Processo nº 395/2013
(Autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa)
Data: 12/Junho/2014
Assunto: Impugnação de norma regulamentar
Rejeição por falta de objecto
SUMÁRIO
- A impugnação de normas tem por finalidade a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma contida em regulamento administrativo.
- Tendo o “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas”, aprovado em sessão ordinária da então Câmara Municipal de Macau provisória, de 14 de Dezembro de 2001, sido revogado pelo Regulamento Administrativo nº 37/2003, de 24 de Novembro, o pedido da declaração de ilegalidade daquele “Regulamento” deve ser rejeitado, por falta de objecto.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 395/2013
(Autos de recurso jurisdicional em matéria administrativa)
Data: 12/Junho/2014
Recorrente:
- Ministério Público
Entidade Recorrida:
- Conselho de Administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Inconformado com a sentença do Tribunal Administrativo, que rejeitou o pedido de declaração de ilegalidade de normas contidas no “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas”, com fundamento na falta de interesse processual ou interesse de agir, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. A douta sentença recorrida rejeitou (拒絕審理) a “acção” de impugnação de normas instaurada pelo M.ºP.º, com fundamento da falta de interesse processual/interesse de agir (訴之利益).
2. E, importa reiterar aqui que ao mover o processo registado no Venerando TSI sob o n.º 7/2012, o recorrente estava ciente de que o “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo da campas alugadas” deixou de encontrar em vigor, e sem vontade de tocar qualquer acto administrativo consolidado na ordem jurídica.
3. E, o mesmo processo preside-se, devido à determinação no n.º 1 do art. 56º da Lei n.º 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária), pelo propósito da defesa da legalidade, sem intenção de tocar qualquer acto administrativo consolidado na ordem jurídica.
4. Todavia, afigura-se que infringindo o disposto nos artsº 36º da Lei n.º 24/88/M e 15º n.º 2 da Lei n.º 1/1999, o aludido Regulamento Interno se consubstancia na ofensa à integridade do ordenamento jurídico da RAEM.
5. Sem prejuízo do respeito pela opinião diferente, parece-nos que a declaração da ilegalidade daquele Regulamento Interno será útil para a reintegração efectiva da ordem jurídica, e ainda para restabelecer a confiança do público no ordenamento jurídico de Macau.
6. O que implica que existe in casu ainda o interesse processual e, nesta medida, a douta sentença ora recorrida enferma do erro de direito.
Conclui, pedindo que se julgue procedente o recurso jurisdicional.
*
Oportunamente, a recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Provada está a seguinte matéria de facto pertinente para a apreciação do recurso:
O Ministério Público pediu a declaração de ilegalidade das normas contidas no “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas”, aprovado em sessão ordinária da então Câmara Municipal de Macau provisória, de 14 de Dezembro de 2001, com fundamento na falta de publicitação das mesmas normas aos interessados e destinatários, fosse por que forma fosse, designadamente através do Boletim Oficial ou qualquer outro meio, o que violaria o disposto no artigo 36º da Lei nº 24/88/M, ao que acresce ainda que não se descortina a existência de qualquer delegação de competência a favor dos órgãos municipais pelo Chefe do Executivo, para regulamentar a questão dos cemitérios públicos, o que infringiria o nº 2 do artigo 15º da Lei de Reunificação (Lei nº 1/1999).
Nessa sessão ordinária da então Câmara Municipal de Macau provisória, de 14 de Dezembro de 2001, foi deliberado, entre outros assuntos, o seguinte:
“De acordo com os pedidos de concessão de área para sepulturas perpétuas para as campas SM-2-0421, SM-1-1325, SM-1-1734, SM-1-1368, SM-1-0559A, SM-1-1737, SM-1-1475 e SM-2-0237 durante os anos de 2000 e 2001.
O artº 25º do Regulamento dos Cemitérios, de 1961, consagra a possibilidade de venda de área para sepulturas perpétuas. Refere-se, no entanto que as 1,662 campas existentes, para aluguer, no Cemitério S. Miguel, satisfazem a procura de enterramento com uma margem reduzida.
Depois de ouvida a Comissão Permanente de Administração, Património e Finanças (Reunião no. 006/CPAPF/2001), a Câmara Municipal de Macau Provisória deliberou aprovar as seguintes condições para valer como regulamento interno, a fim de regular o Arrendamento Perpétuo das campas alugadas nos Cemitérios Municipais de Macau:
1. Consoante a disponibilidade dos cemitérios, e mediante aprovação da Instituição, serão admitidos anualmente 10 (dez) pedidos de arrendamento perpétuo de sepulturas;
2. Os pedidos mencionados no ponto anterior só serão autorizados a requerentes que sejam familiares do defunto enterrado na sepultura que se quer alugar perpetuamente;
3. A autorização supracitada cessa automaticamente logo que se verificar a exumação e transferência das ossadas a pedido do familiar representante legítimo, com reversão incondicional da sepultura à Instituição;
4. O valor da renda perpétua é fixado em MOP$38.000,00, com direito de juntar as ossadas do cônjuge do defunto na mesma cova, com um encargo adicional de MOP$18.000,00;
5. As condições do ponto anterior não são aplicáveis às sepulturas perpétuas adquiridas até à data da entrada em vigor desta deliberação;
6. A verificação da admissibilidade máxima dos pedidos referidos no ponto 1, cuja entrada se verifique ao longo do ano, só é efectuada no último mês de cada ano, procedendo-se a sorteio em caso de o total do número dos pedidos exceder o máximo estabelecido;
7. Após o sorteio supramencionado, todos os familiares cujos pedidos não foram atendidos, poderão candidatar-se, nos anos seguintes, durante a vigência do prazo do enterro de 5 anos. Após este prazo, se ainda não tiverem conseguido arrendar as campas pretendidas, são automaticamente dados como indeferidos e, no prazo de 60 dias, deverão os familiares requerer as respectivas exumações, conforme as posturas municipais em vigor.”
Foram aprovados oito pedidos de atribuição de sepulturas requeridos em 2000 e 2001, por força daquele “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas”.
O Regulamento dos Cemitérios Municipais foi aprovado por deliberação da Comissão Administrativa do Leal Senado em sessão de 5 de Julho de 1961.
A 24 de Novembro de 2003, foi publicado o Regulamento Administrativo nº 37/2003, que estabelece os regimes jurídicos da instalação e administração dos cemitérios públicos, da instalação dos cemitérios privados e da fiscalização do seu funcionamento por parte do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), o qual revogou expressamente o Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado por deliberação da Comissão Administrativa do Leal Senado em sessão de 5 de Julho de 1961, bem como todas as disposições incompatíveis com o referido regulamento administrativo (artigo 25º do Regulamento Administrativo nº 37/2003).
*
A sentença recorrida rejeitou o pedido da declaração de ilegalidade de normas contidas no “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas”, com fundamento na falta de interesse processual ou interesse de agir, no sentido de que, mesmo que se considere ilegais as normas inseridas no regulamento em causa, já não havia necessidade de declarar a sua ilegalidade, destinada para evitar prejuízos e instabilidade para o ordenamento jurídico causados por essa ilegalidade, para além de que não havia possibilidade de reconstituir a situação que existiria se não tivesse havido lugar a tais normas ilegais, nem se podia eliminar todos os danos e restabelecer o ordenamento jurídico de Macau.
Nas suas alegações de recurso, defende o Ministério Público que, não obstante estar ciente de que o “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas” já se encontra revogado, mas o referido regulamento não deixa de violar o disposto nos artigos 36º da Lei nº 24/88/M e 15º, nº 2 da Lei nº 1/1999, pelo que em prol da defesa da legalidade, afigura-se-lhe que a declaração de ilegalidade daquele regulamento interno seria útil para a reintegração efectiva da ordem jurídica e o restabelecimento da confiança do público no ordenamento jurídico de Macau.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, estamos em crer que o presente recurso não procede, não pelo facto de não haver aqui interesse processual, mas simplesmente por que há falta de objecto.
Como diz o artigo 88º, nº 1 do Código de Processo Administrativo Contencioso, a impugnação de normas tem por finalidade a declaração de ilegalidade, com força obrigatória geral, de norma contida em regulamento administrativo.
Como refere José Cândido de Pinho1, “o âmbito da impugnação de normas é mais vasto, na medida em que afasta definitivamente do universo jurídico-normativo a norma declarada ilegal, ficando ela assim absolutamente inaplicável daí em diante por quem quer que seja”.
Daí que, este tipo de processo (de impugnação de normas) tem por objecto normas contidas no regulamento que violem norma legislativa de valor não reforçado, ficando excluídas do regime de impugnabilidade as normas contidas em regulamento administrativo que violem a Lei Básica, as normas provindas do exterior e recebidas no direito interno e as normas constantes de acordo ou convenção internacionais (artigo 88º, nº 2 do CPAC).
No vertente caso, o Ministério Público intentou um processo de impugnação de normas contidas no “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas”, aprovado em sessão ordinária da então Câmara Municipal de Macau provisória, de 14 de Dezembro de 2001, com fundamento na sua ilegalidade.
Entretanto, por força do Regulamento Administrativo nº 37/2003, de 24 de Novembro de 2003, precisamente através do seu artigo 25º, este veio revogar expressamente o Regulamento dos Cemitérios Municipais, aprovado por deliberação da Comissão Administrativa do Leal Senado em sessão de 5 de Julho de 1961, bem como todas as disposições incompatíveis com o referido Regulamento de 1961, nelas estando incluído o “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas” ora em discussão.
A partir daí, o tal regulamento interno deixou de ter existência e relevância jurídicas, isso significa que as normas cuja declaração de ilegalidade é pedida deixaram de existir.
Na realidade, a existência de um acto ou de uma norma impugnáveis são um elemento necessário para que se possa lançar mão de uma acção administrativa especial, constituindo, nessa medida, um elemento essencial desta forma de acção.2 – sublinhado nosso
In casu, verificando-se a falta de objecto, nem sequer devemos entrar na apreciação dos pressupostos processuais, nomeadamente a questão do interesse processual.
E não se diga que ao presente caso seria aplicável o disposto no artigo 80º do Código de Processo Administrativo Contencioso, o qual se prevê a situação em que, revogado o acto administrativo na pendência do recurso contencioso, este recurso prossegue tendo em vista a obtenção de decisão anulatória dos efeitos produzidos, sempre que estes continuem a afectar a esfera jurídica do recorrente e sejam susceptíveis de cessar pela reposição da situação actual hipotética obtida através do provimento do recurso.
Em primeiro lugar, porque não estamos em causa a anulação de um acto administrativo, mas sim a impugnação de normas a qual tem uma natureza diferente e regulada por normas próprias.
Em segundo lugar, mesmo que se entenda ser aplicável a referida disposição legal, não se vislumbra que a prossecução do processo de impugnação de normas possa ter a virtualidade de alcançar a obtenção de decisão anulatória dos efeitos produzidos, considerando que a declaração de ilegalidade das normas não vai afectar os casos julgados nem os actos administrativos consolidados na ordem jurídica, conforme se dispõe nos termos do artigo 89º, nº 4 do CPAC.
Nesta conformidade, atentas as considerações acima referidas, somos a concluir que, tendo o “Regulamento Interno de arrendamento perpétuo de campas alugadas” sido revogado já em 2003, o mesmo deixou de ter existência jurídica, pelo que andou bem a decisão recorrida ao rejeitar o pedido de impugnação de normas deduzida pelo Ministério Público, mas, a nosso ver, com fundamento na falta de objecto.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a decisão de rejeição do pedido.
Sem custas por o recorrente ser isento ao abrigo do artigo 2º do Regulamento das Custas dos Tribunais.
Registe e notifique.
***
Macau, 12 de Junho de 2014
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 José Cândido de Pinho, in Manual de Formação de Direito Processual Administrativo Contencioso, 2013, CFJJ, página 191
2 José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa (Lições), 5ª edição, Almedina, página 258
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Processo 395/2013 Página 11