Proc. nº 502/2013
Recurso Jurisdicional em matéria administrativa
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Junho de 2014
Descritores:
-“Visto”
-Médicos
-Alteração contratual
-Legitimidade passiva
SUMÁRIO:
I - O “Visto” pode ou não valer como decisão, tudo dependendo da análise do contexto da sua prolação e do ambiente das competências envolvidas em cada caso concreto.
II – Se um contrato individual de trabalho (ou a sua alteração), envolvendo directamente um médico, foi celebrado com a RAEM, deverá ser contra esta macro-pessoa colectiva de direito público que a acção deve ser intentada com vista ao pagamento da diferença pecuniária resultante da valorização indiciária reportada a determinada data e não contra os Serviços de Saúde de Macau, ainda que no instrumento contratual o Director destes figure como representante da RAEM.
Proc. Nº 502/2013
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, viúva, de nacionalidade portuguesa, titular de BIRM nº XXXXXXX(X), residente em Macau, na Rua de XXX, “XXX”, bloco XX, XXº-“X”, intentou no TA (Proc. 175/11-CA) acção sobre contrato administrativo, formulando o pedido de condenação dos Serviços de Saúde de Macau a pagarem-lhe a diferença pecuniária resultante da valorização indiciária desde 1/07/2007 a 7/09/2010, pedido que cumulou com o de anulação do acto administrativo de 8/04/2011, da autoria do Ex.mo Director dos Serviços de Saúde de Macau, a que imputou o vício de violação de lei.
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Houve contestação e réplica.
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Foi proferida sentença que “rejeitou o recurso contencioso” por irrecorribilidade do acto impugnado quanto ao pedido anulatório, e julgou “procedente a excepção de ilegitimidade passiva” na acção, “absolvendo o réu da instância” (fls. 116-129 vº).
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É contra essa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a autora formulou as seguintes conclusões:
«A) Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 150 a 164, datada de 26 de Abril de 2013 que, quanto ao pedido de anulação do despacho do Director dos SSM, rejeitou o respectivo recurso contencioso por “irrecorribilidade do acto recorrido”; e, quanto à acção sobre contrato administrativo, julgou “...proceder a excepção da ilegitimidade passiva..., e absolver o Réu da instância”.
B) São essencialmente duas as questões sobre que a sentença em apreço se debruça e com as quais a recorrente, salvo o devido respeito, não concorda:
• a irrecorribilidade do acto do Director dos Serviços de Saúde;
• a ilegitimidade passiva da Direcção dos Serviços de Saúde para ser demandada na presente lide e da retroactividade indiciária do contrato da A. a 01/07/2007.
C) o despacho objecto da litígio não se limitou a esclarecer, opinativamente, uma dúvida da Divisão de Pessoal da DSS (doravante DPSS) relativa a cláusulas de reserva apostas pelos médicos nos respectivos averbamentos contratuais, deixando, à DSS, inteira liberdade de escolha e de decisão.
D) Não é verdade que o despacho do Director dos SS revista essa mesma natureza (preparatória e opiniativa), já que:
• trata-se da resolução final de um procedimento administrativo, em que culmina o referido Parecer 36/GJ/2011 (definitividade horizontal);
• o seu conteúdo traduz-se numa decisão:
a) homologatória (de concordância com o mesmo Parecer);
b) vinculativa dos agentes hierarquicamente inferiores (no caso concreto do Chefe da DSS); e que,
c) implicando a denegação do pagamento do “montante pecuniário” em causa, define, por essa via, a situação jurídica da A. e de outros particulares (definitividade material), projectando-se, de modo irremediavelmente lesivo, na sua esfera jurídica.
E) O despacho do CE, homologatório da Proposta do Chefe de Divisão de Pessoal dos Serviços de Saúde n.º 295/PP/DP/2011, de 18 de Abril de 2011 é um acto duplamente definitivo:
• No plano horizontal, porque culmina o procedimento administrativo de que esta Proposta é acto preparatório;
• No plano material, porque define a situação jurídica da A., na medida em que autorizou:
a) a renovação do seu contrato, através do averbamento, com efeitos, respectivamente:
(1) a 30 de Janeiro de 2011 (data da cessação do contrato anterior); e
(2) a 7 de Setembro de 2010 (data da sucessão das leis no tempo), procedendo, desse modo, à ratificação-sanação da remuneração abonada ao A., como contrapartida pelo serviço por si prestado, durante o período em que o seu contrato já não estava em vigor, nos termos da legislação que antecedeu a Lei n.º 10/2010 (isto é, do Decreto-Lei n.º 68/92/M), e a data em que foi assinado; e
b) a alteração do contrato, de acordo com a Lei n.º 10/2010 e respectivos anexos.
F) Se a entidade recorrida se considera incompetente para tomar posição sobre matéria que, em seu entender, só o CE poderia tomar, mas não tomou, então o seu acto padece de vício de incompetência - vício que ora, por mera razões de cautela, se argui, embora seja de conhecimento oficioso.
Porém, se a entidade recorrida se considera competente para tomar posição sobre tal matéria, então, ao decidir do modo como decidiu, definindo uma situação jurídica, em divergência com os termos do despacho do CE e em violação da lei, praticou um acto materialmente definitivo, não podendo invocar o seu carácter “preparatório”, “instrutório” e “opiniativo”,
G) Revestindo o despacho anulando a natureza de acto de execução e não sendo a sua ilegalidade consequência da ilegalidade do acto exequendo (despacho do CE) e porque aquele acto de execução excede os limites do acto exequendo, independentemente da sua qualificação como acto horizontalmente definitivo, o Código do Procedimento Administrativo (CPA), no seu artigo 138.º:
• proíbe, aos órgãos da Administração Pública, a prática de “acto ( ... ) de que resulte limitação de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, sem terem praticado previamente o acto administrativo que legitime tal actuação” (n.º 1);
• admite, a impugnação administrativa e contenciosa:
c) dos “actos (...) de execução que excedam os limites do acto exequendo” (n.º 3), bem como
d) dos “actos (...) de execução arguidos de ilegalidade, desde que esta não seja a consequência da ilegalidade do acto exequendo” (n.º 4).
H) Deste modo, a ilegalidade que se imputa ao despacho - como referido na petição inicial - resulta da violação do disposto no artigo 138.º do CPA, já que, destinando-se a executar o despacho do CE, do acto resulta limitação de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos da A., sem que haja previamente um acto administrativo que legitime tal actuação, porquanto o despacho do CE, não apenas é insusceptível de interpretação extensiva, como dispõe mesmo em sentido contrário ao do acto anulando.
I) O CE, através do seu despacho, concorda que, “cessando” o contrato da A., em vigor em 7/9/2010, o mesmo possa ser renovado, através de averbamento, e que a prestação da actividade médica seja disciplinada juridicamente “de acordo com o disposto no art.º 1.º da Lei n.º 10/2010, de 6 de Setembro” (cláusula 1.ª), isto é, de acordo com “o regime jurídico da carreira médica”, estabelecido na referida lei, que o mesmo é admitir que o averbamento se rege pelo n.º 1 do artigo 43.º.
J) Diversamente, o Director dos SS vai em sentido contrário: “o novo averbamento não pode ser feito 'nos termos' desta disposição legal [n.º 1 do artigo 43.º] (por esta lei não ser aplicada a estes CITs)” (ponto 10), concluindo-se o que já se dissera em momento anterior: “As leis que posteriormente entraram em vigor com o propósito de regularem especificamente cada uma das carreiras públicas ligadas aos Serviços de Saúde (nomeadamente a Lei n.º 10/2010) não se aplicam, por natureza, aos já referidos trabalhadores recrutados ao exterior e providos por CIT” (ponto 5).
K) Inexiste, pois, deste modo, “acto opiniativo” e não é verdade que o despacho do Director dos SS não integra a previsão normativa do artigo 110.º do CPA, constituindo mero acto instrumental, um parecer meramente facultativo e, logo, não vinculativo.
L) Por todas estas razões e por aquelas que se deixaram ditas na petição inicial, o despacho do Director dos SS integra a previsão normativa do artigo 110.º do CPA, visto que, o Director dos SS, que o praticou, é um órgão da Administração que, “ao abrigo de normas de direito público”, visou “produzir efeitos numa situação jurídica” (negação, à A., do direito ao “montante pecuniário”, consagrado no n.º 2 do artigo 47.º da Lei n.º 10/2010), quer essas normas lhe atribuam competência para tanto ou não: no primeiro caso, o acto padece de vício de violação de lei; no segundo, padece ainda de vício de incompetência.
Por outro lado, quanto à segunda questão:
M) A alegada ilegitimidade passiva da DSS foi suscitada no Parecer do Digno Agente do M.P. de fls. 134 a 137.
A decisão ora recorrida acolheu coma boa esta posição e:
“…decide proceder a excepção da ilegitimidade passiva e rejeitar a presente instância.”; bem como
“... cremos que se não afigura adequado providenciar pelo suprimento da aludida excepção dilatória nesta fase processual.”
N) É certo que a relação contratual sub judice se constituíu entre a RAEM, pessoa colectiva de direito público, e o ora Recorrente, embora aquela representada pelo Director dos Serviços de Saúde.
Todavia, o Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, diz no seu artigo 13.º: «A citação dos órgãos administrativos é feita por carta registada com aviso de recepção».
O) Tendo em conta o disposto nos 46º e 47º do CPAC, mesmo que se considerasse inaplicável o disposto no artigo 13.º do CPAC - o que por mero raciocínio se admite, sem conceder - a verdade é que, preenchendo a lacuna, com recurso, por via da analogia, aos mencionados preceitos do recurso contencioso, sempre se concluirá que «o erro na identificação do autor do acto recorrido» [art. 46.º, n.º 2/al. f)] não tem consequências processuais significativas (art. 47.º, n.º 2) e só o terá nos casos de erro manifestamente indesculpável, o que não é o caso dos autos.
P) Por outro lado, face ao disposto no art.º 59º do CPAC, se o Director dos Serviços de Saúde interveio, supõe-se que em representação da R.A.E.M.; e, se a R.A.E.M. teria de fazer-se representar por alguém, então, o alegado vício está sanado.
E, ainda,
Q) Face às disposições invocadas do CPAC (art.º 51º e art.º 99º) e do CPC (art.º 394º, art. º 397), entende o recorrente que, ao contrário do que refere a sentença recorrida, mesmo que se verificasse a ilegitimidade passiva da DSS, a petição inicial poderia e deveria ter sido alvo do despacho de aperfeiçoamento.
Por outro lado,
R) A sentença recorrida referiu que “...mesmo assim se entenda que a ora ilegitimidade passiva não se verificasse, não se poderia proceder as pretensões da A. do reconhecimento da retroactividade da sua valorização inidiciária, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2007 a 7 de Setembro de 2010, e da consequente condenação do Réu para efectuar o respectivo abono”.
Ora,
S) No Parecer nº 4/2010 da 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa, faz-se uma distinção: entre os contratos individuais de trabalho celebrados antes do novo Regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, aprovado pela Lei n.º 14/2009 e os contratos individuais de trabalho (CIT) celebrados em momento posterior.
T) “A extensão do regime de carreiras a todos os trabalhadores da Administração independentemente do vínculo que com esta mantêm, nomeadamente o contratual, constitui uma inovação face ao regime actual, que apenas consagra o direito à carreira ao pessoal do quadro.
U) Não é, pois, salvo o devido respeito, certo que, “tendo em conta que a A. é contratada para prestação da actividade médica, não nos entendemos que seria aplicável ao seu contrato individual de trabalho o regime estipulado na Lei nº 14/2009”,
V) O facto de o contrato individual de trabalho não conter uma cláusula, estipulando a diferença da valorização indiciária, resultante da retroactividade a 01/07/2007, constitui matéria de direito relativa ao mérito da causa, em que o Tribunal sobre ela decidiu, mas que o recorrente não teve a oportunidade de sobre ela se pronunciar.
W) Diga-se, apenas, acompanhando o Parecer n.º 4/2010 da 3.ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa que:
• “A retroactividade na revisão das carreiras públicas tem-se reportado sempre a 1 de Julho de 2007 porque este foi o momento em que o Governo assumiu publicamente o compromisso político de reformular as carreiras da função pública de Macau” (p. 48), não integrando, pois, o estatuto remuneratório do contratado: está para além dele;
• “para se apreciar se, em concreto, um determinado trabalhador em regime de contrato individual de trabalho se encontra ou não numa situação de facto igual quando comparado com um trabalhador que exerça funções similares ao abrigo de um contrato além quadro ou de assalariamento é necessário analisar as condições contratuais e o regime legal aplicável ao trabalhador da função pública de Macau com um contrato individual de trabalho. Esta matéria apenas pode ser apurada perante uma análise do regime contratual acordado” (p. 53).
X) Daí, que nunca a lei poderia dizer que todos os trabalhadores dos serviços públicos providos em regime de contrato individual de trabalho têm “direito a receber um montante pecuniário equivalente à diferença entre os índices correspondentes à categoria e escalão resultantes da transição e os índices correspondentes à categoria e escalão detidos antes da transição”, tal como o diz, o artigo 47.º, n.º 2 do da Lei 10/2010, para os demais contratados além do quadro e assalariados. Mas, também os não excluiu expressamente, como o fez o n.º 2 do artigo 81.º da Lei 14/2009 para os contratos individuais de trabalho sujeitos ao regime geral estabelecido nesta lei. Impondo-se, por isso, interpretar este preceito legal à luz do princípio da igualdade, consagrado no artigo 25.º da Lei Básica da RAEM.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências.
Assim se fazendo JUSTIÇA!».
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A entidade recorrida respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
«Quanto à irrecorribilidade do acto do DSS:
1. O artigo 110º do CP A determina que os actos administrativos são “decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”.
2. Ora o Parecer n.º 36/GJ/2011, sobre o qual foi exarado um despacho do DSS no sentido de “Visto. Ao SAAG”, versa apenas sobre os efeitos jurídicos das declarações apostas por cinco médicos à renovação dos seus contratos por averbamento, no sentido de aceitar “a revisão e renovação do seu contrato individual de trabalho por averbamento nos termos do n.º 1 do artigo 43º da Lei n.º 10/2010”, e não sobre a diferença da valorização indiciária reclamada pela Recorrente - o propósito deste foi apenas o de esclarecer as dúvidas constantes no relatório n.º 274/PP/DP/2011 relativamente às eventuais consequências jurídicas das declarações constantes da alínea 14º dos factos assentes.
3. Por sua vez, o despacho do DSS de 08/04/2011, objecto do pedido de anulação, veio apenas apor ao supra referido Parecer a menção “Visto. Ao SAAG”, sem manifestar qualquer concordância com o Parecer n.º 36/GJ/2011, nem indicar qualquer destinatário final do seu conteúdo, ordenando somente a remessa do referido Parecer à SAAG.
4. Assim, o referido despacho do DSS é um mero acto interno, não produzindo qualquer efeito lesivo na esfera jurídica da Recorrente mas terá consequências apenas nas relações inter-orgânicas no âmbito de orientações que transmitem aos serviços, com carácter genérico, e como tal, não é contenciosamente recorrível nos termos do artigo 280 do CP AC, inexistindo qualquer decisão por parte do Director dos Serviços de Saúde.
5. Deste modo, o Despacho ora posto em crise pelo A. não integra a previsão normativa do artigo 110º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), pois não visa “produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta”, tão-pouco possui qualquer vertente executória nos termos do artigo 138º, n.os 3 e 4 do CP A, mas constitui mero acto instrumental e interno.
6. Não sendo o acto do DSS recorrível, deverá o presente recurso ser rejeitado, nos termos do artigo 46º, n.º 2 alínea c) do CPAC.
7. Já o Despacho do CE, exarado sobre a proposta do Chefe de Divisão do Pessoal dos Serviços de Saúde n.º 1370/PP/DP/2010 dispõe que o abono da diferença entre o novo e o antigo escalão apenas retroagiria a partir de 7/9/2010, cfr. ponto 3.2 do mesmo.
8. Assim, e a colocar em causa determinado acto pelas razões aduzidas pelo A. seria o Despacho do Senhor Chefe do Executivo, e não a decisão instrumental do DSS, que nada tem de definitivo ou executório, e que não contribui em nada para uma percepção remuneratória diferente.
9. Não existindo conexão entre o despacho do DSS cuja anulação se requer e o contrato individual de trabalho em litígio, também aqui se terá de concluir pela não executoriedade do despacho do DSS e, em consequência, pela inexistência da conexão apresentada no artigo 133º, n.º 3 do CPAC, sendo em consequência indeferido o pedido.
10. Deste modo, e não sendo o acto do DSS recorrível, deverá o presente recurso ser rejeitado, nos termos dos artigos 28º, n.º 1 e 46º, n.º 2 alínea c) do CPAC.
Quanto à ilegitimidade passiva dos SSM:
11. A própria Recorrente aceitou no artigo 31 º da sua Petição Inicial que a relação contratual sub judice constituiu-se entre a RAEM e o ora Recorrente, tendo o Director dos SSM intervindo na celebração do contrato individual de trabalho em causa apenas na qualidade de representante da RAEM e em nome desta.
12. Nos termos do artigo 113º, n.º 1 do CPAC, “A acção sobre contratos administrativos tem por finalidade dirimir os litígios sobre interpretação, validade ou execução dos contratos, incluindo a efectivação de responsabilidade civil contratual”, nos termos do artigo 113º, n.º 1 do CPAC, sendo que, nos termos do artigo 114º, n.º 1 do CPAC, a mesma “pode ser proposta pelos sujeitos da relação contratual e, na estrita medida em que se relacione com a respectiva validade ou execução, pelas entidades referidas nos números seguintes”, nas quais não se inclui os SSM.
13. Só os sujeitos do próprio contrato administrativo possuem legitimidade para interpor a respectiva “acção sobre contratos administrativos”, em conformidade com o artigo 114º, n.º 1 do CPAC, pelo que o mesmo deverá concluir-se relativamente à legitimidade passiva dos Serviços de Saúde de Macau, na senda da Sentença do Tribunal Administrativo de Macau e do douto Parecer do Ministério Público
14. Não sendo os SSM parte no contrato em análise, conclui-se que o ora Recorrido carece de legitimidade passiva na presente lide, por aplicação do artigo 114º, n.º 1 do CPAC.
15. A alegação da Recorrente segundo a qual o erro na identificação do autor do acto recorrido, nos termos do artigo 46º, n.º 2 alínea f) do CPAC, “não tem consequências processuais significativas (art. 47.º, n.º 2) e só o terá nos casos de erro manifestamente indesculpável, o que não é o caso dos autos.” não corresponde, manifestamente, ao caso sub judice, uma vez que foi o própria Recorrente a admitir (no artigo 31 º da sua PI) que a relação contratual constituiu-se entre a RAEM e o ora Recorrente, tendo o Director dos SSM intervindo na celebração do contrato individual de trabalho em causa apenas na qualidade de representante da RAEM e em nome desta.
16. Pelo exposto, é forçoso concluir que existe in casu um erro manifestamente indesculpável por parte do A, aqui Recorrente, nos termos do artigo 46º, n. º 2 alínea f) do CP AC, havendo assim lugar à rejeição liminar do recurso do ora Recorrente.
Quanto ao regime jurídico aplicável ao contrato individual de trabalho da Recorrente:
17. Em matéria de contratação pública, a relação jurídica administrativa só é passível de ser constituída através das formas de provimento previstas nos artigos 19º e seguintes do ETAPM, a saber, através de nomeação ou contrato. Neste último caso, apenas duas formas de contrato se encontram previstas no artigo 21º do ETAPM - o contrato além do quadro ou assalariamento - nas quais não se inclui o contrato individual de trabalho.
18. A Recorrente possui um vínculo laboral com a Administração através de um contrato individual de trabalho celebrado ao abrigo do artigo 99º da Lei Básica da RAEM, que se rege pelas cláusulas nele contidas e aceites por ambas as partes, constituindo pois uma situação jurídico-laboral de âmbito privatístico que não se confunde com o regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos.
19. Um dos objectos essenciais do contrato é o de “colaborar na formação dos médicos dos internatos”, cfr. cláusula 1ª do contrato, que recai na excepção da alínea 3) do número 4 do artigo 1º do Regime das Carreiras dos Trabalhadores dos Serviços Públicos (Lei 14/2009).
20. Em articulação com o contrato individual de trabalho celebrado ao abrigo do artigo 99º da Lei Básica da RAEM, é forçoso concluir pela não aplicação do regime de carreiras aos trabalhadores providos para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas, como é o caso da Recorrente.
21. Tal como se encontra sustentado pela douta Sentença recorrida a fls. 124 e 124v, não existe, à luz do ETAPM, norma de carácter imperativo que “obriga ou afasta a aplicação aos médicos recrutados por contrato individual de trabalho do regime geral dos trabalhadores da função pública ou do regime da carreira médica”, pelo que os contratos individuais de trabalho “regem-se apenas pelos previstos acordados nos respectivos contratos, sem prejuízo da remissão para as disposições constantes do ETAPM e no regime da carreira médica”.
22. Ainda que se considere que a situação da Recorrente não se subsume na previsão do artigo 1º n.º 4 alínea 3) da Lei n.º 14/2009 (o que não se concede e apenas se admite por mera cautela e dever de bom patrocínio), sempre se dirá que a alínea 2) do n.º 4 do mesmo artigo afasta a aplicação do regime das carreiras aos trabalhadores providos “Para desempenharem funções que, pela sua natureza ou especificidade, sejam reguladas por diploma próprio”, a saber, as carreiras especiais na área da Saúde, que se regem por diplomas próprios (nos termos do artigo 19º n.º 1 alínea 12) e n.º 2, respectivamente) .
23. O diploma legal aplicável in casu seria a Lei n.º 10/2010, referente ao regime jurídico da carreira médica, diploma esse que prevê especificamente no seu artigo 43º n.º 1, que “Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente Lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos”, afastando deste modo a aplicação do novo regime da carreira médica ao contrato da Recorrente.
24. Ora a renovação do contrato individual de trabalho nos termos do artigo 43º, n.º 1 da Lei n.º 10/2010 demonstra cabalmente que a Recorrente preferiu manter a disciplina jurídica do seu contrato intocada pelo novo diploma legal, quando poderia ter lançado mão do artigo 43º, n.º 2 do mesmo diploma, no prazo de 180 dias (cfr. artigo 43º, n.º 2 da Lei n.º 7/2010).
25. O conceito de “transição”, que subjaz à Lei n.º 10/2010, bem como as regras a ele aplicáveis segundo este diploma legal, distingue os trabalhadores providos por contrato individual de trabalho dos trabalhadores com outro tipo de provimento.
26. Da análise dos artigos 41º, 43º e 47º da Lei n.º 10/2010 resulta claro que a retroactividade a 1 de Julho de 2007 das valorizações estipuladas pela Lei n.º 10/2010 apenas se aplica às transições a que se referem os artigos 35.º e 39.º, e às alterações referidas no n.º 1 dos artigos 36.º, 37.º, 38.º e 42.º.
27. A opção legislativa, cuja bondade não cabe aqui discutir, foi assim de não incluir no regime da carreira médica os contratos individuais de trabalho, determinando para estes uma regra e uma excepção no artigo 43º da Lei n.º 10/2010.
28. A regra será, pois, a submissão dos contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da Lei n.º 10/2010, bem como as suas renovações, à disciplina emergente desses mesmos contratos, conforme o disposto no artigo 43º n.º 1 do referido dispositivo legal, salvo se os contraentes, “por sua iniciativa e mútuo acordo, [optem] por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente Lei”, conforme o disposto no artigo 43º número 2 do mesmo diploma.
29. A aquisição do direito à retroactividade das valorizações indiciárias resulta, pois, do preenchimento do conceito de “transição” - com a transição constitui-se na esfera jurídica do interessado o direito às valorizações indiciárias correspondentes ao escalão e categoria em que o trabalhador se encontraria caso tivesse sido posicionado na carreira nessa data.
30. Pela própria natureza do contrato firmado entre o A. e Administração, não lhe sendo permitido aceder ao regime da carreira médica, o A. não cumpre o requisito formal da transição, não podendo assim, de jure constituto, recorrer ao preceituado no artigo 47º número 2 da Lei n.º 10/2010.
31. A tese ora apresentada encontra pleno acolhimento na mais recente jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância, nomeadamente nos processos de recurso contencioso com os números 507/2010, 520/2010, 525/2010 e 527/2010, cfr. os respectivos Acórdãos de 26/4/2012, 27/10/2011, 10/11/2011e 16/2/2012.
32. A opinião vertida no Parecer 36/GJ/2011, sobre o qual foi exarado o Despacho do Director dos Serviços de Saúde, encontra-se assim em conformidade com o disposto na Lei n.º 10/2010, ao sustentar a inaplicabilidade do regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos e consequente regime da carreira médica aos trabalhadores providos por contrato individual de trabalho, pela própria natureza deste, cfr. os Acórdãos supracitados.
33. A celebração de um novo contrato individual de trabalho nos moldes previstos pelo artigo 43º n.º 2 da Lei n.º 10/2010 não deixa de ser um dispositivo com carácter excepcional para esse tipo de contrato, pois o legislador limitou a retroactividade das valorizações indiciárias a 1 de Julho de 2007 apenas no tocante às transições e alterações expostas no artigo 47º n.º 2 da Lei n.º 10/2010, deixando explicitamente de fora os médicos providos com um contrato individual de trabalho.
34. O n.º 4 do artigo 43º da Lei n.º 10/2010 espartilha o regime consentido ao abrigo desta excepção, determinando que “Os contratos referidos no n.º 2 são celebrados tendo por referência o desenvolvimento da carreira constante do mapa 1 anexo à presente Lei, tendo em conta as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos”, o que atesta a vontade do legislador em limitar a estipulação das partes quanto ao clausulado do novo contrato individual de trabalho, nomeadamente quanto à retroactividade das valorizações indiciárias.
35. Na medida em que o legislador não quis que os efeitos do novo contrato individual de trabalho, firmado ao abrigo da excepção do n. º 2 do referido artigo, retroagissem para lá da data de entrada em vigor da Lei n.º 10/2010, é forçoso concluir que as valorações indiciárias a 1 de Julho de 2007 não se aplicam, de jure constituto, ao caso do A..
36. A mesma opinião encontra-se ainda plenamente espelhada na mais recente jurisprudência do Tribunal de Última Instância, nomeadamente nos Acórdãos do TUI de 9/5/2012, 16/5/2012, 4/7/2012, 18/7/2012, 18/7/2012 e 25/7/2012, relativos aos processos n.º 19/2012, 27/2012, 33/2012, 24/2012, 10/2012 e 29/2012, respectivamente.
37. No Acórdão, opina o douto Tribunal no sentido de o regime dos trabalhadores providos por contrato individual de trabalho outorgado nos termos do artigo 36º, n.º 1 da Lei n.º 18/2009 (aqui artigo 47º, n.º 1 da Lei n.º 10/2010) resulta apenas do referido contrato, por contraposição aos trabalhadores do quadro, dos contratados além do quadro, dos assalariados e o dos novos contratos individuais de trabalho renovados nos termos da lei, i.e., do artigo 36º, n.º 2 da Lei n.º 18/2009 (aqui artigo 47º, n.º 2 da Lei n.º 10/2010).
38. Quanto à interpretação do artigo 47º, n.º 2 da Lei n.º 10/2010 segundo o princípio da igualdade, avançada pela Recorrente, o Acórdão do TUI de 9 de Maio de 2012, proferido no âmbito do processo n.º 19/2012, opina no sentido de “A vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa. Só quando os limites externos da discricionariedade legislativa são violados, isto é, quando a medida legislativa não tem adequado suporte material, é que existe uma infracção do princípio da igualdade enquanto proibição do arbítrio”, concluindo pela inexistência de violação do princípio da igualdade.
39. Assim, e partindo da análise feita a este regime e sustentada pelos Acórdãos do TSI e do TUI (nomeadamente os Acórdãos do TUI de 9/5/2012, 16/5/2012, 4/7/2012, 18/7/2012, 18/7/2012 e 25/7/2012, relativos aos processos n.º 19/2012, 27/2012, 33/2012, 24/2012, 10/2012 e 29/2012, respectivamente) indicados supra, sempre se dirá que, inexistindo qualquer violação do princípio de igualdade, não poderá ser feita a interpretação abro gante avançada pela Recorrente.
40. Ainda que se considere que os novos contratos individuais de trabalho revestem uma natureza “híbrida” (e não puramente privatística), o que não se concede e apenas se admite por dever de bom patrocínio, diga-se que a distinção operada pelo ponto 9 da parte n.º 4 do Parecer n.º 4/2010 da 33 Comissão Permanente da Assembleia Legislativa entre este tipo de contratos celebrados antes da entrada em vigor do novo Regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos (aprovado pela Lei n. º 14/2009) e os contratos individuais de trabalho celebrados em momento posterior deve ser entendida igualmente à luz do conceito operante de “transição” ora apresentado.
41. Efectivamente, e tal como ficou assente na alínea 11º da Sentença ora recorrida, o contrato firmado entre a RAEM e a Recorrente foi sendo sucessivamente renovado através de averbamento ao mesmo, mantendo-se, contudo, essencialmente o mesmo regime privatístico, resultado que encontrou consagração legal no artigo 43º, n.º 1 da Lei n.º 7/2010 ao definir que “Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos”.
42. In casu, a Recorrente optou por renovar o seu contrato individual de trabalho ao abrigo da referida alínea, e não, como poderia tê-lo feito, ao abrigo do artigo 43º, n.º 2 do mesmo diploma, no prazo de 180 dias (cfr. artigo 43º, n.º 2 da Lei n.º 7/2010), pelo que optou expressamente por não conferir ao seu contrato a referida natureza de “contrato de trabalho transformado”.
Termos em que requer a total improcedência do presente recurso, por totalmente infundado, assim fazendo V. Exas. a habitual JUSTIÇA.».
*
O digno Magistrado do MP opinou o seguinte:
«Pese embora a titulo condicional (caso se entenda “...que a ora legitimidade não se verifica”), o Mmo julgador “a quo” acaba por empreender incursão sobre o mérito da causa.
Contudo, a decisão é clara, no sentido da rejeição por irrecorribilidade do recurso contencioso e absolvição da instância do R. por ilegitimidade passiva do mesmo, razão por que se entende ser sobre tal que deve caber pronúncia por parte deste tribunal.
Nestes parâmetros, não nos oferece reparo o decidido.
Sustenta o recorrente no recurso contencioso e acção, que se está perante contrato administrativo atípico, pedindo que sejam consideradas inválidas a interpretação e aplicação do artigo 47.º, n.º 2, da Lei 10/2010, preconizadas pelo acto de 8 de Abril de 2011, do Director dos Serviços de Saúde, por desconformes aos ditames dos artigos 25.º da Lei Básica e 5.º do Código do Procedimento Administrativo; que seja anulado o despacho do Director dos Serviços de Saúde, de 8 de Abril de 2011, por violação do artigo 138.º, nºs 1 e 2, do Código do Procedimento Administrativo; e que a Administração seja condenada ao pagamento, com rectroacção a 1 de Julho de 2007, das diferenças resultantes da valorização indiciária operada em sequência do averbamento ao seu contrato.
Começando pela questão da impugnação do acto, verifica-se que o autor/recorrente estruturou o articulado perante o tribunal de 1 a instância, no pressuposto de que se estará perante um acto de execução do despacho de 30 de Março de 2011, do Chefe do Executivo, que autorizou o averbamento ao seu contrato individual de trabalho.
Não cremos que assim seja.
Como resulta dos elementos documentais juntos com a petição inicial, o acto do Director dos Serviços de Saúde, posto que datado de 8 de Abril de 2011, homologa um parecer exarado em 22 de Março de 2011, proferido portanto antes do despacho de averbamento em causa.
Neste contexto, não se nos afigura que o acto de 08 de Abril de 2011, constitua um acto de execução do despacho de 30 de Março de 2011 do Chefe do Executivo.
E, mesmo que, porventura, se entendesse que o despacho impugnado homologa um parecer que de antemão fora pedido para facilitar ou agilizar a posterior execução do averbamento e, por inerência, do acto que o viria a autorizar, nada habilita a conclusão de que está em causa um acto de execução contenciosamente impugnável, pois tal acto não excede os limites do despacho do Chefe do Executivo, nada inovando relativamente a este, inovação que constituiria condição sine qua non para lhe conferir lesividade e, por arrastamento, o tomar recorrível.
De resto, o parecer que o questionado acto homologou não se debruça, em concreto, sobre o averbamento ao contrato, nem sobre o despacho que o autorizou.
Aborda, sim, numa perspectiva genérica, como resulta do seu texto, as consequências legais das declarações de aceitação de revisão e renovação dos contratos individuais de trabalho de médicos recrutados no exterior, mediante averbamento nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da Lei n.º 10/2010.
Ou seja, é um parecer relativo às consequências jurídicas das declarações de aceitação emitidas pelos médicos, analisadas à luz de um determinado quadro normativo.
O que equivale por dizer que se trata de um parecer sobre interpretação e aplicação da lei, cuja homologação vai propiciar uma apreciação uniforme das questões de interpretação que possam vir a suscitar-se de futuro, adentro da unidade orgânica em que vai vigorar.
Daí que se trate de acto eminentemente interno, dado que os seus efeitos jurídicos se produzem no interior da pessoa colectiva cujo órgão o praticou.
Saber se esta orientação interna vai posteriormente produzir efeitos lesivos concretos, através de actos administrativos definidores de situações individuais, é questão que já não cabe aqui analisar.
Portanto, o despacho de 8 de Abril, ao sancionar o parecer sobre o qual se debruçou, acaba por homologar um entendimento interno dos Serviços de Saúde sobre a temática abordada no parecer, ou seja, as consequências legais resultantes das declarações, por parte dos médicos, de aceitação da revisão e renovação dos seus contratos individuais de trabalho por averbamento nos termos do n.º 1 do artigo 43.º da Lei n.º 10/2010.
Esse entendimento interno não possui virtualidade imediatamente lesiva, já que não se destina a produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, pelo que não reveste as características de acto administrativo impugnável.
Daí que, nesta parte, e salvo melhor juízo, nenhum reparo mereça a consideração da irrecorribilidade do acto, à luz do preceituado na al c) do nº 2 do artº 46º, CP AC.
Quanto à acção, uma vez que o litígio ali reflectido advém da interpretação, validade e execução sobre as cláusulas contratuais do contrato administrativo em que a R., representada pelo director de serviços seus, o outorgou como mero representante do governo da RAEM, não sofrerá contestação (ao que se colhe, até por parte do próprio A.) a ilegitimidade passiva detectada.
No que tange à possibilidade do suprimento respectivo, ainda que se aceite a existência de lacuna, a poder ser preenchida por analogia com as normas inerentes ao recurso contencioso, sempre se dirá que, tendo o próprio recorrente admitido (cfr, designadamente, ponto 31 º da respectiva P.I.) que o R. assinou o averbamento ao contrato “...na qualidade de representante do 1 o outorgante…”, o erro assinalado haverá que ser considerado como manifestamente indesculpável, a não justificar, pois, o despacho de aperfeiçoamento almejado.
Neste passo, seríamos tentados, na esteira, alias, do que não deixou de suceder com o Mmo Juíz “a quo”, à consideração de que “malgré tout”, isto é, mesmo dando de barato que aquela excepção não operaria, a pretensão do R. haveria forçosamente que soçobrar, atentos, desde logo, os fundamentos de direito esgrimidos pela entidade Ré, aliás em consonância com jurisprudência pacífica que este tribunal tem vindo a adoptar em casos em tudo similares, respeitantes a averbamentos aos contratos dos enfermeiros recrutados ao exterior, jurisprudência que conta com o aval do TUI e da qual a entidade Ré dá nota bastante.
Todavia, como se deixou dito no início, é inquestionável que a parte decisória do douto aresto sob apreciação se quedou pela ocorrência de matéria de excepção, a ela, parece-nos se dever ater este tribunal.
Termos em que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer provimento o presente recurso.».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«1.º A A. foi contratada ao exterior por contrato além do quadro para exercer funções de assistente hospitalar, com início a partir de 06/09/1995 até 31/05/1997, tendo-lhe sido atribuída o índice 620, na categoria correspondente a assistente de saúde pública, do 3.º escalão (vide fls. 218 e verso do P.A.).
2.º - O seu contrato foi sucessivamente renovado, passando na categoria de Chefe do Serviço de Saúde Pública, de 2.º escalão, até 31 de Julho de 2000 (vide fls. 184 a 186, 192, 197 a 200v e 204 do P.A.).
3.º - Em 10/05/2000, com vista a revogação do Decreto-Lei n.º 60/92/M, foi elaborado o parecer n.º 27/SS/2000 no sentido de recrutar a A. por contrato individual de trabalho celebrado ao abrigo do art.” 48.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 81/99/M (fls. 169 a 175 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
4.º - Por despacho do Sr. Secretário de Assuntos Sociais e Culturais datado de 19/05/2000, a proposta constante do parecer acima referido mereceu concordância (fls. 169 do P.A.).
5.º - Em 14/06/2000, foi celebrado um contrato individual de trabalho entre a A. e o Réu, para prestação da actividade médica da respectiva especialidade e colaboração na formação, designadamente dos médicos e dos internatos, nos termos do ETAPM e do art.º 48.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 81/99/M, por 6 meses, com início a partir de 01/08/2000, tendo-lhe sido atribuído o índice 675, na categoria correspondente a Chefe de Serviço de Saúde, do 2.º escalão, com manutenção de todos os direitos dos contratos anteriores conferidos pelo ETAPM e os direitos constantes em anexo (vide fls. 176 a 179 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
6.º - O seu contrato individual de trabalho foi sucessivamente renovado, passando ao 3.º escalão da mesma categoria, até 31/01/2002 (vide fls. 157 a 160 e 167 a 168 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
7.º - Em 26/12/2001, foi renovado e celebrado um novo contrato individual de trabalho entre a A. e o Governo da R.A.E.M., representado pelo Director do Réu, por um ano, com início a partir de 01/02/2002 (vide fls. 139 a 140 e 144 a 155 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
8.º - Em 04/12/2003, este contrato individual de trabalho foi renovado por averbamento por um ano, com início a partir de 01/02/2003 (vide fls. 131 a 133 e 138 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
9.º - Em 30/01/2004, foi renovado e celebrado um novo contrato individual de trabalho com averbamento entre a A. e o Governo da R.A.E.M., representado pelo Director do Réu, por um ano, com início a partir de 01/02/2004 (vide fls. 104 a 106 e 119 a 130 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
10.º - Em 14/12/2004, foi renovado e celebrado um novo contrato individual de trabalho entre a A. e o Governo da R.A.E.M., representado pelo Director do Réu, por um ano, com início a partir de 01/02/2005 (vide fls. 78 a 80 e 94 a 103 do P.A.).
11.º - O seu contrato individual de trabalho foi sucessivamente renovado, por averbamento, até 31/01/2011 (vide fls. 26 a 28, 34 a 38, 45 a 49,55 a 59, 65 a 69 e 75 a 77 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
12.º - Em 13/12/2010, para efeitos de revisão e renovação do contrato individual de trabalho da A., foi elaborado o parecer n.º 1370/PP/DP/2010 (fls. 1 a 3 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
13.º - Por despacho do Chefe de Executivo datado de 13/01/2011, a proposta constante do parecer acima referido mereceu concordância (fls. 1 do P.A.).
14.º - A A. celebrou um averbamento ao seu contrato individual de trabalho celebrado em 04/12/2004 com o Governo da R.A.E.M., representado pelo Director do Réu, com início a partir de 31/01/2011, onde se deixou por escrito uma declaração de ressalva (fls. 18 a 25 do P.A., cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
15.º - Em 22/03/2011, para efeitos de revisão dos contratos individuais de trabalho dos cinco médicos do Réu, a saber, XXX, XXX, XXX, XXX e XXX, foi elaborado o parecer n.º XX/GJ/2011 (fls. 48 a 50v dos autos, cujo teor que se dá aqui por inteiramente transcrito).
16.º - Em 08/04/2011, o Director do Réu deu o despacho “閱, 致SAAG” (Visto. Ao SAAG) à proposta constante do parecer acima referido (fls. 48 dos autos).
17.º - Em 15/06/2011, foi a A. abonada a diferença da remuneração entre a remuneração correspondente à categoria de Chefe de Serviço, 3.º escalão, índice 900, segundo o disposto na Mapa I do Anexo da Lei n.º 10/2010, e a remuneração resultante da categoria, escalão e índice constante no anterior averbamento ao seu contrato retroactivamente a 7/9/2010.
18. - Em 19/09/2011, foi a A. notificada do parecer n.º XX/GJ/2011 em resposta ao seu requerimento pelo Gabinete do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura (fls. 26 dos autos).».
Consigna-se ainda o seguinte:
19 - O parecer nº XXX/PP/DP/2010, de 13/12/2010 (fls. 1 a 3 do p.a.) a que se refere o art. 12º dos factos assentes diz o seguinte:
Assunto: Renovação do Contrato de trabalho com a Srª Drª A, residente na Republica Portuguesa.
Parecer nº XXX/PP/DP/2010, data: 13112/2010
Director dos SSM: Lei Chi Ion, 18/01/2011
Subdirectora, asso (Ho Iok San) 19/01/2011
A Srª Dr A trabalha para o nosso serviço desde 01/06/1995, em regime de Contrato Além do Quadro, presentemente, trabalha em regime de contrato individual de trabalho, no Núcleo e Planeamento de Saúde do Centro de Prevenção e Controlo de Doenças, exercendo o cargo de Chefe de Serviço de Saúde Pública, de 3a classe, cujo contrato termina em 31/01/2011.
Renovação do Contrato
Face à renovação do contrato, o CPCD deu o seguinte parecer: “Considerando o número de população de Macau, os médicos de serviços de saúde pública realmente são insuficientes - neste momento temos apenas 9 médicos, cada médico, em média, tem de assistir mais de 60 mil pessoas. Os quais têm de realizar e garantir uma série de trabalhos relacionados com a saúde pública, incluindo a aplicação da lei de saúde. Presentemente, esta trabalhadora é a única médica portuguesa no âmbito dos serviços de saúde pública, pois seria um grande apoio para a realização de trabalhos relacionados com portugueses ou trabalhos em língua portuguesa. Face ao exposto, promovo a “renovação do contrato por mais 1 ano” e aprovação de V. Exª (anexo 1).
Com remissão à Lei nº 10/2010, altera-se o averbamento do contrato
1. Com a entrada em vigor da Lei nº 10/2010 “Regime da Carreira Médica” em 07/09/2010, o contrato inicialmente celebrado com a Drª A, que fazia remissão ao DL nº 68/92/M, nomeadamente à categoria e à remuneração (o antigo regime da carreira médica) já foram revogadas, além disso, no novo regime da carreira médica, tanto as funções, a carreira como a remuneração dos médicos chefe também foram alteradas;
2. Ouvido a opinião de V. Exª, é de concordar com a renovação do contrato, fazendo remissão à categoria de médico chefe de 3a classe constante no novo regime, com índice de 900 (anexo 2);
3. Com base no princípio da equidade e após consulta do modo de tratamento uniforme dos trabalhadores recrutados no exterior, vem por este meio promover o seguinte:
1. Nos termos do artº 48º, nº 3 do DL nº 81/99/M de 15 de Novembro1, será renovado o contrato por mais 1 ano com a Drª A, com início no dia 01/02/2011, fazendo remissão à categoria de médico chefe de 3a classe constante na Lei nº 10/2010 “Novo Regime da Carreira Médica”, com índice de 900;
2. Nos termos do artº 43º, nº 3 da Lei nº 10/20102, retroagindo os efeitos do novo contrato à data de entrada em vigor da referida lei (07/09/2010);
3. Foram alterados os averbamentos do contrato (anexo 3).
Caso V. Exª (Director substituto) concorde com o presente parecer, requeiro que seja processada as respectivas formalidades, a fim de submeter o parecer ao Chefe do Executivo para aprovação, nos termos do artº 99º, 2º parágrafo da Lei Básica3.
Para despacho.
O Chefe Substituto da Divisão do Pessoal
Ass
Che Wai San
20 - O parecer nº XX/GJ/2011, de 22/03/2011, a que se refere o art. 15º da matéria de facto, tem o seguinte teor (fls. 48 a 50 dos autos):
“... ... ...
Relativamente ao assunto em epígrafe, e no seguimento do ofício n.º XXX/PP/DP/2011 dos Serviços de Saúde, cumpre-nos emitir o parecer seguinte:
Da Questão:
1. Foi proposta uma revisão às cláusulas constantes nos contratos individuais de trabalho (adiante referidos por “CITs”): referência à Lei n.º 10/2010, a 5 (cinco) médicos dos Serviços de Saúde de Macau, a saber, o Sr. Dr. XXX, a Sr.ª. Dr.ª. XXX, o Sr. Dr. XXX, o Sr. Dr. XXX e a Sr.ª. Dr.ª. XXX.
2. Em resposta, todos os supra referidos médicos declararam que aceitam “a revisão e renovação do seu contrato individual de trabalho por averbamento nos termos do n.º 1 do artigo 43.o da Lei n.º 10/2010”.
3. Salvo melhor interpretação pretende a Divisão de Pessoal destes Serviços ser clarificada sobre as consequências legais resultantes de tais declarações.
Do Direito:
4. De acordo com informações e pareceres que já têm sido emitidos por este Departamento Jurídico (nomeadamente o n.º XXX/GJ/2009) e Departamento do Pessoal (a título de exemplo a n.º XXX/PP/DP/2010) se reforça a opinião de que o regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços públicos, regulado pela recente lei n.º 14/2009, não é aplicável aos trabalhadores providos por contrato individual de trabalho ao abrigo do artigo 99.º da Lei Básica.
5. Pelo que, consequentemente, as leis que posteriormente entraram em vigor com o propósito de regularem especificamente cada uma das carreiras públicas ligadas aos Serviços de Saúde (nomeadamente a lei n.º 10/2010) não se aplicam, por natureza, aos já referidos trabalhadores recrutados ao exterior e providos por CIT.
6. Podendo, no entanto, ser possível fazer referências a estas Leis nos futuros averbamentos aos contratos de trabalho aqui em discussão para que, exclusivamente, sejam aplicadas outras obrigações ou/ e direitos contratuais às partes envolvidas.
7. Na presente situação, e salvo melhor opinião, foi esta a intenção dos 5 Médicos que vieram declarar aceitar a revisão e renovação do CIT, ou seja,
8.versa o artigo referido pelos supra indicados médicos o seguinte:
Artigo 43.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
9. Assim, pretendem estes médicos que os seus CIT não sejam regulados ou sujeitos à lei n.º 10/2010.
10. Apesar de o novo averbamento não poder ser jeito “nos termos” desta disposição legal (por esta lei não ser aplicada a estes CITs) o pedido dos médicos poderá ser concedido por referência algumas normais aí dispostas se ambas as partes estiverem de acordo, mantendo-se, como pretendem, a disciplina dos seus contratos.
Conclusão:
Os médicos supra referidos declararam aceitar a revisão e renovação dos respectivos CITs por averbamento nos termos do n.º1 do artigo 43 da lei n.º 10/2010 significando com isto, salvo melhor opinião, que pretendem que a disciplina jurídica a aplicar aos referidos contratos não seja alterada com a entrada em vigor da nova lei, ou seja, que a lei n.º 10/2010 não lhes seja aplicada.
De acordo com todas as estipulações legais em vigor nada se opõe à pretensão dos requerentes.
Aproveita-se o momento para reforçar a já assente opinião de que o regime das carreiras dos trabalhadores dos serviços público (Lei n.º 14/2009) e consequente regime da carreira médica (Lei n.º 10/2010) não são aplicáveis aos referidos médicos pelo fado destes serem providos por CIT ao abrigo do artigo 99.º da Lei Básica.
Como alternativa, em caso de necessidade e por mútuo acordo das partes, poderá o novo averbamento aos CITs dos referidos médicos conter referências às leis aqui referidas fazendo destas parte integrante dos contratos.
A consideração superior.
… … …”
***
III – O Direito
1 – Introdução ao objecto do recurso
Na acção sobre contrato instaurada no TA, a autora pediu duas coisas:
a) A condenação da Direcção dos Serviços de Saúde a pagar-lhe a diferença remuneratória a que se acha com direito entre 1/07/2007 e 7/09/2010; e, cumulativamente,
b) A anulação do acto do Ex.mo Director dos Serviços de Saúde de 8/04/2011.
*
A sentença recorrida tomou duas decisões:
a) Rejeitou o pedido anulatório formulado pela autora da acção, por considerar que o despacho do Ex.mo Director datado de 8/04/2011 (facto 16º) é um mero acto interno, sem conteúdo decisório próprio e inovador, limitando-se a executar o acto do Ex.mo Chefe do Executivo de 13/01/2011, este por seu turno de concordância com o teor do parecer nº XXX/PP/DP/20010 (facto 12º).
b) No que concerne ao pedido próprio da acção sobre contratos, concluiu pela procedência da excepção de ilegitimidade passiva do Director dos Serviços de Saúde.
*
A recorrente, no presente recurso jurisdicional, limita o objecto deste a essas duas únicas matérias exceptivas.
Vê-las-emos já de seguida.
*
2 – Do pedido anulatório
Entende a recorrente que o referido despacho do Director de Serviços de Saúde de 8/04/2011 constitui a resolução final do procedimento administrativo a si concernente, em virtude de:
- Homologar o parecer XX/GJ/2011, manifestando-lhe a sua concordância;
- Ser vinculativo para os agentes hierarquicamente inferiores; e por
- Implicar a denegação do montante pecuniário em causa, definindo por essa via a situação jurídica da autora e de outros particulares.
E, expondo o raciocínio deste jeito, concluiu:
- Se o Director se achava incompetente para tomar a decisão que só ao Chefe do Executivo cumpria tomar, então o seu acto padece de incompetência (que apenas agora invoca, embora entenda ser de conhecimento oficioso);
- Se o Director se considerava competente para decidir o caso, então praticou um acto materialmente definitivo, não podendo ter um carácter preparatório, instrutório e opinativo.
- E se tal acto for de mera execução, uma vez que ele excede os limites do acto exequendo, também por essa razão e nessa medida, haveria de ser recorrível. Excede e é mesmo contrário ao acto do Chefe do Executivo, em violação do art. 138º do CPA, acrescenta.
*
Antes de mais nada, é preciso que se diga que a causa de pedir anulatória invocada pela autora radica no facto de o Director de Serviços de Saúde ter, na óptica da recorrente, praticado um acto de execução que excede os limites do acto do Ex.mo Chefe do Executivo quando concordou com o parecer nº XXX/PP/DP/20010. Neste sentido, detectamos alguma incoerência no discurso argumentativo acima exposto a partir das alegações do recurso jurisdicional. Efectivamente, na petição inicial, a autora entendia que o acto do Director era de execução, ao passo que agora já também admite que possa ser a “resolução final do procedimento administrativo”.
Postas as questões nestes termos, em princípio talvez importasse encontrar a verdadeira natureza do dito despacho, se acto final e definitivo, se mero acto de execução do acto do Ex.mo Chefe do Executivo. Depois disso, se fosse de concluir ser de execução, faria sentido indagar se ele ultrapassou os limites da definição contida no acto exequendo.
Todavia, talvez não se chegue a fazer esse exercício, se for de entender que, qualquer que seja a sua natureza, ele não é destinado à recorrente.
Vamos por partes.
*
Repare-se no teor do dito despacho do Ex.mo Director. Ele foi simplesmente: «Visto. Ao SAAG».
“Visto”! O que quer ele dizer?
Ora bem. Um mero acto de “visto” não tem sido alvo de grande atenção doutrinal e jurisprudencial e pode dizer-se que o seu sentido pode variar4 em função do contexto em que ele se inserir. Assim, podemos dizer que o despacho de “Visto” «tanto pode significar que o órgão competente entende não ter que proferir decisão, em casos em que o procedimento lhe é canalizado sem esse específico fim, mas para o inteirar, por exemplo, da junção de um documento, um parecer, etc., como pode revelar, efectivamente, uma vontade negatória ou de indeferimento, se todos os elementos estão coligidos e dele se espera uma decisão (quando haja o dever legal de decidir naquele momento…)5».
Pode não significar nada mais do que um mero sinal de que o titular do órgão se limitou a “ver” ou a “observar”, a “ficar ciente” de um documento, de um parecer, informação, etc. Em tal hipótese, o “visto” não tem significado decisório e dele “a se” não podem extrair-se efeitos na esfera jurídica de terceiros, nem directa, nem indirectamente.
Mas o visto, como se sabe, se for aposto pelo órgão competente e na fase procedimental destinada à decisão final, já tem, geralmente, o significado de uma verdadeira concordância com o conteúdo sobre que versa e, por conseguinte, com um sentido decisório pela via da homologação6 (mesmo que não leve esse nome).
Quando assim é, o que se torna preciso é analisar o contexto da sua prolação e o ambiente das competências envolvidas em cada caso concreto.
*
Simplesmente, como atrás íamos dizendo, nem mesmo assim se crê que, no caso em apreço, seja necessária tal tarefa de hermenêutica. E isto por duas ordens de razões:
Em primeiro lugar, esse despacho “Visto. Ao SAAG” está datado de 8/04/2011. Ora, como poderia esse acto, ainda que decisório, alguma vez definir a situação jurídica concreta da recorrente, se, com o averbamento ao seu contrato celebrado em 31/01/2011 (na sequência do despacho do Ex.mo Chefe do Executivo datado de 13/01/2011), já ela estava definida?! Que reflexo podia ter esse despacho nos efeitos de um procedimento que para a recorrente estava já findo com a celebração do contrato (averbamento) com o Chefe do Executivo?! Como se haveria de pensar que isso fosse possível, invertendo a lógica e a cronologia dos acontecimentos, se a cláusula 20ª do contrato/averbamento logo ali estipulou que “os efeitos decorrentes do índice referido na cláusula 4ª deste averbamento, retroagem a 7 de Setembro de 2010, tendo o segundo outorgante direito a receber um montante pecuniário equivalente à diferença entre o índice correspondente à categoria e escalão previsto neste averbamento e o índice correspondente e escalão constante do contrato anterior”?!
Em segundo lugar, esse “Visto”, mesmo no remoto pressuposto de que eventualmente fosse decisório, nunca podia estar a referir-se à situação da recorrente.
Efectivamente, ele apenas tem incidência directa e pessoal na esfera dos destinatários a que se dirigia: a um grupo determinado de cinco médicos, devidamente individualizados, de que não faz parte o nome da ora digna recorrente. Para estes médicos, o despacho em causa insere-se na seguinte cadeia lógica e cronológica:
1º - Proposta de revisão às cláusulas dos contratos dos Drs. XXX, XXX, XXX, XXX e XXX;
2º - Declaração destes médicos de aceitarem a revisão e renovação do seu contrato individual de trabalho por averbamento;
3 º - Parecer nº XX/GJ/2011, de 22/03/2011, a que se refere o art. 15º da matéria de facto (fls. 48 a 50 dos autos);
4º - Parecer nº XX/GJ/2011, de 21/04/2011 (fls. 51-54 dos autos);
5º - Autorização do Ex.mo Chefe do Executivo de 29/04/2011 (fls. 298-299 dos autos);
6º - Contrato celebrado em 16/05 (v.g., fls. 295-297).
Sendo assim, está bom de ver que ele não podia referir-se a um contrato já celebrado, como era o caso do averbamento referente à ora recorrente.
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Dito isto, e conforme decorre, aliás, do nosso despacho de fls. 267/268, o “Visto” a que a recorrente conferiu virtudes decisórias, se porventura as tivesse, nunca podia produzir efeitos em relação à esfera pessoal da recorrente porque ele apenas tinha na sua mira os referidos cinco médicos.
Ora, assim sendo, carece a recorrente de legitimidade activa para o recurso (leia-se, para o pedido anulatório), se tivermos em conta que, para a deter, seria necessário que aquele”acto” a tivesse lesado ou que a afectasse nalgum seu interesse directo, pessoal e legítimo, face ao que dispõe o art. 33º, al. a), do CPAC, o que, evidentemente, não era o caso.
Em suma, a recorrente, com o devido respeito, não se pode queixar do Director de Serviços de Saúde por não ter recebido a diferença remuneratória reportada a 1/07/2007. Isso se ficou a dever ao contrato (averbamento), onde na cláusula 20ª ficou definido o limite da retroactividade temporal para o cômputo dessa diferença. Não foi o “Visto” do Director que fez inflectir o sentido do contrato ou enveredou por uma errónea interpretação da referida cláusula 20ª. Foi o próprio contrato que limitou o alcance da alteração, com o qual, aliás, a recorrente desde logo não concordou ao manifestar nele, de forma manuscrita, uma declaração de reserva.
Está, pois, justificada a rejeição do recurso, mas por esta causa.
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3 – Do contrato
No que concerne ao pedido formulado na acção sobre o contrato, pretende a recorrente a invalidação deste (averbamento) na parte em que não aplica o art. 47º, nº2, da Lei nº 10/2010, e consequentemente, se lhe reconheça o direito ao “montante pecuniário” previsto no preceito e, determinando-se a retroactividade da actualização salarial a 1/07/2007, se condene a DSS a pagar a diferença da valorização indiciária respeitante ao período entre 1/07/2007 e 7/09/2010.
O que ficou plasmado na sentença?
Em termos resumidos, ficou nela asseverado que o contrato foi celebrado entre o Governo (representado pelo Director dos SSM) e a autora. Foi sustentado, ainda, que o Director dos SSM não se pode considerar réu, e que essa posição processual apenas a podia assumir a RAEM.
Nós cremos que a razão está do lado da sentença, sob este ponto de vista. Na verdade, bem ou mal, o contrato foi celebrado entre a RAEM e a autora da acção. A intervenção do Director no instrumento apenas se deveu, independentemente do acerto desse papel negocial, à sua mera função de representante da RAEM. A partir deste postulado, nada mais pode vir ao caso.
Logo, quem deveria assegurar a instância pelo lado passivo seria a contratante RAEM, macro-pessoa colectiva de direito público, dotada de personalidade jurídica.
No fundo, o que se discute não é uma questão de interpretação do contrato. É, diferentemente, uma questão de validade da própria 20ª cláusula contratual, da qual a recorrente discorda.
Não esqueçamos que a legitimidade do Director dos SSM apenas se pôde reconhecer quanto ao pedido anulatório formulado cumulativamente. Isto é, atendendo à maneira como nesse segmento do petitório a autora da acção desenhou o litígio contencioso, imputando àquele a autoria do acto que concretamente sindicou, não podia deixar de se lhe reconhecer legitimidade para a impugnação, nos termos do art. 37º do CPAC. Portanto, nada a dizer quanto a isso.
Mas, na parte relativa à validade do contrato, o que temos é um litígio entre os sujeitos da relação contratual. E nesse caso, para se poder defender e lutar pela validade do contrato que celebrou, pelo lado passivo só o contratante público poderia intervir. Ré, seria a RAEM, seguramente.
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Neste sentido, não pode aplicar-se à situação o disposto no art. 37º do CPAC, uma vez que se trata de norma somente aplicável ao recurso contencioso. E mesmo que fosse possível estender a sua normação às acções, então a intervenção do Director pelo lado passivo nunca haveria de servir como meio de suprir a ilegitimidade passiva, uma vez que a sua intervenção no contrato em representação da RAEM não se estende à intervenção processual, para a qual haveria sempre de haver citação da pessoa certa, o que não chegou a acontecer7. Significa, portanto, que a contestação apresentada pelo Director dos SSM não equivale a uma contestação elaborada em nome do representado.
Por outro lado, nada do que o recorrente aduz a respeito da possibilidade de sanação ou de correcção da petição surte efeito, nomeadamente nos termos do art. 397º do CPC. Com efeito, essa invocada possibilidade parece não ser admitida, face ao art. 394º, nº1, al. c), do CPC. A falta de legitimidade é insuprível8 e apenas pode dar lugar ao indeferimento liminar da petição, se a excepção for detectada imediatamente, ou à absolvição da instância, se posteriormente, nos termos do art. 230º e 413º do CPC.
Não tem, pois, razão a recorrente nas suas doutas alegações no que a este assunto diz respeito.
Por último, a intervenção principal também não seria possível. O art. 267º, n. 1, do CPC, o único que aqui interessa invocar, reza o seguinte: “Qualquer das partes pode chamar a juízo os interessados com direito a intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária”.
Vista assim a norma, duas notas dela sobressaem:
a) A intervenção em causa implica uma associação do chamado a uma das partes. Isto significa que o processo que tem uma parte, vai passar a ter duas pelo mesmo lado processual.
b) A presença do terceiro é feita a título de parte principal (daí a designação de “intervenção principal”). Ou seja, deixa de ser terceiro, para passar a parte principal. Significa que se opera uma cumulação da apreciação da relação material controvertida entre as partes primitivas com a apreciação da relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a primeira, “conexão essa que era susceptível de desencadear, logo de início, um litisconsórcio ou uma coligação”9.
Ora, assim sendo, se a situação material de que depende a intervenção permitiria a existência de um litisconsórcio voluntário ou necessário desde o início, de modo a que, com a sua presença, por exemplo, o chamado pudesse ser, tal como o primitivo réu, condenado na acção, então, a contrario, da inexistência desse litisconsórcio decorrerá a impossibilidade do chamamento.
Isto só não será assim quando, nos casos do art. 67º do CPC, o autor queira fazer chamar a intervir como réu uma terceira pessoa contra quem pretenda dirigir o pedido (art. 267º, nº2, do CPC). Ou seja, permite-se que, em caso de dúvida sobre quem seja o sujeito da relação material controvertida10, o autor possa formular o pedido subsidiariamente contra esse terceiro logo na petição inicial (art. 67º cit.) ou, posteriormente, através do incidente da intervenção provocada (art. 267º, nº2, cit.).
Ora, aqui, nem a situação é de dúvida que legitime o uso da intervenção, nem o caso é de associação possível da RAEM aos SSM de modo a permitir a presença simultânea de ambas no processo pelo lado passivo.
Quer isto dizer que não há a menor possibilidade de se suprir esta ilegitimidade.
E sendo assim, não podemos deixar de concordar com a solução da 1ª instância.
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Dito isto, o recurso tem que claudicar.
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IV – Decidindo
Nesta conformidade, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos termos acima expostos.
Custas pela recorrente.
TSI, 19 de Junho de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
Presente
Victor Manuel Carvalho Coelho
1 Nos termos do artº 48º, nº 3 do DL nº 81/99/M: Os SSM podem contratar pessoal médico, de enfermagem ou outro pessoal técnico, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho ou de prestação de serviços para a execução de trabalhos de elevada diferenciação técnica.
2 Nos termos do artº 43º, nº 3 do DL nº 10/2010: A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
3 Nos termos do artº 99º da Lei Básica de Macau: Os respectivos serviços públicos da Região Administrativa Especial de Macau podem ainda contratar portugueses e outros estrangeiros para servirem como consultores ou em funções técnicas especializadas.
4 Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9ª ed., II, pág. 1322-1333 e Cadernos de Justiça Administrativa, nº9, pág. 57 e jurisprudência aí citada (V.g. Ac. STA, de 3/05/1988, Proc. nº 025066).
5 José Manuel Santos Botelho e outros, Código de Procedimento Administrativo, 5ª ed., Almedina, nota 5ª ao art. 107º, pág. 463. Ver também Lino Ribeiro e outro, Código de Procedimento Administrativo de Macau anotado, pág. 508. Também, Ac. do TUI, de 30/07/2003, Proc. nº 12/2003 e do TSI, de 20/03/2003, Proc. nº 22/2000.
6 Tradicionalmente a homologação é o acto que acolhe e faz seus os fundamentos e conclusões de uma proposta ou de um parecer apresentados por um órgão consultivo ou que aceita a deliberação de um júri (cfr. art. 114º, nº2, do CPA). Pode dizer-se “Concordo com o parecer”, “Concordo com a proposta” ou “Homologo”, mas o sentido é o mesmo.
7 “A legitimidade afere-se pela parte e não pelo seu representante…legal ou voluntário; exceptua-se a legitimidade plural (…), a qual é suprível”, apud Viriato Lima, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág.218).
8 Autor e ob. cit., pág. 218.
9 Abílio Neto, C.P.C. anotado, 21ª edição, pag. 491.
10 Ac. do TSI, de 3/04/2014, Proc. nº 628/2013; Na jurisprudência comparada, v.g., Ac. da RL, de 13/05/2008, Proc. nº 7651/2007.
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