Processo n.º 104/2013
(Recurso cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 29/Maio/2014
ASSUNTOS:
- Contrato-promessa de coisa futura
- Cessão de posição contratual
SUMÁRIO :
1. A cessão da posição contratual prevista nos art.ºs 418 e seg. do CC traduz-se no negócio jurídico por via do qual um dos contratantes de um contrato bilateral ou sinalagmático, transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato. Há, portanto, a distinguir sempre dois contratos que a doutrina denomina de contrato-base e contrato-instrumento, sendo o primeiro o negócio gerador dos efeitos cuja transmissão se pretende e o segundo o negócio por via do qual esses efeitos são transmitidos ao terceiro.
2. Se a Ré prometeu vender os parques que comprou a terceiro, a A. pagou o respectivo preço, aquela comprometeu-se a realizar a escritura em certo dia, mas mais nada se prova quanto ao comprometimento do primitivo promitente vendedor no negócio celebrado entre as partes não se pode falar em qualquer cessão de posição contratual da Ré promitente vendedora nos negócios celebrados com terceiro que é pessoa estranha à A. e nem sequer está nos autos.
3. Estaremos antes perante um contrato promessa de bem futuro, sendo de considerar que bens futuros não são apenas os inexistentes na sua materialidade, mas também aqueles que pertencem a terceiro e são objecto da promessa na perspectiva de que vêm a integrar o património do alienante – emptio rei speratae.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 104/2013
(Recurso Civil)
Data : 29/Maio/2014
Recorrente : A
Recorrida : B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. B, mais bem identificada nos autos, alegando o incumprimento de um contrato-promessa relativo a vários parques de estacionamento por parte da Ré, A, também ela aí mais bem identificada, intentou contra ela Acção Ordinária, pedindo:
a. a quantia de MOP$926.288,00, a título de sinal em dobro, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento; subsidiariamente
b. a quantia de MOP$463.144,00, a título de sinal recebido da Autora, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento; e, em qualquer dos casos
c. a quantia de MOP$1.000,00, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso após o trânsito em julgado da decisão até efectivo e integral cumprimento.
Julgada a acção procedente, tendo-se condenado a ora Ré, A, ao pagamento do sinal em dobro e de juros de mora contados a partir de 4 de Novembro de 2009, vem ela recorrer, alegando em síntese conclusiva:
1.ª Foi o presente recurso interposto da, aliás, douta Sentença que julgou procedente o pedido do Autor, condenando o ora Réu ao pagamento do sinal em dobro e de juros de mora contados a partir de 4 de Novembro de 2009;
2.ª A decisão ora recorrida, quanto à questão relativa à natureza da relação estabelecida entre as partes, decidiu: «(...) Analisados os factos provados, não restam dúvidas de que os negócios jurídicos estabelecidos são, de facto, contratos-promessa de compra e venda, pois as partes acordaram celebrar no futuro contratos de compra e venda dos imóveis prometidos vender por um determinado preço»;
3.ª Ora, salvo o devido respeito, este não é o entendimento que o ora Réu tem da situação em causa;
4.ª A cessão da posição contratual traduz-se no negócio jurídico por via do qual um dos contraentes de um contrato bilateral ou sinalagmático, transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo de direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato;
5.ª Daí que se imponha considerar e distinguir dois contratos, denominados pela doutrina como contrato-base (inicial ou originário) e contrato-instrumento da cessão, sendo o primeiro gerador dos efeitos cuja transmissão se pretende e o segundo por via do qual esses efeitos são transmitidos ao terceiro;
6.ª São três os intervenientes desta operação: o contraente que transmite a posição adquirida no contrato-base (cedente); o contraente que adquire a posição contratual transmitida (cessionário), ou seja, aquele que fica investido no complexo de direitos e obrigações que eram do cedente; e a contraparte do cedente, no contrato-base, que passa a ser contraparte do cessionário (cedido);
7.ª Assim, na cessão da posição contratual, tal como a figura é desenhada na lei, o que se verifica é uma modificação subjectiva operada num dos pólos da relação contratual básica que não prejudica a identidade da relação;
8.ª Verifica-se a extinção subjectiva da relação contratual, quanto ao cedente, sendo a mesma relação adquirida pelo cessionário e permanecendo idêntica, apesar da modificação dos sujeitos;
9.ª Transferida a relação contratual para o cessionário, verifica-se a sua extinção subjectiva relativamente ao cedente, cessam quaisquer direitos e deveres entre cedente e cedido; a desvinculação completa do cedente é um efeito natural, automático, do contrato, estabelecendo-se entre cessionário e cedido os direitos e obrigações integrados na relação contratual cedida, no estado de evolução em que esta, no momento da cessão, se encontrava na titularidade do cedente;
10.ª Tem, pois, como principal efeito a substituição do cedente pelo cessionário, como contraparte do cedido, na relação contratual básica, tal como esta existe à data da cessão;
11.ª O cessionário toma-se o único titular da posição contratual, passando-lhe a pertencer-lhe, por esse motivo, os créditos e os débitos, integrados na relação contratual transmitida, encabeçados no cedente no momento da cessão;
12.ª Perante os factos dados como provados, parece-nos, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que ficaram configurados verdadeiros contratos de cessão da posição contratual;
13.ª A materialidade que ficou demonstrada afigura-se pois compatível com contratos de cessão da posição contratual;
14.ª Com efeito o ora Recorrente transmitiu as suas posições contratuais razão pela qual apresentou à Autora os contratos-promessa anteriormente celebrados. Elemento demonstrativo de que os bens em causa não eram seus e apenas poderia transmitir a sua posição contratual na aquisição dos mesmos;
15.ª A errada qualificação dos contratos não invalida os seus comteúdos e a pretensões das partes;
16.ª Assim sendo, a sentença ora recorrida fez, salvo o devido respeito, uma errada valoração dos factos, violando o disposto no artigo 418.° do Código Civil de Macau.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, substituindo-a por outra que julgue o pedido da Ré, ora recorrente, procedente nos termos então peticionados.
2. Não foram oferecidas contra alegações.
3. Foram colhidos os vistos legais
II - FACTOS
Vêm provados os seguintes factos:
“Da Matéria de Facto Assente:
- Em 07/05/2004, a A. e o R. celebraram um contrato-promessa nos termos do qual o R. comprometeu-se a vender à A. quatro lugares de estacionamento (respectivamente os n.º 11, 12, 13 e 14), situado no NAPE XXXX, sob a descrição n.º XXXX a fls. 34v do livro B-104A da Conservatória do Registo Predial, com o montante de HKD$233,000.00, equivalente MOP$240,340.00, e cujo preço por cada lugar é HKD$58,250.00, conforme o teor do coumento a fls. 7 e 8 (alínea A) dos factos assentes).
- No momento da celebração do contrato, a A. pagou ao R. o montante de HKD$116,500.00 (alínea B) dos factos assentes) .
- Em 10/05/2004, a A. pagou à R. o remanescente do preço em HKD$116,500.00 (alínea C) dos factos assentes).
- Em 27/05/2004, a A. e o R. celebraram o contrato-promessa nos termos do qual o R. comprometeu-se a vender à A. três lugares de estacionamento (respectivamente os n.º 49, 50 e 55), situado no NAPE XXXX, sob o descrição n.º XXXX a fls. 34v do livro B-104A da Conservatória do Registo Predial, com o montante de HKD$216,000.00, equivalente MOP$222,804.00, e cujo preço por cada lugar é HKD$72,000.00, conforme o teor do documento a fls. 43 e 44 (alínea D) dos factos assentes).
- A A. pagou ao R. de imediato o montante de HKD$216,000.00 (alínea E) dos factos assentes).
- No momento da celebração dos aludidos contratos, o R. não era o proprietário dos referidos lugares de estacionamento (alínea F) dos factos assentes).
- No momento em que o R. celebrou os dois contratos mencionados em A) e D) dos factos assentes com a A., o R. exibiu à A. dois contratos-promessa de compra e venda de lugares de estacionamento, a fim de provar que já adquirira o direito à aquisição dos referidos lugares de estacionamento (alínea G) dos factos assentes).
- Por isso, a A. acreditou que o R. possuía o direito à aquisição dos lugares de estacionamento (alínea H) dos factos assentes).
- Conforme os contratos referidos na alíneas A) e D) dos factos assentes, as escrituras dos respectivos negócios deveriam formalizadas no prazo de três meses, que era em 07/08/2004 e 27/08/2004 (alínea I) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- Passado o prazo referido na alínea I) dos factos assentes, o R. não procurou marcar uma nova data para a celebração da escritura pública (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- A A. insistiu junto do R., por várias vezes, para a realização da escritura pública (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Mas o R. nada fez (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Até ao momento, o R. não conseguiu fazer com que os referidos lugares de estacionamento passarem para a sua esfera jurídica (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- A A. já perdeu o interesse que tinha no cumprimento dos contratos promessa em causa (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa, no essencial se estamos perante um contrato-promessa ou uma cessão de posição contratual.
A Ré prometeu vender 7 parques de estacionamento ao A e realizar a escritura em determinado dia, tendo sido pago o respectivo preço.
2. De facto, interpretando o contrato, entendeu a sentença recorrida que o contrato celebrado entre autora e ré não reveste a natureza de uma cessão da posição contratual, mas, pelo contrário, a de um verdadeiro contrato-promessa de compra e venda, cujo incumprimento deve ser imputado aos executados.
Atentemos na douta motivação expendida no aresto agora questionado:
“Natureza da relação estabelecida entre as partes
Flui do acima exposto que a Autora entende que entre as partes foram celebrados dois contratos-promessa de compra e venda enquanto que o Réu defende que, por força da cessão da sua posição contratual de uma promessa de aquisição feita anteriormente, o verdadeiro promitente vendedor era o terceiro a quem o Réu prometera comprar os lugares de estacionamento.
Urge então analisar sobre a verdadeira natureza da relação estabelecida entre as partes.
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Conforme os factos assentes, entre as partes foram efectivamente celebrados dois contratos-promessa de sete lugares de estacionamento por determinado preço sendo a Autora a promitente compradora e o Réu o promitente vendedor e tendo as partes estabelecido que a compra e venda prometida seria feita no prazo de 3 meses.
Ensina Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, Almedina. Coimbra, 1991, pg 312, que “O contrato-promessa é assim a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma dela, se obrigam, dentro de certo prazo ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato.”
Idêntica noção consegue-se retirar da primeira norma constante da subseccção intitulada “Contrato-promessa” do CC, mais especificamente o artigo 404º, nº 1, deste mesmo Código. Segundo este preceito, “Á convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis ...”
Analisados os factos provados, não restam dúvidas de que os negócios jurídicos estabelecidos são, de facto, contratos-promessa de compra e venda, pois as partes acordaram celebrar no futuro contratos de compra e venda dos imóveis prometidos vender por um determinado preço.
Pelo que, tanto processualmente, nos termos do artigo 58º do CPC, como substantivamente, o Réu é parte legítima.
Nem se diga que o facto de o Réu não se, na altura, proprietário dos lugares de estacionamento obsta a essa qualificação. É que, por o contrato-promessa não ter efeito translativo como, por exemplo, acontece com a compra e venda (cfr. artigo 865º do CC) nada obsta a que se celebre tal contrato antes de o promitente vendedor se tornar proprietário do bem.
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Incumprimento contratual
Tendo em conta o alegado pelas partes, urge apurar se o Réu incumpriu os contratos-promessa celebrado em 7 e 27 de Maio de 2004 respectivamente.
Segundo a Autora, o Réu incumpriu esse contrato porque este não tinha procurado marcar datas para a celebração das escrituras pública e, mesmo interpelados por várias vezes, nada tinha feito designadamente adquirindo os lugares de estacionamento prometidos vender, facto que fez com que aquela tivesse perdido o interesse na aquisição dos lugares de estacionamento.
Como foi já referido, o Réu nega ter incumprido os acordos celebrados com a Autora alegando que destes acordos não resultava para aquele qualquer obrigação de celebrar os contratos definitivos.
Feito o julgamento da matéria de facto, a Autora logrou provar todos os factos relativos ao incumprimento.
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Nos termos do artigo 794º, nº 2, a), do CC, “Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação tiver prazo certo.”
Ora, resulta dos factos assentes que as compras e vendas eram para serem feitas até 7 e 27 de Agosto de 2004, respectivamente. Apesar disso, o Réu nada fez mesmo depois de interpelado para cumprir.
Há inequivocamente mora por parte do Réu.
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Para os efeitos pretendidos pelo Autor, não basta a mora. É ainda preciso que a mora se tenha convertido em incumprimento definitivo.
Dispõe o artigo 797º, nºs 1 e 2, do CC que “1. Considera-se para os efeitos constante do artigo 790º como não cumprida a obrigação se, em consequência da mora: a) O credor perder o interesse que tinha na prestação; ou b) A prestação não for realizada dentro do prazo que, por interpelação, for razoavelmente fixado pelo credor. 2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.”
Dos factos assentes consta efectivamente que a Autora perdeu interesse na prestação depois de ter insistido várias vezes junto do Réu mas estes nada fez designadamente adquirir os lugares de.
Conclui-se, portanto, que a mora incorrida pelo Réu converteu-se em incumprimento definitivo.
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Pedidos formulados
Pede a Autora que o Réu seja condenado a pagar-lhe o dobro da quantia entregue acrescida dos juros legais desde a citação.
Nos termos do artigo 436º, nº 2, do CC, “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente o direito de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele o direito de exigir o dobro do que houver prestado.”
Está provado que três quantias, duas no valor de HK$116.500,00 cada e uma no valor de HK$216.000,00, foram entregues ao Réu.
Dispõe o artigo 434º do CC que “No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço.”
Trata-se de uma presunção iuris tantum de que as citadas quantias são sinal.
Nada consta dos autos que permita afastar essa presunção.
Assim, por as quantias entregues pela Autora terem carácter de sinal, assiste a esta receber do Réu o dobro das quantias, ou seja, a quantia total de HK$898.000,00 [(HK$116.500,00 x 2 + HK$216.000,00) x 2] correspondente a MOP$924.940,00 (HK$898.000,00 x 1.03).
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Mais pede a Autora que o Réu seja condenado a pagar juros sobre as quantias acima referidas.
O direito a juros funda-se no artigo 795º, nºs 1 e 2, do CC os quais são contados a partir da mora e à taxa legal.
Apesar de mais acima se disse que o Réu tinha incorrido em mora em 7 de 27 de Agosto de 2004, para o efeito agora em análise, a mora diz respeito à do dever de pagar o dobro do sinal em virtude do incumprimento definitivo dos contratos-promessa.
Uma vez que nada consta dos factos assentes acerca da alguma interpelação feita antes da interposição da presente acção para a restituição do dobro as quantias entregues, os juros só são devidos a partir da interpelação judicial feita nestes autos.
Conforme o aviso de recepção da carta de citação de fls 63, o Réu recebeu a carta em 3 de Novembro de 2009. Assim, os juros são calculados desde o dia 4 de Novembro de 2009.
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Julgado procedente o pedido principal, fica precludida a necessidade de se debruçar sobre o pedido subsidiário.
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Além dos pedidos acima referidos, pretende a Autora que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia de MOP$1.000.00 a título de sanção pecuniária compulsória.
Nos termos do artigo 333º, nº 3, do CC, “A sanção pecuniária compulsória só será cominada quando o tribunal a considere justificada ... .”
Uma vez que nada foi alegado nem provado que permita concluir que no presente caso é justificada a imposição da sanção pecuniária compulsória requerida, nada resta senão julgar improcedente este pedido.”
3. Desde logo, nem sequer pela nomenclatura usada se pode falar de uma cessão de posição contratual.
4. Para lá disso, a questão da qualificação do mencionado contrato passará, de facto, pela sua interpretação tendo em conta as regras contidas nos art.ºs 228 e seg. do CC.
Importa definir com precisão o que deve entender-se por cessão da posição contratual, já que é assim que a recorrente pretende ver configurado o contrato.
A cessão da posição contratual prevista nos art.ºs 418 e seg. do CC traduz-se no negócio jurídico por via do qual um dos contratantes de um contrato bilateral ou sinalagmático, transmite a terceiro, com o consentimento do outro contraente, o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato.
Há, portanto, a distinguir sempre dois contratos que a doutrina denomina de contrato-base e contrato-instrumento, sendo o primeiro o negócio gerador dos efeitos cuja transmissão se pretende e o segundo o negócio por via do qual esses efeitos são transmitidos ao terceiro.
Assim, denomina-se cedente o contratante que transmite a posição adquirida no contrato-base, cessionário, o contratante que adquire a posição contratual transmitida, isto é, aquele que fica investido no complexo de direitos e obrigações que eram do cedente, e cedido, o contratante que, sendo a contraparte do cedente no contrato-base, continua a ser a contraparte do cessionário.
Realça-se o facto de ser sempre necessária a autorização do cedido, sob pena de o negócio não ser válido, e que, com o complexo de direitos e obrigações transmitido se transmitem também todos os deveres e direitos laterais, secundários ou acessórios.
Perscrutando a matéria fáctica que vem apurada salta logo à primeira vista que falta este requisito, pelo que desnecessária seria outra argumentação para a afastar a configuração do contrato como uma cessão contratual.
5. A Ré prometeu vender os parques que comprou a terceiro, a A. pagou o respectivo preço, aquela comprometeu-se a realizar a escritura em certo dia, mas mais nada se prova quanto ao comprometimento do primitivo promitente vendedor no negócio celebrado entre as partes.
Na cessão da posição contratual, tal como a figura é desenhada na lei, o que se verifica é uma modificação subjectiva operada num dos pólos da relação contratual básica que não prejudica a identidade da relação. Na verdade “a relação contratual que tinha como um dos titulares o cedente é a mesma de que passa a ser sujeito, após o novo negócio, o cessionário: successio non producit novum ius sed vetus transfer.1
A situação contratual, tal como comprovada vem, é muito linear e de modo algum permite a interpretação que a Ré pretende. O sentido que se extrai do texto contratual, o sentido razoável e que estará em consonância com o objectivo final pretendido por ambas as partes, tal como tudo seria entendido por um declaratário normalmente diligente colocado na posição dos contraentes é o de que a Ré, que ainda não adquiriu os sete parques, se comprometeu a vendê-los à A. por determinado preço e em certa data, não apondo qualquer condição à realização de tal negócio.
Nada de mais linear. Todo este regime contratual é incompatível com um contrato de cessão da posição contratual, no qual, como se disse já, não há senão uma alteração subjectiva num dos pólos da relação contratual básica, mantendo-se a identidade dessa relação.
É verdade que foi isso que foi alegado, mas não é isso que vem provado.
6. A Ré não exibiu os contratos promessa que fizera a terceiro donde se poderia aferir até se se tratava dos mesmos contratos. Foi requerida a intervenção desse terceiro, mas debalde. Não foi admitida essa intervenção, por a chamada não ser parte nos contratos celebrados entre A. e Ré, para além de a pretensa chamada não ser aparentemente a detentora das referidas fracções.
Ora, com o que ficamos é apenas com os contratos celebrados entre as partes nesta acção, sendo que cada uma delas se tem de responsabilizar pelas obrigações neles assumidos.
Na cessão, cedida a posição contratual, o cedente desliga-se do contrato base, que passa a vigorar e a produzir efeitos apenas entre o cedido e o cessionário, nas mesmas condições em que vigorava entre o cedido e cedente à data da cessão, produzindo-se efeitos ex nunc .
Os contratos celebrados são incompatíveis com a fisionomia da cessão.
Nem sequer podemos aferir, como se disse, se as condições contratuais eram as mesmas, o que não deixa de ser também um pressuposto da cessão contratual.
A escritura acordada teria de ser realizada até aos dias de 7/8/2004 e 27/8/2004 e, passado esse prazo, a Ré não procurou marcar uma nova data para a celebração das escrituras apesar da insistência da A.
Como se observa, nenhum contacto ou relação contratual foi estabelecida entre o A. e o primitivo promitente comprador, sendo de referir, como observa A. Varela (ob. Cit.) “ O cedente e o cessionário é que discutem e acertam entre si o processo de composição de interesses próprios da cessão... o cedido, mesmo que tenha conhecimento (acidental ou não) desta composição, é apenas chamado a autorizar ou ratificar uma parte dela (se previamente não tiver dado o seu consentimento em branco) – a parte da transacção que consiste na transferência para o terceiro da posição jurídica assumida pelo cedente na relação contratual básica. O cedido não dialoga, ou não tem normalmente que dialogar, com o cedente e o cessionário acerca do arranjo de interesses envolvente da transmissão que ele se limita a autorizar.” Mas daqui resulta que ele não pode ser alheio a essa cessão, resultando dos autos não ter existido qualquer intervenção da sua parte na nova relação contratual estabelecida
Em virtude dessa transmissão, os cedentes perdem os direitos de crédito correspondentes à posição contratual cedida, assim como se libertam das correspondentes obrigações e deveres acessórios, tudo se transmitindo para os cessionários, que passam a ser a contraparte do cedido.
Ora nada disto ocorre no caso concreto como procurou demonstrar-se.
7. Todavia, as referidas cláusulas fazem já todo o sentido se estivermos perante um verdadeiro contrato-promessa de compra e venda, embora, de coisa futura, que a Ré, enquanto promitentes vendedora, implicitamente se obrigou a adquirir - art.º 870 do C.C. – (não se trata de um contrato-promessa de compra e venda de bens alheios – que, todavia seria igualmente válido – porquanto era do conhecimento da promitente compradora que os referidos parques de estacionamento em causa não pertenciam ainda à promitente vendedora, nem esta se arrogou ser sua proprietária - art.º 883 do CC -, sendo de considerar que bens futuros não são apenas os inexistentes na sua materialidade, mas também aqueles que pertencem a terceiro e são objecto da promessa na perspectiva de que vêm a integrar o património do alienante – emptio rei speratae 2).
8. Concluímos, assim, que não é difícil descortinar a vontade real das partes na interpretação dos contratos sob apreciação. O que releva decisivamente para a interpretação de um contrato não é tanto a qualificação jurídica que as partes lhe atribuam, mas o respectivo conteúdo aferido de acordo com o critério fornecido pela teoria de impressão do destinatário consagrada na nossa lei.
Consequentemente, ao interpretar, como o fez, o dito negócio concreto, não merece a douta sentença recorrida qualquer censura já que não violou as regras da interpretação.
Nada há a censurar igualmente no que respeita ao incumprimento do contrato e falta de interesse no cumprimento, bem como quanto às consequências daí extraídas.
Na verdade, no caso de venda de bens futuros, o vendedor fica obrigado a exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos (art.º 870º do C.C.).
Tratando-se de contrato-promessa, como é o caso, há-de o promitente vendedor diligenciar para que seja possível celebrar o contrato de compra e venda prometido nas condições acordadas com o promitente-comprador, isto é, há-de providenciar para que o promitente-comprador venha a adquirir, nas condições estipuladas, o bem prometido vender.
Não diz a lei, em concreto, quais as diligências que o promitente deve implementar, nem, no caso, elas resultam de convenções ou das circunstâncias do contrato. Por isso, tanto poderia o promitente vendedor, adquirir ao terceiro proprietário a coisa prometida vender e depois outorgar com o promitente comprador a escritura definitiva, como poderia negociar com o terceiro proprietário de modo a conseguir, que este outorgasse a escritura de compra e venda directamente com o promitente comprador, nas condições estipuladas no contrato-promessa.
Em qualquer caso se obteria a satisfação do interesse do credor/promitente comprador em adquirir o bem prometido vender, pelo que teria sido cumprida a obrigação que do contrato-promessa resultava para a promitente vendedora (configurado como bem futuro, não porque inexistente fisicamente, mas sim porque não existindo na esfera jurídica do promitente vendedor no momento em que ele celebra o contrato-promessa, tal como acima visto).
Consequentemente, nem equacionada vindo a impugnação, em termos de falta de incumprimento, mas tão-somente em termos de ilegitimidade, tendo sido apenas esgrimida a defesa em termos exceptivos por banda da Ré, mais nada há a acrescentar ao que foi dito na douta sentença recorrida que aqui se acolhe.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 29 de Maio de 2014,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 .. Antunes Varela – Das Obrigações em Geral, II , 4ª ed. – 371 e seg.
2 - P. Lima e A. Varela, CCA, II, 3ª ed. Coimbra Ed., 174
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