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Proc. nº 316/2011
Recurso Cível e Laboral
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 24 de Abril de 2014
Descritores:
-Execução de sentença
-Bens impenhoráveis
-Regalia social
-Comparticipação pecuniária

SUMÁRIO:

I - Uma “regalia social”, geralmente, tem um carácter duradouro ou permanente e constitui, uma vez fixada na lei e reunidos em concreto os respectivos pressupostos de facto, um direito subjectivo do indivíduo de carácter económico.

II - A intenção normativa patente no Regulamento nº 13/2009 é fazer distribuição de riqueza, é repartir por todos os residentes parte do saldo orçamental financeiro positivo da RAEM, perante um quadro de evolução muito favorável da economia da Região, para a qual se presume todos os cidadãos terão contribuído. A medida insere-se num plano distributivo universal, compensando de algum modo o esforço por todos desenvolvido para a obtenção daquele resultado.

III - A “comparticipação pecuniária” não está indexada à situação económica e social particular de cada beneficiário. Ao contrário, é transversal a toda a sociedade, independentemente do estatuto sócio-profissional e económico de cada um, apenas variando o seu montante em função da natureza permanente ou não permanente dos residentes.

IV - Não sendo, portanto, uma “regalia social”, não está aquele montante distribuído a título de “comparticipação pecuniária” a coberto da impenhorabilidade a que respeita o art. 707º, nº1, al. b), do CPC.










Proc. nº 316/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
Nos autos de execução por custas, multa e indemnização a oito trabalhadores do executado, de seu nome A, que por apenso aos autos de Processo de Contravenção Laboral nº CR1-08-0020-LCT correu no TJB, o Magistrado do Ministério Público promoveu a penhora do direito daquele no plano de comparticipação pecuniária conferido pelo Regulamento Administrativo nº 13/2009.
Tendo sido indeferida a pretendida penhora por despacho de 17/06/2009, dele vem o digno Magistrado do MP recorrer jurisdicionalmente, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
«1.) No caso concreto, o tribunal “a quo” fez uma errada interpretação da norma do artº 707 do C.P.C.M.;
2.) Uma vez que a natureza do direito de crédito conferido pelo Regulamento Administrativo nº 13/2009 não tem a natureza de “regalia social” como se refere no nº 1, al. b) da mesma norma;
3.) Com efeito, o termo “regalia social” empregue no art º 707, nº 1, al. b) do C.P.C.M. tem de ser entendido dentro do contexto onde está inserido;
4.) Em sentido amplo, a “ regalia social” pode ser vista como qualquer benefício concedido por Estado, independentemente de qualquer outro requisito;
5.) Porém, a regalia social que está referida no art º 707, nº 1, al. b) do C.P.C.M. relaciona-se, nitidamente, com a ideia de inferioridade social do seu beneficiário, pois, só nesse sentido se justifica a não penhora do mesmo na execução.
6.) Ora, a comparticipação pecuniária tem como seus destinatários todos os residentes da R.A.E.M., sem qualquer espécie de tratamento distinto, excepto o estatuto de residente permanente do destinatário;
7.) Salienta-se que não é o factor de posição de inferioridade sócio-familiar do destinatário que constitui requisito da concessão;
8.) No fundo, o crédito de plano de comparticipação pecuniária não é mais do que uma gratificação ou bónus, resultante do desenvolvimento económico da R.A.E.M. que alcança durante o ano económico anterior.
9.) Assim, não existe nenhuma semelhança entre a regalia social e o crédito concedido pelo Regulamento;
10.) Por outro lado, não se pode esquecer que a dívida exequenda em causa é uma dívida resultante de não pagamento do salário aos trabalhadores, e como é evidente, essa dívida merece de tanto protecção legal como qualquer outra,
11.) Até na lei de processo de trabalho, sempre existe a presunção da insuficiência económica por parte do trabalhador. (artº 6 do C.P.T.)
12.) Por outro lado, nos autos não existe nenhum elemento fáctico em indicar qual é a real situação económica do executado ou dos seus familiares, daí que não se pode atender circunstâncias supostas para alicerçar a decisão em causa, isto é, em considerar sem mais que o executado e os seus familiares se atravessam dificuldade económica inultrapassável com a penhora.
13.) Acresce que existe o meio de oposição à penhora prevista no art º 753 e seguintes do C.P.C.M. à disposição do executado para opôr à penhora, se realmente os pressupostos do artº 707, nº 3 do C.P.C.M. venham a verificar-se.
14.) Mesmo assim não entenda, e nos termos do artº 707, nº 2 do C.P.C.M., um terço do montante do crédito é penhorável.
15.) Em suma, artº 707 do C.P.C.M., e o artº 83, nº 3 do C.P.T. foram violadas.
Nestes termos, e pelas razões acima expostas, o recurso ora interposto mereça, ao nosso ver, de provimento e devendo revogar despacho recorrido, substituindo por outro que ordene a penhora o direito de crédito do executado, concedido pelo Regulamento Administrativo nº 13/2009».
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Cumpre decidir.
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II - Os Factos
Em 23 de Fevereiro de 2009, o digno Procurador-Adjunto junto do Tribunal Judicial de base requereu, por apenso aos autos de Processo de Contravenção Laboral nº CR1-08-0020-LCT, a execução por multa, custas e indemnização contra o executado A, tendo no correspondente requerimento inicial alegado, nomeadamente, que este, condenado em 28 de Outubro de 2008 a pagar MOP$ 48.515,00 de indemnização total aos oito trabalhadores identificados nesses autos, nem pagou as multas e custas do mesmo processo nos montantes de MOP$ 8.800,00 e MOP$ 1.003,00, respectivamente.
Em 10 de Junho de 2009, promoveu o Ministério Público que se procedesse à penhora do direito do executado no plano de comparticipação pecuniária conferido pelo Regulamento Administrativo nº 13/2009.
Em 17 de Junho de 2009 decidiu a M.ma Juiza do 1º Juizo Criminal do Tribunal Judicial de Base indeferir a pretendida penhora, com fundamento no disposto no art. 707º, nº1, al. b) e nº3. Do Código de Processo Civil.
O teor desse despacho é o seguinte:
«Tendo em conta o disposto no art. 707º, nº1, al. b) e nº3, bem como a natureza da quantia a ser executada nos presentes autos, determina-se não se proceder à penhora da quantia conferida pelo Plano de Comparticipação Pecuniária no Desenvolvimento Económico» (fls. 11 dos autos e 13 do apenso “Traduções”).
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III - O Direito
Duas coisas estão em causa no presente recurso jurisdicional:
Por um lado, saber se a “comparticipação pecuniária” é uma “regalia social” para efeito da impenhorabilidade prevista no art. 707º, nº1, al. b) do CPC, tal como o concluiu o despacho em crise.
Por outro lado, apurar se, atendendo à natureza da dívida e à situação concreta do executado, haverá aqui algum outro impedimento à penhora.
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Quanto à primeira parte, estamos seguros de uma resposta negativa.
Conforme resulta da própria designação inscrita no Regulamento nº 13/2009 (e o mesmo se passou com os regulamentos referentes aos anos subsequentes), do que se trata é de atribuir aos residentes da RAEM que observem os requisitos previstos no art. 2º do diploma uma «comparticipação pecuniária no desenvolvimento económico».
Isto significa que a intenção normativa é fazer distribuição de riqueza, é repartir por todos os residentes parte do saldo orçamental financeiro positivo registado em cada ano na RAEM. Ou seja, perante um quadro de evolução muito favorável da economia da Região, para a qual se presume todos os cidadãos terão contribuído, a medida insere-se num plano distributivo universal, compensando de algum modo o esforço por todos desenvolvido para a obtenção daquele resultado.
Repare-se, no entanto, que essa compensação não está indexada à situação económica e social particular de cada beneficiário. Ao contrário, é transversal a toda a sociedade, independentemente do estatuto sócio-profissional e económico de cada um, apenas variando o seu montante em função da natureza permanente ou não permanente da residência.
Dito isto, não estamos perante uma regalia social. Aliás, a regalia social, geralmente tem um carácter duradouro e permanente e constitui, uma vez fixada na lei e reunidos em concretos os respectivos pressupostos de facto, um direito subjectivo do indivíduo de carácter económico.
Esse não é o sentido da “comparticipação pecuniária”. O seu valor não é constante e, podendo, embora, registar aumentos de ano para ano, também pode sofrer flutuações negativas, dependendo das circunstâncias conjunturais. Ela tem, por isso, um carácter precário, podendo inclusive ser extinta a todo o momento, sem que desse facto se possa falar em ablação indevida, nem sequer apontar-se-lhe a violação do princípio da confiança. Ou seja, não é um apoio social aos carenciados; não visa proteger condições de vida humana com dignidade, não é, enfim, uma prestação certa que emirja de um direito. É, se assim o podemos dizer, uma espécie de liberalidade de um estado social que regista desafogo económico e financeiro.
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O despacho em crise, por outro lado, remete ainda para o art. 707º, nº3, do CPC.
Mas até nesse plano continuamos a pensar que ele continua a não poder manter-se.
Antes de mais nada, a dívida relaciona-se com uma indemnização aos 8 trabalhadores e com as custas do processo.
Não vemos em que medida a situação da entidade patronal esteja mais protegida do que a dos trabalhadores. Estes são, na legislação laboral, considerados a “parte mais fraca”, mais desprotegida, merecendo, por isso, uma maior atenção do legislador no que concerne ao respeito pelos seus direitos (ver, v.g., 4º, nº3, da Lei nº 7/2008). O trabalhador, por outro lado, goza de presunção de insuficiência económica (cfr. art. 6º do CPT); o empregador, não. E estando em dívida o pagamento de indemnização aos trabalhadores, não cremos que possam invocar-se aqui princípios de protecção ao devedor em razão da natureza da dívida.
Quanto às necessidades do executado e do seu agregado familiar, se é que isso foi intencional como fundamento da decisão, também não se pode sufragar o seu conteúdo decisório, na medida em que nem sequer foi invocada expressamente uma situação difícil ou débil do ponto de vista da subsistência económica daquele, nem os autos parecem revelá-la minimamente. Aliás, como diz o digno recorrente, o executado sempre teria, por si mesmo, o direito à oposição a que se refere o art. 753º do CPC.
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Pelo que acaba de se dizer, sem necessidade de adicionais considerandos, o despacho recorrido não pode manter-se. O que significa que os autos deverão prosseguir com a penhora requerida pelo digno Magistrado do MP.
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IV - Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que ordene a penhora requerida, a não ser que outra causa a tal obste.
Sem custas.
TSI, 24 de Abril de 2014


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José Cândido de Pinho
(Relator)

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Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)