Processo nº 21/2013
Data do Acórdão: 15MAIO2014
Assuntos:
Usurpação de poder
Suspensão do procedimento administrativo
Procedimento de licenciamento de obras
Acto de emissão de licenças de obras
SUMÁRIO
1. A usurpação de poder é um vício que consiste na prática por um órgão administrativo de um acto incluído nas atribuições do poder legislativo, do poder moderador ou do poder judicial.
2. Não estamos perante usurpação de poder se a Administração suspender nos termos autorizados pelo artº 33º do CPA um procedimento administrativo com vista ao licenciamento de uma obra com fundamento na existência de uma acção cível pendente que tem por objecto a disputa sobre a titularidade do terreno onde se pretende realizar a obra, uma vez que a Administração não está a imiscuir-se nesse litígio cível pendente, pois esse litígio nunca será decidido pelo despacho administrativo determinativo da suspensão, mas sim pela decisão judicial a ser proferida na competente acção cível pendente.
3. Não se podem confundir duas realidades distintas, uma é o acto administrativo, que confere o direito de edificar, praticado no culminar do procedimento com vista ao licenciamento de obra, outra é o acto material, cronologicamente posterior à conclusão do procedimento, consistente na emissão de um documento que titula aquele direito, já concedido dentro do procedimento, de edificar e que externa a eficácia daquele acto que confere o direito de edificar. Assim sendo, a licença de obras é um mero documento que titula um direito de edificar e que externa a eficácia do reconhecimento do direito, não fazendo parte do procedimento administrativo de licenciamento de obras.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 21/2013
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A e B, devidamente identificados nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas que lhes rejeitou o recurso hierárquico necessário e manteve o despacho do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que determinou a suspensão do procedimento de licenciamento das obras de construção nº 751/2004/L, concluindo e pedindo que:
1.a - o acto recorrido, na medida em que confirma o acto objecto de recurso hierárquico necessário e adopta os fundamentos constantes da Informação em que foi exarado, padece, entre o mais, do vício de violação de violação de lei por erro de interpretação e aplicação da norma do artigo 33.°/1 do CPA e, consequentemente, do vício de usurpação de funções jurisdicionais;
2.a - A decisão de emissão da licença de obra, nos termos em que esta é entendida no RGCU, não é susceptível de se considerar prejudicada pelo litígio relativo ao direito de propriedade suscitado na acção judicial pendente nos Tribunais da Região em que se suscita conflito relativo a direito de propriedade relativamente a uma parcela do terreno onde os Recorrentes pretendem construir a obra aprovada;
3.ª- A emissão de licença de obra não é susceptível de modificar as posições jurídico subjectivas privadas que os privados se arroguem sobre a referida parcela de terreno;
4.a - As questões de direito privado deverão ser resolvidas de acordo com os meios proprios previstos na lei e não no âmbito do exercício dos poderes administrativos relativos à gestão urbanística dos solos;
5.a - Os autores da referida acção judicial, com vista a assegurar a efectividade dos direitos que se arrogam, podem requerer no TJB, nomeadamente, providências cautelares;
6.a - No caso dos presentes autos, os autores da referida acção judicial desistiram da providência cautelar não especificada, requerida no TJB em 4 de Abril de 2006, em que solicitaram que os Recorrentes «fossem proibidos de proceder a quaisquer alterações materiais (nomeadamente obras) no prédio» e ainda que a DSSOPT fosse notificada «para não realizar qualquer acto administrativo com vista ao licenciamento de obras no prédio identificado»;
7.a - A lei não confere à DSSOPT e à entidade recorrida, principalmente mais de 6 anos volvidos sobre a decisão de desistência da referida providência, o exacerbado paternalismo, de se substituírem aos autores da referida acção judicial, na defesa das suas posições jurídicas subjectivas privadas;
8.ª - Ao afirmar-se na Informação sobre que recaiu a decisão recorrida que «o se pretende com a presente suspensão é evitar justamente que venha a ser erigida uma edificação sem estar claramente definido o direito de propriedade sobre o terreno em que a mesma há-de ser implantada», a entidade recorrida arroga-se um poder que não lhe pertence;
9.ª - A dirimição de conflitos emergentes de relações jurídico-privadas é poder que extravasa o âmbito das competências de gestão urbanística dos solos e pertence em exclusivo aos tribunais da RAEM;
10.a- Não afectando a licença de obra o direito de propriedade existente sobre as referidas parcelas de terreno, tendo os particulares ao seu dispor meios adequados a compor eventuais conflitos relativamente a esse direito e competindo exclusivamente aos tribunais dirimir tais conflitos, o acto recorrido, ao confirmar a decisão de suspensão do procedimento, fica eivado do vício de violação de lei por inexistência da alegada relação de prejudicialidade e, consequentemente, a padecer também do vício mais grave da usurpação de poderes;
11.ª- O acto recorrido padece de nulidade;
12.a- Sem conceder, o acto recorrido enferma ainda, na medida em que incorpora os fundamentos constantes da Informação, do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito, no que respeita à norma do artigo 33.°/1 do CPA;
13.a- A Administração está vinculada a agir de acordo com lei, na prossecução do interesse público e no respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados, e de acordo com o princípio da justiça;
14.a- Tendo tomado conhecimento do referido conflito, pelo menos em Abril de 2006, caso entendesse que o conhecimento das questões suscitadas dependia da resolução da questão prejudicial, a DSSOPT tinha o dever de suspender o procedimento nessa altura e não mais de 6 anos depois de conhecer tal questão e depois de aprovar definitivamente o projecto de obra;
15.a- No caso dos autos, não se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a validade de uma decisão de suspensão de um procedimento administrativo;
16.ª- No momento em que o despacho confirmado declarou a suspensão do procedimento, há muito que a decisão final do procedimento havia já sido tomada;
17.a- Na apreciação dos projectos, a DSSOPT tem de considerar, nomeadamente, as características exteriores do edifício, mormente a sua altura, a sua inserção no ambiente urbano, a sua conformidade com planos de urbanização e respectivos regulamentos e outros instrumentos de disciplina urbanística;
18.a- Com a aprovação do projecto de obra, a DSSOPT reconheceu que a obra em apreço se conformava com todos os aspectos e critérios que a lei estabelece para a sua aprovação e que a mesma estava em condições de ser executada, sendo nisto em que se traduz o conteúdo típico, a dimensão constitutiva do acto administrativo de aprovação do projecto de obra;
19.a- Os despachos de aprovação dos projectos de obra praticados no caso consubstanciam verdadeiros actos administrativos, perfeitos e válidos;
20.a- A fase constitutiva do procedimento autorizativo concluiu-se com a prolação do último desses despachos;
21.a- No nosso sistema, a autorização de construção emerge directa e exclusivamente da decisão final de aprovação do projecto de obra, sendo este o acto que confere ao interessado a faculdade de construir;
22.a - O acto que autoriza a emissão da licença de obra é um acto complementar e instrumental e integrativo da eficácia da decisão que aprovou o projecto de obra;
23.a- A DSSOPT está vinculada à emissão dessa licença, o que só não sucederá nos casos de extemporaneidade na apresentação do pedido de emissão de tal licença e o que se justifica apenas em função do efeito da caducidade da aprovação do projecto de obra;
24.a- A licença de obra, no nosso sistema, não é mais do que o documento ou título que patenteia ou evidencia o direito de construir, constituído na esfera jurídica do particular através do acto de aprovação do projecto de obra, e cuja emissão a lei impõe observadas as exigências concretamente definidas nesta;
25.a- Com a emissão da licença, o legislador visa apenas e tão-só garantir que a execução da obra ocorra logo após a aprovação do respectivo projecto, a identificação dos responsáveis pela direcção e execução da mesma e ainda o pagamento da taxa devida, sendo que a lei admite mesmo o início da execução da obra sem prévia emissão da licença, nos casos em que não tenha sido determinado o cálculo da taxa nem emitida esta;
26.ª- Admitir que a Administração pudesse, nesta fase, suspender a emissão da licença com fundamento na prejudicialidade da questão relativa à propriedade do terreno, seria violar claramente o sentido que o legislador quis atribuir às normas relativas à emissão da licença de obra e afectar o direito de construir emergente da decisão de aprovação do projecto;
27.a- O acto susceptível de ser prejudicado com decisão da questão relativa à titularidade do direito de propriedade sobre o terreno era o acto de aprovação do projecto de obra e não o acto de emissão de licença;
28.ª- Não é verdade que a DSSOPT tenha decidido submeter a concessão da licença de obra à verificação da condição suspensiva da decisão judicial favorável aos Recorrentes, o que existiu foi, quando muito, uma informação prestada aos Requerentes, o que se confirma pelo texto do ofício em que foi prestada tal informação, pela inexistência de acto autorizativo com eficácia dependente da alegada condição, como pela própria actividade desenvolvida posteriormente pela DSSOPT;
29.a- Se existisse a alegada condição suspensiva, revelava-se totalmente inútil a prática do acto que veio declarar a suspensão do procedimento e que foi confirmado pelo despacho recorrido;
30.a- A norma do artigo 38.º-d do RGCU não é susceptível de constituir a base normativa da decisão de suspender o procedimento e de fazer depender a emissão da licença de obra da sentença judicial favorável aos ora Recorrente;
31.ª- Esta norma não tem por objecto intencional regular a emissão da licença de obra;
32.ª- Nos termos do RGCU, "licenciamento" e "licença de obra" são realidades distintas, tendo a licença de obra apenas o sentido restrito de título que representa ou documenta o direito de construir emergente da aprovação do projecto de obra;
33.a- Sem conceder, seria sempre de exigir que se estivesse perante uma situação de desrespeito por quaisquer normas legais ou regulamentar, o que não se verifica;
34.a- Os Recorrentes cumpriram a exigência da alínea d) do artigo 38.° do RGCU quando alegaram no requerimento em que solicitaram a aprovação do projecto a sua qualidade de proprietários das parcelas dos dois terrenos e quando, através de certidões prediais, provaram que as mesmas se encontravam registadas em seus nomes, apesar de, relativamente a uma deles, se comprovar também a existência de acção judicial em que se disputa o respectivo direito de propriedade;
35.a- O acto recorrido encontra-se eivado do vício de violação de lei por erro de interpretação e aplicação das normas dos artigos 19.°/1 e 38.º-d do RGCU;
36.a- O acto recorrido viola o princípio da justiça e da proporcionalidade;
37.a- O acto recorrido viola o princípio da justiça, na medida em que não atende aos direitos e interesses legítimos dos Recorrentes e principalmente aos graves prejuízos que vêm acumulando por virtude de mais de 6 anos de espera pela emissão da licença de obra, apesar de reiteradamente solicitada e por várias vezes prometida aos Recorrentes, nas múltiplas reuniões que solicitaram e que contra todas as expectativas vem confirmar a decisão de suspensão do procedimento numa situação em que a mesma se não justifica;
38.a- O acto recorrido viola ainda o princípio da proporcionalidade, na medida em que adopta a solução mais onerosa para os direitos dos Recorrentes, sendo a mesma não necessária em vista do interesse público que a Administração tem de prosseguir e da tutela das posições jurídico-privadas a que os privados podem obter pelos meios adequados, principalmente quando em causa está apenas o direito de propriedade relativamente a uma das duas parcelas de terreno onde os Recorrentes pretendem edificar o edifício aprovado;
39.a- O despacho recorrido violou, nomeadamente, as normas dos artigos 33.°/1 do CPA 25.° e 38.º-d e 42.° do RGCU e os princípios da justiça e da proporcionalidade, consagrados respectivamente nos artigos 7.° e 5.°/2 do daquele primeiro diploma.
V - Do pedido
TERMOS EM QUE, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e, a final, ser:
- DECLARADA A NULIDADE da decisão recorrida, por a mesma enfermar do vício de usurpação de poderes;
Para a hipótese de assim se não entender, o que se afirma sem conceder,
- ANULADA a decisão recorrida, tendo por fundamento, nomeadamente, as ilegalidades invocadas.
E, cumulativamente, ao abrigo do artigo 24.o/1-a do C.P.A.C., uma vez declarada nula ou anulada a deliberação recorrida,
- CONDENADA a entidade recorrida a ordenar à DSSOPT a determinação do cálculo da taxa devida e a emitir a licença de obra respectiva, uma vez as normas dos artigos 42.º e ss. do RGCU têm conteúdo vinculado.
REQUER AINDA a citação da entidade tecorrida para contestar, querendo, e enviar o competente processo administrativo.
Citado, vem o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 74 a 80 dos p. autos.
Não havendo lugar à produção de provas e cumprido o disposto no artº 68º do CPAC, veio apenas a entidade recorrida oferecer o merecimento dos autos.
Em sede da vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer que o recurso não merecia provimento – vide as fls. 122 a 123 dos p. autos.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
II
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Assim, de acordo com as conclusões formuladas no petitório do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto do presente recurso:
1. Da usurpação de poder; e
2. Da violação da lei por erro na interpretação e aplicação de direito.
Mediante exame dos elementos documentais constantes dos autos do presente recurso e do processo administrativo, assim os factos alegados pelos recorrentes e não impugnados pela entidade recorrida, é tida por assente a seguinte materialidade fáctica com relevância à apreciação e à boa decisão do presente recurso:
* Em 01MAR2004, XXX e XXX, intentaram uma acção ordinária no TJB pedindo que, com fundamento na invocada aquisição por usucapião, eles mesmos fossem declarados proprietários do prédio com o nº XX da Praça de XXX;
* Em 31DEZ2004, os ora recorrentes A e B, formularam ao Director da DSSOPT o pedido da aprovação do projecto de arquitectura da obra de construção a realizar em Macau, num terreno consistente nas duas parcelas situadas na Praça de XXX, nºs XX-XXº, instruído com os elementos a que se refere o artº 19º/2 a 6 do Regulamento Geral da Construção Urbana (RGCU), nomeadamente a certidão do registo civil do qual consta que os ora recorrentes são proprietários daquelas duas parcelas de terreno;
* Para o efeito, apresentaram em fases sucessivas e nos termos prescritos nos artºs 19º e s.s. do RGCU o projecto de arquitectura e os projectos de especialidade, assim como as rectificações que a DSSOPT fez depender a aprovação dos respectivos projectos;
* Todos os projectos, o de arquitectura e os de especialidade, foram aprovados dentro dos prazos legais estabelecidos no artº 40º do RGCU;
* Em 13OUT2006, os ora recorrentes solicitaram à DSSOPT a emissão de licença de obra;
* A licença não foi emitida;
* E posteriormente voltaram a formular, em 09JAN2007, 13JUN2007, 13AGO2007, 13AGO2008, 25FEV2011, o mesmo pedido da emissão de licença de obra;
* Nenhuma licença foi emitida;
* Ao abrigo do disposto nos artºs 93º e 94º do CPA e com fundamento na verificação de um conflito de natureza privada relativo à propriedade do prédio em causa e na existência de um litígio referente à titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo prédio, a DSSOPT notificou, por ofício datado de 14SET2011, os recorrentes para se pronunciarem sobre a provável suspensão do procedimento de licenciamento da obra;
* Cumprido o contraditório, por despacho da Senhora Subdirectora, enquanto Directora Substituta, da DSSOPT, proferido em 04JUN2O12, foi determinada a suspensão do procedimento de licenciamento da obra em causa;
* Inconformados, os ora recorrentes vieram interpor recurso hierárquico necessário para o Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas;
* Por despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas proferido em 15NOV2012, foi “rejeitado” o recurso hierárquico necessário e “confirmado” o despacho do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que determinou a suspensão do procedimento de licenciamento das obras de construção nº 751/2004/L; e
* Inconformados, os ora recorrentes interpuseram o presente recurso contencioso.
Então vejamos.
1. Da usurpação de poder
Para os recorrentes, as questões de direito privado deverão ser resolvidas com os meios próprios previstos na lei e não no âmbito do exercício dos poderes administrativos relativos à gestão urbanística dos solos.
Assim, ao afirmar na informação sobre que recaiu a decisão recorrida que “o que se pretende com a presente suspensão é evitar justamente que venha a ser erigida uma edificação sem estar claramente definido o direito de propriedade sobre o terreno em que a mesma há-de ser implantada”, a entidade recorrida arroga-se um poder que não lhe pertence.
Assim, na esteira desse raciocínio, o acto recorrido que manteve o despacho da Directora Substituta da DSSOPT padece da nulidade por usurpação de poder.
Não têm razão os recorrentes.
Ora, a usurpação de poder é um vício que consiste na prática por um órgão administrativo de um acto incluído nas atribuições do poder legislativo, do poder moderador ou do poder judicial – Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, II, pág. 385.
Reza o artº 33º/1 do CPA que “se a decisão final depender da decisão de uma questão que seja da competência de outro órgão administrativo ou dos tribunais, deve o órgão competente para a decisão final suspender o procedimento administrativo até que o órgão ou o tribunal competente se pronunciem, salvo se da não resolução imediata do assunto resultarem graves prejuízos”.
In casu o que fez a Administração não é mais do que suspender um procedimento de licenciamento alegadamente pendente e aguardar a solução, a ser dada pelo Tribunal a um litígio cível que se encontra pendente no tribunal competente e cuja decisão, na óptica da Administração, condiciona o licenciamento.
Portanto, a Administração não está a imiscuir-se nesse litígio cível pendente, pois esse litígio não é decidido pelo despacho ora recorrido, mas sim será objecto da decisão judicial a ser proferida na competente acção cível ora pendente no TJB.
Improcede assim esta parte do recurso.
2. Da violação da lei por erro na interpretação e aplicação de direito
Imputam aqui os recorrentes o vício da violação da lei ao acto recorrido que determinou a suspensão do procedimento administrativo de licenciamento de obra, por entenderem que a Administração errou na interpretação e na aplicação das normas do artº 33º/1 do CPA e do artº 42º do RGCU.
Reza o artº 33º/1 do CPA que:
Se a decisão final depender da decisão de uma questão que seja da competência de outro órgão administrativo ou dos tribunais, deve o órgão competente para a decisão final suspender o procedimento administrativo até que o órgão ou o tribunal competente se pronunciem, salvo se da não resolução imediata do assunto resultarem graves prejuízos.
E por sua vez o artº 42º do RGCU estatui que:
(Requerimento da licença de obras)
1. Notificado o requerente da aprovação do projecto de obra ou utilizada a faculdade prevista no artigo 37.º, deverá aquele requerer a respectiva licença de obras.
2. Com o requerimento será apresentada declaração do técnico pela qual este assume a responsabilidade pela direcção da obra, bem como a declaração do construtor ou empresa de construção, assumindo a responsabilidade pela execução da mesma.
3. No prazo de 15 dias após a entrega do requerimento referido em 1, a D.S.S.O.P.T. procederá ao cálculo da taxa devida e emitirá a respectiva licença de obras, notificando o requerente para proceder ao seu levantamento.
4. Sempre que a realização de uma obra implique a execução de tapumes que ocupem a via pública, o requerente deverá fazer acompanhar o requerimento referido no n.º 2 com cópia da respectiva licença de tapumes emitida pela Câmara Municipal.
É de relembrar que o acto ora recorrido é o despacho do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas que indeferiu o recurso hierárquico necessário e manteve o despacho do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que determinou a suspensão do procedimento de licenciamento das obras de construção.
Por lógica das coisas, só faz sentido falar de suspensão do decurso de um procedimento, ou seja, ainda não concluído.
Assim, importa saber se, no momento do despacho recorrido, o procedimento administrativo de licenciamento da obra já está por concluir e portanto ainda susceptível de ser suspenso,.
Para a entidade recorrida, o procedimento de licenciamento só terminará com a emissão da licença de obra. Enquanto não tiver sido emitida tal licença, o procedimento é passível de suspensão.
Por sua vez, os recorrentes defendem que no momento em que o despacho, confirmado em sede do recurso hierárquico necessário pela entidade recorrida, determinativo da suspensão do procedimento de licenciamento, a decisão final do procedimento havia já sido tomada há muito tempo, pois a fase constitutiva do procedimento autorizativo concluiu-se com a prolação do último dos despachos que aprovaram os projectos de arquitectura e de obra e não com a emissão da licença de obra que é um acto complementar e instrumental e integrativo da eficácia da decisão que aprovou o projecto de obra.
Assim, urge averiguar quê natureza tem o acto que consiste na emissão da licença de obra e se este acto faz parte de um procedimento ou é um acto cronologicamente posterior ao procedimento.
Antes de mais, há que realçar que não se podem confundir duas realidades distintas, uma é o acto administrativo, que confere o direito de edificar, praticado no culminar do procedimento com vista ao licenciamento de obra, outra é o acto material, cronologicamente posterior à conclusão do procedimento, consistente na emissão de um documento que titula aquele direito, já concedido dentro do procedimento, de edificar e que externa a eficácia daquele acto que confere o direito de edificar.
A propósito da natureza do alvará de obra, isto é, a licença de obra, há doutrina na jurisprudência comparada que entende que o alvará às vezes surge como a forma solene de expressão do conteúdo de um acto (M. Caetano, Manual de Direito Administrativo I, pág. 474; Sérvulo Correia, in Noções de Direito Administrativo, pág. 389). Outras, como finalidade “ad probationem”. Outras, …… como documento que titula um direito ou confere a atribuição de eficácia ao acto de que depende. …… Em qualquer caso, não é acto administrativo, de acordo com a definição do artº 120º do CPA (correspondente ao artº 110º do CPA de Macau), isto é, não é uma «decisão de um órgão da Administração que ao abrigo de normas de direito público vise produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta» - cf. Acórdão do STA de 29SET2005 no proc. nº 180/05-11.
In casu, a licença que os recorrentes pretendem ver emitida ao abrigo do disposto no artº 42º do RGCU após a aprovação de todos os projectos de arquitectura e de obra, assume precisamente a última dessas três vestes, isto é, a de um mero documento que titula um direito de edificar e que externa a eficácia do reconhecimento do direito.
Na esteira desse raciocínio, é de concluir que têm razão os recorrentes.
Pois ao suspender o procedimento administrativo com vista ao licenciamento da obra num momento em que já foi validamente tomada a decisão final que confere aos recorrentes o direito de edificar, a Administração andou mal por ter infringido o disposto no artº 33º do CPA, à luz do qual à Administração só é conferido o poder-dever de suspender o procedimento administrativo se a decisão final desse procedimento ainda não tiver sido tomada, por depender da decisão de uma questão que seja da competência de outro órgão administrativo ou dos tribunais.
E além disso, o acto ora recorrido viola também o disposto no artº 42º, pois na prática a suspensão impede os recorrentes de exercer a sua faculdade de exercitar o direito já adquirido cujo exercício efectivo depende da obtenção do título formal que é precisamente a licença de obra.
Padecendo do vício da violação da lei, é anulável o acto ora recorrido.
Sem mais delongas, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar procedente o recurso, anulando o despacho datado de 15NOV2012 do Senhor Secretário para os Transportes e Obras Públicas, lançado sobre a informação nº XX/DJUDEP/2012, que indeferiu o recurso hierárquico necessário e manteve o despacho do Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes que determinou a suspensão do procedimento de licenciamento das obras de construção nº 751/2004/L.
Sem custas a cargo da entidade recorrida por isenção subjectiva – artº 2º/1-b) do RCT.
Registe e notifique.
RAEM, 15MAIO2014
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Fui presente
Mai Man Ieng
21/2013-18