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Processo nº 258/2014 Data: 29.05.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “roubo”.
Erro notório na apreciação da prova.
Reenvio (total).



SUMÁRIO

1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.

É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.

Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

2. Constatando-se que o “erro notório” em que incorreu o Tribunal a quo inquinou a restante decisão da matéria de facto, deve o reenvio para novo julgamento ter como objecto toda a matéria.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 258/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu, em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser absolvido da prática de 1 crime de “roubo”, p. e p. pelo art. 204°, n.° 1 do C.P.M. que lhe era imputado por acusação pública; (cfr., fls. 117 a 120 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público recorreu.
Motivou para, em síntese, imputar ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 126 a 131-v).

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Respondendo, diz o arguido que o recurso deve ser julgado improcedente; (cfr., fls. 207 a 209-v).

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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I. onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte Parecer:

“Assaca a Exma Colega junto do tribunal "a quo" ao douto acórdão sob escrutínio o vício de erro notório na apreciação da prova, esgrimindo, ao que apreendemos, com violação das regras sobre o valor de prova vinculada, no caso, pericial, aflorando ainda as "legis artis", tudo a propósito de se ter dado como não provado ter o arguido penhorado, na casa de penhores "XX", o telemóvel subtraído à ofendida, quando, na sua perspectiva, tal facto resultará documental e pericialmente comprovado dos autos.
Pois bem:
Parece poder retirar-se dos dados documentais constantes do processo que o arguido terá penhorado na casa em questão vários telemóveis, entre os quais um com o n° de referência 012534003375023, sendo que a referência do subtraído à ofendida apenas diferirá no 15° dígito, onde consta um 0.
Pretende o recorrente que, segundo a prova que apelida de pericial, designadamente o constante de fls 23 e 40 dos autos, aquele 15° dígito se revelará indiferente, irrelevante, para a pesquisa da origem, da referência do telemóvel, pelo que a coincidência dos primeiros 14 dígitos deveria ter conduzido os julgadores, por respeito ao valor da prova pericial e das "legis artis", a diferente conclusão quanto à prova produzida a tal propósito.
Cremos que lhe assistirá alguma razão, se bem que por questão formal diversa.
O grande problema, em nosso critério, é a absoluta ausência, no douto acórdão em crise, da referência, enquanto facto provado, de o arguido ter procedido à penhora, daquele ou de qualquer outro telemóvel, acabando, consequentemente, por, pura e simplesmente, se abster, em termos de fundamentação, de efectuar qualquer referência à matéria, a não ser dar como não provado o facto de o arguido ter procedido à penhora do telemóvel subtraído à ofendida, ficando-se, pois, sem margem para aquilatar das razões da discrepância entre essa conclusão e o constante da documentação a que o recorrente faz apelo.
De modo que, mesmo partindo-se do princípio de estarmos face a prova pericial, desconhecendo-se, em absoluto, as razões da divergência dos julgadores em relação à mesma ( n° 2 do art° 149°, CPP), dificilmente se poderá estabelecer e configurar o pretenso notório erro na apreciação da prova.
N estes parâmetros, sendo certo que a matéria em questão - efectiva penhora, por parte do arguido, de telemóvel cuja referência em relação ao da ofendida diverge apenas quanto ao 15° dígito e irrelevância de tal facto segundo os dados técnicos recolhidos - se revela nuclear, essencial, para boa apreciação da causa, a ela se não reportando, de forma mínima, o douto acórdão em crise, não poderemos deixar de concluir carecer o mesmo de devida fundamentação, por não exposição, ainda que sucinta, dos motivos de facto e de direito por que se não considerou como válida e consistente aquela prova técnica apresentada, carência que não deixa de ser realçada pelo recorrente (embora assim o não designado especificamente), ao ver-se forçado (cfr fls 233 "in fine" e sgs) a perspectivar várias "hipóteses" relativas à compreensão da decisão controvertida.
Daí, por conjugação dos art°s 360°, al a) e 355°, n° 2, ambos do CPP, entendermos ser de declarar a nulidade do acórdão recorrido, com as legais consequências”; (cfr., fls. 266 s 268).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 117-v a 118-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o Exmo. Magistrado Ministério Público junto do T.J.B. recorrer do Acórdão com o qual se decidiu absolver o arguido dos autos da imputada prática de 1 crime de “roubo”, p. e p. pelo art. 204°, n.° 1 do C.P.M..

Diz que padece o dito Acórdão de “erro notório na apreciação da prova”.

Por sua vez, no seu douto Parecer, opina o Ilustre Procurador Adjunto que o mesmo Acórdão recorrido padece da “falta de fundamentação”.

Que dizer?

Pois bem, como sabido é, as questões a apreciar em sede de um recurso são as que pelo recorrente vem suscitadas nas conclusões da sua motivação (de recurso), e que (como igualmente se sabe), delimitam o seu “thema decidendum”, com excepção das questões de conhecimento oficioso.

–– Nesta conformidade, e não sendo a assacada “falta de fundamentação” do Acórdão recorrido “questão colocada em sede do presente recurso”, certo sendo também que não é de “conhecimento oficioso”, já que não é uma “nulidade insanável” do art. 106° do C.P.P.M., (cfr., v.g., Ac. do S.T.J. de 21.06.1989, Proc. n.° 40023/3ª; de 05.07.1989 in B.M.J. 389° - 486; de 06.03.91, Proc. n.° 40874; e do plenário das secções criminais do S.T.J. de 02.12.1993, aqui citados como mera referência, podendo-se também ver sobre a questão o Ac. do T.U.I. de 22.11.2000, Proc. n.° 17/2000), à vista está que sobre ela nada há a dizer.

–– Aqui chegados, e sem demoras, vejamos então do imputado vício de “erro notório”.

Pois bem, repetidamente tem este T.S.I. entendido que “o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 13.02.2014, Proc. n.° 754/2013 do ora relator).

Com efeito:

“«Erro» é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

“Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso”.

“O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer”; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014).

E, dito isto, vejamos.

Afirma, (em síntese), o ora recorrente que:

“1. Conforme “os factos acusados” constantes no acórdão recorrido, o MP acusou o arguido de ter roubado os bens da ofendida (incluindo o telemóvel) e depois penhorou o telemóvel na casa de penhor Tai Lei pelo preço de MOP$2,800.00.
2. Conforme “os factos provados” e “factos não provados” constantes no acórdão recorrido, o Tribunal Aquo provou que a ofendida foi roubada, incluindo o seu telemóvel, mas não se provou que foi o arguido o autor do roubo, nem foi provado que o arguido chegou a penhorar o telemóvel da ofendida; por isso, o Tribunal Aquo por não conseguir provar os factos subjectivos constantes na acusação, absolveu o arguido.
3. O MP entende que o Tribunal Aquo considerou que “o arguido chegou a penhorar o telemóvel da ofendida” como “facto nào provado” padece de vício por ter violado as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis previsto no art° 400°, n° 2 al. c) do CPP, pelas razões seguintes:
4. Conforme os documentos juntos no processo (nomeadamente o registo de penhora fornecido pela Casa de Penhor XX, uma vez que a PJ tem acesso aos registos de penhora por ter conexão com a rede informática das diversas casas de penhor), podemos, sem dúvida, provar que o arguido em 07/03/2012, por volta das 6H40 penhorou um telemóvel, da marca IPHONE, na casa de penhor XX, e o próprio arguido confessou no julgamento que nesse dia penhorou o seu telemóvel”; (cfr., concl. 1ª a 4ª).

Ora, de facto, o Tribunal a quo deu como “provado” que, por volta das 5H00 da madrugada do dia 07.03.2012, quando a ofendida circulava pela via pública, foi a mesma vítima de “roubo por esticão” da sua carteira, onde, entre outras coisas, estava o seu telemóvel “APPLE-IPHONE”, com a referência n.° 012534003375020, de cor preta, não se provando ter sido o arguido o autor do ilícito em questão, (como acusado estava).

Por sua vez, estava também o arguido acusado de ter efectuado o penhor do dito telemóvel no mesmo dia, (07.03.2012), por volta das 6H40, matéria que também resultou “não provada”.

E é em relação a esta decisão da matéria de facto que não se conforma o Recorrente, alegando que provado devia ter ficado que “o arguido deu de penhor o telemóvel da arguida”, aqui identificando o assacado vício de “erro notório”, afirmando também que tal “erro” inquinou totalmente a decisão da restante matéria de facto.

Eis o que se nos mostra de consignar.

Afigura-se-nos que tem o Recorrente razão.

Com efeito, atento o teor de expedientes juntos aos autos, nomeadamente, o de fls. 18 e 23 e seguintes, cremos haver razões para se afirmar que incorreu o T.J.B. em “erro notório na apreciação da prova”, pois que o “registo do penhor” (fls. 31), indica que, pelas 6H40 do dia 07.03.2012, deu o arguido de penhor um telemóvel em tudo “idêntico” ao que à arguida tinha sido antes (às 5H00) subtraído, certo sendo que os expedientes de fls. 18 e seguintes inculcam tratar-se do “mesmo” telemóvel.

Constatado assim o “erro”, e sendo o mesmo insanável por este T.S.I., impõe-se o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..

Porém, outra questão existe.

É que, atento o teor da decisão recorrida, afigura-se-nos de subscrever também o entendimento no sentido de que o apontado vício (de “erro”) inquinou também a decisão da restante matéria de facto, pelo que se impõe decidir que o determinado reenvio tenha como objecto “toda a matéria do processo”, devendo o Tribunal competente emitir (nova) decisão após o seu novo julgamento.

Decisão

4. Em face do exposto, acordam julgar procedente o recurso, ordenando-se o reenvio dos autos para novo julgamento (de toda a matéria do processo).

Custas pelo arguido (recorrido) com taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor Oficioso no montante de MOP$2.000,00.

Macau, aos 29 de Maio de 2014

José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 258/2014 Pág. 16

Proc. 258/2014 Pág. 17