Processo nº 193/2014 Data: 15.05.2014
Assuntos : Recurso extraordinário de revisão .
Pressupostos .
“Novos factos ou meios de prova”.
SUMÁRIO
1. O instituto da revisão visa estabelecer um mecanismo de equilíbrio entre a imutabilidade de uma decisão transitada em julgado e a necessidade de respeito pela verdade material. Reside na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos, sacrificar a intangibilidade do caso julgado, por imperativos de justiça, de forma a que se possa reparar uma injustiça e proferir uma decisão nova.
2. Na mira deste equilíbrio, condicionou o legislador a revisão à verificação de determinados requisitos ou fundamentos que, taxativamente, indicou no artº 431º do C.P.P.M..
3. Os “factos ou meios de prova” devem ser “novos” no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem ignorados pelo recorrente no momento em que o julgamento teve lugar.
O relator,
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Processo nº 193/2014
(Autos de Recurso Extraordinário de Revisão da Sentença)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Nos Autos de Processo Comum Singular n.° CR3-12-0333-PCS do T.J.B., proferiu-se sentença datada de 22.11.2012, (e que transitou em julgado em 03.12.2012), condenando-se o arguido A, como autor material da prática de um crime de “uso de documento falso”, p. e p. pelo art. 18°, n.° 3, da Lei n.° 6/2004, (“Lei da Imigração Clandestina”), na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses; (cfr., fls. 67 a 70 do processo principal em apenso, e que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
Em 20.03.2014, tendo como requerente B, foi interposto o presente recurso extraordinário de revisão, alegando-se, essencialmente, que houve “erro na condenação ditada com a sentença de 22.11.2012”, requerendo-se a feitura de diligências de prova e, a final, a autorização da revisão da aludida sentença; (cfr., fls. 1 a 22).
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Oportunamente, e sem se encetar nenhuma das requeridas diligências, pronunciou-se o Mm° Juiz do T.J.B. no sentido de “não haver fundamento para a procedência do recurso”, ordenando a remessa dos autos a este T.S.I.; (cfr., fls. 30 a 32-v).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“O teor da Motivação de fls.2 a 7 dos autos mostra que o requerente fundou o presente recurso de revisão no preceito na alínea d) do n.°l do art.431° do CPP, juntando os documentos de fls.14 a 22 dos autos como meios de prova.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta de fls.24 a 26 verso e do MM° Juiz na douta Informação de fls. 30a 32 verso, sendo ambos no entendimento da inviabilidade e rejeição do pedido de revisão.
Sustenta prudentemente o Venerando TSI (Acs. dos Processos n.°84/2003 e n.°145/2004): O instituto da revisão visa estabelecer um mecanismo de equilíbrio entre a imutabilidade de uma decisão transitada em julgado e a necessidade de respeito pela verdade material, assente na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos, sacrificar a intangibilidade do caso julgado por imperativos de justiça, de forma a que se possa reparar uma injustiça e proferir nova decisão.
Em sentido tanto vulgar como técnico-jurídico, a expressão "aresto injusto" conota sempre a situação de sendo embora inocente, o condenado cair, de forma involuntária e inesperada, na vítima de armadilha ou erro alheios e que não lhe seja imputável.
No caso sub iudice, acontece que a condenação cominada na douta sentença a rever se estriba, em bom rigor, nos factos declarados pelo ora Requerente perante agentes policiais e magistrado do M.°P.°. Ou seja, foi o próprio Requerente quem tinha dado causa à condenação, provocando a fraudulentamente.
Nesta medida, o pedido de revisão in casu é censurável por ofender a axiologia subjacente ao recurso de revisão. Daí decorre que ao qual deverá ser liminarmente negado.
De outro lado, importa ter presente a sensata jurisprudência de que o art.431°, n.°l , alínea d), do Código de Processo Penal de Macau exige uma superveniência probatória susceptível de abalar seriamente a prova em que se fundou a sentença cuja revisão se requer, superveniência esta traduzível quer na perspectiva objectiva quer na subjectiva. (Acs. do TSI nos Processos n.°313/2004, n.°536/2007 e n.°667/2008)
Nesses doutos Acórdãos lê-se ainda: A superveniência subjectiva quer referir-se à situação em que a parte requerente da revisão da sentença, ao tempo em que esteve em curso o processo anterior, ou não tinha conhecimento dos elementos de prova em causa, que já existiam, ou então sabia da existência deles, mas não teve possibilidade de os obter.
Se qualquer modo, o que é incontestável é que o desconhecimento dos elementos probatórios ou a impossibilidade de os obter para efeitos de defesa têm de ser desculpáveis e não imputáveis a próprio requerente da revisão, não podendo resultar da inércia ou negligência do mesmo.
No presente caso, sucede que na devida altura, existiam os meios de prova, e o Requerente tinha consciente conhecimento desses meios de prova, e podia obtê-los para defender-se da aludida condenação. E foi o Requerente quem dolosamente os ocultou, a propósito de aproveitar, de forma ilegítima, os falsos factos por si criados.
Sendo assim, não há margem para dúvida de que não se verifica a superveniência dos meios de prova apresentados pelo Requerente, daqui flui a inexistência in casu do pressuposto consignado na alínea d) do n.°l do art.431 ° do CPP e, em consequência, a negação do pedido em causa.
Por todo o expendido supra, propendemos pela negação do pedido de revisão em apreço”; (cfr., fls. 41 a 42).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Fundamentação
2. Como é sabido, em regra, o trânsito em julgado de uma decisão faz “esquecer” os vícios de que padece, (“auctoritas rei judicatae prevalet veritati”).
Nas palavras do Prof. Eduardo Correia, “verdadeiramente ..., o fundamento central do caso julgado radica-se numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do direito. Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através dele aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias. Uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade material, eis assim o que está na base do instituto” do caso julgado; (in, “Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, pág. 302).
Todavia, como salienta J. Alberto Romeiro – em artigo intitulado “A Valorização da Magistratura pela Revisão” – “uma justiça que reconhece os próprios erros e se corrige, que não os procura manter e defender com formulas vãs, é uma justiça edificante, que só confiança poderá inspirar”; (in, Scientia Jurídica, Tomo XVII, nºs 92/94).
Como afirmava o Prof. Cavaleiro de Ferreira: “a justiça prima e sobressai acima de todas as demais considerações. O direito não pode querer e não quer a manutenção duma condenação, em homenagem à estabilidade de decisões judiciais”; (cfr. “Revisão Penal” in, Scientia Jurídica, Tomo XIV, nº 75-76).
Considerava ainda o referido autor que: “a resignação forçada perante a necessidade de dar valor definitivo à sentença judicial não equivale a desconhecer a sentença injusta e a proclamar uma misteriosa transubstanciação em ordem jurídica de todos os erros jurisprudênciais, como se de nova e contraditória fonte de direito se tratasse. É melhor aceitar como ónus da imperfeição humana, a existência de decisões injustas, que escondê-las, para salvaguardar um prestígio martelado sobre a infalibilidade do juízo humano e sob a capa de uma juridicidade directamente criada pelos tribunais; (in “Curso de Processo Penal” III, ed. da AAFDUL, 1957, pág. 37).
No mesmo sentido afirma também o Prof. F. Dias: “embora a segurança seja um dos fins prosseguidos pelo processo penal, isto não impede que institutos como o do recurso de revisão contenham na sua própria razão de ser um atentado frontal àquele valor, em nome das exigências da justiça. Acresce que só dificilmente se podia erigir a segurança em fim ideal único, ou mesmo prevalente, do processo penal. Ele entraria então constantemente em conflitos frontais e inescapáveis com a justiça; e, prevalecendo sempre ou sistematicamente sobre esta, pôr-nos-ia face a uma segurança do injusto que, hoje, mesmo os mais cépticos, tem de reconhecer não passar de uma segurança aparente e ser só, no fundo, a força da tirania”; (in “Direito Processual Penal”, pág. 44).
Era igualmente o Prof. A. dos Reis, (citando Mortara), de opinião que:
“Quanto mais evolui a consciência jurídica dum povo culto, mais se difunde a convicção de que é legítimo corrigir erros, cobertos embora pelo prestígio do caso julgado, mas que não devem subsistir, porque a sua irrevogabilidade corresponderia a um dano social maior do que a limitação feita ao mítico princípio da intangibilidade do caso julgado”; (in “C.P.C. Anot.”, vol. VI, pág. 337).
Nesta linha de raciocínio, teve também esta Instância oportunidade de afirmar, que “o instituto da revisão visa estabelecer um mecanismo de equilíbrio entre a imutabilidade de uma decisão transitada em julgado e a necessidade de respeito pela verdade material. Reside na ideia de que a ordem jurídica deve, em casos extremos, sacrificar a intangibilidade do caso julgado por imperativos de justiça, de forma a que se possa reparar uma injustiça e proferir nova decisão”; (cfr., v.g., Ac. deste T.S.I. de 03.05.2001, Proc. nº 60/2001 e de 21.02.2002, Proc. nº 207/2001).
De facto, como considera Amâncio Ferreira perante análogo expediente no âmbito do Processo Civil:
“Bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade da segurança ou da certeza.
Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora.
Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio.
A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio”; (in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª ed. Pág. 333).
Dito isto, e clarificada que parece estar a “razão de ser” do recurso em questão, continuemos.
O presente “recurso extraordinário de revisão” comporta, como é sabido, 3 fases: uma “preliminar”, onde se processa, instrui e se informa sobre o peticionado pelo recorrente, (e que, no caso, foi a que ocorreu no T.J.B.), outra “intermédia”, onde se aprecia e decide do pedido (de revisão),(e que é a que agora nos ocupamos), e, a “final”, para efectivação do novo julgamento no caso de ser aquele autorizado.
Encontrando-nos na “fase intermédia” e competindo-nos emitir o apelidado “juízo rescindente”, decidindo pela autorização ou pela denegação da pretendida revisão, detenhamo-nos na apreciação da pretensão do ora recorrente.
Nesta conformidade, mostra-se útil aqui transcrever o teor do art. 431º do C.P.P.M., o qual, estatuindo (taxativamente) os pressupostos para a revisão, prescreve que:
“1. A revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
2. Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3. Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4. A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida”; (sub. nosso).
“In casu”, da análise a que se procedeu, confirma-se que preenchido está o requisito do “trânsito em julgado” da decisão objecto do presente recurso, (a sentença datada de 22.11.2012 atrás referida).
E, então, que dizer?
Pois bem, em síntese e fundamentalmente, alega o ora recorrente que a condenação que lhe foi decretada se deveu a “erro”, já que foi condenado por se ter considerado provado que se identificou falsamente como “B”, (quando na altura tinha o nome de A), sendo, porém, aquele, o nome que legalmente lhe foi autorizado a utilizar pelas autoridades competentes da R.P.C..
Ora, percorrendo o transcrito art. 431° do C.P.P.M., evidente é que em causa está a al. d) do seu n.° 1, (aliás como expressamente alega o requerente), onde se prescreve que a revisão é admissível quando “se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.
Temos para nós que a situação em questão implica não só “novos factos ou meios de prova”, mas também que estes se apresentem fortemente indiciadores de se ter incorrido (efectivamente) em erro.
No caso, o ora recorrente não foi julgado presencialmente, dado que “consentiu” que a audiência de julgamento decorresse na sua ausência; (cfr., fls. 25 do processo principal).
E, ponderando nesta circunstância, cremos que adequado é considerar-se o (agora) alegado como “facto novo” para os efeitos aqui em causa.
Com efeito, e como temos vindo a entender, os “factos ou meios de prova” devem ser “novos” no sentido de não terem sido apreciados no processo que conduziu à condenação, embora não fossem ignorados pelo recorrente no momento em que o julgamento teve lugar; (neste sentido, vd, v.g., E. Correia in, “Para quem são novos os factos ou elementos de prova que fundamentam a revisão das decisões penais?”, estudo publicado na separata da R.D.E.S., VI; Maia Gonçalves in, “C.P.P. Anot.”, 15° ed., pág. 920 e segs.; e, L. Henriques in, “Manual de Formação de Dto Proc. Penal de Macau”, II, pág. 215).
Nesta conformidade, adequado seria que na atrás mencionada “fase preliminar” (e de instrução), se tivesse tentado apurar (da veracidade) do alegado pelo recorrente, para (melhor) se poder decidir da viabilidade da pretendida revisão.
Não se tendo efectuado as requeridas diligências com vista a tal, e inviável sendo assim a esta Instância decidir do peticionado, há pois que decidir em conformidade.
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Uma última (e breve) nota.
Poder-se-á (eventualmente) entender que a “questão” que pelo recorrente vem agora colocada já o tinha sido, antes da audiência de julgamento que culminou com a sentença datada de 22.11.2012.
Com efeito, o alegado “erro nos nomes” do ora recorrente já tinha sido pelo mesmo alegado em sede de expediente junto aos autos; (cfr., fls. 42 do processo principal).
Porém, o certo é que a sentença recorrida limitou-se a dar como provada toda a matéria da acusação (antes deduzida), sem nenhuma referência ao alegado no aludido expediente.
E, então, poder-se-á mesmo assim dizer que foi tal matéria “ponderada e apreciada” no julgamento que teve lugar no T.J.B.?
Face ao teor da sentença em causa, e, nomeadamente, à sua fundamentação, cremos, porém, que elementos inexistem para assim se poder afirmar.
Contudo, e ainda que assim não se entenda, de olvidar não é que a alínea d) do preceito em questão se refere a “novos factos ou meios de prova”, pelo que, sempre seria de se atender às “novas provas” pelo recorrente (só) agora indicadas, razoável e adequada não nos parecendo assim decisão em sentido diverso.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
3. Nos termos que se deixam explanados, acordam determinar a devolução dos presentes autos ao T.J.B. para, outro motivo não obstando, tendo-se em conta o que se expôs, e efectuadas as requeridas diligências, (e outras que se venham a considerar pertinentes, cfr., art. 435°, n.° 1 do C.P.P.M.), se profira nova decisão.
Sem tributação.
Macau, aos 15 de Maio de 2014
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(entendo, porém, que deve ser negada a revisão, na esteira do entendimento já judiciosamente exposto no douto parecer do M.P.).
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Proc. 193/2014 Pág. 18
Proc. 193/2014 Pág. 17