Proc. nº 98/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 29 de Maio de 2014
Descritores:
-Abuso do direito
-Conhecimento oficioso do abuso do direito
-Inalegabilidade da nulidade
-Venire contra factum proprium
SUMÁRIO:
I – Se o abuso do direito foi suscitado nas alegações de recurso jurisdicional nem por isso deixa de ser questão nova e, portanto, a sua apreciação pelo tribunal “ad quem” só pode ser feita se for de entender que é de conhecimento oficioso.
II – O abuso do direito é de conhecimento oficioso, em especial quando se estiver perante uma clamorosa injustiça e violação do honeste agere.
III – O venire contra factum proprium, em princípio, impede que o contraente possa vir alegar a nulidade do contrato por falta de forma (escritura pública) para a qual tenha contribuído.
IV – Abusa do direito quem, sem escritura pública, tendo vendido uma fracção imobiliária a outrem, a quem entregou logo recebeu as chaves e de quem recebeu o preço respectivo, criando no comprador a convicção de ser dono efectivo da coisa, anos mais tarde vem ao tribunal pedir a devolução do imóvel com a alegação de que necessita dele e que a sua ocupação pela ré tem sido feita apenas por mera tolerância sua.
V – O abuso do direito pode paralisar os efeitos jurídicos decorrentes da falta de forma legal.
VI – Mas o abuso do direito funciona, não somente nos casos de inalegabilidade da nulidade por falta de forma por parte do contraente abusador, como também opera se, mesmo sem a alegar na acção, o autor faz um pedido de devolução da coisa apesar de saber tê-la vendido.
VII – Seja por questões de ordem ética, decência e respeito pela parte contrária, seja por razões de índole de grave injustiça e de atropelo aos mais sãos princípios da confiança, pedir uma coisa de outrem a quem a tenha sido vendida parece ser um intolerável exercício do direito. A tutela da confiança e a “primazia da materialidade” não deixam outra solução que não seja a configuração do abuso.
VIII – Procedente a figura do abuso do direito, o tribunal pode determinar a improcedência da pretensão do autor e a paralisação dos efeitos da nulidade subjacente.
Proc. nº 98/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A, com os demais sinais dos autos, instaurou no TJB acção ordinária (CV2-10-0044-CAO) contra B pedindo que a ré fosse condenada a reconhecer a sua posse sobre determinada fracção habitacional e condenada a devolvê-la e retirar dela todos os objectos pessoais.
*
Contestou a ré, por excepção e por impugnação, requerendo ainda a intervenção provocada de C, que dizia ser o verdadeiro proprietário da fracção.
*
Admitida a intervenção, também o interveniente contestou, deduzindo reconvenção.
*
Foi lavrado despacho saneador, que conheceu da matéria exceptiva.
*
Do despacho saneador foi interposto recurso jurisdicional (fls. 145 e 182), mas este recurso viria a ser julgado deserto por despacho de fls. 364.
*
Foi oportunamente proferida sentença, que:
- Condenou a Ré e o Interveniente a restituírem a fracção ao Autor, livre dos bens pessoais;
- Absolveu a Ré e o Interveniente dos restantes pedidos formulados pelo Autor;
- Condenou o Autor a devolver ao Interveniente a quantia de HK$ 138.000,00 acrescida de juros à taxa legal, contados desde 22/05/2011;
- Absolveu o Autor dos restantes pedidos formulados pelo Interveniente na sua reconvenção;
- Condenou o Autor como litigante de má fé na multa de 20 UCs.
*
Contra tal sentença recorreu jurisdicionalmente, em primeiro lugar, o Interveniente C, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. Estando provado «(...) que, depois da celebração da dita compra e venda [não sublinhado no original], o Autor entregou a chave da fracção autónoma.» (cfr. sentença recorrida, a fls. 236);
B. Ou, ainda, «No que a esses factos dizem respeito, está provado que, em 2003, sem ter outorgado qualquer escritura pública, o Autor vendeu a fracção autónoma sub judice ao Interveniente pelo preço de HK$138.000,00 já integralmente pago e o Autor entregou a chave do imóvel ao Interveniente e que, a partir deste momento, o Interveniente passou a comportar-se como dono da fracção e a tratar de todos os assuntos relativos ao imóvel, pagando as despesas inerentes vivendo nela todas as vezes que vinha a Macau, mobilando-a, autorizando a Ré a ocupar um dos quartos da fracção autónoma a qual tem vindo a cuidar da manutenção das condições de habitabilidade e higiene da fracção, factos estes conhecidos por muitos membros da família inclusivamente o próprio Autor [não sublinhado no original].
Tendo em conta os factos acabados de elencar, urge agora aquilatar se o Autor ainda é proprietário da fracção autónoma.» (vide a fls. 234 verso).
C. Não é de admitir a conclusão da douta decisão recorrida de que «uma vez que a compra e venda em questão é nula que por força do disposto no artigo 212.º do CC e, como tal, não pode produz qualquer efeito, o Interveniente não adquiriu validamente o direito de propriedade do imóvel.» (Vide a fls. 235)
D. Em face de toda a matéria dada por provada, é forçoso concluir que o Autor agiu - no contexto da transcrição supra sublinhada, após cerca de uma década transcorrida! - com manifesto abuso de direito, na modalidade já bem conhecida da doutrina e jurisprudência do venire contra factum proprium, dado o seu flagrante comportamento contraditório.
E. A situação dos autos é flagrantemente idêntica àquela sobre que se debruçou um importante aresto em Portugal, cuja proximidade com o ordenamento jurídico de Macau serve como boa orientação jurisprudencial:
F. Decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães, no processo com referência 902/04-2, disponível em http://www.dgsi.pt que: “I - Para efeitos do disposto no art.º 334.º C. Civ., o conceito de boa fé coincide com o princípio da confiança; por sua vez, este princípio da confiança tende para a preservação da posição do confiante; no conteúdo material da boa fé surge, como segundo princípio, o da materialidade da regulação jurídica, historicamente detectável na luta contra o formalismo. II - Os quatro pressupostos de protecção da confiança através do venire contra factum proprium são: 1.º- uma situação de confiança; 2.º- uma justificação para essa confiança; 3.º- um investimento de confiança, por parte do confiante; 4.º- uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante. III - Demonstrando as respostas à matéria de facto a existência de um acordo de cedência de terrenos, nulo por falta de forma, mas também que se verificou uma situação de confiança, originada pelo contrato e nas relações de amizade e familiares que as partes mantinham, um investimento de confiança no que concerne a efectiva utilização dos tractos de terreno, reciprocamente cedidos, pelas partes, ao longo de cerca de onze anos, bem como a imputação aos AA. da confiança na estabilidade do factum proprium, já que eles AA. viram integrada no seu prédio a parcela cedida pelos RR., agem em abuso de direito os AA., ao proporem contra os RR. uma acção de reivindicação tendo por objecto a parcela que eles AA. cederam aos RR., enquanto tal acção deixa incólume o benefício obtido com o negócio nulo. IV - A paralisação dos efeitos da nulidade do negócio leva a que se considere, pelo menos no contexto da presente acção, operante o efeito de transmissão da propriedade, efectuada a favor dos RR., ainda que afectada pelo vício da nulidade.” [não sublinhado no original]. Ora, o paralelismo e a identidade com a situação dos presentes autos é quase total.
G. A doutrina e jurisprudência relevantes têm sido unânimes em aceitar a proibição, sempre que tal possa configurar um abuso de direito, da invocação da existência de vícios de forma que conduzissem à nulidade do contrato.
H. O venire surge como limitação à própria consequência de nulidade ou invalidade do negócio. (Vide, Fernandes, Magda Mendonça, O Venire Contra Factum Proprium, A Obrigação de Aceitar O Contrato Nulo, Almedina, 2008, págs. 45 a 50).
I. Autores, como o caso de Menezes Cordeiro e Pedro Pais de Vasconcelos, falam aqui de inalegabilidade de vícios formais. Assim, quando uma parte invoca um vício de forma por si provocado intencionalmente ou em que essa parte activamente participou, poderá tal vício não levar à invalidade contrato.
J. A posição do Autor nos presentes autos, atentas as circunstâncias bem ilustradas na matéria dada por provada, aponta para uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé, revelando-se como autêntico abuso de direito, por consistir no exercício inadmissível de uma posição jurídica, a que a decisão recorrida, erradamente, deu cobertura, ao concluir que «no confronto da qualidade de proprietário (o Autor) e da qualidade de possuidor (do ora Recorrente), prevalece a do proprietário.» (Vide a fls. 237).
L. Assim, perante o conflito de presunções entre Recorrido e Recorrente, conforme a terminologia da decisão recorrida, deve prevalecer a posição jurídica deste, vedando-se ao Recorrido o direito, por abusivo e inadmissível, de reivindicar a propriedade e, bem assim, invocar a nulidade do negócio por vício de forma.
M. A decisão recorrida violou, nomeada e flagrantemente, o preceito do artºs. 326.º do Código Civil.
N. É igualmente inadmissível a improcedência do pedido subsidiário de condenação no pagamento dos lucros cessantes ao Interveniente, ora Recorrente, é facto público e notório, por serem do conhecimento geral (não necessitando de alegação nem de prova, ao abrigo do disposto no art.º 434.º do Código de Processo Civil), que, em Macau, o mercado imobiliário tem crescido e encarecido vertiginosamente desde, precisamente, o ano de 2003, como, aliás, pode verificar-se pelas estatísticas oficiais, - cfr., como referência meramente exemplificativa, a tabela indicativa da variação homóloga do preço médio das fracções autónomas habitacionais transaccionadas, entre os anos de 2007 e 2013 (até ao 2.º trimestre), que se junta como doc. n.º 1, sendo informação pública, localizável no sítio oficial da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, - in http://www.dsec.gov.mo/TimeSeriesData base.aspx?KeyIndicatorID=186.
O. Na verdade, o cidadão médio pode afirmar com elevado grau de certeza que o preço do imóvel em questão estará actualmente mais de 1000% (mil por cento) acima do seu valor de 2003!
P. Ora, tendo ficado «provado que caso o A. tivesse celebrado a escritura pública de compra e venda e o Interveniente vendesse agora o imóvel, obteria lucro», tanto basta para, em face do supra exposto, admitir o pedido de determinação do prejuízo em execução de sentença.
Termos em que, e nos melhores de Direito que Vxªs. doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso e, consequentemente, ser revogada a douta decisão recorrida, com todas as legais consequências, assim fazendo Vxªs. a costumada JUSTIÇA!
*
Respondeu ao recurso o autor A, pugnando pelo seu improvimento.
*
Em segundo lugar também o autor recorreu jurisdicionalmente da sentença, formulando, por seu turno, as seguintes conclusões alegatórias:
«I. Impõe a prova produzida em audiência de discussão e julgamento que sejam alteradas as respostas fornecidas pelo tribunal a quo aos quesitos 2.º, 4.º, 8.º, 14.º e 33.º da base instrutória, os quais devem ser considerados não provados.
II. Do mesmo modo, e com o mesmo fundamento, devem dar-se por provados os quesitos 35.º, 36.º, 37.º e 38.º.
III. As respostas pelas quais se pugna fundam-se nas passagens do registo áudio da prova testemunhal produzida em audiência, transcritas supra - e para as quais se remete -, em particular nos depoimentos das testemunhas do AUTOR, os quais, pesarosamente, foram inteiramente ignorados pelo colectivo, sem que para tal seja apresentada qualquer justificação.
IV. De contrário, relevou o tribunal a quo os depoimentos das testemunhas da RÉ e INTERVENIENTE, sem embargo das muitas e graves contradições em que incorreram, e que são manifestas nas passagens áudio da gravação da inquirição, e que supra se transcreveram.
V. Aliás, não pode deixar de apelar-se à atenção do tribunal ad quem para o excessivo peso concedido pelo tribunal a quo ao testemunho de ouvir dizer, ainda quando o mesmo se apresenta prenhe de dúvidas, hesitações, contradições e ignorância quanto aos pormenores dos factos sobre os quais recaiu o depoimento.
VI. Com isto, não vem o RECORRENTE questionar a validade, em abstracto, do depoimento de ouvir dizer. Ele é, e sempre foi, válido e precioso como fundamento e auxílio da boa da decisão judicial.
VII. Porém, há que não olvidar que, no caso sub judice, tal depoimento nem sequer versou sobre os factos essenciais à lide, mas tão somente sobre factos instrumentais, os quais, por terem surgido já na fase da inquirição das testemunhas dos RECORRIDOS, não puderam ser sujeitos ao contraditório pelo RECORRENTE.
VIII. Chame-se, ainda, a atenção o facto de nenhuma das testemunhas apresentadas pelos RECORRIDOS ter sido capaz de fornecer ao tribunal a quo informações relevantes sobre o contexto e pormenores relativos ao pretenso negócio jurídico celebrado, ou acerca do pagamento do preço ou da entrega da fracção. De contrário, a única dessas testemunhas que arriscou num meio de pagamento é flagrantemente desmentida pela única prova documental fornecida pelo INTERVENIENTE.
IX. Mais: os motivos alegados pelos RECORRIDOS para existência desse pretenso negócio - dificuldades financeiras do AUTOR e dívidas para com o INTERVENIENTE -, que a generalidade das testemunhas dos RECORRIDOS confirmou e tentou justificar, foram olimpicamente desmentidos pela prova documental fornecida pelo RECORRENTE ao tribunal a quo, pelo que o mesmo desvalorizou aqueles depoimentos. Conclui-se, assim, que, na matéria acerca da qual o RECORRENTE podia fornecer - e forneceu - prova documental, foram desmentidos e desvalorizados os depoimentos das testemunhas dos RECORRIDOS. Porém, naquela matéria sobre a qual tal não era possível - por se tratarem de factos negativos, a saber: inexistência do negócio, do pagamento e da entrega da fracção -, valorizou por inteiro tribunal a quo os depoimentos das testemunhas dos RECORRIDOS.
X. Do ora exposto, assim como da transcrição dos depoimentos que supra se fez, e da prova documental junta aos autos, conclui-se pela imperatividade das reformulação da decisão de facto, quanto aos quesitos 2.º, 4.º, 8.º, 14.º e 33.º da base instrutória - os quais deverão ser considerados não provados; e aos quesitos 35.º, 36.º, 37.º e 38.º, os quais deverão ser julgados provados.
XI. Entende também ter demonstrado o RECORRENTE ter o tribunal a quo errado na solução de direito adoptada, no que à aplicação das regras sobre distribuição do ónus da prova concerne, ao ter julgado provados os quesitos 2.º, 8.º, 14.º e 33.º da base instrutória, e, ao mesmo tempo, ter julgado não provados os quesitos 11.º e 12.º, porquanto os mesmos contêm a mesma matéria.
XII. Ao ter decidido como decidiu, o tribunal a quo deixou clara a insanável dúvida de base quanto à sua convicção a respeito dos mencionados quesitos, pelo que, em função das regras sobre distribuição do ónus probatório, deveria ter concluído que aqueles factos, sendo constitutivos do direito alegado pelos RECORRIDOS, não se encontravam provados. Entende, por isso, o RECORRENTE ter o tribunal a quo violado as normas dos artigos 7.º/2 e 335.º/1 do CÓDIGO CIVIL.
XIII. No que tange à absolvição da RÉ no pedido indemnizatório, e convocando tudo quanto se disse em matéria de impugnação da matéria de facto, ficou cabalmente demonstrado pelo RECORRENTE que, dada a inexistência do negócio alegado pelos RECORRIDOS, não poderia a RÉ deixar de ignorar que, ao não devolver a fracção depois de instada a tal por meio notificação judicial avulsa, lesava o direito do RECORRENTE, motivo pelo qual se constituiu em possuidora de má fé, mercê da inversão do titulo possessório por si operada.
XIV. Essa característica da sua posse constitui-a na obrigação de indemnizar o RECORRENTE pelos frutos que a coisa teria gerado nas mãos de um possuidor diligente, e cujo valor ficou provado na alínea G) dos factos assentes (cinco mil patacas por mês).
XV. A absolvição da RÉ no pedido indemnizatório constituiu, por isso, violação dos artigos 401.º/a) do CPC, por analogia júris; e 1177.º/b), 1184.º/1, 1190.º, 1196.º, todos do CC.
XVI. Por fim - e convocando, mais uma vez, tudo quanto já se disse em sede de impugnação da matéria de facto -, entende o RECORRENTE ter ficado plenamente demonstrada a total e absoluta falta de fundamento para a multa processual de 20 UCs por litigância de má fé que lhe foi aplicada, constituindo tal decisão do tribunal a quo uma violação do art.º 385.º/1 CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas Excelências certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser reformulada a decisão de facto relativamente aos quesitos 2.º, 4.º, 8.º, 14.º e 33.º da base instrutória, os quais devem ser julgados não provados; e quanto aos quesitos 35.º, 36.º, 37.º e 38.º, os quais devem ser julgados provados, determinando assim:
a. A absolvição do RECORRENTE quanto ao pedido reconvencional de devolução ao INTERVENIENTE da quantia de 138.000,00 dólares de Hong Kong, acrescidos de juros;
b. A condenação da Ré no pagamento ao RECORRENTE da quantia de cinco mil patacas por mês, desde Junho de 2010;
c. A absolvição do RECORRENTE na multa de 20 UCs por litigância de má fé.».
*
A este recurso do autor respondeu o interveniente C, nos seguintes termos conclusivos:
«A) Relativamente a toda a matéria sindicada pelo Recorrente, nenhum reparo merece a decisão recorrida;
B) O Autor Recorrente limita-se a por em causa a livre Convicção do Tribunal a quo;
C) E tal foi a clara convicção do colectivo a quo que o Recorrente foi muito justamente condenado por litigar de má fé.
D) Com o seu recurso, o Autor e recorrente reincide - Com intenso dolo, - na postura que levou à sua condenação por litigar de má fé, alegando falsidades, o que bem justifica lhe seja agravada a multa em que foi condenado.
E) Efectivamente, Com a sua conduta, faz Um uso anormal e reprovável do processo (art.º 568.º do Código de Processo Civil), de modo altamente censurável, tentando “justificar” e branquear a sua conduta negocial, própria que foi de autêntica burla.
F) As laboriosas transcrições que o recorrente apresentou dos depoimentos prestados em audiência de julgamento têm efectivamente a virtude de demonstrar a perfeita correcção da convicção formada pelo colectivo a quo, e, portanto, a total insustentabilidade da versão do recorrente.
G) Na verdade, e salvo o devido respeito, o recorrente chega a raiar a insolência no seu impertinente esforço de anular todo o valor da imediação e da oralidade que justificaram a convicção que o Tribunal a quo formou, a partir dos depoimentos produzidos em audiência de julgamento.
H) Com efeito, não só existiu a celebração de um negócio, «válido», entre as partes, como só por venire contra factum proprium do Autor e recorrente não foi o mesmo revestido da devida «eficácia», - razão pela qual entende o ora recorrido que não pode aquele alegar a falta de forma como meio de se eximir às obrigações decorrentes do aludido negócio e, por isso, oportunamente recorreu da decisão a quo.
Termos em que, e nos melhores de Direito que Vxªs. doutamente suprirão, deve improceder o recurso do Autor, o qual deverá ser condenado por litigância de má fé, com todas as legais consequências, assim fazendo Vxªs. a costumada JUSTIÇA!».
*
Cumpre decidir.
***
II - Os factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- O Autor tem registada a seu favor a compra da fracção autónoma de um prédio urbano identificada por “P14”, do XXº andar “P”, para habitação, do prédio urbano sito na XXX, na freguesia da Nossa Senhora do Carmo, Taipa, descrito sob o n.º XXX, a fls. 22V, do livro XXX (alínea A) dos factos assentes).
- A referida fracção foi adquirida pelo Autor, por compra, tendo sido inscrita a seu favor pela inscrição n.º XXX, a fls. 345 do Livro XXX, em 2 de Julho de 1997 (alínea B) dos factos assentes).
- O Autor nunca recebeu da Ré qualquer montante a título de renda ou de ajuda no custeio das despesas do imóvel (alínea C) dos factos assentes).
- Em 14 de Dezembro de 2009, o Autor fez entrar, no TJB, uma notificação Judicial avulsa destinada à Ré, na qual lhe concedida 10 (dez) dias, contados daquela notificação, para que aquela abandonasse a fracção, levando consigo todos os seus pertences (alínea D) dos factos assentes).
- A Ré foi notificada pessoalmente, em 28 de Dezembro de 2009 (alínea E) dos factos assentes).
- Até à presente data a Ré não abandonou a fracção nem dela removeu os seus pertences, continuando a ocupá-la contra a vontade do Autor (alínea F) dos factos assentes).
- Uma fracção com as características e localização da referida em A) é susceptível de ser arrenda de pelo valor de MOP$5.000,00 (cinco mil patacas mensais) (alínea G) dos factos assentes).
- O A., A, é primo do R., C (alínea H) dos factos assentes).
- Os pais de ambos eram irmãos (alínea I) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
- Em Março de 2003, o Interveniente, pelo preço de HK$138.000,00, acordou com o Autor comprar-lhe a fracção referida em A) dos factos assentes (resposta ao quesito da 2 o da base instrutória).
- Como o Interveniente reside em Hong Kong e só de vez em quando é que se desloca a Macau, deixa a R. residir na sua casa desde cerca de Abril de 2003 (resposta ao quesito da 3 o da base instrutória).
- Foi o Interveniente, conhecido como seu único proprietário, quem entregou as chaves à R: e a autorizou a residir naquela fracção (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- O que é do conhecimento do autor (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Após a recepção da Notificação Judicial Avulsa referida em D) e F) dos factos assentes, a R. contactou o Interveniente (resposta aos quesitos das 6º e 21 º da base instrutória).
- O A. declarou vender a fracção ao Interveniente, a quem entregou a chave e a fracção, em 2003 (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- Desde a data do pagamento integral do preço e da recepção das chaves, o Interveniente passou, com a convicção absoluta de ter efectuado a compra do imóvel, a comportar-se como dono daquela fracção e a tratar de todos os assuntos relativos à mesma, pagando todas as despesas inerentes (resposta ao quesito da 14º da base instrutória).
- Passou a viver, sempre que se desloca a Macau, naquela fracção, tendo-a mobilado (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- Em Abril de 2003, o Interveniente deixou a R. viver na fracção em causa (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- A R. toma conta da fracção, mantendo-a em boas condições de habitabilidade e higiene, facilitando a vida do Interveniente quando este se desloca a Macau (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- Pois tem sempre o seu quarto limpo e disponível e a ajuda da R. Ieong para as lides domésticas (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
- O Interveniente é conhecido como o dono daquela fracção por muitos membros de família de ambos que sabem que o Autor a vendeu ao Interveniente (resposta ao quesito da 19º da base instrutória).
- Muitos membros de família de ambos sabiam que assim é (resposta ao quesito da 20º da base instrutória).
- Antes do envio da Notificação Judicial Avulsa, o A. foi encontrar-se com a mãe da R. Ieong, a perguntar-lhe quando é que a R. saía da casa dele (resposta ao quesito da 30º da base instrutória).
- Tendo-se gerado, então, uma discussão entre o A. e os membros da família da R. (resposta ao quesito da 31º da base instrutória).
- O Interveniente pagou integralmente o preço do imóvel e o A. entregou-lhe as chaves do mesmo (resposta ao quesito da 33º da base instrutória).
- Caso o A. tivesse celebrado a escritura pública de compra e venda e o Interveniente vendesse agora o imóvel, obteria lucro (resposta ao quesito da 34º da base instrutória).
***
III – O Direito
1 – Introdução
Apesar de dois terem sido os recursos interpostos contra a sentença e de o primeiro deles ser apresentado pelo interveniente C, a lógica impõe que comecemos pela análise do recurso do autor A, visto que nele foi invocado erro sobre o julgamento da matéria de facto, circunstância que, caso vingue, pode vir a alterar todo o espectro jurídico do caso.
*
2 – Recurso do autor
2.1 - O caso: A posição das partes
Faz sentido, porém, primeiro que tudo, correlacionar bem as pretensões com as causas de pedir correspondentes.
O autor, dizendo-se dono de uma fracção imobiliária que identificou na petição inicial, e invocando tê-la cedido temporariamente à ré, pediu ao tribunal que este a condenasse a restituir-lha livre de bens pessoais.
A ré, contestando, veio dizer que a casa pertence a um terceiro, familiar de ambos, pedindo mesmo a sua intervenção principal, o que foi oportunamente deferido.
O interveniente, por seu lado, afirmou ser, realmente, o dono da fracção, por a ter adquirido ao autor pelo preço logo pago de HK$ 138.000,00, em Março de 2003, altura em que este se encontrava em dificuldades económicas. Acrescenta ainda duas coisas: que foi ele quem cedeu a utilização gratuita da fracção à ré e que nunca celebrou a escritura do contrato de compra e venda por culpa exclusiva do autor (arts. 28º e 30º da contestação de fls. 98 e 99). Pediu, por isso, que lhe fosse reconhecida a posse da fracção ou, subsidiariamente, fosse o autor condenado a pagar-lhe o preço pago, acrescido de juros legais, além de lucros cessantes a liquidar em execução de sentença e o valor de “quaisquer outros danos”.
A sentença sob censura reconheceu ao autor a propriedade sobre o imóvel e condenou a ré e o interveniente a devolverem-no ao autor. Ao mesmo tempo, por considerar nulo o contrato de compra e venda, condenou o autor a pagar ao interveniente o valor pago pelo imóvel e juros respectivos, bem assim como em multa por litigância de má fé.
*
2.2 – Da matéria de facto
Entende o autor/recorrente que os factos constantes dos arts. 2º, 4º, 8º e 14º e 33º da base instrutória não podiam ser dados como provados.
Eram factos que davam conta: - que o interveniente adquiriu o imóvel em Março de 2003 pelo preço de HK$ 138.000,00 (2º); - que por todos era reconhecido como seu proprietário e de ter sido ele quem entregou as chaves à ré e a autorizou a residir na fracção (4º); - que as chaves foram entregues pelo autor ao interveniente em Março de 2003 (8º); - que depois de pagar o preço integralmente recebeu as chaves passou a comportar-se como dono dela e a tratar de todos os assuntos relativos à mesma, pagando as inerentes despesas (14º e 33º).
Relativamente ao primeiro grupo de factos (2º, 4º e 8º), o autor faz a transcrição dos depoimentos testemunhais para extrair deles uma conclusão contrária àquela que o tribunal “a quo” alcançou. Para si, nenhuma das testemunhas demonstrou ter um conhecimento directo do negócio entre autor e interveniente.
Todavia, com o devido respeito, segundo a crueza e a objectividade das palavras transcritas, não é isso o que transparece dos depoimentos. Estamos em presença de um litígio criado em torno de um imóvel e cujo desenlace passou pelo contributo de testemunhas familiares de A., R. e Interveniente. Não se estranhe, por isso, que as testemunhas do A. não tivessem alinhado por uma revelação totalmente favorável à tese do interveniente.
Mesmo assim, a 1ª testemunha do A (esposa), apesar de dizer ter “cem por cento de certeza” acerca da compra e venda, a verdade é que titubeou e não foi firme no seu depoimento. À pergunta sobre a realização do negócio, disse apenas “que estivesse presente, nunca”. Ou seja, na sua presença não foi feito qualquer acordo, qualquer transacção.
Mas, as restantes testemunhas do A. acabaram por não fazer nenhuma afirmação assertiva e peremptória. Ou nunca “ouviram falar” (2ª e 3ª) ou não têm conhecimento do facto (3ª).
Em contrapartida, as testemunhas do Interveniente foram incisivas. Isso resulta da 1ª testemunha (mãe da ré), categórica acerca da venda, assumindo-se até como tendo sido a pessoa que recebeu as chaves do comprador. Resulta também da 2ª, que esclareceu que soube do negócio da boca do próprio vendedor (seu tio) e também do comprador, tendo sido ela quem fez a transferência bancária do pagamento das despesas de electricidade e água da casa. Resulta da 3ª e 5ª testemunhas que revelaram saber da compra e venda da casa do próprio comprador, ou da 4ª testemunha, que o soube directamente do vendedor.
Não foram testemunhas presenciais do negócio, é verdade; não assistiram a ele, é um facto. Todavia, o que tem isso de mal, se o julgador as tomou por credíveis e convincentes, dada a forma tranquila, segura e firme como depuseram, revelando o pleno conhecimento das condições do negócio?! Não é isso o que importa, verdadeiramente, quando, num julgamento em tribunal de um qualquer caso real da vida, para a reprodução da verdade material não existem testemunhas directas e presenciais?
Mas se isso não fosse suficiente, ainda nos restaria dizer que o tribunal de 1ª instância, no quadro da imediação em que decorreram as provas, é quem está dotado do privilégio da melhor avaliação dos depoimentos perante si prestados. Afirmou-se, a propósito, no Ac. de 8/05/2013, no Proc. nº 562/2013: “ a convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Portanto, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao trabalho do julgador, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita (Ac. do TSI, de 18/07/2013, Proc. nº 50/2013).
Por isso se diz que, geralmente, o princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita o Tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o Tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu (Ac. TSI, de 19/10/2006, Proc. nº 439/2006)”.
Pois bem. O modo como os depoimentos foram prestados, de acordo com a avaliação que este TSI pode efectuar, parece não deixar dúvidas acerca da verdade material reportada aos pormenores das condições da realização do contrato (tempo e preço).
Reiteramos a posição ali vertida quanto a esta questão.
*
Vejamos, agora, o segundo grupo de factos (14º e 33º).
Tentava apurar-se, desta feita, se desde a data do pagamento integral do preço o interveniente, com a convicção absoluta de ter efectuado a compra, passou a comportar-se como dono da fracção e a tratar dos assuntos relativos à mesma, pagando todas as despesas inerentes (14º) e se pagou integralmente o preço do imóvel e o autor lhe entregou as chaves do mesmo (33º). A resposta a este artigo 33º da base instrutória, por outro lado, levou a que tivesse sido dada resposta negativa ao quesito 36º, apresentado numa formulação negativa que estava assente na posição do autor, em que se pretendia saber se este não recebeu o preço que o interveniente dizia ter-lhe pago.
Bem. Mais uma vez nenhuma das testemunhas assistiu ao pagamento do preço. E por isso é normal que não saibam exactamente qual o meio de pagamento (se numerário, se em cheque ou se transferência bancária) e qual a moeda utilizada. Porém, do que não há dúvida é que todas dizem ter tido conhecimento, pelos próprios envolvidos no negócio, de quem são familiares, da venda e da recepção, por parte do autor, do dinheiro pago pelo interveniente. E no que concerne à moeda utilizada, apesar de ter ficado a ideia geral acerca do seu desconhecimento, à excepção da 3ª testemunha (que refere ter sabido pelo tio de ter sido utilizado o dólar de Hong Kong), parece aceitável a priori a solução do pagamento em dólares de Hong Kong, mais a mais por ser esse o meio usual de pagamento em transacções de imobiliário. De resto, na conta do comprador há uma saída em “cash” (levantamento) de 138.000,00, que, de acordo com a instituição bancária em apreço, tudo inculca seja em dólares de Hong Kong.
Não se justifica mais discussão quanto a isso.
*
Entende também o recorrente não estar correcta a avaliação da matéria de facto quanto à entrega das chaves (arts.s 4º. 8º, 14º, 37º e 38º da BI).
Mas, parece que, independentemente de haver ou não mais do que um molho de chaves, resulta dos depoimentos prestados pela generalidade das testemunhas que o vendedor as entregou ao comprador (interveniente). Claro que havia mais do que umas chaves, segundo algumas testemunhas. Uma delas podia ter sido entregue directamente à 1ª ré. Esse é o pomo da discórdia, de resto, sem grande interesse para o desfecho da causa, segundo nos parece. Sobre essa matéria, não houve unanimidade nas respostas das testemunhas. E, realmente, não se pode concluir com certeza que foi o interveniente quem deu as chaves à ré, porque algumas testemunhas afirmaram que foi o autor quem as entregou à ré, enquanto as da ré e interveniente não foram categóricas, sobre o assunto, tendo inclusive a 2ª delas dito ter sido ela quem a entregou à ré (sua irmã), não havendo senão entre todas algo mais do que simples suposições.
Portanto, o quesito 4º não pode ser dado como provado e antes terá que ser reduzido ao seguinte:
“ O Sr. C, por todos conhecido como seu único proprietário, autorizou a ré a residir na fracção”.
*
2.3 – Da bondade jurídica da decisão
2.3.1 – Da observância do ónus de prova
Parece entender o recorrente que o facto de o tribunal “ a quo” ter considerado provada a matéria dos arts. 2º, 8º, 14º e 33º da BI, tal como acima visto (ter havido negócio; ter o interveniente pago o preço ao autor; ter o interveniente recebido daquele as chaves), haveria de implicar consequências jurídicas face ao disposto no art. 335º, nº2, do CC no que respeita à matéria dos arts. 11º e 12º da mesma BI, os quais mereceram resposta negativa.
O que quer o recorrente dizer? É simples: ao considerar que aquela factualidade incumbia provar ao R., por constitutiva do direito invocado, defende que a diferença de pormenor entre o primeiro grupo de artigos e o segundo não obnubila o que de essencial há em todos eles. Desta maneira, da prova de uns e não prova de outros emerge uma dissemelhança ou desarmonia no juízo de facto. Dito de outro modo, se o tribunal, sobre a mesma factualidade, responde positivamente a uns artigos e negativamente a outros, deixa no ar uma dúvida ontológica sobre o modo como se terão passados as coisas. E nesse caso, a dúvida deveria resolver-se contra a parte a quem incumbia o ónus de prova.
Eis aqui uma alegação inteligente num inegável esforço intelectual de apelar ao tribunal ad quem para o dever de corrigir o erro de julgamento cometido no tribunal a quo quanto ao respeito pelas regras de repartição do ónus de prova. Esforço que quase nos convencia.
Cogitando muito bem sobre o assunto, o mínimo que se nos oferece dizer é que o tribunal “a quo” arriscou demasiado na técnica utilizada de, por um lado, espalhar por vários artigos da base instrutória matéria de facto semelhante (sem que imperativamente o ditassem as regras da repartição do ónus probatório), e, por outro lado, de não condensar numa só resposta a referida matéria factualidade dispersa (com o devido respeito, desnecessariamente) por vários. O risco é aquele que o recorrente nos recorda de, numa certa desarmonia e contradição, se dar num lado uma resposta que depois se nega noutro, remetendo a situação para uma possível anulação alicerçada no art. 629º, nº2, do CPC.
Mesmo assim, pensamos que não existe contradição, apenas deficiência na técnica da resposta, coisa que o TSI pode corrigir. Quer dizer, negar a matéria dos arts. 11º e 12º não entra em contradição com a matéria dos arts. 2º, 4º, 8º, 14º e 33º. Na verdade, da resposta ao artigo 11º da BI há que radiografar o que de essencial ali está contido. E nesse exame, retiram-se desde logo duas consequências: uma, que se não provou a causalidade, isto é, a razão para a compra por parte do interveniente (alegadamente, problemas económicos do sobrinho descritos no anterior (10º)); outra, que se não provou também que o pagamento tivesse sido feito no dia 14 de Março. Salva-se o resto, respeitante ao valor da compra.
Mas por ser assim, e nos termos do art. 629º, nº1, al. a), do CPC determinamos que a resposta ao quesito 11º seja a seguinte:
“Provado apenas o que consta na resposta à matéria do art. 2º da B.I.”.
E quanto ao quesito 12º, a única coisa que fica por provar de relevante é a data em que foram entregues as chaves da fracção; isto é, fica-se sem saber se tal ocorreu “de imediato” na data do pagamento do preço. Com essa constatação, sabemos apenas que tudo aconteceu em Março de 2003, face à resposta dada ao artigo 8º da base instrutória.
Mas, sendo assim, não há contradição. E, portanto, apenas por uma questão de rigor na forma de responder, determinaremos que a resposta ao quesito 12º ficará a ser esta:
“Provado apenas o que consta na resposta à matéria do art. 8º da B.I.”.
*
2.3.2 - Da absolvição do pedido indemnizatório
A este propósito, o recorrente acha que o tribunal de 1ª instância não se podia decidir pela absolvição da Ré do pedido, uma vez que, na sua perspectiva, foi ele quem, efectivamente, a esta cedeu a fracção a título de comodato.
Sucede que nada do que sobre o assunto aduz tem mais força do que a prova que resulta dos autos, que nos revela um relação jurídica estabelecida entre a Ré e o Interveniente. Efectivamente, o que da prova emerge é uma cedência à ré do uso e fruição da fracção feita pelo tio, o ora interveniente. Deste modo, e sendo certo que o interveniente se achava dono da fracção por a haver adquirido por contrato de compra e venda (negócio que somente a sentença recorrida declarou nulo), parece que a cedência desse uso só pode ser considerada legítima, ao mesmo tempo que de má fé não pode ser tida a posse que a ré exerceu sobre ela.
Assim, o pedido indemnizatório que o autor fez na réplica a título de ampliação do pedido (fls. 59 e 60), e que o despacho de fls. 127 vº e 128 aceitou, não podia ser dado por procedente.
*
2.3.3 – Da litigância de má fé
Por fim, rebela-se o recorrente contra a sua condenação em multa no valor de 20 UCs por litigância de má fé.
Verdade que o A. se dizia dono do imóvel, invocando ter permitido o uso dele pela ré a título gratuito e de mera tolerância. Esta tese, porém, constatou-se não corresponder à verdade.
Ora bem. A sentença entendeu, efectivamente, que o autor omitiu a venda da fracção autónoma ao interveniente, alegando, em vez disso, uma relação de comodato com a ré que, na realidade, nunca existiu. Por isso, por se tratar de factos pessoais que o A. não podia deixar de conhecer, julgou doloso o comportamento do autor.
O autor, com efeito, trouxe aos autos uma versão da realidade que não foi comprovada. Alterou a verdade dos factos, por um lado, e omitiu outros relevantes para a decisão. Desta maneira, o seu comportamento preenche a previsão legal do art. 385º, nº2, al. b), do CPC. Não há nada a censurar na decisão, quanto a este aspecto.
*
Visto todo o exposto, o recurso do autor não pode vingar, salvo quanto à matéria de facto, nos termos acima referidos.
*
3 – Do recurso do interveniente
No recurso apresentado pelo interveniente C, vem unicamente posta em causa a sentença que declarou nulo por falta de forma o contrato de compra e venda da fracção celebrado entre si e o autor.
Em sua opinião, o autor agiu em manifesto abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium. Para o efeito, apoia-se na jurisprudência produzida no Tribunal da Relação de Guimarães, no Ac. de 26/05/2004, Proc. nº 902/04-1, e nalguma doutrina, de que fez parcial transcrição.
*
Pois bem. Um modo de ver o problema é este: mesmo perante a ocorrência de uma nulidade formal, o negócio poderia resistir e não haveria lugar a essa solução invalidante se a pessoa que tiver contribuído para ela não a tivesse alegado! Por este prisma, o caso que nos ocupa resolver-se-ia com relativa facilidade, em virtude de o autor da acção não a ter alegado, nem na petição inicial, nem na réplica. Portanto, o abuso de direito não foi equacionado na 1ª instância por nenhuma das partes, nem o fez do mesmo modo o Juiz da 1ª instância, pois que se limitou a extrair os efeitos decorrentes de um negócio que é formal sem a observância da solenidade que a lei lhe impõe. Aparentemente, incólume esta atitude.
Mas, a 1ª instância poderia ter ingressado no estudo do tema, indagando da existência do abuso?
A questão, para já, é da possibilidade do conhecimento oficioso do abuso de direito.
*
A doutrina está dividida, como se sabe, havendo quem ache que esta questão pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal1, em especial quando esteja em causa a nulidade do negócio por vício de forma2-3, outros admitindo o conhecimento oficioso quando a ofensa atinja interesses gerais e de ordem pública, como sucede com a violação dos limites impostos pelos bons costumes e pelo fim económico e social do direito4.
E mesmo que ele venha a ser invocado pela primeira vez nas alegações de recurso, como aqui sucedeu por parte do Interveniente/recorrente, embora se não ignore que tal alegação suscite no tribunal de recurso um interesse que o tribunal recorrido porventura não tenha ponderado, nem por isso deixa de ser questão nova, circunstância que, portanto, continua a suscitar o debate em torno da mesma questão: o conhecimento oficioso do abuso do direito.
Em nossa opinião5, pensa-se que a melhor posição é a que admite o conhecimento oficioso do abuso, em especial quando ele patenteia uma clamorosa injustiça que ofenda o sentimento geral das pessoas. É que a justiça não é apenas a “justiça do caso”, a solução do diferendo. É o sentimento da generalidade da comunidade que se inquieta ante a violação dos direitos de cada um. A justiça não serve apenas para resolver a lide e o problema deste ou daquele, mas para servir de esteio e garantir a todos que a ofensa dos direitos e interesses das pessoas não passa sem resposta do tribunal. Neste sentido, ao tranquilizar as pessoas e conferir-lhes um sentimento de segurança, mesmo para quem segue a ideia de que o abuso só é cognoscível oficiosamente quando esteja em causa um interesse geral e contrário à ordem pública, a justiça enquadra-se nesse paralelo sempre que o caso que opõe os interesses das partes representar um clamoroso e inadmissível exercício do direito.
Conheçamo-lo, pois.
*
Está em causa, antes de mais, saber se o contrato de compra e venda celebrado entre A e Interveniente, sem estar reduzido a escritura pública, conforme o impõe o art. 866º (“ O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado pela forma prescrita na lei do notariado”), em conjugação com o art. 94º, nº 1, do Código do Notariado (“Celebram-se, em geral, por escritura pública os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão de coisas imóveis” é nulo ao abrigo do art. 212º do CC (“A declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei”).
Evidentemente, a concatenação das normas transcritas parece não deixar, à partida, outra solução senão a que a 1ª instância lhe conferiu: a nulidade do negócio por omissão completa da forma escrita, a qual devia ser manifestada através de escritura pública.
O problema só poderá perder essa aparente evidência decisória por intromissão nos autos da tese do recorrente/interveniente, segundo a qual a nulidade não podia ser declarada judicialmente por afronta, por parte do autor da acção, ao princípio da confiança na perspectiva de venire contra factum proprium.
Ora bem. O acórdão da Relação de Guimarães que o recorrente convocou em seu socorro não lhe presta um decisivo auxílio. É que a situação, a não ser na semelhança que entre um e outro dos casos se pode descobrir pela circunstância de em ambos estarem desavenças familiares, não é factualmente igual.
Realmente, o caso português expõe-nos perante uma situação de permuta, em que ambos os contraentes reciprocamente negociaram a troca de parcelas muito semelhantes de terreno como forma de resolverem dificuldades pessoais: um, teria visto assim solucionado o seu problema de entrada de viaturas na sua propriedade; o outro teria sentido o alagamento da sua propriedade na confrontação norte-sul. Como se vê, trata-se de uma solução acordada (negociada) de cedência de terrenos confrontantes, numa situação pacífica que perdurou durante 11 anos!
Além disso, parece decorrer do aresto, tal como publicado no site do ITIJ, - dada a forma como ele se socorreu da questão da inalegabilidade da nulidade para consubstanciar o abuso de direito - que o autor terá lançado mão na petição da própria nulidade do negócio, o que in casu não sucedeu.
De qualquer modo, importa sublinhar que a questão da protecção da confiança, na vertente venire contra factum proprium, não tem sempre exactamente os mesmos contornos. É preciso olhar para cada caso. E nesse aspecto, nem a doutrina da autora que o recorrente cita6 é tão assertiva como o é o próprio Interveniente. Na verdade, ela mesma, se bem que equacione a possibilidade de o vício de forma obstar à invocação da nulidade subjacente, não estende essa possibilidade indiscriminadamente a todas as situações. Se o venire pode limitar a invalidade do negócio em certas situações de falta de forma, isso se deverá ao facto de um dos contraentes ter investido na confiança criada pela outra parte.
De facto, segundo o art. 326º do CC, o abuso de direito radica em três requisitos: a) uma situação objectiva de confiança; b) um investimento na confiança; c) boa fé na contraparte que confiou.
Ora, uma situação enquadrável na norma citada pode ser a de um «…contrato de trespasse nulo por falta de forma, arguida pelo transmitente após 16 anos, tendo, entretanto, recebido o acordado preço e assistido à exploração e desenvolvimento do estabelecimento pelos ora apelados, os quais, durante todo este lapso de tempo, sempre agiram como se seus verdadeiros donos fossem. Pelo que, sendo o contrato nulo por falta de forma, é o mesmo vinculante face ao manifesto abuso do excedente»7.
Se uma das partes adquiriu pelo negócio uma determinada posição jurídica, se com base nessa crença, agiu e orientou a sua vida durante longo tempo ciente de que o negócio era válido e se a outra parte criou culposamente a situação resultante da inobservância da forma escrita legalmente estipulada ou, então, se o contrato tiver sido executado e ter-se a situação prolongado durante largo período de tempo sem dificuldades, o excedente não poderá invocar a nulidade8.9
Boa parte da doutrina está de acordo com esta posição. A. Menezes Cordeiro, se bem que tenha inicialmente entendido que as normas formais (normas relativas à forma) não admitem redução teleológica10, viria a rever mais tarde a sua posição, influenciado, como diz, pela persistente jurisprudência, acabando por concluir que “em casos bem vincados, admitimos hoje que as próprias normas formais cedam perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornem verdadeiramente inalegáveis”11. Mas, para não deixar a inalegabilidade abandonada ao sentimento ou aos casos clamorosamente contrários à justiça, acha que se deve compor um modelo de decisão que a aproxime do venire, de modo que, tal como ele, requeira uma situação de confiança, uma justificação para a confiança, um investimento na confiança e a imputação da confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências12.
E tratando-se de inalegabilidades formais, o mesmo autor considera exigível a co-verificação de três adicionais requisitos: a) devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca os de terceiros de boa fé; b) a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; c) o investimento de confiança dificilmente seja assegurado por outra via13.
O exemplo clássico mais comum vem fornecido por Luis Carvalho Fernandes: A induz B a não celebrar escritura pública num negócio e mais tarde vem invocar a nulidade da falta de forma. Conclui o autor que, nestes casos, ficam paralisados os efeitos jurídicos decorrentes da falta de observação do correspondente respeito pela forma legal14-15.
Pois bem. Não está em causa que a nulidade possa ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, face ao disposto no art. 279º do CC. E foi de motu proprio que a 1ª instância dela conheceu por falta de forma legalmente prescrita, sem que, no entanto, submetesse a análise do caso ao abuso de direito.
Problema é saber se, efectivamente, os efeitos dessa nulidade (abstracta) podem ser imobilizados (em concreto) ante o eventual abuso.
*
Pois bem. Um modo de ver o problema poderia ser este: mesmo perante a ocorrência de uma nulidade formal, o negócio resistiria e não haveria lugar a essa solução invalidante se a pessoa que tiver contribuído para ela não a tivesse alegado! Por este prisma, o caso que nos ocupa resolver-se-ia com relativa facilidade, em virtude de o autor da acção não a ter alegado, nem na petição inicial, nem na réplica. Portanto, não tendo sido equacionada por nenhuma das partes o abuso de direito, nem o tendo feito oficiosamente o Juiz da 1ª instância, este limitou-se a extrair os efeitos decorrentes de um negócio que é formal sem a observância da solenidade que a lei lhe impõe. Aparentemente, incólume esta atitude.
Pergunta-se, então: Poderá a nulidade declarada ficar esvaziada de efeitos? Ou, interrogado de outra forma, deveria ter sido declarada?
*
Sabemos já neste momento que o autor não podia alegar a nulidade decorrente do negócio, sob pena de incorrer em abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium. Se o autor tivesse caído nessa tentação, já sabemos que, mais que certo, o tribunal não lhe daria razão com apoio da mais representativa doutrina. Como para o fazer teria que invocar o negócio da venda, nesse enredo não caiu ele e preferiu seguir um outro caminho e com diferente causa de pedir. Foi coerente, diga-se em abono da verdade. Mas, como não o fez, acabou por ficar a coberto e a salvo da operatividade de um eventual abuso nessa perspectiva. Viu a sua pretensão principal satisfeita, na medida em que o tribunal “a quo”, perante a provada venda que ele fez ao interveniente, decretou a nulidade do negócio e determinou a devolução do imóvel ao autor. Obteve, afinal de contas, aquilo que queria, sem necessidade de invocar a inquinação formal (nulidade) do negócio.
Contudo, manter a nulidade parece, a um primeiro momento, premiar o autor que não a alegou, nem sequer invocou a celebração do contrato de compra e venda com o interveniente.
*
Mas vejamos em pormenor o que está provado.
Está demonstrado nos autos que o autor vendeu a casa em 2003 por um determinado preço (HK$ 138.000,00), que logo recebeu do comprador. Fruiu do dinheiro como quis, porque lhe pertencia, e ao fim 7 anos instaurou a acção com vista a reaver a coisa, o que conseguiu com a sentença recorrida de Junho de 2013, sabendo que neste momento a casa valerá muitíssimo mais. E, por conseguinte, o retorno da casa à sua posse, com a simples contrapartida da devolução do preço acrescido de juros coloca-o, não há dúvida quanto a isso, numa posição muitíssimo mais favorável, com alguns traços de enriquecimento que facilmente se antevêem verosímeis.
Ora, se a acção em que se reivindicasse a propriedade da coisa e a sua devolução ao dono com base na alegada nulidade do negócio haveria de representar um exercício “ilegítimo” e abusivo, será que a acção em que se pretende obter o mesmo efeito, embora sonegando a venda, poderá ter melhores resultados? Não é para fugir às injustiças que o abuso de direito também se ergue? A doutrina citada diz que sim.
Perguntando de outra maneira: será que o abuso do direito não poderá ser convocado ainda que o autor não tivesse arguido a nulidade do negócio? A situação material do caso não permitirá perseguir a mesma via?
É claro que o art. 326º do CC não expressa a sanção para o abuso; limita-se a estatuir que o negócio é “ilegítimo”. Sem dúvida que pode dar lugar a indemnização, a responsabilidade civil. Pode obrigar a indemnizar, originar a legítima defesa, permitir a acção directa, a oposição ao acto abusivo, a excepção de não cumprimento, a reconstituição da situação alterada, fora da invocação de perdas e danos16. Pode até levar à própria nulidade17 E pode até conduzir à “constituição em benefício da contraparte de uma situação jurídica contrária à situação abusivamente criada”18 Mas, também se defende, como se viu, que os efeitos da nulidade fiquem paralisados ante um exercício abusivo do direito, e então, tudo se passará como se o contrato tivesse sido celebrado como o impõe a lei.
Ora, seja por questões de ordem ética, decência e respeito pela parte contrária, seja por razões de índole de grave injustiça e de atropelo aos mais sãos princípios da confiança, pedir uma coisa de outrem a quem a tenha sido vendida parece ser um intolerável exercício do direito. A tutela da confiança e a “primazia da materialidade” não deixam folga, havendo pois que ponderar todos os aspectos envolventes do caso, incluindo a mentira, que coadjuvem na aplicação do abuso por venire”19.
O art. 326º do Código Civil assegura que é “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económica desse direito”. Isto significa que o exercício de um direito é abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou, o mesmo é dizer, quando esse direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante20. Trata-se da emanação do vulgarmente denominado de princípio da confiança, segundo o qual “as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”21
Venire contra factum proprium, é, deste ponto de vista, um exemplo típico de exercício inadmissível de direito22, algo que consiste numa prática por alguma das partes que contrariaria a boa-fé, na medida em que, a par de indícios objectivos, dê a entender que esse direito não seria mais exercido23. Como se disse em Ac. STJ de 21/01/2003, 1ª secção (relator Azevedo Ramos), www.dgsi.pt/jstj, “A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito”.
Quer dizer, o abuso do direito manifestado no “venire contra factum proprium”, assenta numa estrutura que pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, ainda que assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire contra”). É essa relação de oposição entre as duas que justifica a invocação do princípio do abuso do direito24. Nessa hipótese, assiste-se a uma violação do honeste agere, a um exercício inadmissível “tu quoque” legitimando a exceptio doli (reacção contra a má fé de quem abusa do direito) e que, pela sua torpeza corresponde ao brocardo “nemo auditur turpitudinem suam allegans” que impede a invocação e o aproveitamento de ilicitude própria25.
Assim, pensamos que o facto de não ter sido alegada a nulidade por parte do autor não significa que o exercício do direito não possa ser considerado abusivo. Pode ser abusivo, mas pela circunstância de, contra o facto proprium da venda (nula) ter o autor usado os tribunais e o serviço de justiça (venire) para, com base uma situação dissimulada que não provou, pedir a devolução da coisa que sabia ter sido vendida. Este caso podia muito bem exemplificar o exemplo que Menezes Cordeiro faz sobressair nestes termos: “Deste modo, a pessoa que celebre uma compra e venda conscientemente nula e venha, depois, perante o comprador reivindicar a coisa, alegando a nulidade, poderá abusar, por desrespeito pela boa fé, não por alegar a nulidade, mas por exigir a coisa. I.é: o abuso é-o do direito de propriedade e não pela alegação de nulidade”26 (sublinhado nosso).
Esta solução apresenta-se, evidentemente, como aquela que é capaz de inverter o sentido de injustiça que representaria o triunfo da posição do autor, ainda que à sombra da nulidade que não pediu, mas que foi declarada pelo tribunal “a quo”.
Na realidade, agora já não se coloca a tónica da impossibilidade de alegação da nulidade para a qual o demandante tenha contribuído. O que se releva é a sua atitude de instaurar um processo, escondendo um negócio efectivamente celebrado, para com diferente fundamento exercer um direito que sabia ser abusivo. Ou seja, não está em causa uma questão de inalegabilidade com os contornos do venire contra factum proprium, mas sim, de uma clamorosa violação do honeste agere, de um uso do direito que, em termos objectivos, é manifestamente excessivo e traduz uma gritante injustiça, sem que para tanto seja necessária a consciência desse excesso por parte do agente27.
Neste sentido, a censurabilidade imputável ao responsável de que fala Menezes Cordeiro28 está aqui plenamente verificada, face à matéria provada, pois a expectativa fundada sempre permitiu ao Interveniente pensar ser dono da coisa vendida e agir em consonância com uma confiança em que investiu ao longo dos anos, mas que viu traída pela tentativa de o autor reivindicar nos autos a propriedade do imóvel e a sua devolução.
Em consequência disso, como observa Menezes Cordeiro, “…a tutela da confiança impõe, ex bona fide, a manutenção do negócio vitimado pela invalidade informal. Summo rigore, passará a ser uma relação legal, apoiada no art. 334º29 e em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma”30.
No que ao pedido da acção concerne, o abuso do direito leva à “denegação da pretensão abusiva”31, sem que, no entanto, se possa reconhecer a propriedade ao Reconvinte, até por tal não ter sido pedido.
Mas porque, de acordo com os factos provados, a sua posse (art. 1175º, do CC) é titulada (art. 1181º, do CC), de boa fé (art. 1184º, do CC), pacífica (art.1185º, do CC) e pública (art. 1187º, do CC), e porque compete ao juiz determinar a sanção32 nada obsta ao seu reconhecimento no âmbito dos presentes autos.
Nesta conformidade, é de proceder o recurso do Interveniente, o que prejudica o conhecimento do recurso quanto à restante matéria, designadamente quanto à ajuizada improcedência do pedido de condenação nos lucros cessantes.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em:
1 – Conceder parcial provimento ao recurso do Interveniente C;
2 – Conceder parcial provimento ao recurso do autor A.
Em consequência, decide-se:
a) - Determinar que a resposta ao art. 4º da Base Instrutória passe a ter a seguinte redacção: “Provado que o Sr. C, por todos conhecido como seu único proprietário, autorizou a Ré a residir na fracção”.
b) - Determinar que a resposta ao art. 11º da Base Instrutória passe a ter a seguinte redacção: “Provado apenas o que consta na resposta à matéria do art. 2º da B.I.”.
c) - Determinar que a resposta ao art. 12º da Base Instrutória passe a ter a seguinte redacção: “Provado apenas o que consta na resposta à matéria do art. 8º da B.I.”.
d) - Manter a sentença no que respeita à decidida caducidade do direito de acção e à condenação em multa do Autor por litigância de má fé, mas revogá-la na parte restante;
E, por via disso, mais acordam em:
3.a) - Julgar improcedente a acção, absolvendo-se a Ré e Interveniente dos pedidos formulados pelo Autor; e
3.b) - Parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência, reconhecer ao Interveniente a posse do imóvel desde Março de 1993, devendo o autor abster-se de actos que a perturbem, absolvendo-se o Autor dos restantes pedidos por aquele formulados.
Custas
Na 1ª instância: pelo Autor em 70% e pelo Reconvinte/Interveniente em 30%.
No TSI: Pelo Autor/recorrente em 90% e pelo Reconvinte/recorrente em 10%.
TSI, 29 de Maio de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil 4ª ed., 2007, pág. 277. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé, cit., pág. 793 e Tratado cit., I, Parte Geral IV, 2005, pág. 373. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, II, pág. 104. Em Portugal, v.g., Ac. STJ, de 21/09/1993, Proc. nº 83983, in CJ, Ac. do STJ, Ano I, tomo III, 1993, pág. 19; de 28/11/2013, Proc. nº 161/09.3; de 11/12/2012, Proc. nº 116/07.2
2 Luis A. Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 635.
3 Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, Almedina, 1997, pág. 279.
4 José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, III, pág. 282-285. Na Jurisprudência local, ver Ac. TSI, de 14/04/2011, Proc. nº 440/2010.
5 Reponderando, o aqui relator corrige a sua posição em relação ao teor do Ac. TSI, de 14/04/2011, Proc. nº 440/2010 por si subscrito como adjunto, na parte em que esse aresto restringe o conhecimento oficioso do abuso de direito a determinadas situações de interesse geral e ordem pública, na senda de Oliveira Ascensão.
6 Magda Mendonça Fernandes, in “O Venire Contra Factum Proprium, A Obrigação de Aceitar o Contrato Nulo”, Almedina, 2008.
7 Ac. RC., de 9/10/2001, Proc. nº 1467/2001
8 Neste sentido, Ac. RL, de 25/03/2004, Proc. nº 1785/2004-6.
9 Alguns exemplos podem ver-se em A. Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral. Tomo IV. 2005, pág. 309-310. Também, in Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, pág. 771 e sgs.
10 Ver Da Boa Fé No Direito Civil, 3ª reimpressão, pág. 792-796, em que reduziu a reposição à situação actual hipotética a uma responsabilidade civil e, portanto, a uma indemnização que materialmente correspondesse ao cumprimento do contrato e evitasse o enriquecimento.
11 Ob. cit., pág. 311.
12 Ob. e loc. cit.
13 Ob. e loc. cit.
14 Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed., pág. 634.
15 Na jurisprudência comparada, ver v.g., Ac. STJ de 28/02/2012, Proc. nº 349/06.8; 24/10/2013, Proc. nº 1673/07.9; Ac. RG, de 26/05/2004, Proc. nº 902/04-2.
16 Ac. TSI, de 14/04/2011, Proc. nº 440/2010.
17 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., pág.299; Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, 1997, pág. 647-650. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., pág. 65; Ac. STJ, de 21/09/1993, in CJ, ac. do STJ, ano I, tomo III, pág. 19.
18 José de Oliveira Ascensão, Direito Civil-Teoria Geral, III, pág. 280.
19 Menezes Cordeiro, Tratado cit., pág. 376
20 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª ed., p. 299).
21 Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, 1983, pág. 55.
22 Ac. STJ de 4.4.2002, Proc. 524/02, da 7ª secção
23 Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil”, Almedina (2ª Reimpressão), 2001, pág. 810-811.
24 Ac. STJ, de 16/11/2011, Proc. nº 203/2008
25 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed., pág.267,, 268, 272-274.
26 Da Boa fé, cit., pág. 794.
27 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª ed., pág. 536.
28 Tratado cit., pág. 311.
29 Que corresponde no CCM ao art. 326º.
30 Tratado cit., pág. 312.
31 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral cit., pág. 277.
32 Ver Pedro Pais de Vasconcelos, ob. e loc. cit.; Ac. STJ, de 21/09/1993, Proc. nº 83983, in CJ, Acórdãos do. do STJ, ano I, tomo III, 1993, pág. 19-22.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------