Processo nº 90/2014
(Autos de recurso civil e laboral)
Data: 8/Maio/2014
Assunto: B
Contrato a favor de terceiro
SUMÁRIO
- Tendo a Ré ora recorrente prometido perante uma Sociedade fornecedora de mão-de-obra não residente proporcionar condições remuneratórias mínimas e outras regalias aos trabalhadores a contratar, e sendo o Autor ora recorrido um dos trabalhadores contratados nessas circunstâncias, não deixaria de ser ele o terceiro beneficiário na relação estabelecida entre a recorrente e a Sociedade, e por conseguinte, passando a ter direito a uma prestação, independentemente de aceitação, nos termos estipulados no artigo 438º, nº 1 do Código Civil.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 90/2014
(Autos de recurso civil e laboral)
Data: 8/Maio/2014
Recorrente:
- B (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Ltd (Ré)
Recorrido:
- C (Autor)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
C intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM acção declarativa de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da Ré no pagamento do montante de MOP$287.135,00, acrescido de juros legais até integral e efectivo pagamento.
Realizado o julgamento, foi a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$117.249,36, acrescida de juros moratórios calculados de acordo com o Acórdão do TUI proferido no Processo nº 69/2010.
Inconformada com a sentença, dela vem interpor o presente recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
a) O julgamento que incidiu sobre o ponto 13º da matéria de facto escorou-se no depoimento da testemunha D.
b) No respeitante à matéria do referido ponto da matéria de facto, a aludida testemunha limita-se a fazer, a instâncias do Ilustre Mandatário do A., uma procedimento geral implementado na R. para a autorização de faltas dos seus funcionários.
c) Sendo que, quando questionada pelo mandatário da R. sobre se tinha efectivo conhecimento de que o A. tivesse ou não dado quaisquer faltas à margem daquele procedimento geral, a testemunha acaba por responder que não sabe (a partir de 20m00s da gravação acima referida).
d) A própria testemunha admite pois que, não obstante a existência daquele procedimento, não tem conhecimento concreto sobre se o A. sempre lhe deu cumprimento, o que faz ruir a conclusão, retirada pelo Tribunal recorrido, de que o A. nunca faltou ao trabalho sem para tal estar autorizado pela R.
e) O que leva a que se considere errado o julgamento que o Tribunal a quo proferiu sobre o ponto 13º da matéria de facto.
f) Face a todo o exposto, pela reapreciação da prova constante dos autos, nomeadamente do depoimento prestado pela testemunha D, gravado no ficheiro “Recorded on 29/May-2013 at 10.20.45 (0TUSJLA108211270).mp3”, deverá ser alterada a resposta ao facto contido no ponto 18º da matéria de facto provada, julgando-se aquele não provado, com as devidas consequências quanto aos pedidos formulados pela A.
g) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços.
h) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente.
i) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador.
j) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho.
k) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho.
l) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º.
m) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil.
n) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta.
o) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”.
p) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.
q) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros.
r) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro.
s) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações.
t) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro.
u) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro.
v) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços.
w) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro.
x) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário.
y) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º/2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest).
z) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal.
aa) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse.
bb) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro.
cc) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos.
dd) Ao decidir com o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º/2 e 437º do Código Civil.
ee) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos.
ff) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais.
gg) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário.
hh) Por outro lado, quanto ao regime previsto nos Contratos para o cálculo da remuneração do trabalho extraordinário, deverá entender-se que o mesmo remete para o art. 11º/2 do Decreto-Lei n.º 24/89/M, em cujo art. 11º/2, o qual deixa ao critério das partes o ajuste, em sede de contrato individual de trabalho, dos termos dessa remuneração.
ii) Cabia pois ao A. alegar os termos desse ajuste contratual, o que não fez.
jj) Como tal, conclui-se que o A. não demonstrou ser-lhe devida qualquer quantia adicional às que, como ficou provado nos pontos 7º, 9º e 11º, lhe foram oportunamente pagas pela R. como remuneração do trabalho extraordinário prestado.
kk) Ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou o art. 228º/1 do Código Civil.
ll) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação.
mm) Acresce que, como é entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina, e sufragado também pelo Tribunal recorrido, o pagamento de subsídio de refeição depende da prestação efectiva de trabalho.
nn) Porém, o Tribunal a quo limitou-se a descontar, para este efeito, os dias de gozo de férias anuais e feriados obrigatórios, concedendo ao A. subsídio de alimentação relativamente a todos os restantes dias que durou a relação laboral.
oo) Tendo desconsiderado os dias em que o A. implicitamente reconhece ter faltado com justificação ou autorização, e em que igualmente não teria direito a receber o subsídio em causa.
pp) Ao decidir nesse sentido, o Tribunal recorrido fez errada interpretação da estipulação dos Contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228º/1 do Código Civil.
qq) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade.
rr) Acresce que, nos termos dos Contratos, o subsídio de efectividade é um mecanismo destinado a premiar a efectiva prestação de trabalho.
ss) Nesse sentido, é para o empregador irrelevante que o empregado, faltando, o faça por motivo atendível e justificado, ou até sob autorização prévia.
tt) Assim, ao decidir no sentido de que as faltas justificadas ou autorizadas não devem ser tidas em conta para a aferição do subsídio de efectividade, a decisão a quo violou uma vez mais o disposto no art. 228º/1 do Código Civil.
uu) No tocante à condenação a título de trabalho prestado em descanso semanal, a decisão recorrida enferma de erro de Direito, sendo nula por contradição entre os fundamentos e a decisão.
vv) Por regular apenas as relações de trabalho com residentes da RAEM, o Decreto-Lei n.º 24/89/M não é aplicável ao caso em apreço, devendo entender-se que a remuneração do descanso semanal era tema tratado de forma definitiva no âmbito do contrato de trabalho celebrado entre A. e R.
ww) Ao decidir em sentido diverso, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 1º/2 e 3º/3/d) do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
xx) Vem também provado que, pelo trabalho em dia de descanso semanal que efectivamente prestou, o A. foi remunerado pela R. com o valor de um salário diário, em singelo (ponto 16º da matéria de facto).
yy) Ainda que se considere aplicável ao caso vertente o disposto no art. 17º do Decreto-Lei n.º 24/89/M do RJRL, deverá ter-se em conta que o seu n.º 6/a) estatui que o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser remunerado pelo dobro da retribuição normal.
zz) Assim, terá que concluir-se que, para que lhe sejam satisfeitos os direitos que legalmente lhe assistam a esse título, o A. terá apenas que receber montante igual ao que já lhe foi liquidado pela R.
aaa) Não obstante, a sentença recorrida condenou a R. a pagar ao A. o valor correspondente ao dobro de um salário diário, desconsiderando o facto – que na mesma sentença se deu por provado – de a R. ter já pago ao A. metade desse valor.
bbb) Decidindo de outra forma, a sentença recorrida é nula, por contradição entre o fundamento de facto contido no ponto 16º e a decisão proferida quanto ao pedido a título de trabalho prestado em dia descaso semanal (conforme estatuído no art. 571º/1/c) do CPC), tendo violado além do mais o disposto no art. 17º/6/a) do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
Conclui, pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo.
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Devidamente notificada, a Ré apresentou a sua resposta, pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A R. é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (A)
A R. tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de “guarda de segurança”, “supervisor de guarda de segurança”, “guarda sénior”, entre outros. (B)
A R. celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., entre outros, os “contratos de prestação de serviços”: n.º 09/92, de 03/01/1994; n.º 29/94, de 11/05/1994; n.º 45/94, de 27/12/1994, n.º 9/12. (C)
Os contratos supra identificados dispõem de forma idêntica relativamente ao regime de recrutamento e cedência de trabalhadores; de despesas relativas à admissão dos trabalhadores; à remuneração dos trabalhadores; ao horário de trabalho e alojamento; aos deveres de assistência; aos deveres dos trabalhadores; às causas de cessação do contrato e repatriamento; às outras obrigações da R.; à provisoriedade; ao repatriamento; ao prazo do contrato e às disposições finais, dos trabalhadores recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., e posteriormente cedidos à R. (D)
Do teor dos contratos aludidos em C) resulta que o A., e os demais trabalhadores não residentes ao serviço da R., teria o direito a auferir, no mínimo, MOP$90,00 diárias. (cfr. doc. 2 junto com p.i.)(E)
Acrescidas de MOP$15,00 diárias a título do subsídio de alimentação. (F)
Que teria direito a auferir um subsídio mensal de efectividade “igual ao salário de quatro dias”, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço. (G)
Sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, e o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (H)
Ao longo da relação laboral, a R. utilizou dois contratos de conteúdos diferentes: o contrato celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, e cujo conteúdo foi sucessivamente objecto de fiscalização e aprovação por parte da entidade competente, a Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE); e os concretos contratos individuais que ao longo dos anos foram assinados com o A. (I)
O A. esteve ao serviço da R., para sob as ordens, direcção, instruções e fiscalização exercer funções de guarda de segurança, mediante o pagamento de salário. (J)
Era a R. quem fixava o local e horário de trabalho do A., de acordo com as suas exclusivas necessidades. (K)
A R. celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os denominados “contratos de prestação de serviços”: n.º 1/1 de 3 de Janeiro de 2001 e n.º 14/1, de 26 de Março de 2001, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (cfr. docs. 1 e 2 que se junta com contestação) (L)
O A. exerceu funções para a R. entre 01/06/1998 e 04/04/2009. (1º)
O A. foi admitido aos serviços da R. e posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a mesma, ao abrigo de um dos contratos aludidos em C), designadamente o contrato n.º 9/92, junto as fls. 279 a 278, 312 a 322, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (2º)
Entre Junho de 1998 e Fevereiro de 2005, a R. pagou ao A. o título de salário, a quantia de MOP$2.000,00, mensais. (3º)
Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, a R. pagou ao A. o título de salário, a quantia de MOP$2.100,00, mensais. (4º)
Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, a R. pagou ao A. o título de salário, a quantia de MOP$2.288,00, mensais. (5º)
Entre Julho de 1997 e 30 de Junho de 2002, o A. trabalhou 12 horas de trabalho por dia. (6º)
Tendo a R. remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário à razão de MOP$9,30, por hora. (7º)
Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002, o A. trabalhou, em média, 11 horas de trabalho por dia. (8º)
Tendo a R. remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário à razão de MOP$10,00, por hora. (9º)
Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005, o A. trabalhou, em média, 11 horas de trabalho por dia. (10º)
Tendo a R. remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário à razão de MOP$11,00, por hora. (11º)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca a R. pagou ao A. qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (12º)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca o A. – sem conhecimento e autorização prévia pela R. – deu qualquer falta ao trabalho. (13º)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., a R. nunca pagou ao A. qualquer quantia a título de “subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias”. (14º)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca o A. gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (15º)
A prestação de trabalho pelo A. nos dias de descanso semanal foi remunerada com o valor de um salário, em singelo. (16º)
Sem que lhe tenha sido concedido um dia de descanso compensatório. (17º)
A partir de 15 de Janeiro de 2001, o A. passou a estar ao serviço da R. no âmbito de uma autorização concedida em processo administrativo relativo ao contrato de prestação de serviços n.º 1/1, datado de 15 de Janeiro de 2001, constantes dos autos as fls. 127 a 131, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (18º e 19º)
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É perante a matéria de facto acima descrita que se vai conhecer do recurso, tendo em conta as respectivas conclusões que delimitam o seu âmbito.
Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau, “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
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Da impugnação da matéria de facto constante da resposta ao quesito 13º da base instrutória
Alega a recorrente que, partindo da prova testemunhal produzida na audiência, nunca poderia o Tribunal a quo dar como provado o facto constante do quesito 13º da base instrutória.
Consagra-se na resposta ao quesito 13º o seguinte:
“Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca o A. – sem conhecimento e autorização prévia pela Ré – deu qualquer falta ao trabalho.”
Entende a recorrente que de acordo com o depoimento da testemunha D, verificou-se que ele não tinha conhecimento concreto da matéria em causa, pelo que não se deveria dar como provado o tal quesito.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, julgamos não assistir razão à recorrente.
Em nossa opinião, a testemunha mostrou-se ter conhecimento do facto questionado, nomeadamente, tendo ele durante vários anos exercido funções de guarda de segurança para a recorrente, nas mesmas condições do recorrido, e segundo soube não teve este último faltado ao trabalho sem para tal estar autorizado pela recorrente, para além de que descreveu de forma mais ou menos pormenorizada o procedimento geral implementado na recorrente em matéria de faltas, o qual é aplicável ao recorrido, daí que não se vê razão para alterar a resposta dada ao quesito pelo Tribunal a quo.
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Do erro de direito
A propósito da questão de direito questionada pela recorrente, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar, de forma unânime, em vários processos congéneres, sobre o tipo de relação estabelecida entre a recorrente e a Administração e a natureza jurídica do negócio celebrado entre a recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, citando-se, a título exemplificativo, o conteúdo de um desses arestos (TSI, Processo 778/2010):
“4. Importa atentar no regime da contratação dos não residentes.
Não sem que se observe que, em princípio, só em relação aos residentes há liberdade negocial. A contratação dos não residentes está condicionada a uma autorização administrativa e se é assim actualmente, também o foi no passado.
Esta nota é muito importante para a abordagem do caso vertente, na medida em que os termos e condicionamentos de uma contratação como a presente não dependem ou não podem depender por e simplesmente da vontade dos contratantes, empregador e trabalhador.
Ora, na lógica do defendido pela recorrida e de certa forma com acolhimento na douta sentença recorrida este condicionalismo é marginalizado.
A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
Por sua vez, o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, vigente até 01 de Janeiro de 2009 (altura em que entrou em vigor a Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho) e aprovado para definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre os empregadores directos e os trabalhadores residentes, tal como resulta do seu artigo 1.º, n.º 2, esclareceu ele próprio que não seria aplicável a alguns conjuntos de relações de trabalho, entre os quais as relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, que seriam reguladas por normas especiais que se encontrem em vigor, nos termos do artigo 3.°, n.º 3, alínea d).
Essas normas especiais foram (não se conhecem outras), até à entrada em vigor da Lei n.º 21/2009 de 27.10, no dia 25 de Abril de 2010, as previstas no Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, considerando que o Dec.-Lei n.º 101º/84/M, de 25 de Agosto, onde no capítulo VII se previa a contratação de trabalhadores estrangeiros, apátridas e no capítulo VIII a de cidadãos chineses provenientes da RPC, aí se regulando os pressupostos de contratação e, em relação ao primeiro grupo ainda um conjunto de princípios que deviam enformar essa contratação, em particular a não discriminação baseada na nacionalidade (artigo 51º), foi revogado pelo já referido Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril.
…
Muito sumariamente que, aliás como a própria recorrida reconhece, o Despacho 12/GM/88 cuida tão somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
Não se trata de um regime jurídico de determinadas relações laborais, antes de um prontuário procedimental a que devem obedecer as contratações de um determinado grupo de trabalhadores, traduzindo-se muitas das normas em condicionamentos e instruções dirigidas aos respectivos Serviços, não tendo ma natureza normativa instituidora de direitos e obrigações para os sujeitos da relação laboral.
As normas específicas, constantes desse Despacho normativo, vigente enquanto esteve em execução o contrato de trabalho junto aos autos, regulam o procedimento para admissão em Macau de mão-de-obra não residente, impondo, nomeadamente, à Ré, enquanto empresa empregadora, elencam as condições mínimas de contratação que estava disposta a conceder ao trabalhador não residente, para obter a necessária aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, mas esse Despacho nada refere quanto aos princípios, às condições, aos direitos, deveres e garantias a que fica sujeita essa relação de trabalho.
Esta questão não se coloca na actualidade uma vez que o artigo 20.° da Lei n.º 21/2009 de 27/Out. (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece a aplicação subsidiária do regime geral das relações de trabalho aos contratos com trabalhadores não residentes (aplicação subsidiária essa que já é consentânea com a redacção do artigo 3.°, n.º 3, 1) da Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho), mas no âmbito do Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, não existia qualquer remissão para o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, sendo certo que este último diploma mesmo referia, como supra se consignou, que os contratos de trabalho celebrados entre empregadores e trabalhadores não residentes não seriam por ele abrangidos por estarem reguladas pelas normas especiais que se encontrem em vigor, como já acima dito.
…
6. Importa, então, apurar sobre o regime jurídico aplicável a este contrato de trabalho, sabido que o mesmo se iniciou em 8 de Outubro de 1996 e cessou em 31 de Maio de 2008.
Não é difícil perceber que ele deve ser iluminado por um conjunto de fontes reguladoras do regime jurídico aplicável ao caso - contratação administrativamente condicionada -, a saber:
- o Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro;
- o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
- o contrato celebrado entre o A. e a Ré;
- o RJRL ( DL24/89/M, de 3/Abril), na medida em que remissivamente aplicável.
Tanto mais que está provado que a Ré foi autorizada a contratar trabalhadores não residentes, entre os quais o ora Autor, para a prestação de funções relacionadas com a actividade de segurança privada.
O que foi feito ao abrigo do artigo de um contrato de prestação de mão de obra com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, conforme previsto nos artigos 3º, 7º, 8º, 9º do Despacho n.º 12/GM/88.
Isto é, o contrato com o A. só foi celebrado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação(…)
É assim que as condições previstas no aludido contrato ganham força, sendo, como é óbvio, vista a natureza da relação laboral e os contornos administrativos a que é sujeita, que as condições de trabalho menos favoráveis para o trabalhador, resultantes do contrato de trabalho entre este e o empregador, hão-de ceder necessariamente perante as resultantes do contrato celebrado entre o empregadora e a empresa fornecedora mão-de-obra, condição decorrente da autorização de relação laboral em causa.
É certo que o contrato de trabalho, como negócio jurídico obrigacional, se baseia na autonomia privada, a qual engloba para além da liberdade de celebração, a liberdade de estipulação. Como ensina Pedro Romano Martinez, “como em qualquer negócio jurídico, as partes têm, liberdade de conformar as regras contratuais aos interesses que pretendem prosseguir. Todavia, no domínio laboral, a liberdade de estipulação contratual encontra-se limitada; a especial protecção do trabalhador, que o Direito do Trabalho pretende conferir, leva a que, frequentemente, se condicione a liberdade das partes na conformação das regras contratuais, até porque, não raras vezes, a situação factual de desigualdade entre as partes potenciaria o estabelecimento de regras desfavoráveis para o trabalhador”.
Razões estas, se não apodípticas, observáveis na nota preambular do referido Despacho n.º 12/GM/88, em que para além da contemplação dos interesses protagonizados pela defesa da mão-de-obra local e dos protagonizados pelos interesses empresariais se sublinhou o seguinte:
“Da parte do Governador há ainda a considerar um terceiro aspecto da questão, que é o de não consentir no Território situações que contendam com o padrão mínimo, ou que como tal seja aceite pela consciência social, relativamente às condições de alojamento da população trabalhadora. Entendeu-se assim que a solução do problema passava por uma clara destrinça entre as situações de emprego dos residentes, estas reguladas pela lei aplicável entre empregador e empregado como sujeitos autónomos de direitos e obrigações, e as situações de emprego de não-residentes, que, ao contrário das primeiras, traduzirão um vínculo de contrato de prestação de serviços com terceiras entidades. Estas têm que se responsabilizar pelo alojamento dos trabalhadores ocasionais e pelo pagamento dos salários que lhes sejam devidos, bem como pelo seu repatriamento quando os considerem dispensáveis. Fica claro, de qualquer forma, que esses trabalhadores ocasionais não têm qualquer direito de permanência em Macau. Nem de outra forma seria possível avançar, como é firme propósito do Governador, em defesa dos interesses dos trabalhadores residentes no Território. Para tal, estes hão-de constituir uma massa determinada, com peso específico próprio.
Nesta primeira fase, tal defesa consiste na regulação das condições de oferta do mercado, pedindo que os trabalhadores sob custódia de uma terceira entidade contratados por via de contrato de prestação de serviços possam constituir-se numa pressão que resulte em prejuízo dos trabalhadores residentes, quer no que diz respeito à estabilidade do emprego, quer no que diz respeito ao nível dos salários. E trata-se, é bom que se diga, de uma solução que se aceita a título experimental, determinada pela extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento. Por isso, aliás, se introduz por via do simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha.”
Torna-se assim mais claro o enquadramento que deve presidir ao estabelecimento do regime jurídico da relação em apreço e que passa pela aplicação das normas mais favoráveis que de qualquer um dos contratos em referência resulte, até em nome do princípio do favor laboratoris, entendido este como um princípio geral do Direito do Trabalho, entendido este com assento na concepção das opções legislativas pro operário e não como derrogando as regras imperativas da interpretação das normas decorrentes do Direito Civil.
7. Face à defesa, por banda da empregadora, aqui recorrida, das posições desenvolvidas na douta elaboração presente na sentença recorrida a propósito da incursão pelo Direito das Obrigações, para excluir em termos de caracterização do contrato entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, a natureza ínsita a qualquer dos contratos-tipo analisados - contrato de trabalho, contrato para pessoa a nomear, contrato a favor de terceiro, contrato de cedência de trabalhadores, contrato de promessa - não nos eximiremos a algumas poucas palavras sobre o assunto.
Antes de mais, reafirmamos que a força da vinculação a tal regime resulta das normas condicionantes da autorização de trabalho, administrativamente contempladas. Isto é, só o trabalho prestado naquele condicionalismo seria autorizado. Donde, tais cláusulas, previstas nesse contrato serem condição de concessão de autorização de trabalho para aquela situação em concreto.
Não se pode proceder a uma análise desgarrada desse enquadramento e desse condicionalismo, donde, repete-se, o regime jurídico aplicável resultar desse acervo clausulado.
Mas, mesmo numa perspectiva de direito obrigacional puro, não somos a acompanhar, sem escolhos a leitura, aliás com mérito, que o Mmo Juiz faz dos diferentes institutos, muito particularmente no que se refere ao contrato a favor de terceiro.
Mas antes de prosseguirmos importa referir que não poucas vezes a realidade da vida é mais rica do que a realidade conceptualizada e, assim, as soluções do legislador não são bastantes para abarcar toda a factualidade.
Isto, para enfatizar que, por isso mesmo, os institutos previstos pelo legislador não são o bastante para regular toda a realidade negocial e daí que se devam conjugar, até em nome da liberdade contratual, diferentes contratos, surgindo-nos as situações de negócios mistos ou inominados.
É a partir desta constatação que nos damos a perguntar a nós próprios o que impede, em termos meramente de autonomia privada e de liberdade contratual, que alguém assuma perante outrem a obrigação de dar trabalho a um terceiro, mediante certas condições e estipulações. Sinceramente que não nos ocorre nenhum obstáculo.
Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.
Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
O objecto imediato do contrato a favor de terceiro pode ter, na verdade, diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos, bastando que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou de uma vantagem.
A razão excludente da configuração de um contrato a favor de terceiros, na tese do Mmo Juiz a quo, parece-nos algo limitativa.
Porque a obrigação assumida consiste numa prestação e não na celebração de um contrato, tal enquadramento não caberia ao caso.
Não estamos certos desta aparente linearidade.
A Ré compromete-se com uma dada Sociedade a dar trabalho ao A. e assume o compromisso de o fazer em determinadas condições.
Sinceramente que não vemos onde não exista aqui a assumpção de uma prestação, qual seja a de dar trabalho a A, a de contratar com ele e a de lhe pagar X.
Prestação é a conduta a que o devedor está obrigado ou seja o comportamento devido, na expressão lapidar de Pessoa Jorge.
Ora o facto de a Ré ter assumido a obrigação de dar trabalho, tal não é incompatível com uma prestação de contratar, relevando aí a modalidade de uma prestação de facere. Uma prestação de facto, na verdade, pressupõe o desenvolvimento, em prol do credor, de determinada actividade e pode até traduzir-se numa prestação de um facto jurídico quando as actividades desenvolvidas são jurídicas.
As coisas, postas assim, tornam-se agora mais claras e o instituto em referência mais se encaixa no nosso caso.
Nem o facto de a Ré se ter comprometido a celebrar um contrato exclui o enquadramento que se persegue.
O benefício para o terceiro está, como bem se alcança, não só na chance de obter trabalho (para mais enquanto não residente) e das utilidades e vantagens materiais que daí decorrem para o trabalhador, parte terceira nesse contrato, bem como das condições que a Ré se compromete a observar em benefício do trabalhador.
Aliás, esta possibilidade de acopulação entre o contrato primitivo e o contrato de trabalho posteriormente celebrado entre A. e Ré resulta como uma decorrência das obrigações primitivamente assumidas. É a primeira relação contratual, a relação de cobertura, que origina e modela a segunda relação, a relação entre o promitente e o terceiro.
Ora, nada obsta que desta relação entre o promitente e o terceiro, para além do assumido no primitivo contrato entre o promitente e o promissário, nasçam outras obrigações como decorrentes de um outro contrato que seja celebrado entre o promitente (Ré, empregadora) e o terceiro (A., trabalhador).
Esta aproximação encontramo-la também em Pires de Lima e A. Varela, enquanto anotam que “o artigo 443º(leia-se 437º) trata não só dos casos em que todo o contrato estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual. É o que sucede, por exemplo, na doação ou no legado com encargo a favor de terceiro que pode ser um direito de preferência sobre a coisa doada ou legada, ou ainda na instituição de uma fundação com encargo a favor de pessoa ou pessoas determinadas.”
Quanto ao argumento avançado na sentença, aliás douta, de que do contrato a favor de terceiros não podem nascer obrigações para o terceiro beneficiário, como está bem de ver, elas não resultam desse contrato, mas sim do contrato de trabalho entre o patrão e o empregado.
Nem se diga que esta posição contraria o sufragado por este Tribunal quando chamado a decidir sobre a excepção relativa à competência do Tribunal, nos termos da qual a ré propugnava pelo cometimento ao tribunal arbitral.
Como nessas decisões já se afirmou, configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação"
Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
Para além de que será de entender que essa cláusula compromissória de competência abrange apenas a relação de cobertura ou de provisão entre o promitente e o promissário e não já relação provisionada entre o promitente e o terceiro, ou a relação de valuta entre o promissário e o terceiro”
Nestes termos, julgamos ser essa a boa solução para o caso, não se descortinando razão para alterar a posição já tomada nesta Instância.
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Refere ainda a recorrente que a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário, neste caso a Sociedade, tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, mas o recorrido em momento algum o alegou ou provou, pelo que, no seu entender, não é possível qualificar o contrato em causa como contrato a favor de terceiro.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar a tese da recorrente.
A prestação corresponde a um interesse digno de protecção legal quando, por um lado, não se visem satisfazer um mero capricho do credor e, por outro, se excluem as prestações que, podendo ser dignas embora da consideração de outros complexos normativos, como por exemplo a religião, a moral, a cortesia, os usos sociais, todavia não merecem a tutela específica do direito.2
Ora bem, no presente caso, a promessa em causa traduz-se numa obrigação de carácter patrimonial ou económico, daí que não se vislumbra falta de interesse digno de protecção legal neste tipo de relação jurídica.
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Das diferenças salariais
Concluído que o contrato de prestação de serviço celebrado entre a recorrente e a Sociedade de Apoio Limitada consubstancia como sendo um contrato a favor de terceiro, é forçoso concluir que a decisão de condenação da recorrente no pagamento das diferenças salariais não merece qualquer reparo.
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Do trabalho extraordinário
Defende a recorrente que conforme o contrato de prestação de serviço, a remuneração do trabalho extraordinário era regulada “de acordo com a legislação de Macau”, e por sua vez, estatui-se nos termos do artigo 11º, nº 2 do Decreto-Lei nº 24/89/M que “nos casos de prestação de trabalho extraordinário, o trabalhador terá direito a um acréscimo de salário, do montante que for acordado entre o empregador e o trabalhador”, daí que, na falta de qualquer acordo estipulado entre as partes, entende que o pedido sobre a compensação do trabalho extraordinário deve ser julgado improcedente.
Salvo o devido respeito, julgamos mais uma vez sem razão a recorrente, por aquele seu entendimento ser destituído de qualquer fundamento legal, e ainda por cima constituir um atentado ao princípio do mais favorável previsto no artigo 5º daquele diploma legal laboral.
Sobre essa concreta questão já foi objecto de apreciação por este TSI, no âmbito do Processo 737/2010, nele se decidiu, entre outros pontos, o seguinte:
“É líquido que o Decreto-Lei nº 24/89/M não prevê sobre a forma ou o modo de fixação do acréscimo de salário pela prestação de trabalho extraordinário, nem sobre o montante mínimo desse acréscimo salarial, mas isto não representa que a “livre” fixação, em sede do artº 11º, nº 2, desse diploma legal, do valor remuneratório (em MOP$15,00) de cada hora extra de trabalho antes da meia-noite possa nomeadamente prejudicar as condições de trabalho mais favoráveis já observadas e praticadas entre a arguida e os seis trabalhadores ofendidos então ao seu serviço (cfr. a norma do nº 1 do artº 5º do próprio Decreto-Lei). Na verdade, não se pode admitir, ao arrepio do senso comum das pessoas, como fosse concretamente mais favorável a esses seis trabalhadores o facto de o valor da remuneração de cada hora extra do trabalho antes da meia-noite ser ainda inferior ao valor da remuneração de cada hora do trabalho normal.”
Nesta conformidade, somos da opinião de que, sob pena de violar o princípio do mais favorável previsto nos termos do artigo 5º, o recorrido tem direito a receber o valor correspondente ao da remuneração de cada hora do trabalho normal como remuneração de cada hora do trabalho extraordinário, daí que se julga improcedente o recurso quanto a esta parte.
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Do subsídio de alimentação
Entende a recorrente que no concernente ao pedido do subsídio de alimentação, este dependeria da prova do número de dias de trabalho efectivamente prestados pelo recorrido, e não tendo sido alegados nem provados os factos, não poderia o Tribunal a quo ter condenado a recorrente nos termos em que o fez.
Tem razão a recorrente.
Sobre esta questão, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar em processos congéneres, designadamente Processos 376/2012, 322/2013, 78/2012, 414/2012, no sentido de que a atribuição do subsídio de alimentação depende da prestação de serviço efectivo, isto significa que, para se poder efectuar o cálculo do respectivo subsídio, terá que apurar o número de dias de trabalho efectivamente prestados pelo Autor.
Nesta conformidade, uma vez que não se tendo apurado o número de dias de trabalho efectivo, deve a sentença recorrida ser revogada quanto a esta parte e, em consequência, ser a Ré condenada a pagar ao Autor compensação a título de subsídio de alimentação que se vier a liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 564º, nº 2 do Código de Processo Civil.
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Do subsídio de efectividade
Trata-se de uma questão também já amplamente abordada por este TSI em processos congéneres, no sentido de que o trabalhador ora recorrido tem direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tivesse dado qualquer falta.
Tem-se entendido ainda que na apreciação do tal pedido, as faltas justificadas não são consideradas como fundamento de exclusão do subsídio em apreço.
É este o sentido do Acórdão proferido no âmbito do Processo 322/2013:
“Em relação a este subsídio, vista a sua natureza e fins - já não se manifestam as razões que levam a considerar que a sua atribuição esteja excluída numa situação de não assiduidade justificada ao trabalho. Se o patrão autoriza uma falta seria forçado retirar ao trabalhador uma componente retributiva da sua prestação laboral, não devendo o trabalhador ser penalizado por uma falta em que obteve anuência para tal e pela qual o patrão também assumiu a sua responsabilidade.”
Destarte, improcede o recurso quanto a esta parte.
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Da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal
Entende a recorrente que no tocante à matéria de compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, não se deveria aplicar ao caso sub judice o Decreto-Lei nº 24/89/M, antes devia ser regulada no âmbito do contrato de trabalho celebrado entre A. e R., ou seja, cabia no domínio da liberdade contratual das partes.
Em nossa opinião, julgamos mais uma vez sem razão a recorrente.
Embora seja verdade que o Decreto-Lei nº 24/89/M não se aplica directamente às relações laborais estabelecidas com trabalhadores não residentes, mas tem-se entendido tanto na doutrina como na jurisprudência que a lei geral regulamentadora da relação laboral aplica-se analogicamente aos casos especiais, mormente às relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, sempre que se verificar falta de regulamentação específica da matéria.
Sobre essa questão, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar em processos congéneres, nomeadamente nos Processos 491/2011 e 687/2013, cujos fundamentos se dão aqui por reproduzidos para os devidos efeitos.
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Finalmente, a recorrente insurge-se ainda contra o quantum atribuído a título de compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, defendendo que como o recorrido já recebeu o salário diário em singelo, teria apenas direito a mais um dia de salário.
Encontrado o regime jurídico aplicável, resta-nos a questão de saber se está correcto o valor da compensação.
De acordo com a jurisprudência quase unânime neste TSI, tem-se entendido que o trabalho prestado em dias de descanso semanal é pago pelo dobro da retribuição normal aos trabalhadores que auferem salário normal.
Nesta conformidade, por o recorrido ter direito a receber, por cada dia de descanso semanal não gozado, o dobro da retribuição normal, para além do salário em singelo, improcede o recurso quanto a esta parte.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pela recorrente B (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Ltd (Ré), sendo revogada a sentença na parte em que condenou a Ré ora recorrente a pagar ao Autor a quantia de MOP$14.440,00, a título de subsídio de alimentação, e em sua substituição, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a compensação a título de subsídio de alimentação, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença, nos termos do artigo 564º, nº 2 do Código de Processo Civil, mantendo-se inalterada a restante parte da sentença.
Custas pelos recorrente e recorrido segundo a proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que este beneficia.
Registe e notifique.
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Macau, 8 de Maio de 2014
(Relator)
Tong Hio Fong
(Votei vencido quanto à parte do acórdão em que foi considerado que o trabalho prestado em dias de descanso semanal é pago pelo dobro da retribuição.
Sumariamente, provado está que durante todo o período em que vigorou a relação laboral entre a recorrente e o recorrido, este não gozou dias de descanso semanal.
Por outro lado, provado ainda que depois de ter prestado trabalho nos dias de descanso semanal, o recorrido sempre foi remunerado pela recorrente com o valor de um dia de salário em singelo, para além de não lhe ter sido concedido um dia de descanso compensatório.
Ao abrigo do artigo 17º, nº 6, alínea a) do Decreto-Lei nº 24/89/M, deve ser pago aos trabalhadores que auferem salário mensal pelo dobro da retribuição normal, entendo eu que estaria aqui incluído o direito a auferir o equivalente a 100% da mesma retribuição, mais o salário já pago.
Já no que respeita à compensação do trabalho prestado em dias de feriado obrigatório, o legislador utilizou uma expressão diferente - “dá direito a um acréscimo salarial nunca inferior ao dobro da retribuição normal”.
Ali a situação é clara, o trabalhador, para além do próprio salário normal, teria direito ao dobro da retribuição normal, no total de 3 dias de salário, se prestasse trabalho nos dias de feriado obrigatório.
Além disso, ainda no âmbito da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, o trabalhador terá ainda direito a um outro dia de descanso compensatório, ao abrigo do nº 4 desse mesmo artigo 17º do Decreto-Lei nº 24/89/M, mas não o tendo gozado ao longo da relação laboral, terá que ser compensado por um dia de salário.
Mas já não o terá se tiver prestado trabalho nos dias de feriado.
No fundo, se se entendesse que, pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, para além da retribuição normal, o trabalhador teria direito ao dobro da retribuição normal e ao dia compensatório, então iria receber, no total, 4 vezes do salário normal, enquanto nos dias de feriado obrigatório, só teria direito a 3 vezes do salário.
Com todo o respeito, não se vislumbra qual a necessidade que teria levado o legislador a estabelecer melhores condições de trabalho, em termos de compensação, aos trabalhadores que tenham prestado trabalho nos dias de descanso semanal, em “detrimento” daqueles que prestem trabalho nos feriados.
Na minha modesta opinião, julgo que se o trabalhador tivesse prestado trabalho no dia de descanso semanal, era-lhe pago o dobro da retribuição normal, nele se incluiria já o salário normal, mais um dia compensatório ou respectiva indemnização.
Nesta conformidade, já no caso concreto, para efeitos de cálculo do valor total da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, não merece reparo a decisão recorrida quando vem condenar a recorrente a pagar ao recorrido o dobro do salário diário, consistindo este em mais um dia de salário, acrescido de um dia compensatório.)
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, página 109 e 110
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Processo 90/2014 Página 1