打印全文
Proc. nº 80/2012
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Julho de 2014
Descritores:
-Habitação social
-Prova dos requisitos no procedimento
-Prova no contencioso

SUMÁRIO:

I - Num procedimento de candidatura a habitação social o ónus probatório dos respectivos requisitos pertence ao interessado.

II - Se o candidato, no campo do formulário destinado à indicação do valor patrimonial dos bens de que seja proprietário referiu Mop$ 240.000,00, reportado ao terreno de uma casa existente no interior da RPC, andou bem o Instituto de Habitação em exclui-lo da lista face ao valor limite para um agregado composto apenas por um elemento, nos termos do Despacho do Chefe do Executivo nº nº 297/2009 (tabela II, nº1).

III - Não pode ser feita no recurso contencioso a prova de um facto que logo podia ter sido feita pelo particular no procedimento administrativo.


Proc. nº 80/2012

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
B, do sexo feminino, portadora do BIRM nº XXXXXXX(X) com os demais sinais dos autos, recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo do despacho da Ex.ma Presidente Substituta do Instituto de Habitação de 27/07/2010, que, em sede de reclamação administrativa, manteve a decisão reclamada de a excluir da lista de candidatos a habitação social.
*
Na oportunidade, foi proferida sentença que julgou procedente o recurso contencioso e anulou o acto administrativo impugnado.
*
É contra tal sentença que ora recorre jurisdicionalmente a entidade administrativa, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. A entidade recorrente abriu o concurso para atribuição de habitação social, ao abrigo do artigo 3º, nº 1 do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, aprovado pelo Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009, tendo actuado no sentido de prosseguir os interesses públicos e em obediência ao princípio da legalidade na apreciação das candidaturas e podendo aceitar apenas as candidaturas dos indivíduos que reúnem os requisitos gerais para o concurso e as condições especiais, se houver, com vista a que os recursos possam ser utilizados de foram razoável e adequada, para que as pessoas carenciadas possam obter apoio na habitação.
2. Em 30 de Outubro de 2009, a recorrida apresentou à entidade recorrente o boletim de candidatura para arrendamento de habitação social, cujo número é 31200XXXXXX. Além dos dados pessoais da recorrida, não se encontra mais nada na 2ª parte do boletim de candidatura que se destina ao preenchimento dos dados pessoais. E na 3ª parte: Total do rendimento mensal: 2500, Terreno: 240 mil; Total do património líquido: 240 mil.
3. Quando a entidade recorrente apreciou o boletim de candidatura da recorrida após concluído o prazo para apresentação de candidaturas, verificou que ela não forneceu dados e documentos suficientes. Na fase para a entrega dos documentos em falta, a mesma apresentou os dados do cônjuge para além de completar os dados declarados no boletim.
4. Os artigos 2º e 3º do Regulamento Administrativo nº 25/2009 (Atribuição, Arrendamento e Administração de Habitação Social) manifestam claramente que o agregado familiar ou indivíduo em situação económica desfavorecida pode concorre para habitação social. Quem reúne os requisitos para arrendamento de habitação social indicados no nº 3 do artigo 2º e no artigo 3º é considerado em situação económica desfavorecida.
5. O espírito da legislação sobre habitação social é para garantir que as casas sociais sejam atribuídas às pessoas que estão realmente em situação económica difícil e, ao mesmo tempo, para evitar que estes recursos sejam abusados pelos indivíduos que não têm dificuldades. Por isso, o artigo 2º, nº 2 do Regulamento Administrativo supradito estabelece que “agregado familiar em situação económica desfavorecida - o agregado familiar residente na RAEM cujo total do rendimento mensal e do património líquido não ultrapasse os limites estabelecidos por despacho do Chefe do Executivo, a publicar em Boletim Oficial da RAEM.”
6. A recorrida declarou ter património líquido total de 240 mil no boletim de candidatura, o que ultrapassa o limite indicado na Tabela II do nº 1 do Despacho do Chefe do Executivo nº 297/2009 (total do rendimento mensal e do património líquido) - “o total do património líquido de um agregado familiar com um elemento não pode ultrapassa o montante de 129.600,00 patacas”. Assim, a entidade recorrente excluiu a recorrida do concurso, conforme dispõe a al. 3) do artº 2 do Regulamento Administrativo nº 25/2009 e ao abrigo do artº 6º, nº 1, al. 2) do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, aprovado pelo Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009 “1. Os candidatos são excluídos do concurso se: 2) Não reunirem os requisitos exigidos para a candidatura”. E, conforme o artigo 7º do mesmo regulamento administrativo, a lista dos excluídos foi publicada nos locais referidos no aviso publicado no Boletim Oficial da RAEM e na imprensa de língua chinesa e língua portuguesa.
7. A recorrida apresentou reclamação contra a sua exclusão do concurso. Após o recebimento da reclamação, a funcionária da entidade recorrente fez, em 26 de Julho de 2010, uma proposta ao superior através da Informação nº 911/DAHP/DAH/2010. Em 27 de Julho de 2010, a Presidente, Substª, deste Instituto proferiu um despacho de concordância nesta informação. Foi a recorrida notificada da manutenção da decisão reclamada mediante o Oficio nº 1007260049/DAH.
8. Segundo os dados, no concurso para atribuição de habitação social aberto em 2009, a entidade recorrente recebeu no total 7.874 candidaturas. Devido ao grande número de candidaturas e para assegurar a realização do concurso para habitação social e garantir que todos os candidatos soubessem como preencher o boletim de candidatura, a entidade recorrente elaborou o “guia de preenchimento do boletim de candidatura” que se anexou a cada boletim de candidatura, com vista a que os candidatos pudessem preencher correctamente o seu boletim de candidatura e entregar, tempestivamente, os documentos necessários, podendo, deste modo, reduzir o tempo necessário para a inscrição ao concurso e proceder aos procedimentos seguintes o mais rápido possível.
9. O nº 27 do guia supra dito diz claramente que “27. O representante e os elementos do agregado familiar devem declarar o património líquido que possuem, incluindo: 27.1 Terreno: O valor líquido actual na RAEM ou no exterior. Caso o terreno seja possuído em comum, deve declarar o valor líquido actual do direito e interesse que possui; 27.2 Propriedades imobiliárias: inclui as habitações construídas ou pré-compradas, propriedades comerciais e industriais, lugares de estacionamento, e o valor venal das propriedades imobiliárias relativamente às quais foi celebrado contrato promessa de compra e venda (aplicável aos indivíduos sem pedido de crédito) ou o valor líquido actual, calculado após a diferença entre o valor venal e a oneração dos créditos que sobre eles incida, na RAEM. Caso a propriedade imobiliária seja possuída em comum, deve declarar apenas o valor líquido actual do direito e interesse que possui; ...” A recorrida alegou ter lido o guia de preenchimento quando preencheu o boletim e assinou na parte de declaração a confirmar.
10. Na sua reclamação a recorrida só invocou o seguinte para esclarecer o montante do seu total do património líquido “Não se pode incluir a casa antiga na terra natal no Interior da China no meu rendimento estimado. A casa antiga na terra natal já retirou o meu registo de residência e nome como posso ter rendimentos.” A 'recorrida declarou ter património líquido total de 240 mil na 3ª parte do boletim de candidatura e declarou que sabia bem de que só era necessário declarar o valor actual líquido da parte da propriedade detida. Na sua reclamação, a recorrida não enunciou quais os factos relevantes que não foram considerados pela entidade recorrente na tomada da decisão, nem indicou expressamente as irregularidades do acto administrativo, além disso, nunca prestou esclarecimento ou prova acerca do facto de o total do seu património líquido ultrapassar o limite legal. A entidade recorrente adoptou e acreditou no valor do total do património líquido declarado pela recorrida, com base no qual proferiu a decisão de exclusão por o total do património líquido dela ultrapassar o limite legal, sendo esta decisão legal, razoável e fundamentada.
11. O recorrido forneceu à recorrente as informações sobre os procedimentos que lhe digam respeito e a decisão tomada. Além disso, na publicação da lista provisória e lista dos excluídos, a entidade recorrente indicou expressamente no respectivo aviso o meio de pedir apoio no sentido de assegurar o seu direito. A entidade recorrente tem actuado com respeito pelo princípio da colaboração entre a Administração e os particulares durante o concurso inteiro.
12. Porém, o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares é recíproco. Segundo o artigo 62º, nº 2 e o artigo 87º do CPA, a recorrida, ora interessada, tem o dever de prestar a sua colaboração para o conveniente esclarecimento dos factos e a descoberta da verdade, até deve produzir provas sobre a sua pretensão.
13. A recorrida juntou à sua reclamação um atestado médico, no entanto, não apresentou nenhum documento comprovativo para esclarecer o facto de o total do seu património líquido ultrapassar o limite legal. Mas apresentou ao Tribunal recorrido, durante o recurso contencioso, a fotocópia da certidão de propriedade da casa referida, donde constam os dados de todos os proprietários mas não o valor da propriedade. Por causa do não cumprimento dos deveres previstos nos artigos 62º, nº 2, e 87º do CPA pela recorrida, o Tribunal recorrido imputou à entidade recorrente a violação do objectivo do regime de reclamação consagrado no Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009 e do princípio da colaboração entre a Administração e os particulares na tomada da decisão, alegando que tal decisão padece de vício de procedimento. É infundada a imputação.
Nos termos expostos, a entidade recorrente requer a VªExª que admite o presente recurso e julgue improcedente a sua pretensão e declare a anulação da sentença a quo.».
*
A recorrente respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
«I. A recorrida entende que o juiz do Tribunal Administrativo tomou decisão com base na análise pormenorizada de todos os dados constantes dos autos, por isso, a decisão proferida é certa e deve ser apoiada.
II. Ao tomar a decisão de exclusão, o IH não agiu segundo o princípio da boa fé, nem actuou em estreita cooperação com particulares, tomando a decisão precipitadamente sem procurar saber bem o que a recorrente queria expressar aquando do preenchimento do boletim de candidatura
III. O juiz do Tribunal Administrativo entende que a ideia da reclamação não foi bem expressa e, nesta situação, deveria a Administração procurar saber o que a candidata realmente queria dizer ou poderia tomar decisão depois realizada investigação complementar.
IV. Todavia, o IR violou muitos princípios que devem ser observados no procedimento administrativo, nomeadamente o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares indicado pelo juiz do Tribunal Administrativo, por tomar a decisão precipitadamente sem procurar saber bem o que a recorrente queria expressar.
Nos termos expostos, deve ser mantida a sentença proferida pelo juiz do Tribunal Administrativo, ou seja, o objecto do recurso interposto pelo IR. Requer-se a este douto Tribunal que faça a tão acostumada JUSTIÇA.».
*
O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer:
«A sentença recorrida nesta causa anulou o acto administrativo recorrido no Recurso Contencioso nº 774/10-ADM pelo seguinte motivo:
Nos termos expostos e uma vez que a reclamação da recorrente não foi abordada adequadamente, assim a entidade recorrida violou, na tomada da decisão, a intenção do regime de reclamação consagrado no Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009 e o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares, o que resulta na revogação do acto recorrido por o acto padecer de vício de procedimento, conforme dispõe o artigo 124º do CPA.
O MMO Juiz a quo concluiu que “a reclamação da recorrente não foi abordada adequadamente” porquanto entendeu que a recorrente B não conseguia expressar bem a ideia na reclamação e, perante esta situação, há duas formas de tratamento: 1 - manter-se logo a decisão da exclusão do concurso da recorrente; 2 - procurar saber o que a recorrente realmente queria expressar e tomar decisão depois realizada investigação complementar. O MMº Juiz entendeu que, nesta causa concreta, a segunda forma é mais adequada.
Este Tribunal percebe que a reclamante tem o dever de expressar claramente os seus fundamentos à entidade recorrida. Porém, não nos esquecemos de que... cujo nível do conhecimento objectivo e cultural é, em geral, mais baixo, não conseguindo, provavelmente, expressar claramente os seus fundamentos. No caso da recorrente, ela já tem idade avançada, este facto conjugado com o nível cultural manifesto na sua reclamação, tendencionamos a achar que ela não dispõe de capacidade suficiente para se expressar bem e provavelmente não tinha noção de apresentar de imediato todos os fundamentos ou certidões favoráveis a ela para a entidade recorrida analisar, o que resultou numa situação inexplicável mesmo que tenha razão.
Pelo exposto, a entidade recorrida deveria procurar saber o que a recorrente realmente queria expressar, devendo verificar bem os motivos invocados pela mesma, ou exigir à recorrente para apresentar esclarecimento ou documentos comprovativos antes da tomada de decisão. Senão, o acto de a entidade recorrida tomar decisão baseando-se tão-somente nos documentos existentes no processo administrativo e na reclamação da recorrente pode ser considerado como denegar à recorrente a oportunidade de esclarecimento e impugnação através de reclamação.
Importa referir que: primeiro, o objecto do acto administrativo recorrido no Recurso Contencioso nº 774/10-ADM é a reclamação apresentada por B (Infª nº 0911/DAHP/DAH/2010 de fls. 24 a 25 do P.A.), e a reclamação foi interposta contra a exclusão do concurso para a atribuição de habitação social de B, recorrente do recurso contencioso (fl.s 15 a 16 do P.A.); segundo, a sua exclusão foi motivada pelo facto de o total do seu património líquido ultrapassar o limite estabelecido no despacho do Chefe do Executivo publicado em Boletim Oficial da RAEM (fl. 17 do P.A.); terceiro, a lista dos excluídos do concurso para habitação social é um procedimento concursal.
Analisados detalhadamente os dados constantes destes autos e do P.A., natureza do respectivo procedimento administrativo e fundamentação da sentença recorrida, salvo o devido respeito, nomeadamente pelo ponto de vista e posição do MMº Juiz a quo, entendemos que a sentença recorrida nesta causa padece de erro de direito, por consequência, devendo ser julgado procedente o presente recurso, anulando-se a sentença recorrida e mantendo-se o acto administrativo recorrido.
*
1. No sistema jurídico de Macau, todos os tipos de procedimento concursal devem respeitar duas regras comuns: primeiro, não é necessária a realização da audiência antes de se decidir a exclusão; segundo, cabe ao concorrente/candidato o ónus da prova - todos os candidatos devem provar que reúnem os requisitos. Estas duas regras gerais são respeitas e consubstanciadas no Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, aprovado pelo Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009.
Segundo o nº 3 do artigo 7º do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, podem ser interpostas reclamações da lista dos excluídos (provisória). Tal como a reclamação prevista no DL nº 63/85/M e no DL nº 74/99/M, a reclamação indicada no nº 3 do artigo 7º tem função garantidora. De qualquer maneira, podemos afirmar que, em caso de reclamação, o ónus da prova é do candidato excluído.
2. Ademais, em nosso entender, é aplicável subsidiariamente o nº 1 do artigo 156º do CPA à reclamação prevista no nº 3 do artigo 7º do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social. A “aplicação subsidiária” significa que o candidato excluído deve invocar todos os fundamentos favoráveis a ele e juntar à reclamação os documentos que acha adequados.
Para servir de referência, invoca-se a jurisprudência principal do Supremo Tribunal Administrativo de Portugal que entende: não há lugar para audiência no procedimento de 2º grau, a não ser que o “acto administrativo de 2º grau” seja desfavorável ao interessado e que o acto secundário se baseie em matéria de facto nova que não conste do “procedimento de 1º grau” (vd. as decisões proferidas em 31/10/2000, 03/05/2001, 17/01/2002 e 14/04/2007 nos processos nºs 036507, 047283, nº 046482, nº 020606).
3. Em Macau, há muitos mecanismos jurídicos que fornecem serviço de consulta (p.ex. o serviço de atendimento ao público da Assembleia Legislativa, o serviço de atendimento ao público do Ministério Público) e há muitos órgãos administrativos que podem prestar apoio a B e outras pessoas (na Administração Pública há Centro de Informações ao Público dos Serviços de Administração e Função Pública, na sociedade há escritórios de deputados, moradores (sic)).
Portanto, embora tivesse 67 anos quando interpôs a reclamação (19 de Julho de 2010), B poderia pedir ajuda aos serviços públicos ou associações. Caso ela pedisse ajuda oportunamente, poderia não só evitar fazer erros no preenchimento do boletim de candidatura mas também poderia apresentar reclamação bem preparada. Pelo exposto, não se pode lançar culpa ao IH por “as palavras não expressam bem a ideia” e “falta de fundamento” na reclamação de B.
4. De acordo com o artigo 9º do CPA, o dever de colaboração é “recíproco”, ou seja, “bilateral”. Nesta causa, B nunca pediu informações ou ajuda ao IH antes do preenchimento do boletim de candidatura para a atribuição de habitação social, nem o fez antes ou depois da interposição da reclamação. Ela nunca se deslocou pessoalmente ao IH para esclarecer o seu caso.
Nos termos acima expostos e atendendo a que o IH precisa de tratar de mais de 7000 mil candidaturas num prazo que não é muito longo, o acto da presidente substª do IR de rejeitar a reclamação de B não violou, em nosso entender, a intenção do regime de reclamação consagrado no Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009, nem o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares.
Analisando da forma justa, entendemos que, caso os funcionários do IR lhe fornecessem dados errados, ou o IH recusasse o seu pedido de informações, de ajuda ou de esclarecer o assunto face a face, ou ela proporcionasse a localização concreta da “casa antiga na terra natal no Interior da China” para pedir ao IR a verificar - caso o IH rejeitasse a reclamação de B mesmo que existissem as circunstâncias referidas, assim o acto administrativo recorrido no recurso contencioso violaria o princípio da colaboração acima mencionado.
*
É certo que a decisão da presidente substª do IH “mantém-se logo a exclusão da recorrente” não seja a decisão mais adequada, mas não pode ser considerada ilegal. Em suma, há falta de razoabilidade no acto administrativo praticada pela presidente substª do IH que rejeitou a reclamação em causa. De acordo com o artigo 20º do CPAC, o recurso contencioso é de mera legalidade. O Tribunal não pode apreciar o “mérito” do acto administrativo recorrido.
Assim, entendemos que o MMº Juiz a quo interpretou mal o nº 3 do artigo 7º do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares e o artigo 20º do CPAC ao concluir que “nesta causa concreta, a segunda forma é mais adequada” (e a posição manifesta ao dizer “procurar saber o que a recorrente realmente queria expressar e tomar decisão depois realizada investigação complementar”).
*
Em conclusão, face a todo o exposto, emito parecer no sentido de ser negado provimento ao “recurso jurisdicional” interposto pelo Presidente do Instituto de Habitação, em consequência se anulando a sentença recorrida.».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
1. Em 30 de Outubro de 2009, a recorrente apresentou à entidade recorrida o boletim de candidatura para a atribuição de habitação social, cujo número é 31200XXXXXX, e os respectivos dados pessoais (fls. 5 a 8 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
2. Em 14 de Julho de 2010, a entidade recorrida publicou, no Boletim Oficial, nº 28, Série II, a lista provisória de espera e a lista dos excluídos do concurso para habitação social. A recorrente foi excluída por a seguinte razão: O total do património líquido ultrapassa o limite estabelecido no Despacho do Chefe do Executivo publicado no Boletim Oficial da RAEM (fls. 14 a 16 do PA).
3. Em 19 de Julho de 2010, a recorrente apresentou reclamação à entidade recorrida (fl. 19 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
4. Em 27 de Julho de 2010, a entidade recorrida concordou com o teor da Infª nº 911/DAHP/DAH/2010, apontando que o total do património líquido do agregado familiar da recorrente ultrapassou o limite indicado na Tabela II do nº 1 do Despacho do Chefe do Executivo nº 297/2009 e, portanto, foi mantida a decisão de excluir a recorrente do concurso para habitação social, ao abrigo do artº 6º, nº 1, al. 2) do Regulamento de Candidatura para Atribuição de Habitação Social, aprovado pelo Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009 (fl. 24 a 25 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
5. Em 28 de Julho de 2010, a entidade recorrida notificou a recorrente do acto recorrido por via do Oficio nº 1007260049/DAH, no qual indicou que da decisão podia a recorrente recorrer contenciosamente para o Tribunal Administrativo no prazo de 3 º dias contados da data da notificação, nos termos do artº 25º do Código do Processo Administrativo Contencioso (fl. 26 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6. Em 2 de Agosto de 2010, a recorrente recebeu o dito oficio (fl. 26 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
7. Em 18 de Agosto de 2010, a recorrente requereu a este Tribunal assistência judiciária.
8. Em 1 de Setembro de 2010, a entidade recorrida publicou no Boletim Oficial nº 35, Série II, a lista definitiva de espera e a lista dos excluídos. A recorrente foi incluída na lista dos excluídos (fls. 28 a 30 do PA).
9. Em 14 de Dezembro de 2010, a mandatária judicial da recorrente interpôs recurso contencioso para este Tribunal.
10. De acordo com a “certidão de propriedade de habitação” apresentada pela recorrente, esta é comproprietária duma habitação situada na Cidade de Zhongshan ......鎮...石......里, possuindo um terço do imóvel.
***
III – O Direito
A recorrente, que conta actualmente com 71 anos de idade (cfr. fls. 1 e 5 do p.a.), através do boletim próprio, concorreu em 30/10/2009 a uma casa de habitação económica, a cuja candidatura coube o nº 31200XXXXX (fls. 7 do p.a e 94 a 105 do apenso “traduções”).
Como rendimento mensal declarou obter um total de Mop$ 2500. E no campo destinado à referência sobre o valor do património imobiliário, referiu o valor de Mop$ 240 mil (fls. 103 do apenso “Traduções”).
Por causa desta referência, o seu nome foi incluído na lista dos excluídos do concurso para habitação social, uma vez que o total do património líquido de um agregado de um só elemento não pode ultrapassar o montante de Mop$ 129.600,00, nos termos do Despacho do Chefe do Executivo nº 297/2009 (tabela II, nº1).
Mas, como essa lista só se tornaria definitiva caso não houvesse reclamações, tal como previsto no Despacho do Chefe do Executivo nº 296/2009 (art. 7º), a recorrente apresentou reclamação para o Presidente do Instituto de Habitação.
O que dizia a reclamação?
Segundo a contestação dizia: “Não se pode incluir a casa antiga na terra natal no interior da China no meu rendimento estimado. A casa antiga na terra natal já retirou o meu registo de residência e nome como posso ter rendimentos”.
Ora, foi com estas exactas palavras, ou melhor com esta tradução, que a sentença também laborou. E, partindo delas, considerou que a recorrente não conseguiu exprimir-se bem, o que compreendeu em função da avançada idade e da sua pouca instrução. E, por isso, achou que a Administração deveria ter procurado saber o que realmente ela queria dizer, ter tentado verificar bem os motivos invocados e, até mesmo, exigir à interessada esclarecimentos e documentos comprovativos antes da decisão. Por não o ter feito, concluiu a sentença, foi tomada a decisão administrativa sem saber o que a recorrente queria dizer. E, assim, violou a intenção do regime da reclamação consagrado no Despacho do Chefe do Executivo e o princípio da colaboração entre Administração e particulares.
Todavia, aquela tradução não parece exprimir bem o que estava escrito. A melhor tradução parece ser a que consta de fls. 105 do apenso “traduções” (ainda assim com alguma imperfeição):
“Não deve integrar a casa velha na terra natal da China Continente no meu vencimento. A casa velha na minha terra natal, excepto de ser registada a favor de mim, não me traz qualquer vencimento”
Se nos é permitido fazer uma tradução livre, o que a recorrente pretendeu dizer é isto: A casa velha na minha terra natal no interior da China não produz qualquer rendimento, apesar de estar regista em meu nome.
O que conta, portanto, é a ideia que emerge da reclamação. E essa ideia, não há dúvida, foi levada à fundamentação do acto administrativo sindicado. Efectivamente, como se pode ver no parecer que antecedeu o despacho recorrido, foi referido ali: “A requerente alegou que não se pode incluir a casa antiga no Interior da China no seu rendimento. Ela não tem rendimento no Interior da China e está reformada, além disso, já gastou toda a sua poupança no tratamento da doença do seu marido”. Ou seja, a questão do rendimento da recorrente no interior da China, inclusive aquele que podia advir da titularidade do prédio na terra natal da interessada, foi levado à fundamentação. O que acontece é que o problema do rendimento não foi aquele que esteve na génese da decisão. A exclusão definitiva da recorrente deveu-se somente ao facto de o património (não o rendimento) do agregado ser de Mop$ 240.000,00, quando o limite deveria ser de apenas Mop$ 129.600,00.
Podia a Administração fazer mais alguma coisa?
Somos muito sensíveis ao problema humanitário e social desta respeitável senhora recorrente. Terá pouca instrução, terá problemas de saúde, como diz, e apresenta uma longa idade. Mas, repetimos, o que podia a Administração fazer perante os dados que a recorrente forneceu no preenchimento do boletim de candidatura e na reclamação?! Pedir à interessada mais elementos? Quais? Sobre o verdadeiro valor da casa? Mas, como se nem sequer era isso que estava em causa. Com efeito, o valor que ela atribuiu, não foi à casa em si mesma, ao edificado, mas sim ao terreno onde a casa está implantada! Portanto, o que a Administração fez foi acatar a indicação feita pela interessada acerca do valor atribuído ao prédio rústico pela própria candidata. Podemos até achar que este procedimento parte da base de uma relação de confiança que a Administração tem na veracidade das afirmações feitas pelos candidatos. Mas o certo é que, assim como ela escreveu 240 mil, também podia ter escrito 120 mil, caso em que, provavelmente, teria sido beneficiada com uma casa de habitação social, porque o IH não iria, à partida (e talvez fosse caso de exigir a comprovação dos valores) confirmar o valor indicado.
Por exemplo, por que razão a interessada não disse na reclamação que se enganou no valor fornecido inicialmente? Ou, por que não afirmou que o terreno tem menos área do que pensava? Que ele está situado no local de pouca valorização, etc? Só confrontado com novos elementos é que a Administração talvez devesse ficar sujeita a observar certos comportamentos, não só para fazer jus ao princípio da colaboração (art. 9º, do CPA), como para cumprir o dever inquisitivo emergente do art. 86º, nº1, do mesmo Código.
Portanto, se o IH não sabia se o valor era realmente aquele e uma vez que na reclamação a interessada não cuidou de indicar outro mais baixo, pensamos que outra solução não tinha a entidade administrativa senão a de indeferir com base nos limites patrimoniais fixados no dito Despacho do Chefe do Executivo. Ou seja, se não tinha sido posta em dúvida pela própria recorrente a veracidade da sua anterior afirmação acerca do valor do terreno, não cumpria à entidade administrativa tomar a iniciativa de uma instrução complementar para suprir o deficit que só à recorrente cumpria ultrapassar.
Não convém esquecer, por outro lado, que o boletim de candidatura é acompanhado de uma guia de preenchimento próprio para impedir que os interessados cometam algum erro ou imperfeição. Nesse aspecto, a colaboração entre a Administração e os particulares começa bem cedo, não podendo ser assacada qualquer culpa àquela se algum erro foi cometido que só a estes pode ser imputada. Assim pode ter acontecido neste caso.
É claro que a recorrente, segundo o que resulta do nº 10 da matéria de facto assente na sentença, a recorrente é comproprietária de uma habitação situada na cidade de Zhong Shan, na República Popular da China. Todavia, esse dado de facto, que parece reproduzir o teor do documento de fls. 4 a 7 dos autos, suscita-nos dois comentários:
Em primeiro lugar, não é certo que essa certidão, concernente a uma moradia existente na RPC, corresponda exactamente à casa velha a que a recorrente aludiu na sua reclamação. Quer dizer, nunca por aí se eliminaria a dúvida sobre se o valor de 240.000,00 que ela forneceu na candidatura se reporta ao terreno onde esta casa está implantada ou a outro qualquer terreno.
Em segundo lugar, essa prova deveria ter sido feita no procedimento administrativo e não no processo contencioso. Realmente, é no procedimento de candidatura que os interessados devem fazer a prova dos factos que invocam. E se o valor do terreno era realmente aquele, deveria a interessada (com junção desta certidão) provar que a casa e o terreno não lhe pertencem exclusivamente. Talvez isso devesse levar a Administração a admitir que o valor da quota parte que lhe cabia na compropriedade era inferior ao limite máximo fixado no Despacho do Chefe do Executivo.
O ónus era da recorrente, enquanto requerente no procedimento, como decorre do art. 87º do CPA e como é jurisprudência da RAEM (Acs. do TUI, de 2/06/2004, Proc. nº 17/2003; 31/07/2013, Proc. nº 39/2013. Também do TSI, de 25/10/2012, Proc. nº 23/2012)1.
Assim sendo, na próxima candidatura que a requerente apresentar a uma habitação social deverá ter o cuidado de fornecer os elementos adequados e devidamente documentados.
Poderia ela ter apresentado uma reclamação mais eficaz? Sim. Poderia ter êxito se elaborasse uma peça de reclamação completa, com todos os dados de facto necessários, subscrita, por exemplo, por um mandatário dotado de conhecimentos necessários para o efeito? Sim, talvez. O problema é que não o fez e, por isso, o IH limitou-se a analisar a peça rudimentar formulada pela própria recorrente, portanto sem grande valor impugnativo. Mas, esse é um pecado que será próprio da humildade e da condição social da reclamante, mas, que por isso mesmo, não pode voltar-se contra a Administração.
Com os dados que forneceu naquele procedimento, incluindo na própria reclamação (insuficiente do ponto de vista factual e probatório), a Administração não tinha que decidir diferentemente. Significa, pois, que não houve por parte da Administração nenhuma violação do princípio da colaboração.
*
Por outro lado, a reclamação, mesmo tendo em vista uma modificação da posição administrativa no sentido favorável à pretensão do reclamante, não pode desvirtuar o dever que ao impugnante cumpre observar. Quer dizer, a reclamação está posta ao serviço do interessado, justamente para ele fazer ver à entidade administrativa que errou na decisão reclamanda, que ela é inválida sob algum aspecto, que merece ser revogada ou alterada. Ora, é ao reclamante que cumpre dizer onde a Administração errou, onde falhou na aplicação do direito. E, sinceramente, a reclamação em apreço não foi capaz de demonstrar nenhuma falha cometida no acto de exclusão da lista da recorrente.
Por conseguinte, não é possível dizer que o acto em apreciação atentou contra o objectivo da reclamação.
*
Enfim, porque o acto administrativo em causa se inscrevia no âmbito da actividade vinculada da Administração (face aos valores pré-determinados no Despacho do Chefe do Executivo), o IH não podia senão indeferir a reclamação, por esta não lhe ter fornecido diferentes elementos de facto para decidir de forma diferente.
***

IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, mantendo o acto administrativo impugnado.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido (cfr. fls. 66 vº e 34 do apenso “traduções”).
Honorários ao patrono nomeado (nesta instância): Mop$ 2000,00 (Portaria nº 265/96/M, de 28/10 Tabela anexa nº 6).
TSI, 03 de Julho de 2014

Presente Relator Vítor Manuel Carvalho Coelho José Cândido de Pinho

Primeiro Juiz-Adjunto Tong Hio Fong

Segundo Juiz-Adjunto Lai Kin Hong
1 Neste sentido, também J. Cândido de Pinho, Manual de Formação de Direito Processual Administrativo Contencioso, CFJJM 2013, pág. 112 e 119.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------