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Processo n.º 140/2013
(Recurso cível)

Relator: João Gil de Oliveira

Data : 19/Junho/2014


ASSUNTOS:
- Mandato com representação e sem representação; com e sem poderes
- Direito: certeza ou justiça?
- Forma e abuso de direito
- Admissibilidade da prova nos negócios formais
- Abuso de direito; venire contra factum proprium
    
    
    SUMÁRIO :
    
    Se o A. incumbe a Ré de o representar na celebração de um contrato-promessa de compra de uma fracção autónoma, em determinado prédio, com o preço por pé quadrado até HKD 2.500,00;
    Se para tanto celebra o contrato com os respectivos requisitos formais e dá uma ordem de pagamento à Ré de HKD $100.000,00 de forma a sinalizar a sua vontade de realizar o negócio que se propôs;
    Se esta, dando execução ao mesmo, informa o A. que não conseguiu uma fracção por aquele preço, ficando o A. ciente, no dia da abertura das propostas, ali se encontrando presente, que o preço era o de HKD$3.081,00 por pé quadrado;
    Se, instado por um representante da Ré, se queria comprar por aquele preço, pois se não quisesse ser-lhe-ia devolvido o depósito antecipado e o negócio não seria realizado, o A. disse que sim;
    Se o negócio foi, pois celebrado, sob as novas instruções do A.;
    Se este se arrepende posteriormente, e pretende dar o dito por não dito e resolver o negócio;
    Ressaltando deste relato o facto de o A. negar a contra-ordem dada, facto que se veio a provar, razão que conduziu à sua condenação por litigância de má-fé no processo,
    Estaremos perante uma situação de abuso de direito no modalidade de venire contra factum proprium paralisante das consequência decorrentes do vício de forma.
    
              O Relator,

           João A. G. Gil de Oliveira
           
           
           
           
           
           
Processo n.º 140/2013
(Recurso Cível)
Data : 19/Junho/2014

Recorrente - B物業 (澳門) 有限公司,
       - em português “C Imobiliária (Macau) Limitada” e,
       - em inglês “C Realty (Macau) Limited

Recorrido - D (D)

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO


1. No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV2-10-0068-CAO, do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

«I – Relatório:
  D (D), casado, de nacionalidade chinesa, portador do bilhete de identidade de residente da República Popular da China n.º 44040119XXXXXXXXXX e residente 廣東省......市......區......鎮......路...巷...號;
  Veio intentar a presente
  Acção Ordinária
  contra
  B物業 (澳門) 有限公司, em português “C Imobiliária (Macau) Limitada” e, em inglês “C Realty (Macau) Limited, com sede em 澳門......大馬路...號......地下...室,
  com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 9
  concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada a presente acção e, em consequência:
1. Declarado resolvido o contrato no qual o Autor deu poderes à Ré;
2. Ser à Ré condenada a devolver ao Autor a ordem de pagamento a favor da Companhia de Construção e Investimento Predial F Limitada, que este lhe entregou para a aquisição em seu nome de uma fracção autónoma ou devolver ao Autor o montante de HK$100.000,00, acrescida de juros desde a citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento; e
3. Ser considerado ineficaz em relação ao Autor o contrato de promessa de compra e venda que foi celebrado entre a Companhia Construtora Companhia de Construção e Investimento Predial F Limitada e a Ré em representação do Autor.
*
  A Ré contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 24 a 35 dos autos.
  Concluiu pedindo que seja julgado improcedente os pedidos do Autor.
*
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam".
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
  *
  Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
***
II – Factos:
  (…)
III – Fundamentos:
    Cumpre analisar a matéria que vem alegada, os factos provados e aplicar o direito.
    O Autor, alegando ter estabelecido um acordo com a Ré nos termos do qual aquele incumbiu esta de o representar na celebração de um contrato-promessa de compra de uma fracção autónoma, com específicas instruções acerca do preço e das características do objecto a adquirir, veio pedir a resolução desse acordo bem como a restituição da coisa entregue à Ré para a execução do mesmo, por alegadamente a Ré ter actuado fora dos limites por si estabelecidos ao adquirir um imóvel que não estava em conformidade com as instruções dadas.
    Contestando a acção, vem a Ré reconhecer apenas parte dos factos alegados pelo Autor impugnando os restantes. Pois, aceita que havia um acordo entre as partes nos termos indicados pelo Autor tendo este até entregue à Ré uma ordem de pagamento no valor de HK$100.000,00 para ser entregue à promitente vendedora. Porém, sustenta que o preço e as características do bem a prometer comprar foram depois alterados pelo próprio Autor tendo a Ré, na sequência dessa alteração, adquirido uma fracção autónoma de acordo com as novas instruções.
*
    Antes de mais, cabe aqui apurar que tipo de relação foi estabelecida entre as partes.
    Como foi referido, as partes estão de acordo quanto à celebração do acordo em que a Ré foi incumbida de celebrar um contrato-promessa, em representação do Autor, a fim de comprar uma fracção autónoma a uma determinada concessionária de um prédio e quanto à entrega da ordem de pagamento. O que separa as partes são os concretos contornos das instruções dadas pelo Autor e a observação ou não destas instruções por parte da Ré quando o contrato-promessa foi celebrado.
    Nos termos do artigo 1083º do CC, “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticas um ou mais actos jurídicos por conta de da outra.”
    Estipula, por outra banda, o artigo 1104º, nº 1, do CC que “Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é aplicável ao mandato o disposto no artigo 251º e seguintes.”
    Por sua vez, dispõe o artigo 255º, nº 1, do CC que “Diz-se procuração o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente poderes representativos.”
    Por força dos factos acima referidos e o disposto nas normas transcritas, vê-se que entre as partes existe uma relação de mandato com representação sendo o Autor o mandante e representado e a Ré a mandatária e representante.
*
    Apesar de grande parte dos factos alegados pela Ré em sua defesa ter sido considerada provada, a pretensão desta de ver os pedidos do Autor improceder não colhe.
    Senão, vejamos.
    Como foi já referido, entre as partes foi estabelecido um mandato com representação. Assim, a Ré, enquanto mandatária e representante, deve praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do Autor e comunicar-lhe, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu – cfr. artigo 1087º, a) e c), do CC.
    Está assente que, em 8 de Março de 2010 o Autor tinha dado instruções à Ré para adquirir em seu nome uma fracção autónoma do prédio de determinada concessionária designada por D ou F do piso de altura média pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00.
    Essas instruções constam, aliás, do documento junto pelo Autor a fls 13.
*
    A propósito desse documento, veio a Ré suscitar o problema do vício de forma do negócio jurídico que titula.
    Não colhe essa arguição.
    O negócio jurídico titulado por esse documento é um mandato com representação acima referido.
    Dispõe o artigo 251º, nº 2, do CC, que “Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.”
    No que se refere ao contrato de mandato, a lei não prevê especial forma para a sua celebração salvo quando forem concedidos poderes de representação ao mandatário – cfr. artigo 1104º, nº 1, do CC.
    Por a Ré ter sido incumbida de celebrar um contrato-promessa de compra de um imóvel em nome do Autor, o artigo 404º do CC em conjugação com o artigo 866º do mesmo Código e artigo 94º, nº 1, do Código do Notariado, exige que a atribuição dos poderes em questão bem como o mandato conste de documento assinado pelo representado.
    Do documento junto a fls 13, vê-se que tanto o Autor como a Ré assinaram-no. Pelo que, nada a apontar quanto à validade formal do negócio jurídico celebrado entre as partes.
*
    Assente a validade formal do acordo de 8 de Março de 2010, urge aquilatar qual era o seu teor à data em que a Ré celebrou o contrato-promessa em nome do Autor.
    Quanto a isso, está assente que, depois da formalização do mandato nos termos acima referidos, a Ré procurou informar o Autor acerca da subida de preço unitário. Ora, isso demonstra o cumprimento do dever de informação a que se refere o artigo 1087º, c), do CC, por parte da Ré.
    Além disso, está provado que, 3 dias depois disso, o Autor foi informado pela Ré de que havia uma fracção autónoma disponível de preço unitário mais alto e características diferentes dos que o Autor tinha fixado ao celebrar o mandato com representação e foi convidado a decidir se optaria por esta fracção ou desistir da opção de compra. Ora, isso demonstra novamente o cumprimento do dever de informação acima referido.
    Finalmente, está provado que, em 11 de Março de 2010, o Autor acabou por aceitar comprar a fracção autónoma disponível de preço unitário mais alto. Foi nessa altura que as instruções dadas pelo Autor passaram a ser as defendidas pela Ré.
Ora, foi com base nisso que a Ré se defende. Pois, sustenta que exerceu o mandato segundo as instruções dadas ao prometer comprar em nome do Autor a referida fracção autónoma tendo para isso entregue a ordem de pagamento de HK$100.000,00 à promitente vendedora. Segundo a Ré, nunca houve abuso do mandato como acusa o Autor.
Conforme esses factos, a Ré efectivamente cumpriu os termos do mandato depois da alteração ocorrida em 11 de Março de 2010. No entanto, convém relembrar que a lei exige uma forma especial ao negócio jurídico celebrado entre as partes. Como já referido mais acima, a lei exige que a atribuição de poderes representativos seja feita através de documento assinado pelo representado.
Retira-se das respostas aos quesitos 4º e 5º da base instrutória que as alterações às instruções não constam de qualquer documento assinado pelas partes. Ora, nos termos do artigo 212º do CC, “A declaração negocial que careça da formal legalmente prescrita é nula, quando outra não seja a sanção especialmente prevista na lei.”
Apesar de nenhuma das partes ter suscitada a questão do vício de forma do acto em que o Autor alterou as instruções constantes do documento de 8 de Março de 2010 (e não a do próprio contrato de mandato e procuração constante desse mesmo documento), ainda assim, este tribunal pode conhecer oficiosamente a respectiva nulidade por força do disposto no artigo 279º do CC.
Sendo nula essa alteração do mandato e da procuração através da qual o Autor passaria a conferir poderes à Ré para o representar na aquisição da fracção do 23º andar “E”, pelo preço do pé quadrado, no valor de HKD3.081,00, a mesma não produz qualquer efeito. Pois, “O negócio nulo não produz, desde o início (ab initio), por força da falta ou vício de um elemento interno ou formativo, os efeitos a que tendia.” – cfr. Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição actualizada, Coimbra Editora, Limitada, pg 610.
Assim, o mandato e os poderes conferidos pelo Autor à Ré em 8 de Março de 2010 para o representar na aquisição de uma fracção autónoma designadas por D ou F dos pisos de altura média pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00, através do documento de fls 13, mantêm-se inalterados por não as novas instruções dadas verbalmente pelo Autor no dia 11 de Março de 2010 não terem sido validamente emitidas. Isto é, a Ré continuava a estar adstrito a representar o Autor a prometer comprar em seu nome uma fracção autónoma do prédio de determinada concessionária designada por D ou F do piso de altura média pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00.
Consequentemente, ao adquirir, em nome do Autor, a fracção do 23º andar “E”, pelo preço do pé quadrado, no valor de HKD3.081,00, a Ré praticou um acto não compreendido no mandato ou não conforme as instruções do mandante em violação do disposto no artigo 1087, a), do CC.
*
Pede o Autor que seja declarado resolvido o contrato celebrado entre as partes e a Ré condenada a devolver a ordem de pagamento ou o montante de HK$100.000,00 acrescido de juros desde a citação.
Dispõe o artigo 790º do CC que “1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação. 2. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.”
Flui da análise acima feita e tendo em conta o preceito acima transcrito, dúvidas não restam de que assiste ao Autor o direito de resolver o contrato de mandato celebrado entre as partes.
Quanto à devolução da ordem de pagamento, resulta do documento de fls 37 que a Ré entregou a mesma à promitente vendedora quando celebrou o contrato-promessa de compra e venda em representação do Autor. Assim, é-lhe impossível restituí-la ao Autor.
Preceitua o artigo 427º do CC que a resolução é equiparada à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, quanto aos efeitos.
Segundo o artigo 282º, nº 1, do CC, “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”
Face à situação acima relatada, cabe à Ré restituir o valor de HK$100.000,00 constante da ordem de pagamento.
No que se refere aos juros da quantia a restituir, por força do artigo 793º, nº 1, do CC, a Ré deve reparar os danos causados ao Autor pela mora na restituição da ordem de pagamento ou da quantia de HK$100.000,00. Conforme o artigo 795º, nº 1, do CC, “Na obrigação pecuniária a obrigação corresponde aos juros a contar do dia da constituição da mora.”
    Está provado que em 19 de Março de 2010, o Autor enviou uma carta à Ré informando-a que revogava os poderes de representação e solicitou a esta para lhe devolver a ordem de pagamento.
    Tendo em conta o que se pretendia com esses actos, deve-se configurar a declaração de revogação como sendo a de resolução do mandato e a de solicitação de devolução como sendo interpelação da Ré.
    Flui da análise acima feita que a obrigação de restituir o valor correspondente se constituiu com a resolução do contrato de mandato.
    Segundo o artigo 794º, nº 1, do CC, “O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.”
Assim, deve, em princípio, a Ré pagar juros depois de o Autor depois de interpelada para restituir a ordem de pagamento. Pois, feita tal interpelação em 19 de Março de 2010 sem que tivesse sido entregue a ordem de pagamento, a Ré constituiu-se em mora.
    No entanto, o Autor apenas pediu que os juros sejam contados a partir da citação da Ré, ou seja, a partir de 11 de Outubro de 2010 visto que, conforme o aviso de recepção de fls 23, a Ré foi citada em 10 de Outubro de 2010.
Nos termos do artº 564º, nº 1, do CPC, “A sentença não pode condenar em quantidade superior ... do que se pedir.”
    Pelo que, a Ré é apenas condenada a pagar juros legais desde 11 de Outubro de 2010.
*
  Litigância de má fé do Autor
Pede a Ré que o Autor seja condenado como litigante de má fé por ter formulado pedido que sabia não ter fundamento, ter alterado a verdade dos factos e ter feito um uso reprovável do processo.
Nos termos do artigo 385º, nº 2, do CPC, “Diz-se litigante de má fé que, com dolo ou negligência grave a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
Da análise acima feita, vê-se que o pedido de condenação do Autor como litigante de má-fé não pode proceder com os fundamentos constantes das alíneas a) e d), visto que os pedidos principais do Autor são procedentes.
O mesmo já não acontece com o fundamento previsto na alínea b) do preceito transcrito. Com efeito, resulta dos articulados apresentados pelo Autor que o mesmo sempre negou que a Ré lhe tinha prestado novas informações acerca da alteração do preço unitário e acerca das fracções autónomas disponíveis e que ele mesmo tinha alterado as instruções anteriormente dadas, quando a matéria assente demonstra claramente que o Autor tinha sido informado da situação e tinha dado novas instruções à Ré para celebrar o contrato-promessa que esta efectivamente celebrou. Dos articulados apresentados pelas partes, vê-se que Autor além de ter omitido factos relevantes para a decisão da causa, alterou a verdade dos mesmos mesmo quando foi confrontado com a verdade dos factos.
Assim, é de condenar o Autor como litigante de má fé.
    Nos termos do artigo 385, nº 1, do CC, “Tendo litigado de má fé, a parte é condenada em multa.”.
    Tendo em conta a situação dos autos, julga-se adequada uma multa de 20 UCs.
Pede a Ré que o Autor seja condenado no pagamento numa indemnização em valor a liquidar em execução de sentença fundamentando isto no facto de não conseguir apresentar qualquer valor a não ser o das despesas judiciais ou extra-judiciais e honorários apesar de se sentir com o direito de reclamar uma indemnização por danos patrimoniais.
Não assiste qualquer razão à Ré para formular este último pedido.
Em primeiro lugar, pode-se retirar daquilo que a própria Ré alega que a mesma detém dados relativos aos valores das despesas judiciais e extrajudiciais e dos honorários. Assim, cabe à mesma alegar os respectivos factos para o efeito pretendido. Nenhum motivo se vislumbra para relegar a sua fixação para uma fase posterior.
Quanto aos danos não patrimoniais, uma vez que a Ré nem sequer invocou qualquer facto impeditivo para a invocação e determinação destes danos, em especial no que concerne à sua natureza ou características, não se vislumbra por que razão eventuais esses factos não podem ser alegados nesta fase. É que, uma coisa são os exactos contornos dos danos, por exemplo extensão, intensidade, etc, outra é o tipo ou características desses danos, por exemplo dores, incómodos, danos à reputação, etc. A Ré só se pode sentir no direito de ser ressarcida de tais danos, se sentir tais danos. Se realmente se sentir tais danos, pode e deve descrever tais danos ainda que incapaz de precisar a sua exacta extensão e intensidade porque ainda persistem. Não tendo assim feito, não pode este Tribunal afirmar pela existência de tais danos. Consequentemente, não pode relegar a fixação do quantitativo da indemnização para uma fase posterior.
*
  Litigância de má fé
   Pede o Autor que a Ré seja condenada como litigante de má fé por esta ter alterado a verdade dos factos.
   Flui da exposição feita até agora que foi o Autor quem alterou a verdade dos factos.
   Nestes termos, improcede o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé.
***
IV – Decisão (裁 決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga procedente a acção por provada, em consequência, e decide:
1. Declarar resolvido o contrato celebrado entre o Autor,D, e a Ré, C Imobiliária (Macau) Limitada, em 8 de Março de 2010;
2. Condenar a Ré a restituir ao Autor a quantia de HK$100.000,00, acrescida de juros à taxa legal contados a partir de 11 de Outubro de 2010, até integral e efectivo pagamento; e
3. Condenar o Autor como litigante de má fé na multa de 20 UCs.
    Custas pela Ré.
    Registe e Notifique.
*
  據上論結,本法庭裁定訴訟理由成立,裁決如下:
1. 宣告解除原告D與被告B物業 (澳門) 有限公司於2010年3月8日訂立的合同;
2. 判處被告向原告退還港幣100,000.00元,附加自2010年10月11日起按法定利率計算之遲延利息,直至全數及實際支付為止;
3. 判處原告為惡意訴訟人,判罰繳付20UC。
*
  訴訟費由被告承擔。
  依法作出通知及登錄本判決。»


2. Não se conformando com o decidido, veio a Ré recorrer da mesma sentença concluindo e pedindo:

“1ª - O artº 212º do C. C. não pode ser aplicável ao caso sub judice, uma vez que o documento de fls. 13 dos autos representará, quando muito e nas concretas circunstâncias do negócio, uma mera intenção de adquirir uma fracção, mas não uma procuração;
2a - Do documento de fls. 13, resulta que o negócio tinha duas fases de concretização;
3a - Uma primeira fase, anterior à abertura ao público da venda das fracções daquela urbanização (redacção dada ao penúltimo período do texto transcrito);
4a - Uma segunda, coincidente com a abertura ao público dessa venda (redacção dada ao último período do excerto reproduzido);
5ª - Na primeira fase, os interessados manifestavam o seu interesse num determinado tipo de fracção, em piso mais elevado ou mais baixo, com área maior ou menor, indicando quanto estariam dispostos a pagar por essa fracção com as características por si definidas, fase essa em que o vendedor procederia à respectiva venda, tendo em atenção o preço mais elevado oferecido pelos interessados para aquela fracção (daí os termos em que o penúltimo período do texto acima transcrito parece ter sido redigido);
6a - Uma segunda fase, que decorreria no acto de abertura da venda ao público, para os interessados que, não tendo oferecido um preço suficientemente competitivo, se vissem remetidos para este período;
7ª - Se o interessado comprador, não tendo conseguido obter, na 1ª fase, o tipo de fracção em que estava interessado, não solicitasse a devolução do depósito realizado, o mesmo depósito seria considerado como automaticamente válido para a 2a fase, no decorrer da qual ou decidia adquirir uma fracção com características e preço diferentes daquela a que inicialmente se candidatara, ou não estando interessado nessa aquisição, obteria a devolução do depósito, a efectivar pelo vendedor,·
8ª - Como bem resulta dos factos dados como provados, a A. interveio em toda a actividade que se desenvolveu, com excepção do contrato-promessa celebrado entre a firma construtora, “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA” e a R., C IMOBILIÁRIA (MACAU) LIMITADA, em representação do A., em 15/03/2010;
9ª - Este último contrato foi celebrado com base em instruções dadas verbalmente pelo A. à R., tanto no que diz respeito à localização da fracção, como no que concerne ao preço fixado;
10ª - Não obstante essas instruções não terem sido formalizadas por escrito, o contrato-promessa respeitante à aquisição da fracção do 23° andar "E", pelo preço de HKD3.081,00 por pé quadrado, crê-se ser plenamente eficaz em relação ao A.;
11ª - Pacífica se afigura a afirmação sobre quem detinha poderes de disposição sobre a fracção em causa: a firma construtora da urbanização, “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA”;
12ª - E foi com esta que a R., ora recorrente, celebrou o contrato-promessa de compra e venda, em 15 de Março de 2010, respeitante à fracção acima identificada;
13ª - Tenha-se igualmente presente que foi a favor da firma construtora da urbanização, "COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA", que o A. emitiu a ordem de pagamento no montante de HKD100.000,00;
14ª - Retenha-se, por outro lado, que o A. desistiu da compra da fracção que inicialmente tinha escolhido, tendo optado por uma outra, embora de preço mais elevado;
15ª - Tal opção foi feita de forma muito clara no dia 11 de Março de 2010, data em que teve lugar a abertura oficial da venda ao público das fracções autónomas da referida urbanização, evento esse que, tal como ficou provado na resposta dada pelo tribunal a quo ao quesito 2° da Base Instrutória, teve lugar no ...° andar “...”: do edifício “...... Center of Macau”;
16ª - Esse endereço era o escritório da empresa G, Ltd., que havia sido contratada pela construtora, "COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA", na qualidade de consultora de marketing para a urbanização denominada “XXXXXX”, conforme bem se alcança da cópia do respectivo contracto e, bem assim, do folheto de divulgação do empreendimento, que se juntam e aqui se dão, para todos os devidos e legais efeitos, por integralmente reproduzidos (docs. 1 e 2);
17ª - Acresce ainda, como bem resulta da cópia do respectivo contrato, a empresa G, Ltd. (a quem a “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA” conferiu em exclusividade a competência para coordenar todas as vendas respeitantes à urbanização denominada "XXXXXX”), convidou a ora recorrente (e mais 3 agências imobiliárias de Macau) a participar(em), como intermediária(s), na venda das fracções daquela urbanização (cfr. doc. 1);
18ª - Certo é que a postura da R., que inicialmente escolheu um determinado tipo de fracção seguindo as instruções iniciais do A. (cfr. fls. 13 dos autos), passou depois a optar pela fracção que vem referida no contrato-promessa assinado entre a firma construtora da urbanização, “COMPANHIA DE CONSTRUÇÃO E INVESTIMENTO PREDIAL F LIMITADA”, na qualidade de promitente-vendedora, e a ora recorrente, na qualidade de representante do A., promitente-comprador (cfr. fls. 17 e 18 dos autos);
19ª - Atentas as circunstâncias acabadas de referir, afigura-se inteiramente legítimo sustentar que é de aplicar, ao caso em análise, o regime constante do artº 261º, nº 2, do C. C.;
20ª - A previsão contida no artº 261º, nº 2, do C.C., inequivocamente aponta para a solução que esse Venerando Tribunal certamente acolherá, e que tem a virtualidade de proteger devidamente a boa-fé tanto da devedora como da R., ora recorrente, sendo certo que se afigura dificilmente aceitável deixar os seus interesses desprovidos da necessária tutela jurídica;
21ª - Convirá recordar que a disposição legal transcrita, o nº 2 do artº 261° do C.C. vigente, é nova em relação ao correspondente artigo (268°) do Código Civil de 1966;
22ª - O legislador do Código Civil vigente tomou certamente em conta as especificidades de Macau, designadamente na área dos negócios, onde se impõem tomadas de decisão rápidas se a intenção for a de continuar na vanguarda da concorrência;
23ª - A observância de rigores formalistas excessivos pode, para além de inadequada em termos de eficiência, tornar-se (assim o demonstra os presentes autos), uma verdadeira perversidade, pelo iníquo resultado que produziu, o qual poderá ser eventualmente aceitável em termos de interpretação da lei, mas seguramente se encontra a anos-luz de distância da administração de sã justiça, fim último dos tribunais;
24ª - Acresce a ironia suprema do A. ganhar uma acção, quando nela condenado foi por ter-se dado como provado ter litigado de má-fé;
25ª - Apesar do A. ser alheio à argumentação acolhida na douta sentença sub judice, não pode a R. deixar de invocar a figura do abuso de direito por banda do A., o que faz a título subsidiário;
26ª - Mesmo que se entendesse ter o A. passado mandato a favor da R. para intervir no negócio, tendo por objecto a fracção inicialmente escolhida, e não tendo feito o mesmo relativamente à fracção que consta do contrato-promessa de fls. 17 e 18 dos autos, o A. incorreu em situação de venire contra factum proprium, pelo que é legítimo invocar-se aquela figura, tal como se encontra recortada no artº 326º do C. C., que aqui se dá por reproduzido;
27ª - Torna-se necessário, pois, um mais objectivo enquadramento jurídico dos factos que foram dados por provados, os quais impõem que a solução a dar ao caso sub judice seja coincidente com a posição defendida pela R. na sua contestação;
28ª - Foi violado o nº 2 do artº 261º do Código Civil;
29ª - Foi violado o artº 326º do mesmo diploma legal.
Nestes termos,
Nos mais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs., Senhores Juízes, deverá:
a) ser dado provimento ao presente recurso;
b) consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida, mantendo, todavia, a condenação do A. como litigante de má-fé; e
c) julgar-se improcedente a acção intentada pelo A., assim dando satisfação às pretensões da R., ora recorrente. “


3. Ao recurso não respondeu o Autor.


4. Foram colhidos os vistos legais.

5. O Mmo Juiz primeiro relator do processo apresentou inicialmente à Conferência douto projecto de acórdão, pronunciando-se a final pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida, cuja fundamentação se passa a transcrever :
    
    «Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
    
    Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
    
    Em face das conclusões na petição de recurso, são as seguintes questões que constituem objecto do recurso da nossa apreciação:
    
    1. Da qualificação jurídica do negócio celebrado entre o Autor e a Ré; e
    
    2. Da interpretação do teor do negócio.
    
    Apreciemos.
    
    Na primeira instância, ficou assente a seguinte matéria de facto, não impugnada por via do presente recurso:
    
    (…)
    
    Da qualificação jurídica do negócio celebrado entre o Autor e a Ré
    
    Sinteticamente falando, foi com fundamento na actuação por parte da Ré fora dos limites fixados no acordo celebrado entre eles, na celebração, em nome e por conta do Autor, de um contrato-promessa para a aquisição de uma fracção autónoma cujo preço acordado não estava em conformidade com as instruções dadas pelo Autor à Ré, que o Autor pediu ao Tribunal que decretasse a resolução do negócio e determinasse a restituição do cheque entregue pelo Autor à Ré que servia do sinal do contrato-promessa.
    
    Ante a matéria de facto provada, o Tribunal a quo qualificou o negócio celebrado entre o Autor e a Ré, ora constantes das fls. 13 dos presentes autos, como mandato com representação, pois na óptica do Tribunal a quo, foi através desse negócio que o Autor incumbiu a Ré de o representar na celebração de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, com condições e instruções específicas acerca do preço e das características do objecto a adquirir.
    
    De acordo com o clausulado no negócio, a Ré foi incumbida pelo Autor em sua representação de adquirir uma fracção autónoma pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00.
    
    Posteriormente, o Autor confirmou verbalmente o seu interesse na compra da fracção do 23º andar “E”, aceitando o novo preço do pé quadrado, no valor de HKD3.081,00.
    
    Foi com base nessa confirmação verbal, a Ré agiu em nome do Autor celebrando com o vendedor o contrato-promessa em que foi acordado o preço do pé quadrado no valor de HKD3.081,00.
    
    Apesar de ter agido de acordo com essa instrução verbal dada pelo Autor, o Tribunal a quo entende que a Ré agiu sempre fora dos limites do mandato, uma vez que tendo em conta a natureza do seu objecto, ou seja, a celebração de um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, o mandato celebrado entre o Autor e a Ré é um negócio formal, isto é, só vale se constar de um documento assinado por eles, mandante e mandatário, nos termos prescritos nos artºs 404º do CC, em conjugação com o artº 866º do CC e artº 94º/1 do Código de Notariado.
    
    Não tendo sido feita constar de um documento assinado, é nula a tal instrução para aceitar o preço mais elevado.
    
    Portanto, o Tribunal a quo concluiu pela violação do mandato por parte da Ré e com fundamento nisso decidiu resolver o mandato e determinou a restituição do cheque.
    
    Inconformada com o assim decidido, veio a Ré ora recorrente defender que o documento assinado não é mais do que uma mera intenção de adquirir um fracção, mas não uma procuração, portanto não sujeita a forma legal.
    
    Antes de mais, é de salientar que uma coisa é mandato, outra coisa é procuração, eles são negócios jurídicos distintos.
    
    A lei define o mandato como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra.” – artº 1083º do CC.
    
    Ou seja, um negócio bilateral cuja feitura requer a convergência da vontade de ambos os contraentes.
    
    Ao passo que a procuração é o instrumento através do qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos – artº 255º/1 do CC.
    
    É verdade que em grande número de casos, os dois negócios jurídicos aparecem associados. Ao lado do mandato, que impõe ao mandatário a obrigação de celebrar um acto por conta do mandante, existe a procuração, que, uma vez aceita, obriga o mandatário-procurador, em princípio, a celebrar o acto em nome e por conta do mandante (mandato representativo), pois para que o mandatário possa agir em nome do mandante, é necessária uma procuração pela qual se atribuam ao mandatário poderes representativos, sem a qual, o mandatário só pode celebrar o negócio em seu nome e por conta do mandante (mandato sem representação), mas sem em nome deste – nesse sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, anotações aos artºs 1178º e 1179º.
    
    Ora ficou provado que:
    
- Após consultada do preço das fracções, o que foi indicado pelo Sr. H, o pé quadrado de cada uma das fracções autónomas seria entre HKD2.400,00 a HKD2.500,00, o AutorD (D), respondeu que o máximo que estaria disposto a pagar o preço seria HK$2.500,00 por pé quadrado (alínea E) dos factos assentes).
- O Sr. H e o Autor regressaram aos escritórios da firma na Taipa e acordaram que o Autor autorizava o Sr. H em sua representação a subscrever a aquisição de uma fracção autónoma pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00 e este lhe entregaria uma ordem de pagamento no valor de HK$100.000,00 emitida a favor da “Companhia de Construção e Investimento Predial F Limitada”, como intenção do sinal de pagamento inicial de uma fracção autónoma (alínea F) dos factos assentes).
    
    E o acordo ai referido foi materializado no documento ora junto aos autos a fls. 13, cuja veracidade não foi impugnada por qualquer das partes e que tem o seguinte teor:
    
    現授權予B澳門有關人等代辦〈XXXXXX〉第一座及第五座認購單位事宜,本人/吾等所開支票/本票抬頭【F建築置業有限公司】,金額為港幣壹拾萬元正(HK$100,000.00),以作上述用途。買方若未能成功認購上述單位,B澳門將無息退還支票/本票予買方,買方亦不需支付任何費用予B澳門。但倘若發展商將買方之支票/本票自動撥作公開發售用途,則買方將會按照發展商之指示收回支票/本票。
    
    Dando uma vista de olhos ao teor desse documento e associando-o a esta parte da matéria de facto provada, salta à vista que, ao contrário do que defende a recorrente, o Autor e a Ré celebrou um mandato representativo mediante o qual a Ré fica incumbida de celebrar um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma num complexo habitacional, em nome e por conta do Autor, nas condições nele especificadas, nomeadamente o preço máximo por pé quadrado e ao mesmo tempo e no mesmo documento o Autor conferiu os poderes necessários à Ré para o efeito.
    
    Nitidamente não estamos portanto perante a manifestação de uma mera intenção por parte do Autor de aquisição de um imóvel naquelas condições.
    
    Assim sendo, bem andou o Tribunal a quo ao qualificar esse acordo como mandato com representação.
    
    1. Da interpretação do teor do negócio
    
    Aqui a tese da recorrente consiste na existência de duas fases de concretização do acordado entre o Autor e a Ré.
    
    Diz a recorrente que “se o interessado comprador, não tendo conseguido obter, na 1ª fase, o tipo de fracção em que estava interessado, não solicitasse a devolução do depósito realizado, o mesmo depósito seria considerado como automaticamente válido para a 2a fase, no decorrer da qual ou decidia adquirir uma fracção com características e preço diferentes daquela a que inicialmente se candidatara, ou não estando interessado nessa aquisição, obteria a devolução do depósito, a efectivar pelo vendedor.”.
    
    Todavia, basta dar uma vista de olhos ao acordado materializado no documento ora junto aos autos a fls. 13, cuja veracidade não foi impugnada por qualquer das partes, verificamos que a tese da recorrente não tem o mínimo suporte quer nas letras quer no espírito do acordo considerado no seu conjunto.
    
    E para nós, a interpretação feita pela recorrente do teor do acordo é apenas a mera imaginação por parte da própria recorrente.
    
    O que nos dispensa logo de apreciar todas as outras razões invocadas pele Ré para sustentar o pedido do presente recurso, feitas apoiar nessa imaginação que não resulta minimamente quer da matéria de facto provada quer do próprio teor do acordo.
    
    Improcede assim também esta parte do recurso.
    
    Quod abundat non nocet, quanto às seguintes considerações afirmações tecidas pela recorrente nas suas alegações de recurso:
    
    23ª - A observância de rigores formalistas excessivos pode, para além de inadequada em termos de eficiência, tornar-se (assim o demonstra os presentes autos), uma verdadeira perversidade, pelo iníquo resultado que produziu, o qual poderá ser eventualmente aceitável em termos de interpretação da lei, mas seguramente se encontra a anos-luz de distância da administração de sã justiça, fim último dos tribunais;
    24ª - Acresce a ironia suprema do A. ganhar uma acção, quando nela condenado foi por ter-se dado como provado ter litigado de má-fé;
    
    A nós só cabe dizer que não compete ao Tribunal a tarefa de aperfeiçoar a lei através da interpretação contra-legem mas sim somente a boa aplicação da lei e que não tem sido objecto do recurso a condenação do Autor por litigância de má-fé, nenhumas considerações temos a tecer.
    
    Tudo visto, resta decidir.»
    

6. Discutido o projecto, vistas as divergências, o Juiz 1º Adjunto, passou a relatar o acórdão em função da posição que fez vencimento.
  
  II - FACTOS
   Vêm provados os factos seguintes:
  “Da Matéria de Facto Assente:
- Por contrato de concessão por arrendamento o Governo da R.A.E.M. concedeu à “Companhia de Construção e Investimento Predial F Limitada” o terreno no qual foi construído o edifício em regime de propriedade horizontal denominado edifício “XXXXXX”, sito no Quarteirão KL dos ...... da ......, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XXXX-III (alínea A) dos factos assentes).
- O Autor em fins de Fevereiro de 2010, deslocou-se a uma sucursal da Ré, sita na Taipa e contactou com o Sr. H – H1, funcionário da Ré, que os informou sobre as condições da venda das fracções autónomas do edifício “XXXXXX” e o seu preço (alínea B) dos factos assentes).
- Foi acordado que o Autor no dia 8 de Março de 2010 se deslocaria aos escritório da Ré, sita na Taipa onde trabalha o Sr. H – “H1, para este o acompanhar na visita ao andar modelo, que posteriormente iria ser semelhante a uma das fracções autónomas que a companhia concessionária iria construir para serem vendidas aos futuros promitentes compradores (alínea C) dos factos assentes).
- Deslocaram-se então ao andar modelo, e aí o Autor, manifestou a sua intenção de adquirir uma das fracções autónomas do prédio designadas por D ou F dos pisos de altura média (alínea D) dos factos assentes).
- Após consultada do preço das fracções, o que foi indicado pelo Sr. H, o pé quadrado de cada uma das fracções autónomas seria entre HKD2.400,00 a HKD2.500,00, o Autor D (D), respondeu que o máximo que estaria disposto a pagar o preço seria HK$2.500,00 por pé quadrado (alínea E) dos factos assentes).
- O Sr. H e o Autor regressaram aos escritórios da firma na Taipa e acordaram que o Autor autorizava o Sr. H em sua representação a subscrever a aquisição de uma fracção autónoma pelo preço de pé quadrado no valor HK$2.500,00 e este lhe entregaria uma ordem de pagamento no valor de HK$100.000,00 emitida a favor da “Companhia de Construção e Investimento Predial F Limitada”, como intenção do sinal de pagamento inicial de uma fracção autónoma (alínea F) dos factos assentes).
- O AutorD (D) deslocou-se a uma sucursal do Banco da China e aí solicitou a emissão de uma ordem de pagamento no valor de HK$100.000,00 a favor da concessionária do terreno “F建築置業有限公司”, por ser a proprietária do edifício “XXXXXX”, em virtude deste edifício se encontrar construído em terreno concedido pelo Governo da R.A.E.M. (alínea G) dos factos assentes).
- E entregou a ordem de pagamento no valor de HK$100.000,00 ao Sr. H – H1 para este ir à companhia construtora adquirir em nome do Autor uma fracção autónoma, pelo preço de HK$2.500,00 por pé quadrado, conforme acordado (alínea H) dos factos assentes).
- O Autor em 19 de Março de 2010, enviou uma carta à 1ª Ré – “C Imobiliária (Macau) Limitada”, informando-a que não aceitava a alteração do valor do pé quadrado, motivo pelo qual declarava que deixava de estar interessado na aquisição pelo valor de HK$3.000,00 por pé quadrado, que é superior ao que estava disposto a pagar, conforme fora acordado entre ele e a Ré, representada por H – “H1, e informando-a ainda que, por esse motivo, revogava os poderes que tinham sido conferidos à sociedade intermediária Ré para o representar na aquisição de qualquer fracção autónoma (alínea I) dos factos assentes).
- E solicitou à Ré que lhe fosse devolvida a ordem de pagamento que lhe tinha entregue (alínea J) dos factos assentes).
- Após, o Autor, foi informado por funcionários da Ré – “C Imobiliária (Macau) Limitada”, que não poderia desistir da aquisição da compra da fracção e que teria de pagar o remanescente do preço de uma fracção com o valor de HK$3.000,00 por pé quadrado, caso contrário perderia o depósito – a ordem de pagamento emitida a favor da sociedade construtora (alínea K) dos factos assentes).
- A Ré, em representação do Autor na qualidade de promitente comprador, acordou a futura compra e venda da fracção autónoma do 23º andar “E” “23E”, com a sociedade construtora, na qualidade de promitente vendedora (alínea L) dos factos assentes).
- O Autor não ratificou o acordo que a Ré celebrou com a promitente vendedora (alínea M) dos factos assentes).
*
    Da Base Instrutória:
- Alguns dias após 08/03/2010, H contactou telefonicamente o sobrinho do Autor K, informando-o que o preço do pé quadrado das fracções que o Autor pretendia adquirir era superior a HKD$2.500,00, tendo o valor do é quadrado passado de HKD2.500,00 para HKD3.000,00 (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- Em 11 de Março de 2010, na data em que se verificou a abertura oficial da venda pública das fracções autónomas do prédio, que teve lugar, no ...º andar, sala “...” do edifício “...... Center of Macau”, escritório da empresa G, o Autor esteve presente nesse acto, no qual lhe foi comunicado que uma das fracções disponíveis, e que o Autor poderia adquirir, situava-se no 23º andar do edifício, correspondendo à letra “E”, com a área de 1.603 pés quadrados, e que o custo de cada pé quadrado era, para esse andar e tipo de fracção, de HKD3.081,00 (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Em 11/03/2010, aquando da abertura da venda das fracções ao público, o Autor foi convidado, por um dos empregados da Ré, a decidir se queria aceitar o negócio nas condições constantes no quesito 2º supra, ou se preferia desistir da opção de compra, circunstância em que lhe seria devolvida a ordem de pagamento no valor de HKD100.000,00 (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Nessa ocasião (11/03/2010), o Autor confirmou o seu interesse na compra da fracção do 23º andar “E”, aceitando o novo preço do pé quadrado, no valor de HKD3.081,00 (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- Foi só após a confirmação do Autor na compra daquela específica fracção, que a Ré assinou, em 15/03/2010, com a construtora e em representação do Autor, o contrato-promessa de compra e venda cuja cópia foi junta à p.i. sob o n.º 5 a fls. 17 e 18 (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Poucos dias após, mais exactamente em 19/03/2010, o Autor terá mudado de opinião, informando a Ré por escrito, através da carta referida em I) dos factos assentes, que desistia do negócio que, 8 dias antes, pessoalmente havia confirmado, aquando da abertura da venda pública das fracções (resposta ao quesito da 6º da base instrutória). “

III - FUNDAMENTOS

    1. O caso
     O A. incumbe a Ré de o representar na celebração de um contrato-promessa de compra de uma fracção autónoma, em determinado prédio, com o preço por pé quadrado até HKD 2.500,00.
    Para tanto celebra o contrato com os respectivos requisitos formais e dá uma ordem de pagamento à Ré de HKD $100.000,00 de forma a sinalizar a sua vontade de realizar o negócio que se propôs .
    Dando execução ao mesmo, aquela, através do seu representante informa o A. que não conseguiu uma fracção por aquele preço, ficando o A. ciente, no dia da abertura das propostas, ali se encontrando presente, que o preço era o de HKD$3.081,00 por pé quadrado.
    Instado por um representante da Ré se queria comprar por aquele preço, pois se não quisesse ser-lhe-ia devolvido o depósito antecipado, disse que sim.
    O negócio foi, pois celebrado, sob as instruções, as novas instruções do A.
    Este arrepende-se, posteriormente, e pretende dar o dito por não dito e resolver o negócio.
    Ressalta deste relato o facto de o A. negar a contra-ordem dada, facto que se veio a provar, razão que conduziu à sua condenação por litigância de má-fé no processo.
    
    2. Quid juris?
    
    Basicamente vêm colocadas duas questões:
    - Enquadramento jurídico da relação jurídica entre A. e Ré;
    - Abuso de direito do A. por venire contra factum proprium.
    
    O enquadramento jurídico do caso, no que concerne à configuração da relação jurídico-contratual existente, na sua validade e eficácia, está bem equacionado na fundamentação da douta sentença e na não menos douta posição expressa pelo Mmo Relator inicial, com a devida vénia acima transcritas.
    
    3. Mandato com representação ou sem representação? Com ou sem poderes?
    Não estamos seguros de estarmos perante um mandato com representação, com falta de forma em relação ao negócio que veio a ser celebrado, tal como configurado na douta sentença recorrida.
    Mandato com representação existe quando o mandatário realiza o negócio em nome do mandante e com os necessários poderes de representação.1 Mandato sem representação é aquele pelo qual uma pessoa – mandante – confia a outra – mandatário – a realização em nome desta, mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico relativo a interesses pertencentes à primeira, assumindo a segunda a obrigação de praticar esse acto; ou, dada a noção de interposição de pessoa, como o contrato pelo qual alguém se obriga a intervir, como interposta pessoa, na realização de acto jurídico que a esta respeita.2
    É verdade que mandato e procuração são institutos diferentes que não se confundem, embora na maior parte das vezes até coexistam.3 Mas se se entende que havia uma representação e se o âmbito dessa representação deixa de ser coberta pelo âmbito da forma legal, a partir do momento em que o mandatário compra a coisa por um preço superior, digamos que desaparece aí a representação devida, já que a representação sem poderes “tanto pode advir de não haver um título legítimo de representação (não há nenhum instrumento de procuração ou há uma procuração nula ou de o representado, havendo embora procuração, ter excedido os seus poderes.”4
    Por a ré ter sido incumbida de celebrar um contrato-promessa de compra de um imóvel em nome do autor, o artigo 404º do CC em conjugação com o artigo 866º do mesmo Código e artigo 94º, nº 1, do Código do Notariado, exige que a atribuição dos poderes em questão bem como o mandato conste de documento assinado pelo representado.
    Ou seja, a ré estava mandatada para adquirir a fracção, com poderes de representação até um determinado montante, e deixou de os ter a partir do momento em que o preço da aquisição deixou de estar coberto pelo âmbito do a procuração passada.
    Afigura-se-nos antes estarmos perante um mandato com poderes, mas por outra razão: é que vamos dar valor à declaração negocial que autoriza a compra por um valor superior, ainda que a descoberto da forma legal como adiante nos pronunciaremos.
    
    4. Pretende o recorrente reconduzir a situação ao regime do artigo 261º do Código Civil (CC), -
    
    “1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
2. Contudo, o negócio celebrado por representante sem poderes é eficaz em relação ao representado, independentemente de ratificação, se tiverem existido razões ponderosas, objectivamente apreciadas, tendo em conta as circunstâncias do caso, que justificassem a confiança do terceiro de boa fé na legitimidade do representante, desde que o representado tenha conscientemente contribuído para fundar a confiança do terceiro.
3. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva,sem prejuízo dos direitos de terceiro
    4. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito
    5. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante. “-
    
    aplicável ex vi art. 1104º, n.º 1 do CC.
    
    Dispõe o artigo 251º, nº 2, do CC, que
    “Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.” No que se refere ao contrato de mandato, a lei não prevê especial forma para a sua celebração salvo quando forem concedidos poderes de representação ao mandatário”
    – cfr. artigo 1104º, nº 1, do CC que dispõe:
    “1. Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos artigos 251º e seguintes.
    2. O mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada.”
    
    Não tem razão o recorrente, pois que não é aplicável o regime do artigo 261º, n.º 1 do CC, “ex vi” artigo 1104º, n.º 1, parte final do CC,.
    Isto, porque não se pode aplicar a um regime de mandato representativo com poderes uma norma respeitante à representação sem poderes, como é o artigo 261º.
    Para além de que o regime do mandato sem representação - art. 1106º e segs - tem um regime próprio que se aparta do da representação sem poderes.
    Para além de que a situação inovadora no Código Civil de Macau do n.º 2 do artigo 261º respeita a uma realidade diferente, perspectivando a protecção do terceiro de boa-fé, que tenha justificadamente confiado na legitimidade do representante, questão esta que aqui não se coloca, estando apenas em jogo a relação entre o mandante e o mandatário, não sendo o terceiro parte interveniente na acção.
    
    5. Certeza ou Justiça
    O ponto reconduz-se, assim, a saber - no segmento respeitante a uma declaração negocial do mandante em que passa a aceitar um preço mais elevado - se aí devem prevalecer as razões de forma e, consequentemente, de certeza, ainda num certo sentido, de segurança jurídica, ou se, ao invés, devem prevalecer as razões de justiça.
    Como sabemos os valores prosseguidos pelo Direito são por vezes conflituantes. 5
    A segurança jurídica implica que o Direito seja certo, que as normas sejam conhecidas, compreendidas e fixem com razoável previsão o que ordenam. Mas a segurança não se opõe a que a Administração ou os Tribunais, gozem de uma certa liberdade na aplicação das leis, que possuam uma certa elasticidade para permitir atender às particularidades dos casos concretos por elas regulados. A segurança supõe algo mais que a certeza, supõe que um conjunto de interesses do indivíduo estejam protegidos pelo Direito, para que haja uma existência humana digna. Esses interesses andam à volta da noção de liberdade e foram catalogados na famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789.
    Justiça é também sinónimo de legalidade, o Juiz tem de aplicar bem as leis e só as leis. O conceito de Justiça anda associado à preservação de valores como o da igualdade - o que é igual deve ser tratado como igual e proporcionalidade - a sanção tem de ser proporcionada ao acto que a determina. A justiça não é um valor abstracto, mas sim a expressão da vontade e do interesse geral. Daqui decorre ainda que uma obrigação que decorre da justiça é a obrigação de dar a cada um o que lhe é devido.
    E no plano da justiça individual, para além daqueles valores a prosseguir, há que acrescentar ainda a boa-fé e a protecção da confiança.6
    
    No balanceamento devido, somos a privilegiar, neste caso, estes valores.
    Afigura-se-nos que, ainda que a descoberto da protecção da forma, se o negócio foi celebrado foi porque o A. assim o quis.
    
    Claro, que não é fácil postergar facilmente o requisito da forma, sob pena de a certeza jurídica ser posta em crise a cada passo, ou seja, qualquer negócio formal passaria a ser válido se as partes decidissem não observar tal requisito.
    Pensamos, contudo, que cada caso é um caso. Quando na relação jurídica em presença não estejam envolvidos terceiros que possam ser prejudicados e quando a violação das regras de confiança seja grave, excedendo manifestamente os limites do fim social ou económico de um certo direito, os bons costumes e a lisura contratual, aferida pelo compromisso da palavra dada, para mais quando pela sua actuação o declarante conforma a actuação da parte contrária, e até dela pode eventualmente tirar proveito, estaremos perante uma situação de venire contra factum proprium, atentatória das regras da confiança, integrante de um abuso de direito e, como tal, paralisante das vantagens que se pretendem retirar de um mero vício de forma, cuja legitimação deve ceder perante a vinculação pessoal e substantiva.
    Tudo como decorre da melhor interpretação dos artigos 219º e 326º do Código Civil.
    
    6. Forma e abuso de direito
    Tem-se entendido que os efeitos da invalidade por vício de forma podem ser excluídos pelo abuso de direito.7, mas sempre em casos excepcionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, não se podendo banalizar o recurso a esta figura. 8
     Daí, muito compreensível a dissensão nas posições divergentes nas diferentes Instâncias.
    Encontramos na lição do Prof. Mota Pinto9 esclarecedoramente equacionada esta problemática:
    «Na doutrina nacional e estrangeira já se tem posto o problema de saber se a possibilidade de invocação da nulidade por vício de forma não pode ser excluída por aplicação da cláusula geral de boa fé ou do abuso de direito, entre nós sancionada no artigo [334º] … Deverá admitir-se a invocação da nulidade com fundamento em vício de forma1 quando essa invocação por uma das partes constitua um abuso de direito, isto é, quando o comportamento do invocante, globalmente considerado, seja intoleravelmente ofensivo do nosso sentido ético-jurídico? Assim, por exemplo, será verdadeiramente escandalosa, “excedendo” manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito", a arguição da nulidade, com fundamento em vício de forma, por um contratante que a provocou, fazendo como que falsificar por outrem a sua própria assinatura ou induzindo dolosamente a outra parte a não insistir pela formalização do negócio ou expectativa de que a nulidade jamais seria arguida, aceitando, v.g., públicos reiterados e dispendiosos testemunhos de gratidão por uma liberalidade feita, aliás sem a forma devida.
    “A doutrina, sobretudo estrangeira, discutiu o problema, Manuel de Andrade inclinava-se, embora não categoricamente, para a solução da improcedência da arguição da nulidade, quando esta arguição revista as características de um abuso de direito. Outros autores, porém, não admitem que o princípio do abuso de direito (boa fé) possa limitar a eficácia das normas que exigem a forma, dados os fins imperativos de segurança que estas têm em vista, pelo que devem ser estritamente aplicadas (“jus strictum”). Neste sentido é a posição de Larenz que, todavia, corrige a injustiça concreta resultante de indefectível aplicação das regras sobre o formalismo, impondo, em caso de abuso de direito, ao autor do abuso, a obrigação de indemnizar a outra parte pelo interesse negativo.
    “Parece preferível, embora o problema como caso-limite dê margem a largas dúvidas, a primeira solução. Sem dúvida que a aplicação das regras de forma pode conduzir a uma ou outra solução de menos equidade, não podendo, todavia, afastar-se a sua aplicação nesses casos, pois trata-se de um preço conscientemente pago para fruir o rendimento social correspondente às vantagens do formalismo negocial. É da essência do direito encarar as condutas “sub specie societatis” e não “sub specie individui”. Entre essas vantagens está a criação e tutela do valor da segurança jurídica, que só pode ser plenamente realizado, sacrificando o critério da “justiça de cada caso”. Tal consideração não exige, porém, que as regras de forma devam ser consideradas um “jus strictum”, indefectivelmente aplicado, sem qualquer subordinação a um principio supremo do direito, verdadeira exigência fundamental do “jurídico”, como é o do artigo [334º] (abuso do direito). O intérprete, desde que lealmente aceite como boa e valiosa para o comum dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está legitimado para, nos casos excepcionalíssimos do artigo 334º, afastar a sua aplicação, tratando a hipótese como se o acto estivesse formalizado, Aliás, os próprios autores, que sustentam o carácter de “jus strictum” das normas sobre a forma, procuram corrigir as escandalosas injustiças a que dá lugar o abuso do direito, através de uma indemnização do chamado “dano da confiança”. Ora, tal solução vulnerará menos a segurança e a certeza jurídica? Ou, não será, no fundo, uma atitude de “insincero respeito” pelo formalismo, elevado assim à categoria de dogma ou “tabu”, esvaziado de toda a racionalidade ? De qualquer modo a segurança da vida jurídica e a certeza do direito, sendo valores de importância fundamental na ordenação da vida social e compreendendo-se o seu acatamento mesmo que para isso se pague o tributo de alguma injustiça, não podem ser afirmados com sacrifício das elementares exigências do “justo”.»
     7. Admissibilidade da prova
    Independentemente da questão sobre a real nulidade da declaração negocial do A., autorizando a aquisição pelo preço superior, dando de barato esse vício, prevalecendo-se o A. do eventual défice formal decorrente de inexistir documento escrito que provasse o acordo de vontades, tendo-se assim, por verificado o interesse em se prevalecer do apontado vício formal, nem por isso seria de ter por procedente a tese do recorrente.
    Na verdade, a restrição e simultânea proibição probatória que decorre das disposições conjugadas dos arts. 357º, nº2, e 387º, nº1, do CC não significa que a prova testemunhal esteja totalmente banida do âmbito das acções em que se controvertam as consequências de se haver celebrado um contrato com preterição de escrito que constitua formalidade ad probationem para comprovação de determinados efeitos.
    Nada impede que para - demonstração de elementos consequenciais ou laterais à nulidade formal do negócio - se possa fazer uso, nos termos gerais, da prova testemunhal: é o que ocorre, por exemplo, com a demonstração destinada ao apuramento dos efeitos da declaração de nulidade, nos termos do art. 282º do CC, podendo a prova da prestação, para o efeito desta obrigação de restituir, ser feita por qualquer dos meios de prova admitidos em geral pela lei 10; ou com a prova dos pressupostos de uma possível responsabilidade pré contratual da parte que invoca a nulidade de um contrato que ela própria provocou culposamente ; ou – e é o caso dos autos - com a aferição de possível abuso de direito no exercício da faculdade potestativa de invocação da invalidade formal de negócio, envolvendo tal exercício insuportável lesão dos princípios da justiça e da confiança: para aferir de tal situação de abuso de direito, pode o tribunal proceder a um apuramento exaustivo e integral da situação litigiosa existente entre as partes, com recurso a quaisquer meios probatórios, sem que tal actividade instrutória possa sofrer os constrangimentos ou a compressão decorrentes da previsão da confissão como único meio legítimo para prova da declaração negocial sujeita legalmente a forma escrita como formalidade ad probationem.
    Na verdade, são planos perfeitamente diversos o da prova da própria declaração negocial sujeita a escrito como formalidade ad substantiam - a regra decorrente do art. 212º do CC - e o da prova dos pressupostos de um eventual abuso de direito na invocação do vício, traduzido na inexistência de documento escrito - só valendo quanto à primeira questão as limitações probatórias consignadas nas disposições atrás referenciadas do Código Civil; pelo contrário, para aferir do abuso de direito na invocação da insuficiência formal do acto não há qualquer restrição probatória quanto ao apuramento integral da situação litigiosa existente entre as partes, na medida em que tal se revelar indispensável à emissão de juízo seguro acerca do exercício abusivo do direito de invocação da nulidade formal em causa.
    E, decidida a questão do abuso de direito na invocação da insuficiência formal das declarações negociais, de duas uma:
    - ou se considera procedente o abuso de direito e, deste modo – paralisada a faculdade potestativa que a lei outorgava a uma das partes – o negócio informalmente celebrado estabiliza-se e sedimenta-se;
    - ou se julga improcedente a questão do abuso de direito e, neste caso, sendo lícita a invocação do défice formal das declarações negociais, estas só poderão efectivamente ser provadas por confissão do autor, tratando-se de uma formalidade ad probationem, face ao disposto no artigo 357º, n.º 2 do CC.
    Nada impedia, pois, que para apuramento da excepção de abuso de direito, invocada pela ré, se indagasse plenamente, mediante quaisquer meios probatórios e perante as posições contraditórias dos litigantes, das circunstâncias concretas que envolveram a aquisição da fracção, averiguando, nomeadamente, se teria havido algum acordo oral e informal entre as partes, qual o respectivo conteúdo e as exactas circunstâncias que teriam obstado à redução a escrito de tal acordo informal.
     Reportando-se aos casos excepcionais em que se justificasse a cedência da nulidade perante a proibição do venire, o Prof. Baptista Machado 11propõe o concurso dos seguintes pressupostos: a) ter a parte confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica; b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar posições que ora são irreversíveis, pelo que a nulidade provocaria danos vultuosos, agora irremovíveis através de outros meios jurídicos; e, c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades.
    Pela clarividência da abordagem de uma situação próxima, vamos continuar seguir o que expendido foi em acórdão já citado da Jurisprudência Comparada.12
    8. O abuso de direito. Venire contra factum proprium
    O abuso de direito – art. 326º do Código Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
    Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores. Mas não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, não sendo necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, basta que na realidade (objectivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, assim se acolhendo a concepção objectiva do abuso do direito.13
    O abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, caracteriza-se pelo exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.
    Como refere Baptista Machado, 14o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.”
O conceito de boa fé constante do art. 326º do Código Civil tem um sentido ético, que se reconduz às exigências fundamentais da ética jurídica, “que se exprimem na virtude de manter a palavra dada e a confiança, de cada uma das partes proceder honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do circulo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos”.15
    Para haver abuso do direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, é necessário saber se a conduta do pretenso abusante foi no sentido de criar, razoavelmente, uma expectativa factual, sólida, que poderia confiar na execução dos contratos promessa.
    Uma conduta para ser integradora do “venire” terá de, objectivamente, trair o “investimento de confiança” feito pela contraparte, importando que os factos demonstrem que o resultado de tal conduta constituiu, em si, uma clara injustiça. Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade, por “factum proprium” dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa. Não se busca o “animus nocendi” mas, e como acima se acenou, apenas um comportamento anteriormente assumido que, objectivamente, contrarie aquele.
    Para o Prof. Menezes Cordeiro 16“o venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”.
E o mesmo Professor considera 17que o “venire contra factum proprium” pressupõe: “1º- Uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no “factum proprium”); 2º- Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do “factum proprium” seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis”; 3º- Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do “factum proprium”, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo “venire”) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara; 4º- Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no “factum proprium”) lhe seja de algum modo recondutível.”
    A circunstância de estarem em causa normas que regem imperativamente sobre a forma dos actos jurídicos não obsta, como é sabido, a que possa ter aplicação a figura do abuso de direito, de modo a sindicar a actuação da parte que se pretende prevalecer do vício formal.

    9. Projectando estes princípios no caso concreto…
    No caso dos autos, estamos confrontados com uma exigência de forma negocial de conteúdo menos intenso, já que o mesma se situa mais no plano da prova da declaração negocial e não já tanto no plano constitutivo e material das formalidades ad substantiam, - ainda que se considere, em princípio, o preço um elemento essencial do contrato -, ditadas pela necessidade de um interesse público resultante da necessidade de um conhecimento alargado das transacções sobre imóveis.
    É o A. que condiciona e provoca a consumação do negócio. Primeiro com certas condições, depois de inteirado das condições não aceita; reponderando, dá uma ordem para que a ré avance e consuma a aquisição. Tudo a apontar no sentido de que esse percurso não deixou de ser devidamente ponderado pelo declarante.
    Tanto assim, tanto ciente da censurabilidade da sua conduta e na confiança que gerou na contraparte, que nega esses factos. Tanto assim que se veio a comprovar o que por si foi negado, tanto assim que não deixou, por isso, de ser condenado como litigante de má-fé. A contraparte, a ré, não deixou de efectuar um investimento com base na confiança depositada na validade do negócio.
    Tudo a conformar uma situação de manifesto, clamoroso e intolerável abuso.
    Consideram-se, deste modo, verificados os pressupostos de aplicação da figura do abuso de direito, prevista no art. 326º do CC, pelo que se releva a declaração prestada pelo A. no sentido de a Ré poder comprar pelo novo preço, desvalorizando a nulidade decorrente da preterição da forma escrita para a referida cláusula posterior ao contrato, pelo que se sedimentou o acordo verbal nos termos apurados.
    Nesta conformidade, o recurso não deixará de proceder.

IV- DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, julga-se procedente o recurso e, revogando o decidido, o Tribunal julga improcedente a acção e absolve a Ré do pedido.
    No mais se mantém o decidido em relação à condenação por litigância de má-fé.
    Custas do pelo recorrido em ambas as instâncias.

                   Macau, 19 de Junho de 2014,
    
João A. G. Gil de Oliveira

Ho Wai Neng

Lai Kin Hong Vencido por manter a minha posição assumida nos exactos termos do projecto do Acórdão que submeti à apreciação pelo Colectivo na conferência e cuja fundamentação ora se encontra transcrita no presente Acórdão.
1 - Pessoa Jorge, Mandato sem Representação, 20
2 - Pessoa Jorge, ob. cit., 411
3 - Menezes Cordeiro, Dto das Obrigações, contratos em Especial, AAFDL, 1991, 300
4 - Pires de Lima e Antunes Varela. CC Anot, I, 4ª ed., 249
5 - Oliveira Ascensão, Int. Est. Dto, SSUL, Lições 1970/1071, 110
6 - Freitas do Amaral, Man Int. Dto, I, Almedina, 2004, 119
7 - Ac. deste TSI, Proc. n.º 98/2014 e na Jurisp. Comparada, v.g. Acs. STJ, Proc. n.º 850/07, de 24/5/2012 e 349/06, de 28/2/2012
8 - Ac. do STJ, Proc. n.º 3161/04, de 8/6/2010
9 - Teoria Geral, 184 e segs
10 - Mota Pinto, Teoria Geral, 2005, pag. 433
11 - “RLJ”, 118º-10/11
12 - Ac. do STJ, Proc. n.º 850/07.7TVLSB.L1.S2
13 - Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pag. 217
14 - Obra Dispersa, I, 415 e ss.
15 - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª ed., pags. 104-105

16 - Da Boa-fé no Direito Civil, 45
17 - ROA, 58º, 1998, 964
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140/2013 42/42