Processo nº 26/2014 Data: 15.05.2014
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acidente de viação.
“Homicídio por negligência grosseira”.
“Condução em estado de embriaguez”.
Indemnização.
Direito à vida.
Danos não patrimoniais.
SUMÁRIO
1. No que toca à indemnização do direito à vida incidem duas opiniões.
Em conformidade com certa corrente doutrinal e jurisprudencial, há que ter presente que o dano morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros, o que equivale a dizer que a indemnização não deve ser aferida pelo custo da vida para a sociedade ou para os parentes da vítima, mas sim pelo valor da vítima enquanto “Ser”, sendo assim um “prejuízo igual para todos os Homens”.
Por sua vez, também se defende que a vida é um bem não só pessoal, mas também da comunidade, de onde são beneficiários mais próximos os elementos da “família nuclear”. E, nesta ordem de ideias, embora constitua – repete-se – um “bem sem preço”, as realidades da sociedade exigem que pela sua perda se fixe uma indemnização onde se deve atender à “situação concreta”.
No fundo, coloca-se a questão de se saber se, (apenas) para efeitos compensatórios, é a vida de (v.g.) uma pessoa com elevadas e exigentes responsabilidades públicas, ou de um cientista, equiparável à de um operário não qualificado, se a vida de uma jovem, recém casada e grávida, saudável e com desafogada situação económica, é equiparável a de um idoso, enfermo, em fase terminal de um maleita e com dificuldades económicas...
Estatuindo o art. 487° do C.C.M. que no cálculo da indemnização se deve atender a critérios de “equidade”, ao “grau de culpa” e “às demais circunstâncias do caso”, adequado parece o entendimento segundo o qual se deve atender à “situação concreta”.
2. O C.C.M. não enumera os “danos não patrimoniais” confiando ao Tribunal o encargo de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos art°s 489° e 487°.
“Danos não patrimoniais” são aqueles que afectam a personalidade, o corpo ou a vida, na sua dimensão complexa-biológica e mental, física e psíquica, e que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito nos termos do art. 489°, n.° 1 do C.C.M..
Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma possibilidade compensatória, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.
A reparação dos danos não patrimoniais não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).
Tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer, proporcionando-lhe momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, sendo também de considerar que inadequados são “montantes miserabilistas”, não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”.
O relator,
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Processo nº 26/2014
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, pela prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real de:
- 1 crime de “condução em estado de embriaguez”, p. p. pelo artigo 90° n° 1 da Lei n° 3/2007 («Lei do Trânsito Rodoviário»), na pena de nove (9) meses de prisão; e,
- 1 crime de “homicídio por negligência grosseira”, p. p. pelo artigo 134° n° 2 do C.P.M. e artigo 93° n° 2 e n° 3 alínea 1), da Lei n° 3/2007, na pena de dois (2) anos e nove (9) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de três (3) anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de quatro (4) anos, com a condição de, no prazo de um mês, pagar aos lesados/demandantes cíveis uma “indemnização adicional” de quinhentas mil patacas (MOP$500.000,00), (…).
No que toca ao pedido de indemnização civil, decidiu-se condenar a 1ª demandada «COMPANHIA DE SEGUROS DA B (MACAU) (B保險(澳門)股份有限公司)», a indemnizar os (6) demandantes cíveis C, que também detém a qualidade de “assistente”, D, E, F, G e H, com a quantia total de MOP$1,500,000.00, condenando-se também a (2ª) demandada cível “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA (I建築(澳門)有限公司)” no pagamento da quantia de MOP$129,372.50 a favor daqueles (…); (cfr., fls. 445 a 459 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Do assim decidido, recorreram os referidos demandantes, tendo também a (2ª) demandada, “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA”, interposto “recurso subordinado”.
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Em sede de motivação e conclusões do seu recurso (“principal”), pedem os demandantes o aumento do montante fixado a título de indemnização e a condenação solidária dos demandados civis; (cfr., fls. 470 a 487).
[Nota-se que, neste T.S.I., em sede de exame preliminar e em conformidade com o estatuído no art. 407°, n.° 6, al. a) do C.P.P.M., proferiu o ora relator despacho datado de 28.04.2014 não admitindo o recurso principal do (1°) demandante civil e assistente, C, na parte referente à pena aplicada ao arguido, certo sendo que, após notificados todos os intervenientes processuais do assim decidido, nada veio aos autos; (cfr., fls. 621 e segs.)].
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Por sua vez, (no seu recurso “subordinado”), e alegando ter havido “concorrência de culpas” do arguido e do ofendido na produção do acidente, pede a (2ª) demandada civil a redução da dita indemnização; (cfr., fls. 574 a 579).
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Colhidos os vistos dos Mmo Juízes-Adjuntos, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 453-v a 455-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Dois são os recursos trazidos à apreciação deste T.S.I.: um - o principal – dos (6) demandantes civis C, que também é assistente, D, E, F, G e H, e o outro – subordinado – da (2ª) demandada COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA (I建築(澳門)有限公司).
Certo sendo que em causa está apenas a “decisão civil do T.J.B.”, (quanto ao pedido de indemnização civil pelos demandantes deduzido, vale a pena ter presente o segmento decisório agora objecto dos recursos.
Tem, (na parte que interessa), o teor seguinte:
“(…)
Ao cometer o facto ilícito que vem apontado terá o arguido incorrido no dever de indemnizar, verificando-se como se verificam os pressupostos da responsabilidade civil, à luz do que preceitua o artigo 477° do Código Civil.
Ora, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art°556° do CC).
E a indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art°560° do CC).
Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art°489° do CC).
O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias do art°487° e 488° do CC.
E, por consequência directa e necessária do acidente, a vítima J perdeu a vida, tendo a mesma falecido com 75 anos de idade, no estado civil de casado, deixando mulher e cinco filhos, os ora demandantes.
Assim, ao dano morte, tomando em conta que a vida é um valor absoluto e insubstituível mas que há que fixá-lo segundo o critério estipulado nos art°487°, 489° e 560° do Código, Civil, é atribuído o valor de MOP$800,000.00.
Pelo sofrimento da vítima nos instantes que precederam a sua morte, é fixado o valor de MOP$200,000.00.
Aos danos não patrimoniais sofridos, afigura-se justa a atribuição de MOP$100,000.00 para a mulher da vítima e o montante de MOP$80.000,00 para cada filho, pela perda do seu ente querido (art°487° e 489° do CC).
No que toca aos danos patrimoniais, o seu ressarcimento corresponderá às despesas médicas e funerárias, nomeadamente pela compra de caixão, de roupas e oferendas para antepassados, em cerimónias fúnebres e demais despesas em transportes e transferência da lápide, no montante total de MOP$129,372.50.
Tudo no total de MOP$l,629,372.50 a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Considerando que a demandada «Companhia de Seguros da B (Macau) apenas responde nos termos do contrato, que vai até ao limite de MOP$l,500,000.00, descontado primeiro esse valor, o remanescente da indemnização, no montante de MOP$129,372.50, deve ser suportado pelo 3° demandado cível, tudo acrescido de juros legais a contar a partir da data da presente decisão até ao seu efectivo e integral pagamento” (…); (cfr., fls. 457 a 458).
Contra o assim decidido, dizem os demandantes que se deve aumentar o valor da indemnização pelo “dano morte” da vítima (de MOP$800.000,00) para MOP$1.200.000,00, o mesmo sucedendo com a indemnização pelos “danos não patrimoniais” da (1ª) demandante (C, esposa da vítima), que deve passar (de MOP$100.000,00) para MOP$500.000,00, e (de MOP$80.000,00) para MOP$300.000,00, no respeitante aos (2° a 6°) demandantes, D, E, F, G e H.
Pedem também os mesmos que sejam os 3 demandados civis, (“COMPANHIA DE SEGUROS B MACAU”, a “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA”) e o arguido A condenados a pagar a indemnização de forma solidária; (cfr., fls. 222 a 239).
Por sua vez, e em síntese, diz a (3ª) demandada que houve “concorrência de culpas na produção do acidente”, e que, assim sendo, tal terá que se reflectir no montante da indemnização a pagar.
Identificadas que assim cremos ter ficado as questões que importa tratar, (do “quantum da indemnização” e dos “responsáveis pelo seu pagamento”), vejamos.
–– Comecemos assim pelo “quantum da indemnização”.
Pretendem os demandantes que se aumente o montante da indemnização fixada a título do “direito à vida” da vítima, assim como da indemnização pelos seus “danos não patrimoniais”.
Quanto ao “direito à vida” teve já este T.S.I. oportunidade de consignar o que segue:
“No que toca à indemnização do direito à vida incidem duas opiniões.
Em conformidade com certa corrente doutrinal e jurisprudencial, há que ter presente que o dano morte é o prejuízo supremo, é a lesão de um bem superior a todos os outros, o que equivale a dizer que a indemnização não deve ser aferida pelo custo da vida para a sociedade ou para os parentes da vítima, mas sim pelo valor da vítima enquanto “Ser”, sendo assim um “prejuízo igual para todos os Homens”.
Por sua vez, também se defende que a vida é um bem não só pessoal, mas também da comunidade, de onde são beneficiários mais próximos os elementos da “família nuclear”. E, nesta ordem de ideias, embora constitua – repete-se – um “bem sem preço”, as realidades da sociedade exigem que pela sua perda se fixe uma indemnização onde se deve atender à “situação concreta”.
No fundo, coloca-se a questão de se saber se, (apenas) para efeitos compensatórios, é a vida de (v.g.) uma pessoa com elevadas e exigentes responsabilidades públicas, ou de um cientista, equiparável à de um operário não qualificado, se a vida de uma jovem, recém casada e grávida, saudável e com desafogada situação económica, é equiparável a de um idoso, enfermo, em fase terminal de um maleita e com dificuldades económicas...
Estatuindo o art. 487° do C.C.M. que no cálculo da indemnização se deve atender a critérios de “equidade”, ao “grau de culpa” e “às demais circunstâncias do caso”, adequado parece o entendimento segundo o qual se deve atender à “situação concreta”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.03.2011, Proc. n.° 535/2010 e, no mesmo sentido, o Ac. do Vdo T.U.I. de 25.05.2011, Proc. n.° 15/2011).
Nesta conformidade, face ao que provado está, nomeadamente, que a vítima, à data da ocorrência, tinha 75 anos de idade, que era casado, com cinco filhos e não se olvidando que em matéria como a ora em questão se deve também acompanhar a evolução sócio-económica e, nomeadamente, a inflação, crê-se adequado o montante de MOP$1.000.000,00.
–– Detenhamo-nos agora na “indemnização pelos danos não patrimoniais dos demandantes”.
Como é sabido, os “danos não patrimoniais” são aqueles que afectam a personalidade, o corpo ou a vida, na sua dimensão complexa-biológica e mental, física e psíquica, e que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito nos termos do art. 489°, n.° 1 do C.C.M..
Sobre esta matéria teve já este T.S.I. oportunidade de se pronunciar, considerando-se, nomeadamente, que “a indemnização por danos não patrimoniais tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu.”; (cfr., v.g., o Ac. de 03.03.2011, Proc. n° 535/2010), sendo também de considerar que em matérias como as em questão inadequados são “montantes miserabilistas”, não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.06.2013, Proc. n.° 324/2013).
Na verdade, e como é sabido, a reparação dos danos não patrimoniais não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).
Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.
Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma possibilidade compensatória, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Porém, e como sabido é, o C.C.M., não enumera os “danos não patrimoniais” confiando ao Tribunal o encargo de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos art°s 489° e 487°.
Nesta conformidade, ponderando também no que provado está, em especial, que em consequência do acidente, e pela morte do seu familiar com aquele causado, tiveram os demandantes “grandes sofrimentos”, mostra-se-nos adequado fixar o quantum de MOP$300.000,00 para a (1ª) demandante C (viúva) e MOP$200.000,00 para cada um dos restantes (5) demandantes (filhos).
–– Resolvida que assim fica a questão do “quantum da indemnização”, continuemos, passando agora para a última questão pelos demandantes suscitada: do “pagamento solidário” da indemnização arbitrada.
Pois bem, antes de mais, cabe dizer que o pedido no sentido de serem os 3 demandados civis – a “COMPANHIA DE SEGUROS DA B (MACAU) (B保險(澳門)股份有限公司)”, a “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA (I建築(澳門)有限公司)” e o arguido A condenados a pagar solidariamente a indemnização tinha já sido feito na petição inicial dos demandantes, (cfr., fls. 222 a 239), certo sendo porém que, sobre a questão, nada disse o Colectivo do T.J.B..
Por sua vez, constata-se também que o mesmo sucedeu no que toca à “matéria de facto” alegada pelos demandantes no seu pedido civil e que se mostra relevante para tal decisão, nomeadamente, em relação à “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA”.
Com efeito, também aqui nada disse o Colectivo a quo quanto a esta demandada, especialmente, no que tange ao alegado no art. 66° do mencionado pedido civil, (cfr., fls. 237), quanto à propriedade da viatura conduzida pelo arguido, assim como em relação às restantes “circunstâncias” para efeitos da (eventual) aplicação do art. 496° do C.C.M.; (“direcção efectiva” e “interesse na utilização do veículo”).
Nesta conformidade, evidente nos parece que em causa não está apenas a falta de pronúncia em relação a parte do pedido deduzido, verificando-se, igualmente, o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, que sendo de conhecimento oficioso e porque insanável por este T.S.I., terá que dar lugar ao reenvio do processo – nos termos do art. 418° do C.P.P.M. – na parte em questão para novo julgamento e nova decisão do peticionado pagamento solidário.
–– Aqui chegados, vejamos agora da questão colocada pela (2ª) demandada em sede do seu recurso subordinado, e que tem a ver com uma alegada “concorrência de culpas do arguido e vítima do acidente de viação dos autos”.
Pois bem, nos termos do art. 564°, n.° 1 do C.C.M.: “quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.
E, prescreve também o art. 566° que: “àquele que alega a culpa do lesado incumbe a prova da sua verificação; mas o tribunal pode conhecer dela, ainda que não seja alegada”.
Nesta conformidade, vejamos.
Diz a ora recorrente que:
- “b) A prova produzida nos autos aponta para uma situação de concorrência de culpas na produção do acidente, o que não foi devidamente ponderado na douta decisão recorrida;
c) As fotografias de fls. 428 demonstram que, próximo da zona em que se deu o acidente, junto ao posto de abastecimento de combustível existente na Estrada Governador Albano de Oliveira, existia uma passadeira para peões;
d) Foi também possível apurar que entre esta passadeira e o local do embate distavam menos de 50 metros;
e) De facto, a testemunha K confirmou que a passadeira ali existente distava cerca de 5 metros do poste de iluminação colocado à entrada do posto de combustível acima referido (08:50 a 11:35 do ficheiro “Recorded on 23-May-2013 at 15.51.38 (OTM}I-3W02211270)”);
f) Sendo que o embate terá ocorrido quase em frente, ou apenas poucos metros à frente, do posto de iluminação imediatamente seguinte (01:05 a final do ficheiro “Recorded on 23-May-2013 at 12.45.07 (OTMX@FH102211270)” e 07:05 a final do ficheiro “Recorded on 23-May-2013 at 15.38.07 (OTM}10I102211270)”, conjugado com o documento de fls. 58);
g) Assim, tendo presente que, de acordo com a mesma testemunha, entre os dois postes de iluminação distam 30 metros (11:35 a 11:50 do ficheiro “Recorded on 23-May-2013 at 15.51.38 (OTM}I-3W02211270)”), é forçosa a conclusão de que o acidente se verificou a pouco mais de 35 metros da passadeira mais próxima;
h) O falecido infringiu assim o disposto no art. 70°/4 da LTR, o que não poderá deixar de relevar no juízo de ponderação a formular no tocante à responsabilidade conjunta pela produção do acidente;
i) Por outro lado, a testemunha L afirmou que o falecido se movimentava lentamente e era amparado por uma pessoa ao atravessar a estrada (00:50 a 01:50 do ficheiro “Recorded on 02-May-2013 at 16.03.20 (OT%!(C9W02211270)”);
j) O que indica que o falecido não se certificou devidamente de que estaria em condições de atravessar a via rapidamente e em segurança, assim violando o art. 70°/1 da LTR.
k) A demandada entende pois que o douto Tribunal ad quem deverá reequacionar a responsabilidade do falecido na produção do acidente, concluindo pela redução da indemnização a atribuir aos demandantes, na exacta proporção daquela responsabilidade”; (cfr., concl. b) a k)).
Porém, afigura-se-nos inviável acolher o assim entendido, necessário não sendo uma extensa fundamentação.
Com efeito, não se pode esquecer que na audiência de julgamento que teve lugar no T.J.B. prestaram depoimento 9 testemunhas, (sem contar o arguido).
Daí que, (independentemente do demais), adequado não nos pareça a (eventual) alteração da matéria de facto com base no depoimento de (apenas) uma ou duas (ou três, quatro…) testemunhas.
Quanto à “fotografia”, (e, também aqui, independentemente do demais), cremos que a mesma não é suficientemente explícita quanto à “distância da alegada passadeira para peões”.
Nesta conformidade, e motivos não havendo para se alterar a decisão no que toca à (proporção de) culpa(s) pelo acidente, há que julgar improcedente o presente recurso da (2ª) demandada “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA”.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam julgar parcialmente procedente o recurso dos (6) demandantes C, D, E, F, G e H (na parte civil), fixando-se o valor da indemnização pelo “direito à vida” em MOP$1.000.000,00, a indemnização pelos (seus) “danos não patrimoniais” em MOP$300.000,00 para a 1ª demandante e em MOP$200.000,00 para os restantes (2°, 3°, 4°, 5° e 6°) demandantes, determinando-se o reenvio dos autos para novo julgamento e decisão quanto ao pedido de pagamento solidário por parte dos 3 demandados, julgando-se improcedente o recurso da 2ª demandada “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO I (MACAU) LIMITADA”.
Custas pelos recorrentes e recorridos nas proporções dos seus respectivos decaimentos.
Macau, aos 15 de Maio de 2014
________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator)
_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(com declaração de voto)
_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Declaração de voto ao Acórdão de 15 de Maio de 2014 do
Tribunal de Segunda Instância no
Processo n.º 26/2014
Entendo que in casu:
– o Tribunal a quo (com a mesma composição) deve repetir o julgamento da causa cível então enxertada nos subjacentes autos penais emergentes de acidente de viação na parte somente respeitante à questão, então suscitada no art.º 66.º do pedido cível de indemnização, da responsabilidade pelo risco, prevista no art.º 496.º do Código Civil, da entidade proprietária do veículo conduzido pelo arguido aquando da ocorrência do acidente de viação, isto porque houve efectivamente omissão de pronúncia por esse Tribunal sobre esta questão;
– ao mesmo tempo, deve ser ampliada oficiosamente, sob aval do art.º 629.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, a matéria de facto então deficientemente alegada no dito art.º 66.º do pedido cível (porque só se alegou aí quem era a pessoa dona do veículo dos autos, mas já não outros factos pertinentes a sustentar a verificação da alegada responsabilidade objectiva da dona do veículo), a fim de permitir a emissão, pelo Tribunal recorrido, de uma decisão conscienciosa sobre o pedido de condenação da dona do veículo no pagamento solidário da indemnização civil, razões por que já não pode este Tribunal de Segunda Instância substituir-se ao Tribunal recorrido na indagação probatória da factualidade controvertida não articulada no pedido cível mas com pertinência à decisão da questão da referida responsabilidade pelo risco, factualidade em falta essa que naturalmente poderá ser provada por todos os meios probatórios legalmente admissíveis, não limitados à mera prova documental então já carreada aos autos;
– pelas regras de jogo da responsabilidade solidária (gizadas sobretudo no art.º 505.º do Código Civil), a repetição do julgamento da causa cível na parte acima delimitada não preclude a possibilidade legal de vir a parte demandante civil pedir, desde já, à demandada companhia seguradora e ao também demandado arguido o pagamento das quantias indemnizatórias já fixadas no acórdão ora recorrido e revistas no acórdão de recurso que antecede, ou mesmo vir executar o julgado civil contra a mesma seguradora e o arguido.
Macau, 15 de Maio de 2014.
O primeiro juiz-adjunto,
Chan Kuong Seng
Proc. 26/2014 Pág. 26
Proc. 26/2014 Pág. 27