Proc. nº 643/2013
Revisão e Confirmação de sentença
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 08 de Maio de 2014
Descritores:
-Revisão de sentença estrangeira
-Decisão arbitral
-Ordem Pública
-Apostilha
SUMÁRIO:
I - Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
II - Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
III - Não se pode dizer que se verifique violação da “ordem processual pública” se chega a reconhecer-se às partes o direito de submeterem o litígio a uma arbitragem que o julgue de acordo com recurso à equidade (art. 3º, DL nº 26/96/M, de 11/06), em que, como é sabido, não se observam critérios de legalidade estrita.
IV - Para efeitos do art. 1200º, nº1, al. f), do CPC, do ponto de vista formal, a ordem pública é o conjunto de valores, princípios e normas que se pretende sejam observados em uma sociedade. Do ponto de vista material, ordem pública é a situação de fato ocorrente nessa sociedade, resultante da disposição harmónica dos elementos que nela interagem, de modo a permitir um funcionamento regular e estável, que garanta a liberdade de todos.
V - Por isso, é de entender que “ordem pública” é conceito que aparece, portanto, mais associado a uma ideia de respeito pelos direitos substantivos e pelas posições substantivas individuais e menos relativizado a direitos processuais.
VI - A apostilha, depois da Convenção de Haia de 5/10/1961 - que dispensa a legalização dos actos definidos no seu artigo 1º e que continua em vigor em Macau, conforme Aviso do Chefe do Executivo nº 40/2002 - só é exigida de forma residual. Quer dizer, a legalização dos actos parece ficar confinada à apostilha nos casos em que ela não tiver sido dispensada pelos Estados (art. 3º, § 2º, da Convenção) e, mesmo nesse caso, não é obrigatória.
Proc. nº 643/2013
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
“A Limited”, com sede em XX Floor, XX House, XX, XX, XX, requereu contra B, titular do passaporte australiano nº E3XXXXX1, com domicílio profissional em C, Shop H, G/F, XX Building, XX, Avenida XX em Macau, a revisão e confirmação de sentença proferida pelo Centro Internacional para Resolução de Litígios do Tribunal Internacional de Arbitragem, do estado do Nevada, Condado de Las Vegas, de 9 de Abril de 2013, na acção nº 50 166T 0629 10, em que este foi condenado a pagar-lhe uma determinada quantia.
Juntou documentos.
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Contestou o requerido a fls. 47 (efectuando o pagamento da multa devido ao atraso) deduzindo a falta de autenticidade do documento onde consta a decisão que pretende ver confirmada e afirmando a verificação de um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional da RAEM no caso de se deferir a pretensão da requerente. Razões pelas quais a decisão não poderia, em sua óptica, ser confirmada.
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Respondeu a requerente a fls. 69 e sgs., suscitando a extemporaneidade da contestação, pugnando pela autenticidade do documento referido e defendendo a conformidade da decisão revidenda com a ordem pública da RAEM.
Juntou um documento (“Employment Arbitration Rules and Mediation Procedures”).
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O requerido, face a esta atitude processual do requerente, veio ao processo a fls. 143 e sgs. para defender a regularidade da contestação, pedir a condenação da autora como litigante de má fé, reiterar a anterior invocação de falta de autenticidade do documento e pronunciar-se sobre o documento apresentado pela requerente na sua resposta.
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A requerente, a fls. 152-154, pediu o desentranhamento desta peça do requerido com fundamento na inexistência de “réplica”, face ao disposto no art. 1201º do CPC (que apenas admite contestação e resposta), bem como se defendeu da má fé que o requerido lhe imputou.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido de se não opor ao pedido de revisão, propendendo ainda para não se verificar qualquer litigância de má fé.
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Cumpre decidir, colhidos que estão os vistos legais.
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II - Pressupostos processuais
1 - O tribunal é absolutamente competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio.
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2 - Nulidades
Será extemporânea a apresentação da contestação do requerido, tal como o defende a requerente?
Não.
A citação ocorreu no dia 14/11/2013 (fls. 44) e a partir do dia seguinte iniciava-se a contagem de um prazo de 15 dias para contestar. Em termos normais, esse prazo terminaria no dia 29 desse mês. Todavia, não havendo certeza de que a assinatura aposta no AR fosse do citando (tudo inculcaria que não fosse e a peça de fls. 143 e sgs. do requerido confirma-o), a Secretaria observou, como lhe cumpria o disposto no art. 199º, nº1, al. a), do CPC, concedendo mais 5 dias de dilação. O limite do prazo para contestar, deste modo, estendeu-se até ao dia 4 de Dezembro.
Ora, face ao disposto no art. 95º, nº4, do CPC, ainda podia o acto ser praticado nos 3 dias seguintes com multa. Foi o que sucedeu. A contestação deu entrada no dia 6 de Dezembro, mas o requerido efectuou o pagamento da multa devida (cfr. fls. 62-64).
Consequentemente, não se cometeu qualquer nulidade processual e a contestação, por essa razão, não pode ser desentranhada.
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Da admissibilidade da réplica
Defendeu a requerente que a “réplica” do requerido1 se não pode admitir, devendo ser desentranhada, uma vez que o art. 1201º do CPC apenas admite contestação e resposta.
Efectivamente, o aludido dispositivo legal apenas admite petição inicial, contestação (nº1) e resposta do autor à matéria desta (nº2).
Todavia a apresentação do articulado de fls. 143 e sgs. do requerido não tem o sentido de tréplica, mas simplesmente o de se defender da investida que a requerente fez na sua resposta de fls. 69 e sgs. a propósito da alegada extemporaneidade da contestação. Ora, se esta matéria de índole processual podia ter reflexos de índole substantiva nos direitos em debate, parece que não poderia deixar de se admitir o referido articulado, sob pena de se estar a suprimir o direito de defesa em contraditório (art. 3º, do CPC) e de se estar a postergar o princípio de igualdade das partes (art. 4º do CPC).
Foi, aliás, nesse articulado que o requerido pugnou pela litigância de má fé da requerente, que pelas mesmas razões de igualdade de armas e no respeito pelo princípio do contraditório, permitiu à requerente “A” dela se defender a fls. 152 e sgs.
Razão pela qual se aceita, e não se manda desentranhar, o requerido articulado.
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3 - As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III - Os Factos
1 - A requerente, “A Limited”, celebrou com o requerido B em 13 de Fevereiro de 2010 um contrato de trabalho com a duração de três anos.
2 - Antes disso, B exerceu funções na “D” como Director de Marketing Internacional.
3 - No dia 7 de Maio de 2010 o requerido comunicou à requerente a cessação da relação laboral.
4 - Em 15 de Junho de 2010 o requerido começou a trabalhar para a sociedade “C Limited”.
5 - A requerente intentou um processo arbitral no Centro Internacional para a Resolução de Litígios do Tribunal Internacional de Arbitragem da Associação Americana de Arbitragem.
6 - O contrato continha o ponto 10 (“Cláusulas Restritivas/Não Solicitação”) que apresentava o seguinte teor:
«(a) O Colaborador obriga-se e concorda, pelo presente, que, durante o Prazo, ou pelo período em que o empregador continuar a empregar ou remunerar o Colaborador (incluindo, mas não limitados a, pagamentos efectuados nos termos da Secção 6 (f), o que for mais abrangente, e o Colaborador não deverá, directa ou indirectamente, seja como principal interessado, agente, Colaborador, empregador, consultor, sócio, membro de uma sociedade de responsabilidade limitada, accionista de uma empresa de capital fechado, ou accionista com mais de dois por cento (2%) de uma empresa de capital aberto, director corporativo ou director, gerente, ou em qualquer outra capacidade individual ou representativa, envolver-se ou participar de qualquer maneira ou forma, em qualquer empresa que esteja em qualquer forma de concorrência com a principal actividade económica do Empregador ou das suas Filiais, em ou sobre qualquer mercado em que Empregador ou as suas Filiais operem actualmente ou já tenham anunciado, publicamente ou de outra forma, um plano para encetar operações hoteleiras ou de jogo.
(b) O Colaborador obriga-se e concorda, pelo presente, que, durante o Prazo e por um período de um (1) ano após o término do Prazo, o Colaborador não deve, directa ou indirectamente, recrutar ou tentar recrutar qualquer Colaborador ao nível da gestão do Empregador ou das suas Filiais, com ou em prol de qualquer empresa que esteja em qualquer forma de concorrência com a principal actividade económica do Empregador ou das suas Filiais, em ou sobre qualquer mercado em que Empregador ou as suas Filiais operem actualmente ou já tenham anunciado, publicamente ou de outra forma, um plano para encetar operações hoteleiras ou de jogo.
(c) O Colaborador compromete-se e concorda ainda que as cláusulas restritivas contidas nesta Secção 10 são razoáveis quanto à duração, termos e área geográfica e que protegem os interesses legítimos do Empregador, sem impor grandes dificuldades ao Colaborador, e que não são injuriosas para o público. No caso de qualquer das restrições e limitações previstas nesta Secção 10 serem consideradas como tendo ultrapassado as limitações cronológicas, geográficas ou quaisquer outras permitidas pela lei do Nevada, as partes concordam que um tribunal de jurisdição competente deverá rever todas as disposições ofensivas, de modo a fazer valer esta Secção 10 dentro dos limites máximos de tempo, geográficos ou outros permitidos pela lei do Nevada.”».
7 - A decisão arbitral foi a seguinte (ver fls. 18):
«DECISÃO
EM FACE DO EXPOSTO, APRESENTO A SEGUINTE DECISÃO:
A reivindicação da A contra B por quebra de contrato é concedida em parte. Concedem-se $250.000,00 à A a serem pagos por B.
As taxas e despesas administrativas do Centro Internacional para Resolução de Litígios (“CIRL”), totalizando US $ 4.050,00 serão suportadas igualmente pelas partes. Portanto, B reembolsará a A na soma de US$2.025,00, o que representa a parcela dos referidos honorários e despesas que excede os custos anteriormente incorridos pela A.
A remuneração e as despesas do árbitro, no montante de US $44.125,58 serão custeadas da seguinte forma: $7.653,25 pela A e US$36.472,33 por B. Portanto, B reembolsará a A na soma de US$14.409,54, o que representa a parcela da referida remuneração e despesas que excede os custos anteriormente incorridos pela A, como resultado da recusa de B em comparecer no primeiro dia da audiência de arbitragem, mediante comprovativo da A que esses custos foram pagos na íntegra.
Na medida em que B esteja na posse de qualquer Informação Confidencial ou outros materiais abrangidos pela Secção 9 do Contrato, fica aqui obrigado a devolver de imediato todos esses materiais à A.
A A tem direito a apresentar uma providência cautelar para aplicação da cláusula de não-solicitação prevista no Contrato (Secção 10 (bj), Até 15 de Fevereiro de 2014, B fica obrigado a cumprir, e está proibido de violar, a cláusula de não-solicitação contida no Contrato (Secção 10 (b)).
A A tem direito a apresentar uma providência cautelar para aplicação das disposições de não-concorrência previstas no Contrato (Secção 10 (a». B fica obrigado a cumprir, e está proibido de violar, as disposições de não-concorrência previstas no Contrato (Cláusula 10 (a)). B é obrigado a retirar-se imediatamente do emprego com a C (ou qualquer outro concorrente da A), e está impedido de trabalhar em marketing/relações com clientes na indústria do jogo em Macau e Las Vegas, como mais detalhadamente descrito acima. Esta restrição de não-concorrência deverá durar quatro meses, a contar da data na qual B cesse funções com a C. B tem direito a um crédito de cinco semanas sobre este período de quatro meses, entre a demissão da A a 9 de Maio de 2010, e a data de início de funções na C a 15 Junho de 2010.
Todas as outras reivindicações interpostas nesta arbitragem que não estejam resolvidas acima são deste modo negadas».
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IV - Decidindo
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Como é sabido, neste tipo de processos não se conhece do fundo ou do mérito da causa, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira revidenda satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito.
Ora, neste caso foram questionados dois requisitos essenciais: a autenticidade do documento e a violação da ordem pública que a revisão e confirmação implicaria.
Vejamos.
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Para se insurgir contra a autenticidade do documento, o requerido arguiu a circunstância de os documentos juntos com a petição inicial não serem mais do que dois certificados de tradução, um deles alegadamente emitido pelo Vice-Presidente do Conselho Internacional para a Resolução de Litígios da Associação Americana de Arbitragem.
Segundo o requerido, o documento nº 2 pretende certificar a tradução de um documento em língua inglesa para a portuguesa sem que dele conste o documento a que se refere o seu § 5º.
Quanto a isto, efectivamente tem razão. Contudo, o que ali faltava (“Regras de Arbitragem para o Emprego da Associação”) viria a ser junto a fls. 77 -140, circunstância que, caso fosse de irregularidade, estaria neste momento suprido. Não nos parece, contudo, que essas “regras” tivessem que figurar nos autos, dado que o requerido não pôs em causa alguma vez que a arbitragem tivesse ofendido alguma delas a que estivesse vinculado.
Devemos dar, então, o assunto por ultrapassado.
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O requerido arguiu, por outro lado, a circunstância de as certificações efectuadas pelos notários públicos E, do Estado do Nevada (doc. 1: fls. 31) e F, do Estado de New York (doc. 2. Fls. 37) não se encontrarem legalizadas pelos agentes diplomáticos ou consulares da República Popular da China, nem apostilhadas nos termos da alínea c), do artigo 1º da Convenção Relativa à Supressão da Exigência da Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros (Convenção de Haia de 5/10/1961) aplicável na RAEM e nos EUA.
Realmente nenhum daqueles actos notariais de certificação em língua inglesa (fls. 31 e 36) contém qualquer apostilha. Mas, por outro lado, acontece que a apostilha, depois da Convenção de Haia de 5/10/1961 - que dispensa a legalização dos actos definidos no seu artigo 1º e que continua em vigor em Macau, conforme Aviso do Chefe do Executivo nº 40/2002 - só é exigida de forma residual. Quer dizer, a legalização dos actos parece ficar confinada à apostilha nos casos em que ela não tiver sido dispensada pelos Estados (art. 3º, § 2º, da Convenção) e, mesmo nesse caso, não é obrigatória.
«Pode ser exigida para atestar a veracidade da assinatura, a qualidade em que o signatário do acto actuou…» (art. 3º, § 1º, da Convenção), mas só terá lugar a «….a requerimento do signatário» ou de «qualquer portador do acto» (art. 5º, §1º, da Convenção).
Ora, sendo assim, se a legislação local não a impõe, estando por isso dispensada, ela no caso só se deveria verificar no caso de alguma das partes a ter requerido no Estado contratante onde o acto notarial foi lavrado. E tal não aconteceu.
Quer isto dizer, em suma e dispensadas mais considerações, que não pode ser por essa via que os documentos juntos pela requerente podem ser encarados com desconfiança do ponto de vista da sua legalidade formal e, concretamente, a propósito da sua autenticidade.
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Mas o requerido também suscitou a questão da violação da ordem pública a que se refere o art. 1200º, nº1, al. f), do CPC.
Para si, a liberdade de profissão é um direito individual inviolável, apenas condicionado pelas opções e vocações de cada indivíduo.
O seu raciocínio é o seguinte: A decisão arbitral viola a ordem pública, na medida em que reflecte uma limitação do direito plasmado no art. 35º da Lei Básica de cada residente da RAEM de escolher profissão ou emprego e das condições do seu exercício e, portanto, também ofendendo o princípio da dignidade da pessoa humana. A proibição de trabalhar noutra empresa após a cessão da relação laboral que a ligava à A, bem como a imposição de sanções, não é tolerável pela ordem pública. Viola, além do mais, o disposto no art. 4º, da Lei nº 7/2008.
Vejamos, então, este requisito.
Entende-se por ordem pública aquele conjunto de normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, portanto, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos2. E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau (Ac. TSI, de 7/11/2002, Proc. nº 104/2002).
Podemos encontrar afloramentos do princípio do respeito pela ordem pública, quer no art. 20º do Código Civil, com um campo de referência vocacionado para a aplicação de normas exteriores a Macau, quer até mesmo no art. 273º, nº2, do mesmo diploma, quando aplicado aos negócios jurídicos que possam ser nulos. Mas não só.
A “ordem pública” surge, a maior parte das vezes, associada a algo muito próximo da segurança pública e dos objectivos a ela associados. Trata-se de uma locução que, nesse caso, tem por fundamento definitório um interesse fundamental da sociedade, portanto um interesse geral, que se pode manifestar pela importância na prevenção dos danos sociais à tranquilidade (manutenção da ordem na rua, nos lugares públicos, etc.), da segurança (prevenção de acidentes, defesa contra catástrofes, prevenção de crimes, etc.), salubridade (águas, saneamentos, etc.). Segundo o Prof. Jorge Miranda, “ordem pública” é o “conjunto das condições externas necessárias ao regular funcionamento das instituições e ao pleno exercício dos direitos das pessoas” e que, segundo o mesmo autor, aparece conexa com a segurança interna3.
Pois seja. Mas, a bem dizer, não há uma só ordem pública. Há várias, ainda que o conceito seja utilizado indistintamente ou chamado à colação de uma maneira abrangente e sem nenhuma cirúrgica preocupação restritiva. Existe uma ordem pública de segurança, uma ordem pública na saúde, uma ordem pública na salubridade, etc. Depende do contexto em que queiramos situar os factos.
Em termos gerais, do ponto de vista formal, a “ordem pública” é o conjunto de valores, princípios e normas que se pretende sejam observados em uma sociedade. Do ponto de vista material, ordem pública é a situação de fato ocorrente nessa sociedade, resultante da disposição harmónica dos elementos que nela interagem, de modo a permitir um funcionamento regular e estável, que garanta a liberdade de todos.
Sem se querer ser exaustivo no juízo, é de entender que “ordem pública” é conceito que aparece, portanto, mais reflector de uma ideia de respeito pelos direitos substantivos e pelas posições substantivas individuais e menos relativizado a direitos processuais.
Não estamos a dizer que as questões processuais sejam desprezíveis, mas o que nos parece claro é que, salvo em casos pontuais em que estejam em causa direitos fundamentais - como por exemplo, o próprio direito de defesa na sequência do direito à citação (mas isso já constitui um requisito expresso que não pode escapar à atenção do julgador: cfr. art. 1200º, nº1, al. e), CPC) - não haverá na generalidade dos casos razão para se falar em afrontamento da “ordem pública” sempre que os preceitos processual da ordem jurídica da RAEM não tenham sido aplicados no caso concreto. Parece, aliás, razoável entender-se que não pode ter maior desvalor a ideia de um atropelo a normas de direito adjectivo quando ele emerge de uma decisão arbitral, do que quando procede de uma decisão judicial proferida no quadro do ordenamento jurídico-constitucional local. Isto é, uma decisão que no plano arbitral possa afrontar princípios de direito adjectivo não pode ter maior descrédito do que uma decisão judicial que no seio interno de um ordenamento os afronte também. E nunca se viu dizer que uma sentença que, por exemplo, seja nula por um dos vários motivos possíveis (cfr. art. 571º, CPC) atente contra a ordem pública.
De resto, foi a tónica substantiva da ordem pública a eleita pelo requerido para colocar na sua contestação. Intolerável para si é que se coarcte o direito do indivíduo de escolher a profissão, o momento para a exercer e a entidade com quem a contratar. E teria sido isso o que a sentença arbitral acabaria por violar.
Antes de mais nada, cremos que a Lei nº 7/2008, especialmente no art. 4º invocado na vertente do nº2 (“A presente lei não pode ser interpretada no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho mais favoráveis aos trabalhadores, vigentes à data da sua entrada em vigor”) pouco préstimo ao caso oferece. Na verdade, a decisão em causa não visa interpretar o referido dispositivo legal. Limita-se a dar cobertura, mesmo assim parcial, ao alcance de uma cláusula contratual livremente acordada entre as partes, A e requerido. O pecado original, a existir, estaria contido no contrato, não na decisão.
Por outro lado, o art. 35º da Lei Básica também não o protege seguramente. Se é certo que «os residentes de Macau gozam da liberdade de escolha de profissão e de emprego», não é menos verdade que as relações contratuais são livremente negociáveis, desde que não ofendam regras imperativas e não atinjam o núcleo dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Nessa óptica, a cláusula contratual em apreço foi estabelecida numa base consensual e sinalagmática, de acordo com um acerto de posições que no momento da sua celebração servia os interesses de ambos os contratantes: o trabalhador prestaria o seu serviço para a nova empresa com regalias favoráveis, porventura em satisfação plena da sua expectativa e realização pessoal; a entidade patronal, assumiria o encargo dessas regalias, proporcionando àquele as melhores condições de trabalho, em troca do resultado positivo da sua função.
Nessa permuta negociada de benefícios e vantagens, o trabalhador aceitou perder parte da sua liberdade laboral, é verdade. Mas não é isso o que sempre acontece em qualquer contrato de trabalho? Quando fornece o serviço para uma entidade, dificilmente pode alguém prestá-lo a outrem. É um princípio basilar das relações laborais que só cede em casos pontuais em que é possível a cumulação de funções. E não é, aliás, isso mesmo que também sucede quando o funcionário presta o seu serviço à Administração Pública, livremente assumindo o compromisso de não exercer actividade privada?
E o que dizer quando a lei laboral obriga à comunicação prévia da intenção de alguém se despedir da empresa para a qual trabalha? Não é essa regra também limitativa da liberdade de o trabalhador mudar de emprego e de entidade patronal sempre e quando quiser?
Mudar de emprego e mudar de entidade patronal é algo que não pode ser proibido em termos absolutos; proibi-lo dessa maneira, isso sim, constituiria um atropelo indigno aos mais elementares direitos e liberdades do indivíduo. Mas, para além das regras jurídicas previstas nos diversos ordenamentos que estabelecem alguns condicionamentos, nos casos em que estão em causa superiores valores do mercado, relevantes interesses estratégicos empresariais, importantes sectores da vida económica que reclamam segredo, confidência e sã e leal concorrência, então algumas restrições à mobilidade não são mais do que o produto de um acertamento que não contende com o livre acesso ao mercado de trabalho, antes simplesmente o condiciona à verificação de certos requisitos.
Com franqueza, não vemos que uma limitação da empregabilidade numa empresa da concorrência durante um certo período de tempo – que, recorde-se, o trabalhador aceitou, certamente pelas condições favoráveis que lhe foram oferecidas inicialmente – seja atentado à ordem pública laboral, que o trabalhador entrevê protegida no referido art. 35º da Lei Básica ou no nº2, do art. 4º da Lei nº 7/2008.
Em suma, não vislumbramos no caso, nem pelo contrato assinado entre as partes, nem pela decisão arbitral, nada que ofenda a ordem pública e, por essa razão, não pode a situação caber no âmbito da previsão do art. 1200º, nº1, al. f), do CPC.
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Sendo assim, os fundamentos invocados pelo requerido devem ser improcedentes.
E por ser assim, bastará agora ver se algum dos outros requisitos legais impede o êxito do pedido.
Ora, os documentos constantes dos autos revelam e certificam a situação invocada pela requerente, mostrando, para além da autenticidade já estudada acima, a sua inteligibilidade (al. a), do nº1, do art. 1200º do CPC).
Por outro lado, a decisão transitou (al. b) do nº1, do art. 1200º do CPC) não está em causa a falta de competência do tribunal arbitral e o assunto tratado não versa sobre matéria que seja da exclusiva competência dos tribunais de Macau (art. 20º e al. c), do nº1, do art. 1200º, do CPC).
Também não se vê que tenha havido violação das regras de litispendência ou que tivessem sido violadas as regras de citação no âmbito daquele processo ou que não tivessem sido observados os princípios do contraditório ou da igualdade das partes.
Por tudo isto, nada obsta à procedência do pedido (art. 1204º do CPC).
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder a revisão e confirmar a decisão proferida pelo Centro Internacional para Resolução de Litígios do Tribunal Internacional de Arbitragem, do estado do Nevada, Condado de Las Vegas, de 9 de Abril de 2013, na acção nº 50 166T 0629 10, nos exactos termos acima transcritos em III-7.
Custas pela requerente.
TSI, 08 de Maio de 2014
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José Cândido de Pinho
(Relator)
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Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Seria, quanto nos parece, resposta à réplica (tréplica, portanto), porque a réplica é prerrogativa do autor e não do réu (cfr. art. 420º do CPC).
2 João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254.
3 Enciclopédia Verbo Luso-Brasileira da Cultura; Cfr. tb. Ac. TSI, de 18/10/2012, Proc. nº 127/2012.
O Ac. do STA de 06/04/1992, Proc. nº 029379 definiu a ordem pública como sendo “o conjunto de condições que permitem o desenvolvimento da vida social com tranquilidade e disciplina, de modo que cada indivíduo possa desenvolver a sua actividade sem terror ou receio”.
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