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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Dr. A, notário privado, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho da Secretária para a Administração e Justiça, de 26 de Julho de 2005, que aplicou ao recorrente a pena de cassação da licença de notário privado.
Por acórdão de 1 de Junho de 2006, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) deu provimento ao recurso, declarando nulo o acto administrativo, com o fundamento de que alguns factos que serviram de base ao acto punitivo, bem como a conclusão de que o recorrente violou o dever de advertência previsto no n.º 2 do art. 16.º do Código do Notariado não constavam da acusação, nem sobre as mesmas foi o arguido ouvido, pelo que se verificou nulidade do processo disciplinar.
Inconformada, interpõe a Secretária para a Administração e Justiça recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI) formulando em síntese, as seguintes conclusões:
1. Concordamos com a jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância no sentido de que à alteração não substancial de factos entre a acusação e o despacho sancionatório se aplica o artigo 339.º do Código de Processo Penal e que à alteração da qualificação jurídica se aplica o mesmo preceito, por analogia. Nas presentes alegações de recurso não pusemos em crise essa jurisprudência, com a qual concordamos. Ao invés, tentamos demonstrar que ela não se aplica ao caso vertente e que, portanto, o acórdão recorrido não deveria ter declarado nulo o acto recorrido com base nessa jurisprudência.
2. Os artigos do Relatório Final (os referidos pelo tribunal a quo e os referidos pelo recorrente) não se referem a matéria factual, mas sim a matéria jurídica. Na verdade, é nesses artigos que se encontra a fundamentação jurídica da proposta de decisão efectuada pelo instrutor do processo disciplinar.
3. De entre os referidos na conclusão anterior, não nos referimos propositadamente aos artigos 38.º e 39.º do Relatório Final porque são os únicos artigos em que manifestamos a nossa concordância quanto ao facto de conterem matéria de facto.
4. Da mesma forma que concordamos que essa matéria de facto não se encontrava vertida expressamente na Acusação, apesar de nela dever ser considerada formalmente integrada por força da remissão para as escrituras públicas onde se pode encontrar a citação referida no artigo 39.º do Relatório Final.
5. Todavia, a mera referência ou o mero recurso a factos novos (no contexto da alteração não substancial de factos) não obriga automaticamente à comunicação ao arguido da sua existência para que possa pronunciar-se sobre eles porque, nos termos do n.º 2 do artigo 339.º do Código de Processo Penal, ressalvam-se do dever de comunicação dos factos novos ao arguido os casos em que os factos novos tenham sido alegados pela defesa.
6. O que aconteceu nos presentes autos em, pelo menos, dois momentos: no artigo 47.º da Resposta à Acusação (página 503 do processo disciplinar, a que corresponde a página 16 da Resposta do arguido) e no artigo 47.º da Reclamação que efectuou da primeira decisão proferida pela entidade recorrida, que foi declarada parcialmente procedente (página 567 do processo disciplinar), o recorrente refere que "o contestante teve a preocupação, para além da advertência obrigatória dos contraentes relativamente à ineficácia do acto perante terceiros enquanto não fosse registado, de advertir os contraentes, invocando expressamente o disposto nos n.ºs 1 e 2 do C. do Notariado, para a ineficácia do mesmo «caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada».
7. Ou seja, os factos que constam dos artigos 38.º e 39.° do Relatório Final, para o qual remete a decisão recorrida, foram alegados por mais do que uma vez pelo próprio arguido na sua defesa. De forma que desnecessário se tornou efectuar a comunicação ao arguido de que iriam ser tomados em conta no processo disciplinar esses factos porque, relativamente a eles, o arguido não necessitava de mais tempo “para a preparação da defesa" (n.º 1 do artigo 339.°), aplicando-se, então, o n.º 2 do artigo 339.º do Código de Processo Penal.
8. O acórdão recorrido afirma ainda, na pág. 44, que a decisão punitiva recorrida contém uma infracção que não constava na acusação pelo que, tratando-se de uma qualificação jurídica diversa, se deverá aplicar analogicamente o artigo 339.º do Código de Processo Penal, tendo declarado, em consequência, nula a decisão.
9. Mesmo que admitamos que essa "acusação" se trata de algo de novo, daí não resultou qualquer qualificação jurídica diversa da infracção disciplinar porque a censura disciplinar de que foi alvo o recorrente se manteve inalterada entre a acusação, o relatório final e a decisão punitiva: a prática de irregularidades graves na sua actividade profissional, conforme prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 18.° do Estatuto dos Notários Privados (ENP), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/99/M, de 1 de Novembro.
10. Por outro lado, de acordo com o regime disciplinar dos notários privados, nunca será possível uma agravação da moldura sancionatória abstracta aplicável ao arguido, mesmo que exista uma qualificação jurídica diversa ou uma alteração de factos porque, de acordo com o artigo 18.º do ENP, as penas serão sempre as mesmas, independentemente da acusação/condenação: suspensão administrativa ou cassação (ao contrário do que acontece no regime disciplinar do ETAPM e nos ilícitos criminais em que as molduras sancionatórias abstractas variam em função do tipo-de-ilícito que esteja em causa).
11. Tratando-se, portanto, de um caso em que a alteração da qualificação jurídica implica sempre a aplicação abstracta de penalidade igual e tendo em atenção que essa alteração não implicou qualquer alteração para a estratégia da defesa (até porque foi trazida aos autos pela própria defesa, tendo o arguido tido conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar), não se torna obrigatória a comunicação da alteração ao arguido para a poder contraditar.
12. Por outro lado, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 339.º do Código de Processo Penal, se a alteração da qualificação jurídica (ou dos factos) constante da acusação for alegada pela defesa, não há lugar à comunicação ao arguido da alteração.
13. O que aconteceu no artigo 47.º da Resposta à Acusação (página 503 do processo disciplinar, a que corresponde a página 16 da Resposta do arguido) e no artigo 47.º da Reclamação que efectuou da primeira Decisão proferida pela entidade recorrida, que foi declarada parcialmente procedente (página 567 do processo disciplinar), em que o recorrente refere que "o contestante teve a preocupação, para além da advertência obrigatória dos contraentes relativamente à ineficácia do acto perante terceiros enquanto não fosse registado, de advertir os contraentes, invocando expressamente o disposto nos nºs 1 e 2 do C. do Notariado, para a ineficácia do mesmo «caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada», o que é revelador das preocupações que o dominaram quanto à eventual falta de legitimidade do mandatário".
14. Referia-se, portanto, o arguido no processo disciplinar à advertência obrigatória prevista no artigo 16.º do Código do Notariado (CN), admitindo e reconhecendo que a ela estava obrigado. Todavia, se o recorrente admitiu e reconheceu essa obrigação, tendo-a, aliás, invocado no processo disciplinar, só parcialmente cumpriu com o dispositivo do artigo 16.º do CN porque apenas fez a advertência de que o acto seria ineficaz perante terceiros se não fosse registado e se a procuração tivesse sido revogada, não tendo efectuado qualquer advertência relativamente à ineficácia perante os mandantes.
15. Ou seja, se o arguido no processo disciplinar admitiu que a advertência do artigo 16.º do CN era obrigatória e que a efectuou, tendo, no entanto, objectivamente, advertido e feito consignar a advertência no acto notarial em questão apenas parcialmente, ao contrário do que impõe esse artigo, o facto de o instrutor e a entidade recorrida não comunicarem essa alteração da qualificação jurídica em nada prejudicou o arguido na sua estratégia de defesa.
16. Pelo contrário, a advertência e a consignação da advertência da ineficácia perante os mandantes no acto notarial seria a atitude mais consistente com a sua estratégia de defesa para que evidenciasse conhecimento da lei, vontade de a cumprir, diligência no seu cumprimento e revelasse, como é alegado pelo recorrente, as “reocupações que o dominaram quanto à eventual falta de legitimidade do mandatário" (artigos 47.º da Resposta à acusação e da Reclamação da primeira decisão).
17. Em suma, tendo o arguido do processo disciplinar tido conhecimento de todos os elementos constitutivos da infracção e tendo sido ele próprio a trazê-los ao processo (sendo desnecessário o contraditório) e considerando-se que a alteração da qualificação jurídica não implica qualquer alteração da estratégia da sua defesa (porque é o próprio que admite a advertência prevista no artigo 16.º como obrigatória) não estavam o instrutor e a entidade recorrida obrigados à comunicação da alteração da qualificação jurídica.
A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu parecer em que se pronuncia pela improcedência do recurso, entendendo que o acto recorrido levou em consideração factos não constantes da acusação, bem como uma nova infracção disciplinar que também não constava da acusação. Mais entendeu estar em causa uma alteração substancial dos factos, tal como definida no art. 1.º, alínea f) do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente, bem como não se estar perante uma mera alteração da qualificação jurídica. Considerou ainda que a alteração de factos não resultou de alegação do próprio arguido.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
– por despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça de 21.01.2005, foi instaurado Processo Disciplinar ao notário privado Dr. A, ora recorrente; (cfr. fls. 388);
– em 23.03.2005, após proposta do Instrutor do dito processo disciplinar, foi o ora recorrente suspenso preventivamente das suas funções de notário privado; (cfr. fls. 443);
– em 28.03.2005, deduziu o Instrutor acusação contra o ora recorrente; (cfr. fls. 461 a 472).
– notificado da mesma, ofereceu o recorrente a sua defesa escrita, requerendo também a inquirição de oito testemunhas; (cfr. fls. 488 a 510).
– inquiridas três das testemunhas arroladas, em 11.05.2005, elaborou o Instrutor relatório final propondo a aplicação da pena de cassação da licença de notário privado do ora recorrente; (cfr. fls. 537 a 549).
– após parecer do Exmº Director dos Serviços de Assuntos de Justiça, foi o recorrente, por despacho da Exmª Secretária para a Administração e Justiça de 19.05.2001, punido com tal pena; (cfr. fls. 537).
– notificado do assim decidido, do mesmo reclamou o ora recorrente, imputando ao acto punitivo o vício de nulidade; (cfr. fls. 552 a 578).
– sobre tal reclamação, elaborou-se a informação – proposta nº XX/DSAJ/DAT/2005, datada de 16.06.2005, onde se propôs a manutenção do decidido no despacho punitivo; (cfr. fls. 579 a 586).
– em 24.06.2005, proferiu a Exmª Secretária para a Administração e Justiça despacho deferindo parcialmente a reclamação apresentada “para viabilizar a audiência das testemunhas indicadas pelo arguido”, consignando-se que o Instrutor do processo deveria “inquirir as testemunhas indicadas pelo arguido e, posteriormente elaborar novo relatório final”; (cfr. fls. 579).
– na sequência do assim decidido, o autor da supra referida informação elaborou novo expediente informando que o Instrutor do processo se encontrava a frequentar um curso em Portugal, propondo a sua substituição; (cfr. fls. 590 a 593).
– por despacho de 01.07.2005, foi o subscritor deste expediente nomeado Instrutor em substituição do anterior; (cfr. fls. 592).
– em 26.07.2005, por este novo Instrutor, foi elaborado o seguinte relatório final:
“1. A Associação (1) (abaixo designada por "Associação") é uma associação de piedade e de beneficência, cujos estatutos foram aprovados pela portaria nº 32-B, de 3 de Fevereiro de 1926 (B.O.M. nº 7, de 13.2.1926) e alterados por escritura de 9 de Abril de 1998, a fls. XX do Livro de notas nº XX do Cartório do Notário Privado B e publicados no B.O.M. nº 16, II Série, de 22.04.98, encontrando-se inscrita nos Serviços de Identificação de Macau sob o nº XXX (fls. 368v.).
2. No dia 30 de Setembro de 1993, o Sr. C, na altura Vice-Presidente da Direcção da Associação, outorgou, em representação desta, no Cartório do Notário Privado D uma procuração ( fls. 368v. e 369 ).
3. Pelo referido documento, a Associação constituiu seu bastante procurador o Sr. E aliás E1, a quem conferiu os poderes que aí se enunciam ( fls. 369 ).
4. A fim de operar os efeitos .da revogação da procuração que haviam acordado, a Associação deliberou designar como seus representantes para a outorga do respectivo acordo revogatório os Srs. C, F e G ( fls. 369 ).
5. Assim, a fim de procederem à revogação daquela procuração, os supra três indivíduos mencionados, e o Sr. E aliás E1, munidos do original da procuração, deslocaram-se no dia 14 de Fevereiro de 1995 ao escritório do advogado D, em cujo Cartório Notarial, como já se afirmou, havia sido outorgada a procuração em causa (fls. 369 ).
6. Aí chegados, e perante o ilustre Causídico, as partes expressaram verbalmente a sua vontade mútua de revogarem e cancelarem a procuração em questão ( fls. 369 ).
7. Em seguida, ainda, na presença do Exmº Sr. Dr. D, formalizaram o acordo revogatório, apondo no corpo do original da procuração:
- as expressões "A presente procuração cancela-se a partir da presente data. 14/2/95" e "Cancelled";
- as respectivas assinaturas dos Srs. C, F, G e E aliás E1 (fls. 369 ).
   8. Além disso e para afastar quaisquer dúvidas acerca da vontade das partes em, respectivamente, por um lado, derrogar, e por outro, renunciar a todos os poderes contidos na procuração em apreço, as partes inutilizaram-na, traçando por completo o seu texto ( fls. 369v. ).
9. O acordo revogatório foi efectuado na presença do Exmº Sr. Dr. D, que para conferir solenidade e testemunhar essa expressão de vontade das partes, apôs também a sua assinatura e o seu carimbo de advogado no original do corpo da procuração ( fls. 369v. ).
10. Atestando assim, que naquela data, 14 de Fevereiro de 1995, as três pessoas referidas e o Sr. E aliás E1 compareceram perante ele e declararam expressamente e por escrito, no corpo do original da procuração em questão, que a mesma a partir de aí se encontrava revogada (fls. 369v.).
11. Na sequência do que, o documento original que incorporara a dita procuração foi restituído pelo Sr. E aliás E1 à Associação ( fls. 369v. ).
12. E foi precisamente desse original que foi extraída a cópia certificada que ora se junta nas fls. 18 a 24 ( fls. 369v. ).
13. Assim, o documento da referida procuração foi entregue ao Sr. H aliás H1 que o depositou, juntamente com outros documentos da Associação, num cofre de segurança bancário, por si aberto junto do Banco, sucursal do [Endereço (1)] ( fls. 369v. ).
14. Sucede que, em virtude do falecimento súbito e inesperado do titular do supra mencionado acesso ao referido cofre, recusaram facultar à Associação o acesso à aludida procuração (fls. 370).
15. A Associação viu-se forçada, atenta a urgência nessa consulta, a intentar junto do Tribunal Judicial de Base uma providência cautelar não especificada, na qual requereu a abertura forçada dos três cofres de segurança existentes na sucursal do Banco do [Endereço (1)], alugados por H aliás H1 ( fls. 370 ).
16. Tal providência, que correu termos no 6º Juízo do Tribunal Judicial de Base da RAEM sob o nº CPV-XXX-XX-X, veio a ser decretada por douta decisão de fls. 25 a 54 ( fls. 370 ).
17. Foi nesse âmbito que se procedeu à abertura do cofre bancário nº XXXXX e à inventariação dos bens e valores nele depositados e se constatou que aí se encontrava depositado o original da procuração em apreço (fls. 370).
18. Posteriormente, o original da procuração foi depositado, em conjunto com outros documentos também inventariados, no cofre nº XXX-XXXXXX, aberto junto da mesma instituição bancária, à ordem dos já referidos Autos de Providência Cautelar nº CPV-XXX-XX-X ( fls. 370 ).
19. Ainda no âmbito desses autos, foi autorizada, a solicitação da Associação, a extracção de cópia certificada por notário de todos os documentos que se encontravam depositados nosmencionados cofres, entre os quais a procuração em causa, tendo inclusive sido determinado-pelo Tribunal que ficasse a constar nos autos um duplicado das cópias extraídas (fls. 370).
20. Assim, em cumprimento dos doutos despachos proferidos pelo Meritíssimo Juiz titular dos referidos autos, no dia 16 de Novembro de 2001, a Exma. Sra. Dra. I, Notária Privada, com Cartório em Macau, no [Endereço (2)], nessa qualidade, deslocou-se à sucursal do Banco, sita no [Endereço (1)] onde procedeu à extracção de cópia certificada da procuração em causa, tendo o respectivo original sido devolvido ao cofre bancário nº XXXXX, onde ainda se encontra ( fls. 370v. ).
21. O Sr. E aliás E1 está a servir-se de uma cópia da dita procuração certificada pelo Notário Privado J, em 07 de Junho de 1995, cópia essa que se encontra presentemente arquivada no Cartório Notarial das ilhas ( fls. 370v. ).
22. Porém, a pública-forma certificada pelo Notário Privado J, em 07 de Junho de 1995, não tem o seu texto inutilizado e cancelado conforme o original - do qual certifica ter sido extraída, quando que na data da dita certificação (07.06.95) o original da procuração estava com dizeres de cancelado e o respectivo texto inutilizado ( fls. 370v. ).
23. Ou seja, quando em 07 de Junho de 1995 o Notário J; fez a certificação de uma pública-forma da procuração sub judice, e lhe apôs os dizeres "a presente fotocópia vai conforme o original", a dita pública-forma não estava conforme o seu original ( fls. 370v. ).
24. No dia 13 de Janeiro de 2003, o Sr. E aliás E1 através do cartório Notarial das Ilhas, outorgou um substabelecimento, com reserva, a favor dos Srs. K e L, para estes exercerem, em conjunto ou separadamente, todos os poderes que lhe foram conferidos pela Associação mediante a referida procuração ( fls. 370v. e 371 ).
25. Tanto a pública-forma da procuração como o seu substabelecimento estão arquivados presentemente no Cartório Notarial das Ilhas (fls. 371 ).
26. Os Srs. E aliás E1, K e L, utilizando a cópia certificada atrás mencionada e o alegado substabelecimento dos poderes conferidos naquela procuração, vêm arrogando-se a qualidade de representantes da Associação, invocando, designadamente, terem poderes para dispor do seu património imobiliário (fls. 371 ).
27. Toda esta factualidade foi sendo levada ao conhecimento de todos os notários de Macau pela Associação, incluindo o arguido, mediante cartas registadas e também enviadas por telecópia sucessivamente datadas de 28 de Fevereiro, 6 de Março e 21 de Maio de 2003, nas quais entre outros:
- se alertava para o facto da procuração em apreço estar revogada, juntando-se inclusive cópia do original da mesma;
- se adveria para a existência de um plano que visava lesar os direitos da Associação, o qual passava pelo uso da referida procuração pelo Sr. E aliás E1, nos termos supra mencionados, plano esse que era já conhecimento do Ministério Público no âmbito de uma queixa crime apresentada pela Associação;
- expressamente se afirmava que a Associação jamais havia deliberado proceder à venda ou à promessa de venda de quaisquer dos imóveis de seja titular e, muito, menos conferir, poderes ao Sr. E aliás E1 para em sua representação levar a cabo esses actos e outorgar nas respectivas escrituras públicas e/ou contratos promessa como seu representante ( fls. 67 a 90 ).
28. Nas mencionadas missivas a Associação concluía solicitando a todos os notários para não outorgarem qualquer acto notarial relativo a prédios ou direitos de que esta fosse titular, em face das óbvias e graves irregularidades de que esses actos acabariam por enfermar e das consequências, inclusive no plano crimh1a1, que os mesmos acarretariam (fls. 67 a 90 ).
29. Sucede que, em Junho de 2003, o Sr. E aliás E1, utilizando a dita pública-forma da procuração e invocando a qualidade de representante da Associação, contactou o arguido para lavrar diversas escrituras públicas de compra e venda cujo objecto seriam imóveis que são propriedade da Associação (fls. 7 e 432).
30. Em 23 e 25 de Junho de 2003, o arguido lavrou, com base na referida pública-forma da procuração, cinco escrituras públicas de compra e venda, lavradas respectivamente a fls. XX do Livro X, fls. XX do Livro X, fls. XX do Livro X. fls. XX do Livro X e fls. XX do Livro X do Cartório do arguido, nas quais o Sr. E aliás E1 vendeu, em nome da Associação, ao Sr. K os seguintes imóveis da Associação:
- Prédio sem número sito no [Endereço (3)], omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XX do Livro XXX;
- Prédio sem número sito no [Endereço (4)], omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os nº XXXXX, a fls. XXX. do livro XXX;
- Prédio sem número sito no [Endereço (5)], omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XXX do Livro XXXXX;
- Prédio sem número sito no [Endereço (4)], omisso na matriz predial urbana, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os nº XXXXX, a fls. XX do Livro XXX;
- Prédio com o [Endereço (6)], inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XX do Livro XXX;
- Prédio com o [Endereço (7)], inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XXX do Livro XXX;
- Prédio com o [Endereço (8)], inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XX do Livro XXX;
- Prédio com o [Endereço (9)], inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX, a fls. XXX do Livro XXX;
- Fracções autónomas designadas por "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX" e "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", e "XX", todas do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXXX-X, a fls. XX do Livro XXX;
- Fracções autónomas designadas por "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", "XX", todas do prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo XXXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XXXX, a fls. XXXX do Livro XXX; ( fls. 91 a 209 ).
31. Contudo, os poderes que na procuração em apreço se concediam ao referido Sr. E aliás E1, designadamente o de prometer vender e o de vender, referiam-se somente "à resolução junto dos tribunais e dos serviços públicos de quaisquer assuntos relacionados com os interesses e direitos reais que pertençam ou devam pertencer à ASSOCIAÇÃO (2), ainda não registados em nome desta Associação ou que a esta pertençam, por intermédio da ASSOCIAÇÃO (1).
32. Apesar de algumas semelhanças na respectiva denominação, a Associação não se confunde com a Associação (2), pois tratam-se de pessoas colectivas distintas. Embora com a mesma sede no [Endereço (4)], as duas associações têm os nomes, fins e condições de admissão de sócios diferentes. Na Direcção dos Serviços de Identificação, os seus registos são igualmente diferentes (fls. 376v.).
33. Com efeito, mesmo que a referida procuração não tivesse sido revogada, a mesma não confere quaisquer poderes ao mencionado Sr. E aliás E1, para este dispor livremente dos imóveis propriedade da Associação.
34. Ou seja, os poderes conferidos pela Associação ao Sr. E aliás E1, através da referida procuração, não se reportam a quaisquer direitos reais pertencentes à Associação mas antes, como resulta do próprio texto, pertencentes à Associação (2).
35. Ora, a referida pública-forma da procuração não pode servir de base à transmissão de imóveis da propriedade da Associação porquanto não só não confere poderes para transmitir bens da Associação, como também não confere poderes para operar a transmissão de bens.
36. Pelo que, apesar de ter sido invocado tal instrumento nas diversas escrituras de compra e venda efectuadas, as vendas foram efectuadas sem poderes de representação bastante, como, aliás, reconhece o arguido. Sendo, portanto, nos termos do disposto no artigo 261º do Código Civil, ineficazes relativamente ao representado, enquanto não forem por si ratificados.
37. Deveria, portanto, o arguido, em cumprimento do disposto no artigo 16º do Código do Notariado, ter advertido os outorgantes da existência desse vício (a representação sem poderes) e da ineficácia do acto se, e enquanto, não existisse ratificação por parte da Associação. Deveria, ainda, ter feito consignar nas escrituras públicas que efectuou essa advertência.
38. O que, todavia, não aconteceu.
39. Com efeito, o arguido limitou-se a consignar nas escrituras públicas que "Adverti os outorgantes da ineficácia deste acto perante terceiros enquanto não for registado, bem como, da ineficácia do mesmo, nos termos do artigo 16º nºs 1 e 2 do Código do Notariado, caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada." (fls. 95, 113, 136, 151 e 176 ).
40. Ou seja, o arguido não advertiu os outorgantes das escrituras nem delas fez constar a advertência da existência do vício de representação sem poderes. Sendo certo que, caso tivesse existido tal advertência, poderia até o comprador ter-se recusado à. outorga das escrituras por força da inexistência de poderes para a representação do vendedor e da consequência legal de tal falta de poderes.
41. Acresce que o arguido celebrou as escrituras públicas em questão após ter sido alertado, através das cartas enviadas pela Associação, que a Associação houvera revogado a procuração em apreço e que nunca houvera deliberado proceder à venda de quaisquer imóveis de que seja titular e, muito menos, conferir poderes ao Sr. E aliás E1 para em sua representação levara cabo tais vendas.
42. Por tais factos terem sido levados ao conhecimento do arguido, deveria o arguido ter usado de parcimónia no decurso da sua actividade de notário quando, ao arrepio do que lhe houvera sido alertado e pedido pela própria Associação, o referido Sr. E aliás E1 lhe solicita a celebração das escrituras de compra e venda de imóveis da Associação, agindo como seu representante - precisamente o enquadramento factual que a Associação houvera "previsto" no alerta que houvera efectuado a todos os notários.
43. O arguido poderia ter recusado, em cumprimento do dever de zelo a que se encontra adstrito, a prática dos actos notariais que lhe foram solicitados, nos termos do artigo 17º do Código do Notariado. Com efeito, o artigo 17º do Código do Notariado estipula que o "notário privado pode, sem necessidade de invocar razões que o justifiquem, recusar a prática de quaisquer actos da sua competência."
44. Optou, todavia, por os praticar, apesar de saber que, ao fazê-lo, não estaria a fazer verter nos actos notariais em questão a vontade expressa da Associação que neles aparecia representada. Com as consequências que daí adviriam e advieram.
45. A conduta do arguido demonstra falta de empenhamento no exercício das suas funções notariais, que têm por fim "dar forma legal e conferir fé pública aos actos jurídicos extra judiciais", conforme o artigo 1º do Código do Notariado.
46. O arguido violou, assim, o dever de advertência previsto no nº 2 do artigo 16º do Código do Notariado, na parte em que não advertiu e não consignou a advertência de que os actos em causa poderiam ser ineficazes por força da existência de uma representação sem poderes para tal.
47. O arguido violou ainda o dever geral de zelo previsto na alínea b) do nº 2 e nº 4 do artigo 279º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados porquanto os alertas por escrito da Associação deveriam ter provocado no arguido um especial dever de cautela e de parcimónia no sentido de procurar saber se os actos que lhe foram solicitados correspondiam à vontade da Associação, o que não aconteceu.
48. Ao não ter diligenciado no sentido de determinar se os actos notariais cuja prática lhe houvera sido solicitada eram, ou não, queridos pela Associação, quando eles tinham os contornos exactos que a Associação alertara que poderiam ter, poderia o arguido ter usado da faculdade de recusa dos notários privados, prevista no artigo 17º do Código do Notariado. Ao não o ter agido de uma forma ou de outra, violou o arguido o dever geral de zelo a que se encontra obrigado, por não ter agido com a eficiência, empenhamento e diligência que é exigida a quem dá forma legal e confere fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais.
49. O arguido alegou na sua defesa escrita que entendeu que a procuração em causa não tinha sido revogada na altura da outorga das referidas escrituras públicas. O arguido terá formado essa convicção tendo por base:
- A correspondência trocada entre a Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça e o advogado Dr. M, sobre a situação jurídica da procuração em causa, a qual lhe foi facultada por este último;
- O facto de a pública-forma da procuração e o consequente substabelecimento se encontrarem depositados no Cartório Notarial das Ilhas e de lhe ter sido exibida uma certidão dos mesmos.
50. Na verdade, a Directora substituta dos Serviços de Assuntos de Justiça escreveu, em 28 de Março de 2003, no seu oficio nº XX/DSAJ/DIC/2003, dirigindo-se ao Dr. M:
«Em resposta ao seu pedido de informação datado de 24 do corrente acerca de uma procuração, em que é mandante a Associação (1), mais conhecida por "XXX XXX XXXX" e mandatário E aliás E1, outorgada em 30 de Setembro de 1993, informo que está arquivada uma suapública-forma e um substabelecimento no Cartório Notarial das Ilhas.» ( fls. 436 )
51. No entanto, este oficio emitido pela Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça, apenas se refere ao facto do arquivo de uma pública-forma da procuração e de um seu substabelecimento no Cartório Notarial das Ilhas e não se diz respeito à validade e vigência da procuração.
52. Ou seja, deste oficio não se pode entender que a procuração em causa é válida e eficaz, podendo ser utilizada no comércio jurídico.
53. De facto, o facto de existir em arquivo no Cartório Notarial das Ilhas uma pública-forma da procuração e de um seu substabelecimento e o facto de existir uma certidão desses mesmos documentos, não comprova a validade da procuração em questão.
54. Por outro lado, não existia à data qualquer decisão judicial definitiva sobre a revogação da procuração que pudesse levar a uma tomada de posição diferente da Direcção dos Serviços de Assuntos de Justiça na correspondência trocada com o Dr. M.
55. Pelas infracções disciplinares que o arguido cometeu, são aplicáveis ao arguido penas disciplinares de suspensão administrativa até 2 anos ou de cassação de licença, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 18º do Estatuto dos Notários Privados.
56. A conduta do arguido causou avultados prejuízos à Associação, por ter transferido, contra a vontade desta, grande parte dos imóveis da Associação para terceiros. Estas infracções do arguido tomaram-se públicas, provocando grave perturbação para a segurança jurídica de Macau e total descredibilização e desprestígio para a relevante profissão notarial.
57. Existe assim uma produção efectiva de resultados prejudiciais à Administração Pública da RAEM e ao interesse da Associação, tendo tido o arguido a possibilidade ou devendo ter a possibilidade de prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta.
58. A responsabilidade do cargo exercido e o grau de instrução do arguido são elevados.
59. Pelo que, o arguido é prejudicado por circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar previstas nas alíneas b), h) e j) do nº 1 do artigo 283º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
60. Pelo exposto, as infracções cometidas pelo arguido demonstram total e completa falta de eficiência e empenhamento no exercício da sua função notaria, ou seja, uma completa ausência de competência para o exercício da função notarial, inviabilizando assim a continuidade do arguido a exercer a sua actividade de notário privado.
61. Tanto mais que ao arguido era exigida uma "actividade sob forma digna. contribuindo assim para o prestígio da Administração Pública" e da actividade notarial, conforme lhe era exigido pelo nº 1 do artigo 279º do ETAPM, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados.
62. Principalmente porque o arguido houvera sido alertado por diversas vezes e por escrito pela Associação em questão que poderia existir a tentativa da celebração das escrituras tal como foram celebradas e, mesmo assim, não se recusou a celebrá-las, apesar de saber que a sua sido informado por essa mesma Associação que a procuração se encontrava revogada e apesar de a referida procuração não conferir os poderes necessários para os actos em questão.
63. Considerando que a conduta do arguido revela incapacidade de adaptação às exigências da função notarial e incompetência profissional para o exercício da actividade notarial, bem como a existência das circunstâncias agravantes previstas nas alíneas b), h) e j) do nº 1 do artigo 283º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, sou de opinião que seja aplicada a pena de cassação de licença ao arguido.
Conclusões:
1. Pelo exposto, o arguido cometeu as infracções disciplinares resultantes da violação do disposto no artigo 16º do Código do Notariado, bem como do nº 1, da alínea b) do nº 2 e do nº 4 do artigo 279º do ETAPM, aplicável por força do artigo 21º do Estatuto dos Notários Privados.
2. Em relação às infracções disciplinares que o arguido cometeu, propõe-se, de acordo com a alínea a) do nº 1 do artigo 18º do Estatuto dos Notários Privados, a aplicação de pena de cassação de licença ao arguido.
3. Nos termos do artigo 19º do Estatuto dos Notários Privados e da delegação de competências constante do nº 1 da Ordem Executiva nº 6/2005, a aplicação da pena de cassação de licença é da competência de Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça.
4. Finalmente, nos termos do nº 5 do artigo 20º do Estatuto dos Notários Privados, após recebido o presente relatório final, deverá V. Exa. emitir parecer, no prazo de 5 dias, e remeter o processo a Sua Exa. a Secretária para a Administração e Justiça, para que a mesma tome decisão, no prazo de 20 dias, de acordo com o nº 3 do artigo 338º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
À consideração superior de V. Exa.
(...)”; (cfr. fls. 638 a 651).

– Após parecer do Exmº Director dos Serviços de Assuntos de Justiça, foi pela Exmª Secretária para a Administração e Justiça proferido o seguinte despacho (objecto do presente recurso contencioso):
“1. Analisado o processo disciplinar, considero provados os factos imputados ao arguido, designadamente os constantes dos nºs 27 a 32 do Relatório Final, e concordo com o enquadramento jurídico-disciplinar do comportamento do arguido que é feito neste mesmo relatório.
2. Esses factos constituem infracções disciplinares graves que provocaram grave perturbação para a segurança jurídica da RAEM e desprestígio para a relevante profissão notarial e demonstram uma completa ausência de competência para o exercício das funções, o que inviabiliza a manutenção da sua actividade privado.
3. Pelo que puno o Notário Privado, Dr. A com a pena disciplinar de cassação de licença, prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 18º do Estatuto dos Notários Privados, aprovado pelo Decreto-Lei nº 66/99/M, de 1 de Novembro.
4. Junte-se cópia do Relatório Final que aqui dou por integrado e notifique-se o arguido nos termos legais”; (cfr. fls. 638).
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
  
1. As questões a apreciar
Trata-se de saber se o acto punitivo se baseou em factos novos e em infracção nova não constantes da acusação deduzida no processo disciplinar.

2. Alteração de factos
O Acórdão recorrido deu provimento ao recurso contencioso por entender que alguns factos vertidos no acto recorrido não constavam da acusação, além de que também se fez constar a imputação de uma violação de um dever funcional por parte do então recorrente que não constava da acusação, sendo que tais matérias novas não lhe foram comunicadas a fim de se poder defender.
Estão em causa alteração de factos e alteração de direito, da acusação para o acto administrativo punitivo.
No relatório final, que o acto administrativo recorrido - que puniu o ora recorrido com a pena de cassação da sua licença de notário privado - integrou por meio de remissão expressa, fez-se constar determinada matéria (constante dos n. os 37 a 40) que não constava da acusação.
Igualmente, na conclusão do mencionado relatório se exarou que “o arguido cometeu as infracções disciplinares resultantes da violação do disposto no artigo 16.º do Código do Notariado, bem como do n.º 1, da alínea b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 279.º do ETAPM, aplicável por força do artigo 21..º do Estatuto dos Notários Privados”, sendo certo que na acusação se disse que o arguido violou “o dever de recusa da prática de actos notariais nulos previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Código do Notariado e o dever geral de zelo previsto na alínea b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aplicável por força do artigo 21.º do Estatuto dos Notários Privados”.
   No primeiro caso disse-se que o arguido, relativamente a escrituras de compra e venda que efectuou, deveria “em cumprimento do disposto no artigo 16º do Código do Notariado, ter advertido os outorgantes da existência desse vício (a representação sem poderes) e da ineficácia do acto se, e enquanto, não existisse ratificação por parte da Associação. Deveria, ainda, ter feito consignar nas escrituras públicas que efectuou essa advertência.
   38. O que, todavia, não aconteceu”.
   Bem como se disse no acto recorrido que “o arguido não advertiu os outorgantes das escrituras nem delas fez constar a advertência da existência do vício de representação sem poderes. Sendo certo que, caso tivesse existido tal advertência, poderia até o comprador ter-se recusado à. outorga das escrituras por força da inexistência de poderes para a representação do vendedor e da consequência legal de tal falta de poderes”.
A entidade recorrida aceita que da acusação não constava esta matéria e que ela constitui matéria de facto (art. 18.º das alegações de recurso). O que é exacto.
Não obstante, entende que não teria de cumprir o disposto no art. 339.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente (comunicação ao arguido da alterações de factos a fim de este poder preparar a defesa), por se tratar de factos alegados pela defesa no art. 47.º da resposta à acusação e no art. 47.º da reclamação da primeira decisão punitiva (que veio a ser revogada e substituída por uma segunda), de acordo com o disposto no n.º 2 do mencionado art. 339.º
Vejamos se foi assim.
O então arguido alegou o seguinte nos trechos indicados:
“47.º
   Veja-se, ademais, que o contestante teve a preocupação, para além da advertência obrigatória dos contraentes relativamente à ineficácia do acto perante terceiros enquanto não fosse registado, de advertir os contraentes, invocando expressamente o disposto nos n.ºs 1 e 2 do C. do Notariado, para a ineficácia do mesmo «caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada», o que é revelador das preocupações que o dominaram quanto à eventual falta de legitimidade do mandatário”.
“47.º
   Veja-se, ademais, que o reclamante teve a preocupação, para além da advertência obrigatória dos contraentes relativamente à ineficácia do acto perante terceiros enquanto não fosse registado, de advertir os contraentes, invocando expressamente o disposto nos n.ºs 1 e 2 do C. do Notariado, para a ineficácia do mesmo «caso a procuração tenha sido revogada ou cancelada», o que é revelador das preocupações que o dominaram quanto à hipotética e eventual falta de legitimidade do mandatário”.
Pois bem, o então arguido não alegou que não advertiu os outorgantes da representação sem poderes, como se diz no acto recorrido. O que o então arguido alegou foi precisamente o facto contrário, de que advertiu os outorgantes para a ineficácia do acto se a procuração tivesse sido revogada.
Ora isto não é a mesma coisa. É muito diferente ter o próprio arguido alegado – a propósito do seu zelo no cumprimento dos seus deveres enquanto notário – que tinha feito determinada advertência, embora não se lhe tenha sido imputado – até essa ocasião – que não o tinha feito. Outra coisa é ser imputada ao arguido tal violação de dever funcional e ele poder defender-se em termos mais profundos e pormenorizados do que o fizera em momento em que nada lhe tinha sido imputado.
Não se pode, pois, dizer que a alteração de factos derivou de factos alegados pela defesa, nos termos do n.º 2 do art. 339.º do Código de Processo Penal, até porque a defesa não alegou esse facto, mas antes o facto contrário.
Tais factos foram relevantes para a decisão.
Por conseguinte, estava a entidade recorrida obrigada a comunicar o aditamento dos novos factos a fim de o arguido se poder defender. Não o tendo feito, praticou a nulidade do procedimento a que se refere o art. 298.º, n.º 1, do ETAPM.

3. Alteração jurídica
No que toca à mera alteração da qualificação jurídica, este Tribunal já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão. Foi nos Acórdãos de 18 de Julho de 2001, no Processo n.º 8/20011 e no Acórdão de 23 de Abril de 2003, no Processo n.º 6/20032.
Aí se disse o seguinte:
“Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal de 1929
2. No Código de Processo Penal de 1929, que vigorou em Macau até 31.3.97 (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48/96/M, de 2.9), sem prejuízo da continuação da sua aplicação aos processos então pendentes, e que vigorou em Portugal até 31.5.87, com a mesma ressalva (art. 7.º do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17.2), a questão estava regulada no art. 447.º, onde se dispunha:

«Artigo 447.º
(Convolação para infracção diversa da acusação)
O tribunal poderá condenar por infracção diversa daquela por que o réu foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os seus elementos constitutivos sejam factos que constem do despacho de pronúncia ou equivalente.
§ 1.º ...
§ 2.º ...».
A interpretação relativamente consensual3 era a de que o tribunal era livre na qualificação jurídica, desde que os factos não se alterassem, podendo condenar por crime mais grave do que o constante da acusação.
A ideia que estava na base da norma foi explicitada por BELEZA DOS SANTOS4, da seguinte maneira:
“Compreende-se bem a razão de ser da independência que possui a sentença final na qualificação jurídica dos factos constantes da pronúncia ou equivalente.
Desde que esses factos constem da acusação formulada contra o réu, este tem possibilidade de organizar a sua defesa contra eles: não é colhido de surpresa por uma acusação que não esperava, por factos com que não contava e que, por isso, não pôde contestar a tempo.
Quanto à qualificação jurídica – isto é, à aplicação e interpretação da lei -, é manifesto que o réu não pode contar com aquela que o despacho de pronúncia adoptou.
Ela pode evidentemente ser alterada, sem que se prejudique os legítimos interesses do réu, a quem fica sempre aberto o caminho de discutir livremente a qualificação jurídica dos factos e de recorrer contra sentenças que façam uma apreciação ou interpretação da lei que julgue erróneas.
  Seria exorbitante e injustificado que se atribuísse ao réu a vantagem de beneficiar com qualquer erro de apreciação jurídica feita no despacho de pronúncia ou equivalente. Da mesma maneira seria injustificado e vexatório que se vinculasse o tribunal que tem de julgar a certa interpretação da lei seguida pelo juiz que pronunciou”.
  A norma tinha contra si diversas opiniões no plano «de jure condendo»5 e veio a ser posta em crise, por inconstitucionalidade, por se entender que violava as garantias de defesa do réu, na medida em que este não fosse prevenido da nova qualificação e lhe não fosse dada a oportunidade de se defender6.
  
  Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal português de 1987
  3. Os novos Códigos de Processo Penal, português, de 1987 e de Macau, de 1996, não contêm uma norma semelhante à do art. 447.º do Código de Processo Penal de 1929.
  As normas com relação com a questão em apreço, dispõem o seguinte.
  Código de Processo Penal de Macau de 1996:
  «Artigo 1.º 7
  (Definições)
  1. Para efeitos do disposto no presente Código, considera-se:
  ...
  f) Alteração substancial dos factos: aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;
  ...»
  
  «Artigo 339.º 8
  (Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
  1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos com relevo para a decisão da causa mas não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que não importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2.Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

Artigo 340.º
(Alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia)
1. Se do decurso da audiência resultar fundada suspeita da verificação de factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, e que importem uma alteração substancial dos factos descritos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso.
2. Ressalvam-se do disposto no número anterior os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
3.Nos casos referidos no número anterior, o juiz que preside ao julgamento concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.».

Face aos arts. 1.º, alínea f), 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, português, de 1987, semelhantes, como se disse, às normas citadas, pôs-se, então o problema de saber se o tribunal podia livremente alterar, no julgamento, a qualificação jurídica constante da acusação.
A) Para uns, tratava-se de alteração de factos, podendo ou não ser substancial, o que impedia, sem mais, a alteração da qualificação jurídica.
Era o caso de G. MARQUES DA SILVA9.
Entendia este autor, no seu manual escolar, que, no passado, a liberdade de qualificação jurídica dos factos pelo tribunal assentava na presunção inilidível do conhecimento da lei. A alteração verificada, para além de acentuar da estrutura acusatória do processo, prendeu-se, também, com a exigência de conhecimento da ilicitude que faz agora o Código Penal. Assim, acrescenta, «se nalguns casos é também objecto do conhecimento, no dolo, a norma que incrimina o facto, parece essencial que essa norma conste da acusação para que o arguido se possa defender, ou por outro modo, seria intolerável que o arguido pudesse ser surpreendido com uma condenação por um tipo legal de crime que desconhecia e lhe era indispensável conhecer para que tomasse consciência da ilicitude do facto».
Este autor apenas ressalvava os casos em que a alteração da qualificação não representasse uma alteração essencial do sentido de desvalor dos factos imputados ao arguido em termos de não pôr em causa a consciência da ilicitude do comportamento.
Para tais casos - que exemplifica com as normas que mantêm entre si uma relação de especialidade – qualquer alteração da qualificação, ainda que não essencial, deveria ser comunicada ao arguido e ser-lhe concedido tempo para a defesa, nos termos do art. 358.º.º do Código de Processo Penal, que trata das alterações não substanciais dos factos10.
B) Para outros autores, como FREDERICO ISASCA11 ou A.Q. DUARTE SOARES12, seguindo alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, o novo Código de Processo Penal era omisso quanto à problemática em discussão, pelo que não estava em causa qualquer alteração de factos, sendo, pois, livre o tribunal na qualificação jurídica, em termos semelhantes aos previstos no Código de Processo Penal de 1929.
  C) Para uma terceira corrente, intermédia, o novo Código de Processo Penal era omisso quanto à questão, concordando que não estava em causa qualquer alteração de factos. Mas, ao contrário da tese anterior, entendiam como MARIA JOÃO ANTUNES13 que a lacuna devia ser integrada pela aplicação analógica da norma referente à alteração não substancial dos factos, em nome da tutela efectiva do direito de defesa do arguido, pelo menos «quando a alteração da qualificação jurídica dos factos acarreta uma agravação da pena aplicável» devendo, pois, ser o arguido prevenido da nova qualificação jurídica para se poder defender.
  No mesmo sentido, TERESA BELEZA14, expendeu que o Código de Processo Penal, na sua redacção, pressupõe logicamente uma diferença entre alteração de factos e alteração da qualificação jurídica. E adiantando que hoje não é defensável a opinião de Beleza dos Santos, segundo a qual o arguido se defende fundamentalmente de factos e não de qualificações jurídicas, sugere que o Código de Processo Penal deveria ter previsto uma regra do tipo do art. 358.º, pelo que este deve ser aplicado por analogia.
  Entretanto, o legislador português, por meio da Lei n.º 59/98, de 25.8, alterou o Código de Processo Penal e acrescentou um n.º 3 ao art. 358.º, nos termos do qual “o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, resolvendo, assim, a querela doutrinal e jurisprudencial.
  
  Alteração da qualificação jurídica no Código de Processo Penal de Macau, de 1996
  4. Vejamos como se deve resolver a questão em face do Código de Processo Penal de Macau.
  Consideramos que a questão da alteração da qualificação jurídica não está regulada expressamente no Código. Na verdade, alteração substancial ou não de factos não é o mesmo que alteração da qualificação jurídica.
  Mas não é sustentável que dada a omissão o tribunal seja livre na alteração da qualificação jurídica, mormente para infracção mais grave.
  Por um lado, o legislador conhecia o consenso doutrinal que se estabeleceu nos anos finais da vigência do art. 447.º do Código de Processo Penal de 1929, no sentido que violava as garantias de defesa do arguido a livre alteração da qualificação jurídica, sem que lhe fosse dada a possibilidade de se pronunciar sobre a mesma.
Como explica G. MARQUES DA SILVA15 a «liberdade de qualificação pelo tribunal significava uma importante derrogação do princípio da acusação e do contraditório, já que o arguido acusado por violação de uma determinada norma poderia ser surpreendido pela condenação por outra sem que tivesse tido oportunidade de alegar as suas razões de facto e de direito sobre a norma que lhe foi aplicada».
Nem se entenderia que a acusação deva conter a indicação das disposições legais aplicáveis sob pena de nulidade [art. 265.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal] e tal indicação não tivesse qualquer efeito vinculativo para o tribunal16.
Nem se diga que o arguido se defende fundamentalmente de factos e não de qualificações jurídicas.
«É que os contornos objectivos do facto relevante só podem determinar-se por referência a determinada norma e, por isso, a prova dos elementos factuais relevantes pressupõe a sua prévia referência à norma que estabelece o modelo de comportamento delituoso»17.
Tomemos o seguinte exemplo: o arguido é acusado de sequestro simples, previsto e punível pelo art. 152.º, n.º 1, do Código Penal, embora na acusação se alegue que a detenção ocorreu ente os dias 3 e 6 de determinado mês (durou, portanto, mais de 2 dias).
Dado que o elemento constitutivo do crime é a detenção ou privação da liberdade de outrem, o arguido pode só se ter preocupado em arrolar meios de prova tendentes a demonstrar que não sequestrou a vítima, sem se ter preocupado em provar que a privação da liberdade durou menos de 2 dias, ou mesmo não ter arrolado quaisquer meios de prova, por aceitar o sequestro, mas não que este se prolongou por tal período.
Se na sentença viesse a ser condenado pelo crime qualificado do art. 152.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal (sequestro durante mais de 2 dias), isto representaria uma condenação de surpresa, visto que na incriminação da acusação o tempo de sequestro não era relevante, mas na incriminação da sentença já era e de que maneira, pois a penalidade aplicável passou de 1 a 5 anos de prisão, para a de 3 a 12 anos de prisão! Exemplos como este podem multiplicar-se.
Mas ao lado da defesa factual, em que a mudança da incriminação prejudica a estratégia da defesa, evidente no exemplo dado, o arguido também procede (ou pode proceder) a uma defesa jurídica, tanto na contestação, como na alegação oral em julgamento (arts. 297.º e 341.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Ora, é natural que, nessas peças processuais, o defensor do arguido se debruce sobre a construção jurídica da acusação que é feita ao arguido. Se na sentença vem a ser condenado com base em outra construção jurídica, toda a estratégia da defesa ficou prejudicada e saiu frustrada por essa surpresa.
Conclui-se, assim, que a questão da alteração da qualificação jurídica não está regulada expressamente no Código e que o tribunal não é livre na alteração da qualificação jurídica.

5. Como se sabe, os casos não previstos na lei são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos, sendo que há analogia sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (art. 4.º do Código de Processo Penal e art. 10.º, n.os 1 e 2 do Código Civil).
Os casos com algum paralelismo com a alteração da qualificação jurídica são os que se referem à alteração de factos descritos na acusação, previstos nos arts. 339.º e 340.º do Código de Processo Penal.
Quando ocorre uma alteração substancial dos factos, o juiz que preside ao julgamento comunica-os ao Ministério Público, valendo tal comunicação como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, os quais não podem ser tomados em conta para o efeito de condenação no julgamento em curso (art. 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Não é pacífica na doutrina e na jurisprudência qual a solução para estes casos de factos não autonomizáveis18, já se tendo defendido que o tribunal deverá proceder a uma absolvição da instância, a fim de que o Ministério Público proceda a inquérito pelos novos factos e deduza nova acusação que abranja todos os factos; ou que o tribunal deverá decretar uma suspensão da instância, para que o julgamento proceda depois de os novos factos terem sido investigados e objecto de nova acusação conjunta; ou prosseguir o julgamento com agravação da pena até ao máximo abstracto, sendo os novos factos objecto de julgamento separado19.
Por sua vez, quando se dá uma alteração não substancial dos factos, juiz que preside ao julgamento, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (art. 339.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Pois bem, a analogia com a alteração da qualificação jurídica só pode ser a da alteração não substancial dos factos. Por um lado, porque a alteração da qualificação jurídica é uma alteração não substancial da situação. Por outro, porque as soluções previstas para a alteração substancial dos factos seriam totalmente inadequadas à mera alteração da qualificação jurídica, enquanto que o remédio que a lei prescreve para a alteração não substancial dos factos é adequado à patologia relativa à alteração da qualificação jurídica.
À alteração da qualificação jurídica aplicar-se-á, portanto, por analogia, o disposto no n.º 1, do art. 339.º do Código de Processo Penal.
Acresce, ainda que, hoje, de acordo com o disposto no art. 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil «O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem».
Esta norma deve considerar-se aplicável em processo disciplinar, por via da dupla subsidiariedade do processo civil relativamente ao processo penal (art. 4.º do Código de Processo Penal) e deste relativamente ao processo disciplinar, nos termos já atrás descritos e a que também nos referimos no acórdão de 16.2.2000.

A questão de saber se qualquer alteração da qualificação jurídica obriga o juiz a comunicar a alteração ao arguido
6. Para os fins do caso dos autos, importa, agora, apurar se qualquer alteração da qualificação jurídica20 obriga o juiz a comunicar a alteração ao arguido e a conceder-lhe, se ele o requerer, o tempo para a preparação da defesa.
Na hipótese de a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada é manifesto que o juiz tem sempre de observar o contraditório.
Nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, temos de distinguir.
   Em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave, em termos de penalidade aplicável em abstracto.
   Por exemplo, se o arguido vem acusado de crime de furto, previsto e punível pelo art. 197.º, n.º 1, do Código Penal e na sentença vem a ser condenado pelo crime de burla, previsto e punível pelo art. 211.º, n.º 1, do Código Penal, é completamente surpreendido, apesar de se tratar de crimes a que cabe a mesma penalidade.
O mesmo se diga se o arguido vem acusado de crime de furto (punível com prisão até 3 anos ou pena de multa – art. 197.º, n.º 1, do Código Penal) e é condenado pelo crime de extorsão de documento (punível com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias – art. 216.º do Código Penal).
Já assim não será nos casos apontados por MAIA GONÇALVES21, em «que não é necessária a comunicação ao arguido quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar. Aqui podem apontar-se os casos de convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o crime simples; de crime doloso para o crime por negligência e, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade22 ou de consunção e a convolação é efectuada para o crime menos gravoso,23 rectius do crime especial ou qualificado para o simples ou para o que seria consumido pelo da acusação ou da pronúncia. Muitos exemplos se podem aqui apontar: Convolação de furto de valor elevado para furto simples; de roubo para furto; de homicídio ou de ofensas à integridade física cometidos dolosamente para os mesmos crimes por negligência; de violação para coacção sexual; de homicídio para homicídio privilegiado, etc.».
No sumário que acompanha o Acórdão de 18 de Julho de 2001, concluiu-se que:
“I - A questão da alteração da qualificação jurídica da acusação para a sentença, em processo penal, não está regulada expressamente no Código de Processo Penal.
II - À alteração da qualificação jurídica deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.º 1, do art. 339.º do Código de Processo Penal, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
III – Quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório.
IV - Nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica, não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave.
V – Não será de proceder à comunicação quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação, ou seja, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade ou de consunção e a convolação é efectuada para o crime menos gravoso”.
A entidade recorrida afirma concordar com o entendimento expresso por este Tribunal no mencionado Acórdão de 18 de Julho de 2001, mas considera que estamos perante um caso em que a penalidade se manteve igual, a suspensão administrativa até 2 anos ou cassação da licença e que a alteração não implicou alteração da sua estratégia de defesa até porque foi ele que trouxe a questão para o processo disciplinar, nos mencionados arts. 47.º da resposta à acusação e da reclamação a que atrás nos referimos.
Não subscrevemos este entendimento.
Antes de mais, não se tratou de mera alteração da qualificação jurídica da acusação para o acto punitivo e, portanto, a hipótese dos autos não cabe na doutrina estabelecida no nosso Acórdão anterior.
Na verdade, quando se fala de alteração da qualificação jurídica está-se a referir a convolação para infracção diversa da acusação. Era assim que se expressava o art. 447.º do Código de Processo Penal de 1929. O que está em causa é alterar a qualificação jurídica que se imputava aos mesmos factos, passar de uma infracção para outra infracção diversa, mantendo-se inalterados os factos.
No caso dos autos não foi isso que sucedeu. O acto punitivo aditou factos não constantes da acusação – nos termos vistos anteriormente – e imputou uma nova infracção ao arguido (violação do disposto no artigo 16.º do Código do Notariado) correspondente aos factos novos. É exactamente isso que afirma no douto parecer a Ex. ma Procuradora-Adjunta: “Quanto à qualificação jurídica dos factos, o que aconteceu não foi uma mera alteração da qualificação, mas sim a imputação de uma nova infracção derivada daqueles factos novos”.
Logo, tratando-se da imputação ao arguido de uma infracção diversa, isso implica que se esteja perante uma alteração substancial dos factos, nos termos definidos na alínea f) do n.º 1 do art. 1.º do Código de Processo Penal, pelo que, nos termos do art. 340.º do mesmo diploma legal, aqui aplicável subsidiariamente, era imprescindível ter ouvido o arguido para se poder defender da nova infracção. Não se tendo feito praticou-se a nulidade a que se refere o art. 298.º, n.º 1 do ETAPM, como se decidiu no Acórdão recorrido.

4. Nulidade - Anulabilidade
Por último, uma questão de qualificação jurídica.
O processo disciplinar enferma de nulidade insuprível, a que se refere o art. 298.º, n.º 1 do ETAPM, tal como decidiu o Acórdão recorrido. Mas daqui não decorre que o acto administrativo punitivo seja nulo, como se acabou por decidir.
Trata-se de duas questões distintas. Na verdade, a nulidade/anulabilidade do acto administrativo está prevista nos arts. 122.º e 124.º do Código do Procedimento Administrativo e de acordo com estas normas, uma nulidade procedimental – como foi o caso - não integra nulidade do acto administrativo. Logo, a mesma constitui a sanção da anulabilidade do acto punitivo, até porque não foi ofendido o conteúdo essencial de qualquer direito fundamental.
Nada obsta a que se corrija a qualificação.

IV - Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso jurisdicional, com a consequente anulação do acto recorrido.
Sem custas.
Macau, 31 de Janeiro de 2007.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei
1 Publicado em Acórdãos do Tribunal de Última Instância, 2001, Macau, Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância, 2004, p. 536.
2 Publicado em Acórdãos do Tribunal de Última Instância, 2003, Macau, Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância, 2006, p. 484.
3 Já CASTANHEIRA NEVES, Sumários de Processo Criminal, Coimbra, 1968, p. 262 e segs., propunha uma leitura restritiva do referido art. 447.º
4 BELEZA DOS SANTOS, A sentença condenatória e a pronúncia em processo penal, em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63.º, p. 385 e segs.
5 Exemplificativamente, SILVA e SOUSA, Condenações penais de surpresa, em Revista dos Tribunais, ano 67.º, p. 322, EDUARDO CORREIA, Caso julgado e poderes de cognição do juiz, em A Teoria do Concurso em Direito Criminal, Coimbra, 1983, p. 398 e segs.
6 Cfr., neste sentido, os acórdãos do Tribunal Superior de Justiça (de Macau), de 23.10.96, 9.4.97, 30.4.97 e 29.10.98, respectivamente nos Processos n.os 518, 638, 461 e 903, na Jurisprudência, também respectivamente, no II tomo de 1996, I tomo de 1997, p. 400 e 517 e II tomo de 1998, p. 599.
       7 É semelhante ao art. 1.º, alínea f), do Código português de 1987.
8 Os arts. 339.º e 340.º correspondem, com alterações de pormenor, aos arts. 358.º e 359.º do Código português de 1987, na redacção original.
     9 G. MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1994, III, p. 269 e segs.
10 Do mesmo autor e no mesmo sentido cfr. Objecto do processo penal: a qualificação jurídica dos factos, comentário ao Assento n.º 2/93, de 27/1/93, em Direito e Justiça (Revista da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa), 1994, volume VIII, tomo I, p. 91 a 116.
11 FREDERICO ISASCA, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 100 a 110.
12 A.Q. DUARTE SOARES, Convolações, em Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano II, tomo III, p. 20.
13 MARIA JOÃO ANTUNES, Tráfico de menor gravidade – Alteração da qualificação jurídica dos factos – direito de defesa, em Droga, Decisões de Tribunais de 1.ª Instância, 1993, comentários, Gabinete de Planeamento e de Coordenação do Combate à Droga, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, p. 297 e 298.
14 TERESA BELEZA, O objecto do processo penal: o conceito e o regime de alteração substancial dos factos no Código de Processo Penal de 1987, em Apontamentos de Direito Processual Penal, AAFDL, 1995, III volume, p. 88 a 106 e As variações do objecto do processo no Código de Processo Penal de Macau, em Revista Jurídica de Macau, 1997, volume IV, n.º 1, p. 45.
15 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 270.
       16 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 271.
17 G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 270, nota (2).
18 Se os novos factos forem independentes dos que constituem o objecto do processo, terá de haver novo processo e o processo pendente prossegue.
19 Sobre estas matérias, ROBALO CORDEIRO, Audiência de julgamento, em O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Livraria Almedina, Coimbra, 1995, p. 305 a 308, FREDERICO ISASCA, obra citada, p. 194 a 210 e TERESA BELEZA, O objecto ..., p. 92 e 102 a 104 e As variações..., p. 45 e 46 e 61 a 63.
20 Salvaguardado o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa, em que se deverá aplicar o disposto no n.º 2, do art. 339.º do Código de Processo Penal.
21 MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Livraria Almedina, Coimbra, 11.ª edição, 1999, p. 647 e 648.
22 Contra, ao que parece, G. MARQUES DA SILVA, Curso..., p. 272.
23 Os sublinhados são nossos.
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Processo n.º 52/2006