Processo nº 447/2013
Data do Acórdão: 26JUN2014
Assuntos:
Erro nos pressupostos de facto
Erro nos pressupostos de direito
Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau
Direito de residência
Ilegalidade reforçada superveniente
SUMÁRIO
1. Há erro nos pressupostos de facto quando os factos que sirvam de fundamento a um acto administrativo não são verdadeiros, ou apenas putativos ou erradamente reputados como verdadeiros pela Administração na prática do acto.
2. Como a entrada em vigor da Lei Básica faz cessar automática e necessariamente a vigência de todo o direito anterior ordinário que seja incompatível com ela e não reconhece mais o efeito jurídico hipotético face a este direito anterior.
3. Todo o tempo decorrido desde a ausência física do recorrente em Macau, antes e depois do estabelecimento da RAEM, por motivo de sujeição a medidas de coacção e do cumprimento da pena privativa de liberdade na China, não pode ser considerado tempo de residência habitual para efeitos de contagem dos sete anos, exigidos no artº 24º/2) Lei Básica da RAEM e no artº 1º/1-2) da Lei nº 8/1999, se tanto no momento do início da sua ausência em Macau como no momento do estabelecimento da RAEM, o recorrente não era titular do Bilhete de Identidade de Residente, concedido ao abrigo do direito ordinário anterior.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 447/2013
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho da Secretária para a Administração e Justiça que, em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão do Director dos Serviços de Identificação que lhe indeferiu o pedido da emissão do Certificado de Confirmação do Direito de Residência, concluindo e pedindo que:
1.º O acto recorrido foi praticado pela Senhora Secretária para a Administração e Justiça que indeferiu o recurso hierárquico necessário do despacho do Director dos Serviços de Identificação que não autorizou que fosse emitido o "Certificado de Confirmação do Direito de Residência" para que o Recorrente pudesse obter o Bilhete de Residente Permanente de Macau.
2.º Tal acto foi notificado ao aqui Recorrente, através do seu mandatário, pelo ofício n.º 309/GAD/2013, recebido por carta registada com aviso de recepção assinado no dia 6 de Junho de 2013, do que decorre que o presente recurso é legal e tempestivo, nele tendo o Recorrente um interesse legítimo e sendo o Tribunal de Segunda Instância o competente.
3.º Imputa ao acto recorrido o vício de violação de lei por errada interpretação de uma norma e pela não aplicação de duas normas, todas da Lei n.º 8/1999.
4.º É incontornável o facto de que o regime jurídico e o conceito de "residência" em Macau e RAEM foi sofrendo alterações ao longo dos anos, nomeadamente, desde que o Recorrente entrou em Macau, confessadamente, de forma ilegal, até aos dias de hoje.
5.º Também, é verdade que o diploma aplicável ao caso concreto do Recorrente é a Lei n.º 8/1999, pese o facto de ter que interpretada em conjugação com as leis que vigoraram anteriormente, com os princípios consagrados na Lei Básica e na lei ordinária e com outros valores inerentes à condição humana.
6.º Para a Entidade Recorrida, o Recorrente não tem o direito a ver emitido em seu favor o "Certificado de Confirmação do Direito de Residência", porque não tem documentos que comprovem que viveu 7 anos consecutivos em Macau antes da instalação da RAEM, adiantando que só podem ser contabilizados 3 anos, que correspondem ao período entre o ano em que lhe foi concedida a Cédula de Identificação Policial (1984) e a data em que foi "extraditado" - termo não correspondendo ao conceito jurídico - para a China Continental (1987).
7.º A Entidade Recorrida faz uma exaustiva explicação sobre o conceito de "residência", tendo em consideração que o documento que foi emitido ao Recorrente, no âmbito da "operação dos trabalhadores indocumentados" realizada em 1982, tinha a natureza de Título de Permanência Temporária que, à data, e de acordo com o diploma que regulava a emissão desse documento não habilitava os seus titulares ao direito de residência; porém, não se pode perder de vista que essa fórmula (Título de Permanência Temporária) encontrada para as pessoas que tinham entrado, ilegalmente, no então Território de Macau, representou, apenas, uma forma rápida de legalizar e de registar todos os trabalhadores nessas condições.
8.º E a verdade é que, dois anos depois, isto é, em 1984, todos os portadores desse especial Título de Permanência Temporária viram ser-lhes emitida a Cédula de Identificação Policial que, mais tarde, em 1992,
foi substituída pelo BIRM.
9.º No seu despacho ora em impugnação, a Entidade Recorrida afirma textualmente: "(...) o objectivo da atribuição do Título de Permanência Temporária (TPT) era só para posteriormente emitir a Cédula de Identificação Policial e, portanto, tinha carácter transitório (...)"; "Se o portador da TPT não reunisse as demais condições jamais poderia atribuir-se-lhe a Cédula de Identificação Policial(...)".
10.º A partir do momento em que o Recorrente passou a ser titular de uma Cédula de Identificação Policial, concedida em substituição do Título de Permanência Temporária, passou a ter o direito de residência em Macau e a contagem, para efeitos de anos de residência, tinha que retroagir à data em que recebeu o Título de Permanência Temporária, pois a lei, apenas, não permite que essa contagem se faça durante o período em que se encontrava ilegalmente em Macau, ou seja, desde 1979 e até 1982.
11.º Não pode deixar de se tomar em consideração que o regime do Título de Permanência Temporária que não atribuía o estatuto de residente, apenas, foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 49/90/M, de 27 de Agosto e surgiu na sequência da "Operação Indocumentados 90"; o Recorrente tornou-se portador de um Título de Permanência Temporária, com-carácter provisório, em 1982.
12.º Assim, deve, para efeitos de contagem de prazo de residência em Macau antes da instalação da RAEM, considerar-se que o Recorrente iniciou a sua residência em Macau em 1982.
13. a O Recorrente, por razões alheias à sua vontade - na sequência da sua entrega ilegal pela Polícia Judiciária às autoridades policiais da República Popular da China, onde foi condenado a uma pena de prisão perpétua com início em Novembro de 1987 - não pôde substituir a sua Cédula de Identificação Policial cuja validade fôra fixada até 1989.
14.º No modesto entendimento do Recorrente, tem que se entrar em linha de conta com o que está prescrito na Lei n.º 8/1999; "(...)para os efeitos do estatuto de residente permanente referido nas alíneas 2), 5), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º e da perda do direito de residência referida no n.º 2 do artigo 2.º, a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau (n.º 3 do art.º 1.º).
15.º O Recorrente quando, em Novembro de 1987, foi ilegalmente entregue pela Polícia Judiciária às autoridades policiais da República Popular da China, residia habitualmente em Macau, 福德新街, 福德大夏XX樓A座; trabalhava na companhia de construção denominada "XX", instalada na Rua Ribeira do Patane.
16.º O Recorrente não deixou de residir em Macau; foi entregue às autoridades policiais da República Popular da China, sem que tenha sido ouvido e sem que os Tribunais de Macau tenham procedido à entrega do Recorrente, caso fosse esse o entendimento dos Meritíssimos Juízes.
17.º Ainda que tivesse sido detido à ordem dos Tribunais de Macau para cumprimento do regime da Extradição, o Recorrente, poderia ter completado os 7 anos de residência habitual, uma vez que a condição de recluso não impedia que a sua CIP fosse substituída pelo Bilhete de Identidade de Residente de Macau e de qualquer forma, a sua CIP tinha validade até 1989, o que determina que a sua situação de recluso na República Popular da China não teve como efeito a nulidade de tal documento comprovativo da sua residência habitual de Macau.
18.º Curiosamente, a Direcção dos Serviços de Identificação, através da sua página electrónica, presta esclarecimentos a todos os interessados em matéria de documentos de identificação e assuntos aliados aos mesmos e, no que se refere à emissão do "Certificado de Confirmação do Direito de Residência", afirma que se aceitam documentos comprovativos da residência habitual em Macau pelo período mínimo de 7 anos consecutivos, dando como exemplos (i) documento de identificação de Macau que lhe foi emitido anteriormente; (ii) frequência de cursos em estabelecimentos de ensino de Macau; (iii) prova de actividade profissional exercida em Macau; (iv) prova de participação em actividades associativas de Macau; (v) prova de assistência médica em Macau, etc, afirmando que "se a escola onde o requerente estudou em Macau, ainda existir, deve apresentar a prova de frequência escolar, a qual deve conter a filiação e a morada residencial declarada na altura ); e se a escola já deixou de existir, pode tentar solicitar à Direcção dos Serviços de Educação e Juventude para fornecer a lista do registo dos alunos da respectiva escola ou apresentar a caderneta de avaliação.
19.º Atenta a factualidade acima transcrita, verifica-se que ao Recorrente foi emitido um "título de permanência temporária", no âmbito de uma operação para registo de trabalhadores indocumentados, realizada em 1982 - diferente da "Operação dos Indocumentados/90" - documento esse com carácter provisório e não impeditivo de se considerar com direito a residência tal como o veio a ser consagrado pelo D.L. nº 49/90/M de 27.08.
20.º O Recorrente não alterou a sua residência para outro país ou território.
21.º Uma interpretação não restritiva da lei e tomando em consideração a evolução das leis que foram definindo o direito de residência em Macau, pode o interessado ver anulado o despacho da Entidade Recorrida por violação da lei substantiva e de princípios que enformam o ordenamento jurídico da RAEM.
22.º O Recorrente pede que seja tomada em consideração a situação humana e dramática que resultará se for mantida a decisão que foi tomada.
23.º Manteve-se nessa situação cerca de 20 anos da sua vida e só o seu bom comportamento determinou que viesse a ser solto para que se integrasse, de novo, na sociedade; porém, a sociedade que conhece é a de Macau, hoje RAEM.
24.º Após a sua soltura não obteve documento de identificação no Interior da China, sendo que para o efeito foi pedido que o Recorrente apresentasse os seguintes elementos: certidão do documento de identificação emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação; certidão de propriedade predial (originais e fotocópias) ou outras informações comprovativas do direito de propriedade predial; prova da relação de parentesco (original) e caso não tenha propriedade predial pode proceder à inclusão do seu registo no livro de família dos seus parentes de linha recta.
25.º O Recorrente não é proprietário de qualquer imóvel na República Popular da China; é solteiro; tem 52 anos de idade; os seus ascendentes já faleceram todos; o filho que teve com uma mulher de nacionalidade chinesa não tem qualquer ligação afectiva com o Recorrente dado que seguiu a mãe e dada a situação de recluso durante cerca de 20 anos.
26.º Tem uma irmã mais velha já acima identificada e com residência em Macau com a qual mantém uma relação afectiva estreita e que poderá ajudar o Recorrente a ter uma vida familiar.
27.º Embora as decisões judiciais não se possam pautar por razões sentimentais, porque os Tribunais devem obediência à lei, a verdade, é que é possível uma interpretação da lei com recurso a princípios e valores de humanidade até porque os cidadãos de nacionalidade chinesa têm a par com os cidadãos portugueses um regime que lhes é favorável, reconhecendo-se-lhes um estatuto de privilégio em relação aos demais estrangeiros.
28.º O acto praticado, ao não reconhecer o direito reclamado pelo recorrente, viola o princípio da legalidade, entendida esta como toda a juricidade que decorre do ordenamento no seu todo, não apenas a Lei Básica, mas ainda as fontes de Direito Internacional, os princípios que enformam a actividade administrativa e a lei em geral.
29.º Como também tem sido entendido nesse Venerando Tribunal, o estatuto da residência é equiparado a um estatuto cívico jurídico dos cidadãos próximo do da nacionalidade, sendo que há o princípio natural de que todo o indivíduo tem o direito a uma ligação jurídica e afectiva com um determinado país, lugar ou região (cfr. art.15º, n.º1 da DUDH).
VII. INSTRUÇÃO DA PETIÇÃO
O Recorrente junta com a petição de recurso;
1) Original do ofício 309/GAD/2013, que constitui documento comprovativo do acto recorrido, em cumprimento do prescrito no art.º 43.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC) (Doc. n.º 1);
2) O aviso de recepção devidamente carimbado, que comprova que o Recorrente foi notificado da decisão da Senhora Secretária para a Administração e Justiça (Doc. n.º 2);
3) Junta, também, cópia da procuração forense, cujo original foi junta no processo administrativo e duplicados legais, exigidos por lei (alíneas d) e e) do citado art.º 43.º).
VIII. PEDIDO
TERMOS EM QUE e contando com o muito douto suprimento desse douto Tribunal, deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se, pelas apontadas ilegalidades, o acto recorrido, com todas as consequências legais.
Citada, vem a Secretária para a Administração e Justiça contestar pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 27 a 36 dos p. autos.
Não havendo lugar à produção de provas, foram apresentadas as alegações facultativas pelo recorrente e pela entidade recorrida, que reiteraram grosso modo o que foi dito na petição de recurso e na contestação.
Em sede da vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer que o recurso não merecia provimento – vide as fls. 90 a 91 dos p. autos.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
II
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Assim, de acordo com o alegado no petitório do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto do presente recurso:
1. Erro nos pressupostos de facto; e
2. Erro nos pressupostos de direito.
Mediante exame dos elementos documentais constantes dos autos do presente recurso e do processo administrativo, é tida por assente a seguinte materialidade fáctica com relevância à apreciação e à boa decisão do presente recurso:
* O recorrente é natural da China;
* Em data não determinada, mas sempre anterior a 26ABR1982, entrou ilegalmente a Macau;
* Em 10ABR1982, no âmbito de operação do registo dos trabalhadores indocumentados, foi-lhe emitido o Título de Permanência Temporária;
* Em 04OUT1984, foi-lhe emitida pela PSP a Cédula de Identificação Policial, com o prazo de validade até 04OUT1989;
* Em 20NOV1987, foi entregue pelas autoridades policiais às autoridades chinesas – vide a matéria de facto provada na sentença condenatória do Tribunal Intermédio da Cidade de Zhuhai e na sentença que a confirmou proferida pelo Tribunal Superior da Província Guargdong;
* E a partir dai, ficou formalmente internado na China pelas autoridades chinesas;
* Em 18JUL1988, foi formalmente detido e mantido na prisão preventiva na China;
* Por sentença penal de 12OUT1988 do Tribunal Intermédio da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong, foi condenado na pena perpétua;
* Sentença condenatória essa que foi posteriormente confirmada em sede de recurso pelo Tribunal Superior da Província de Guangdong;
* Manteve-se preso por cumprimento da pena;
* Posteriormente foi convertida na pena de prisão de duração determinada a pena perpétua a que foi condenado o recorrente;
* Em 25SET2008 foi posto em liberdade, por cumprimento integral da pena.
* Mediante o requerimento datado de 08OUT2008, pediu ao SIM que lhe fosse emitido o Certificado de Confirmação do Direito de Residência;
* Por despacho do Director dos SIM de 19MAR2013, foi indeferido o tal requerimento;
* Inconformado, recorreu hierarquicamente do indeferimento para a Secretária para a Administração e Justiça que, por despacho de 28MAIO213, manteve a decisão recorrida;
* Desse despacho interpôs o presente recurso para este TSI.
Então vejamos.
1. Erro nos pressupostos de facto
Antes de entrar na análise da existência ou não do invocado erro nos pressupostos de facto, convém clarificar que as circunstâncias, algo conclusivas, em que foi efectivada a comprovada entrega do recorrente pelas autoridades de Macau às autoridades chinesas em 20NOV1987, alegadas pelo recorrente no artº 8º-(v) da petição de recurso, não são por nós tidas por assentes por inexistirem elementos probatórios nos autos, apesar de, conforme se vê infra, não considerarmos relevantes as circunstâncias da entrega para a decisão das questões levantadas em sede do presente recurso.
Feita esta clarificação, passemos então a apreciar se existe o invocado erro nos pressupostos de facto.
Há erro nos pressupostos de facto quando os factos que sirvam de fundamento a um acto administrativo não são verdadeiros, ou apenas putativos ou erradamente reputados como verdadeiros pela Administração na prática do acto.
In casu, os factos essenciais, correspondentes aos factos que consideramos assentes supra, em que se apoiou o acto administrativo recorrido são precisamente aqueles que o próprio alegou, quer ao longo do procedimento administrativo, quer em sede do presente recurso contencioso.
Assim, não se verifica o vício do invocado erro nos pressupostos de facto.
O que acontece é que dos mesmos factos o recorrente pretende extrair efeitos jurídicos diversos daqueles que lhes a Administração atribuiu.
Trata-se, quanto muito, de uma eventual questão erro de direito.
2. Erro nos pressupostos de direito
Sinteticamente falando, o que pretende dizer o recorrente é que se ele não tivesse sido “extraditado” pelas autoridades policiais da então Administração portuguesa para as autoridades chinesas em 1987, data a partir da qual passou a ficar na China a sujeitar-se à detenção e à prisão preventiva e a cumprir a pena privativa de liberdade, já teria substituído a Cédula de Identificação Policial, de que era titular a partir de 04OUT1984, por Bilhete de Identidade de Residente, ao abrigo do Decreto-Lei nº 6/92/M de 27JAN que estatui a concessão do Bilhete de Identidade de Residente a favor dos titulares da Cédula de Identificação Policial e teria adquirido a titularidade do Bilhete de Identidade de Residente.
Assim, enquanto hipoteticamente titular do Bilhete de Identidade de Residente, a sua ausência de Macau por se encontrar a cumprir a pena de prisão na China não o impederia de continuar a ser considerado residente de Macau.
É verdade que face ao disposto no citado Decreto-Lei nº 6/92/M de 27JAN, o simples facto de ser titular da Cédula de Identificação Policial confere aos seus titulares o direito “potestativo” de obter o seu estatuto de residente de Macau, mediante o simples requerimento da emissão a favor deles Bilhete de Identidade de Residente, a formular dentro dos prazos nele estabelecidos.
Como se sabe, houve alteração do quadro constitucional com o estabelecimento da RAEM, em 20DEZ1999.
Põe-se a questão de saber se este efeito jurídico hipotético agora merece a tutela jurídica no quadro constitucional traçado pela Lei Básica da RAEM.
O artº 24º da Lei Básica da RAEM define os estatutos de residentes permanentes e residentes não permanentes nos termos seguintes:
Os residentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente denominados como residentes de Macau, abrangem os residentes permanentes e os residentes não permanentes.
São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau:
1) Os cidadãos chineses nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, bem como os seus filhos de nacionalidade chinesa nascidos fora de Macau;
2) Os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e os seus filhos de nacionalidade chinesa nascidos fora de Macau, depois de aqueles se terem tornado residentes permanentes;
3) Os portugueses nascidos em Macau que aí tenham o seu domicílio permanente antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau;
4) Os portugueses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e aí tenham o seu domicílio permanente;
5) As demais pessoas que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau, e aí tenham o seu domicílio permanente;
6) Os filhos dos residentes permanentes referidos na alínea 5), com idade inferior a 18 anos, nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.
As pessoas acima referidas têm direito à residência na Região Administrativa Especial de Macau e à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da Região Administrativa Especial de Macau.
Os residentes não permanentes da Região Administrativa Especial de Macau são aqueles que, de acordo com as leis da Região, tenham direito à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência.
Quer dizer que o estatuto de residente, definido no decreto da Administração portuguesa é diverso e incompatível com o definido na Lei Básica da RAEM.
Como a entrada em vigor da Lei Básica faz cessar automática e necessariamente a vigência de todo o direito anterior ordinário que seja incompatível com ela e não reconhece mais o efeito jurídico hipotético face a este direito anterior.
É o que chamamos na doutrina “ilegalidade reforçada superveniente” do direito ordinário anterior.
Este decreto já não pode ser agora invocado uma vez que o seu teor, quanto aos requisitos atributivos do direito de residência, se apresenta incompatível com a Lei Básica da RAEM.
Assim, resta saber se, ante os normativos quer na Lei Básica da RAEM quer na Lei nº 8/1999 (Lei sobre Residente Permanente e Direito de Residência na Região Administrativa Especial de Macau) que visa regulamentar e desenvolver o normativo na matéria de residência já consagrado na Lei Básica da RAEM, ao recorrente deve ser ou não conferido o estatuto de residente permanente que lhe habilita a obter o pretendido certificado do direito de residente.
Para o recorrente, como o seu estatuto de residente já foi firmado antes do estabelecimento da RAEM por ser titular da Cédula da Identificação Policial, que nos termos do direito então em vigor, é requisito bastante para adquirir o Bilhete de Identidade de Residente.
Assim, o seu estatuto de residente deve manter-se dado que o facto de estar ausente de Macau por motivo de cumprimento da pena de prisão na China não lhe deve ser imputável, é algo alheio à sua vontade e não deve fazer caducar o seu estatuto de residente.
Todavia, tal como vimos supra, o pretendido estatuto de residente não é mais do que o efeito jurídico hipotético face ao direito ordinário anterior ao estabelecimento da RAEM, que todavia se mostra incompatível com a Lei Básica da RAEM e portanto já não é hoje invocável, por padecer da chamada ilegalidade reforçada superveniente.
Assim, só podemos averiguar se o recorrente tem estatuto de residente permanente face ao quadro constitucional traçado na Lei Básica da RAEM.
De acordo com a matéria de facto assente, o recorrente era titular da Cédula de Identificação Policial e não chegou a obter a concessão do Bilhete de Identidade de Residente, que lhe conferia o estatuto de residente, face ao direito ordinário vigente antes do estabelecimento da RAEM.
E no momento em que começou a ficar na China a sujeitar-se primeiro à medida de coacção, o recorrente não tinha ainda o estatuto de residente.
Assim, todo o tempo decorrido desde a sua ausência física em Macau, antes e depois do estabelecimento da RAEM, por motivo de sujeição a medidas de coacção e do cumprimento da pena privativa de liberdade na China, não pode ser considerado tempo de residência habitual para efeitos de contagem dos sete anos, exigidos no artº 24º/2) Lei Básica da RAEM e no artº 1º/1-2) da Lei nº 8/1999, uma vez que tanto no momento do início da sua ausência em Macau como no momento do estabelecimento da RAEM, o recorrente não era titular do Bilhete de Identidade de Residente, concedido ao abrigo do direito ordinário anterior.
Não há portanto erro de direito no acto recorrido que negou ao recorrente a emissão do Certificado de Confirmação do Direito de Residência.
Finalmente, antes de decidir, convém fazer uma tecer algumas considerações sobre a invocação das razões de ordem humanitária (ponto 28 das conclusões do recurso), como fundamento da pretendida anulação do acto recorrido.
A este propósito, só nos cabe dizer que as razões humanitárias eventualmente atendíveis, resultantes da impossibilidade de obtenção de documento da China Interior, - matéria não comprovada - não deixam de constituir factor de ponderação por parte da Administração (cfr. despacho do Exmo Senhor DSI), não cabendo aos Tribunais a resposta a essa eventual situação.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Notifique.
RAEM, 26JUN2014
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Fui presente
Mai Man Ieng