao fim de reagrupamento familiar, pressuposto que deixou de existir a partir do momento em que o marido faleceu. Como certo é, ainda, estarmos em presença do exercício de um poder discricionário conferido pelo Regulamento nº 5/2003 e pela Lei nº 4/2003. Todavia, não é disso que agora se cura. Essa será matéria de fundo ou de substância de que importará extrair os devidos efeitos no processo próprio, que é o recurso contencioso. No preciso âmbito processual em que nos encontramos é questão fora do nosso escrutínio.
Não deixa de ser líquido, de igual modo, que a requerente centra a sua atenção no dano que a execução imediata do acto pode causar nas duas crianças. Isso, porém, não é impedimento ao deferimento da pretensão, uma vez que os interesses que ela defende, aqui e no recurso, sendo das suas duas filhas menores, também são necessária e umbilicalmente seus, enquanto mãe e progenitora, em cujo conteúdo do poder paternal se inclui o de zelar pelo interesse dos filhos, velar pela sua segurança e saúde, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens (art. 1733º, nº1, do CC). Não esqueçamos que a requerente também está a agir nos autos, por si mesma e em representação das crianças. Aliás, até se pode dizer que aquilo que for mau para as filhas de tenra idade é necessariamente mau para a requerente.
Desçamos, portanto, à análise do requisito.
E devemos adiantar, desde já, que estamos inteiramente em sintonia com a digna posição do Ministério Público.
Logo que nasce, o primeiro vínculo gerado em cada indivíduo é para com a sua família. É, na sua esfera, o primeiro a criar-se e há-de ser o último a perder-se. Trata-se de um vínculo inquebrantável que o acompanha até ao último dos seus dias de vida. Por isso, a sociedade tudo deve fazer para fomentar estes nobres e perenes ideais de família, cujo desmoronamento pode levar à descaracterização e desumanização social com os riscos próprios de um colectivo sem afectos.
Neste sentido, a execução do acto provocará a necessidade de a requerente e as duas filhas se ausentarem de Macau, com perda do estatuto de residente (isso parece inquestionável). E por outro lado, se a avó paterna das crianças vive em Macau, terão que apartar-se dela e, dessa maneira, os laços familiares irão ficar mais ténues, dada a tenra idade de cada uma, o que não é bom para os valores intrínsecos da família, para a ideia de uma união consanguínea permanente e para os princípios de respeito, veneração e afecto pelos anciãos.
Finalmente, dúvidas não há de que a saída das crianças de Macau a meio do ano lectivo implicará o abandono forçado dos estabelecimentos de ensino que cada uma frequenta com bons resultados, o que provocará atraso no seu progresso escolar. Isto para já não falar nos reflexos negativos para a esfera psíquica das crianças e para a formação e desenvolvimento da sua personalidade que o afastamento abrupto dos seus pequenitos amigos escolares pode provocar. Tudo isto foi alegado e, por ser do senso comum e do conhecimento geral, não precisa de prova (cfr. art. 434º, nº1, do CPC). E constitui, sem dúvida, prejuízo de difícil reparação, para efeitos da alínea a), do nº1, do art. 121º do CPAC.
Eis, em suma, as razões pelas quais a providência não pode deixar de proceder.
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V - Decidindo
Face ao exposto, acordam em deferir a providência e, em consequência, decretar a suspensão do supra identificado acto da entidade requerida de 27/02/2014.
Sem custas.
TSI, 30/04/2014
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José Cândido de Pinho Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Relator) (Presente)
(Magistrado do M.oP.o)
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Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Subscrevo apenas o recurso na parte que diz respeito às menores B e C, filhas da recorrente A que as representa.
Vencido, no entanto, quanto à parte do recurso referente à recorrente A, por entender que, em relação a ela, estamos perante um acto puramente negativo sem vertente positiva, portanto insusceptível de suspensão, na esteira do já exposto por mim na declaração de voto de vencido que juntei nomeadamente aos Acórdãos tirados nos Processos nºs 815/2011 e 619/2012ª, em 22MAR2012 e 19JUL2012 respectivamente.
1 Neste sentido, entre outros, Acs. do TUI Acs. do TUI de 2/06/2010, Proc. nº 13/2010 ou de 13/05/2009, Proc. nº 2/2009, TSI de 10/03/2011, Proc. nº 41/2011/A.
2 Em sentido semelhante, ver Ac. do TSI, de 20/06/2013, Proc. nº 340/2013/A.
3 Neste sentido, ver, por exemplo, os Acs. do TSI de 21/12/2011, Proc. nº 785/2011/A; ou de 15/12/2011, Proc. nº 800/2011.
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