Processo n.º 42/2014
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 17/Julho/2014
ASSUNTOS:
- Residência na RAEM
- Residente permanente
- Competência dos tribunais de Macau
SUMÁRIO :
1. Os tribunais de Macau não são competentes para julgar um processo de interdição de uma residente de Hong Kong, ainda que ela alegue que mantém o estatuto de residente da RAEM, se aqui não vive habitualmente e cancelou em 2002 o BIR que lhe foi emitido pela Administração Portuguesa.
2. A "residência habitual" integra dois elementos constitutivos, a intenção de se fixar num determinado país e um período efectivo de residência.
3. Da concatenação das diversas normas se retira que esse período de 7 anos deve corresponder a uma ideia de uma especial ligação à RAEM, aferida aliás por factores que, em última análise, serão casuisticamente apreciados pela DSI. Deve existir uma vontade de aqui residir e estabelecer o seu centro de vida e se a permanência por mais de sete anos é um elemento aferidor dessa vontade, podendo ser muito difícil a comprovação desse elemento anímico, o certo é que quando esse requisito deixa de se verificar e o residente deixar de aqui ter o seu centro de vida pode perder o seu estatuto.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 42/2014
(Recurso Cível)
Data : 17/Julho/2014
Recorrente : A
Recorrida : B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, requerente nos autos de interdição em que o presente recurso foi interposto, vem recorrer do despacho que declarou que os tribunais de Macau não têm competência para os presentes autos e, consequentemente, absolveu a requerida da instância.
Para tanto, alega em síntese conclusiva:
A. A Requerida tem direito à titularidade do bilhete de identidade de Macau, pelo que, deve presumir-se que tem residência habitual em Macau, cfr. o disposto no n.º 3 do artigo 30.° do CC;
B. Apesar de a Requerida ter solicitado o cancelamento do seu B1RPM n.º XXXXXXX(X), a verdade é que mantém o direito à respectiva titularidade, bastando, para tanto, que o solicite, nos termos da Lei n.º 8/1999;
C. Nos termos dos n.º 1 e 2 do artigo 343.° do CC, a presunção de gue a Requerida tem residência habitual em Macau só pode ser ilidida mediante prova do contrário;
D. Apesar de se alegar nos autos que a Requerida reside em Hong Kong, a verdade é que não foi feita qualquer prova, documental ou outra, desse facto, pelo que, apenas pode assumir-se, por força da presunção legal constante do n.º 3 do artigo 30.° do CC, deve considerar-se que a Requerida tem residência habitual em Macau;
E. Ainda que houvesse prova de que a Requerida mantém uma residência em Hong Kong, manda o n.º 4 do artigo 30.º do CC que, desde que uma dessas residências seja em Macau, a lei pessoal do sujeito é a lei de Macau;
F. A Requerida tem em Macau muitos familiares próximos, um imóvel para habitação e vários (e importantes) interesses patrimoniais, o que corresponde a um centro efectivo e estável da sua vida pessoal, logo, também nos termos do n.º 1 do artigo 30.º do CC, a Requerida tem residência habitual em Macau;
G. Assim, considerando que a Requerida tem residência habitual em Macau, a alínea a) do artigo 17.º do CPC atribui competência aos tribunais de Macau para decidir da presente causa, ao contrário do que decidiu o Tribunal a quo;
H. Durante o ano de 2002, a Requerida solicitou o cancelamento do seu BIRPM, renunciou à nacionalidade Portuguesa e declarou-se residente em Hong Kong com o único propósito de afastar a aplicabilidade da lei de Macau, que determina a invalidade dos negócios jurídicos celebrados com ofensa da legítima (como o negócio que a Requerida anunciou, compreendendo a alienação das acções representativas do capital social da STDM a uma sociedade de direito estrangeiro, sem qualquer contrapartida economicamente relevante);
I. Esta actuação da Requerida revela um intuito fraudulento na escolha da lei pessoal, que o artigo 19.º do CC pretende prevenir e bloquear. Por força desta norma, qualquer residência da Requerida em Hong Kong, cuja existência não se concede, deve ser desconsiderada, o que o Tribunal a quo não fez;
J. Por fim, cumpre notar que a Requerida tem uma grande e inegável ligação a Macau, que se mantém nos dias de hoje, por ter na RAEM muitos familiares próximos e o seu património mais relevante, as acções representativas do capital social da STDM;
K. Um dos factos em que a Requerente alicerça a sua conclusão de que a Requerida carece de capacidade para governar a sua pessoa e bens - ou seja, a causa de pedir - é precisamente o facto de a Requerida ter anunciado publicamente a sua intenção de alienar as suas acções representativas do capital social da STDM a uma sociedade de direito estrangeiro, sem qualquer contrapartida economicamente relevante, o que representaria um acto de irremediável delapidação do património da Requerida, praticado em Macau;
L. Assim, também nos termos da alínea a) do artigo 15.º do CPC, os tribunais de Macau são competentes na medida em que foi praticado em Macau um dos factos que integram a causa de pedir. Ao decidir em sentido contrário, a douta Sentença do Tribunal a quo violou também a esta norma do CPC.
Nestes termos, entende, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a douta sentença ora recorrida, de fls. 648 e seguintes, revogada e substituída por outra que, indeferindo a excepção de incompetência dos tribunais de Macau, determine o prosseguimento dos ulteriores termos da acção de interdição, fazendo-se assim a costumada
B, aliás XXX, aliás XXX, requerida nos autos à margem referenciados, contra-alega, dizendo, em suma, que a requerida não é residente de Macau, vive habitualmente em Hong Kong, aí sendo residente, cancelou o seu BIR de Macau, não há fraude à lei, nem se observa fundamento na acção de interdição intentada para que por via da conexão material os tribunais de Macau se possam considerar competentes para julgar a acção.
Nestes termos, pugna pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - Decisão recorrida
É ela do seguinte teor:
“Nos presentes autos, a A vem pedir a interdição provisória da Requerida B, aliás XXX, a interdição definitiva da Requerida, e a nomeação de tutor à Requerida, e outros pedidos (cujo teor se dá por integralmente reproduzido.) A requerente indica, no requerimento inicial, que a requerida está actualmente internada no Hong Kong XXX and Hospital, sito em Hong Kong, X XX, XXX (fls. 2).
Por despacho (cujo teor se dá por integralmente reproduzido) de fls. 455, proferido em 27 de Novembro de 2012, foi ordenada a fixação de edital e publicação de anúncios, e a citação da requerida.
Foram publicados anúncios em ambas as línguas oficiais (fls. 463 a 466).
B, vem pedir para declarar incompetentes os tribunais da RAEM para o conhecimento da acção e ordenado o arquivamento dos autos (fls. 469 e 470) e juntou procuração a fls. 492. O mandatário da requerida alega que ela reside em Hong Kong e não em Macau, e entende que deve ser decretada a nulidade de citação (fls. 495).
A requerida vem apresentar a contestação (fls. 496), invocando a incompetência dos tribunais de Macau, alegando que é residente de Hong Kong, e nos últimos 10 anos, não se deslocou a Macau e que já não é titular do Bilhete de Identidade de Macau. A requerida alega ainda que tem residência habitual em Hong Kong.
A requerente apresentou réplica, entende que os Tribunais de Macau têm competência para julgar o presente requerimento de interdição (fls. 619 e ss.).
Compulsados os elementos dos autos, de acordo com a informação da Direcção dos Serviços de Identificação, o Bilhete de Identidade da B foi cancelado (fls. 607 e 642).
A requerente entende que não é relevante a informação que os SIM possam prestar sobre a cópia do último requerimento do BIR da Requerida (fls. 630).
Através do requerimento apresentado a fls. 635, a requerida entende que a sua residência habitual é Hong Kong, onde tem o centro da sua vida efectiva, sendo irrelevante que seja proprietária de uma fracção autónoma em Macau e que seja accionista da SJM.
Cumpre decidir sobre a questão da competência dos Tribunais de Macau para os presentes autos.
Artigo 15.º
(Circunstâncias gerais determinantes da competência dos tribunais de Macau)
Os tribunais de Macau são competentes quando se verifique alguma das seguintes circunstâncias:
a) Ter sido praticado em Macau o facto que serve de causa de pedir na acção ou algum dos factos que a integram;
b) Ser réu um não residente e autor um residente, desde que, se idêntica acção fosse proposta pelo réu nos tribunais do local da sua residência, o autor pudesse ser aí demandado;
c) Não poder o direito tomar-se efectivo senão por meio de acção proposta em tribunal de Macau, desde que entre a acção a propor e Macau exista qualquer elemento ponderoso de conexão pessoal ou real.
Artigo 16.º
(Circunstâncias determinantes da competência para certas acções)
Sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo anterior, os tribunais de Macau são competentes para apreciar:
a) As acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou' pelo cumprimento defeituoso, ou a resolução do contrato por falta de cumprimento, quando a obrigação devesse ser cumprida em Macau ou o réu aqui tenha domicílio;
b) As acções relativas a direitos pessoais de gozo, de despejo, de preferência e de execução específica de contrato-promessa, quando tenham por objecto imóveis situados em Macau;
c) As acções de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas quando, respeitando a navios e aeronaves, o registo destes tenha sido feito em Macau ou quando, respeitando a bem diverso, este se situe em Macau;
d) As acções destinadas a ser julgado livre de privilégios o navio adquirido por título gratuito ou oneroso quando, no momento da aquisição, o navio se achasse surto em porto de Macau;
e) As acções destinadas a regular avaria marítima comum sofrida por navio que entregue ou devesse entregar a respectiva carga em porto de Macau;
f) As acções de indemnização fundadas na abalroação de navios, quando o acidente tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono do navio abalroador esteja domiciliado em Macau, navio abalroador esteja registado em Macau ou for, encontrado em porto de Macau, ou for de Macau o primeiro porto em que entrou o navio abalroado;
g) As acções destinadas a exigir os salários devidos por salvação ou assistência de navios, quando a salvação ou assistência tenha ocorrido em águas sob administração do Território, o dono dos objectos salvos tenha domicílio em Macau, o navio socorrido esteja registado em Macau, ou seja encontrado em porto de Macau o navio socorrido;
h) As acções de divisão de coisa comum, quando tenham por objecto bens situados em Macau;
i) As acções de divórcio, quando o autor resida em Macau ou aqui tenha domicílio;
j) As acções de inventário destinado a pôr termo à comunhão hereditária, quando a sucessão tenha sido aberta em Macau ou quando, aberta a sucessão fora de Macau, o falecido tenha deixado imóveis em Macau ou, na falta de imóveis, aqui se encontre a maior parte dos móveis por ele deixados;
l) As acções de habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, quando se verifique algum dos requisitos mencionados na alínea anterior, ou quando o habilitando tenha domicílio em Macau;
m) As acções destinadas a declarar a falência, quando o domicílio, a sede ou a administração principal do empresário comercial se situe em Macau, ou quando, não se situando nenhum destes em Macau, aquelas acções derivem de obrigações contraídas ou que devessem ser cumpridas em Macau e o empresário comercial aqui tenha sucursal, agência, filial, delegação ou representação, sendo porém restrita a liquidação aos bens existentes em Macau.
Artigo 17.º
(Circunstâncias determinantes da competência para as restantes acções)
Sem prejuízo da competência que resulte do disposto no artigo l5.º, os tribunais de Macau são competentes para apreciar as acções não previstas no artigo anterior ou em disposições especiais, quando:
a) O réu tenha domicílio ou residência em Macau;
b) Não tendo o réu residência habitual ou sendo incerto ou ausente, o autor tenha domicílio ou residência em Macau;
c) Sendo o réu uma pessoa colectiva, se situe em Macau a respectiva sede ou administração principal, ou uma sucursal, agência, filial, delegação ou representação.
Compulsados os elementos dos autos, a requerente A, é residente em Hong Kong (fls. 2). A requerida B já não é residente de Macau. Nos presentes autos, não se verificam os pressupostos do artigo 15.° do CPC. A interdição não está prevista nas acções enumeradas no artigo 16.° do CPC, Como a requerente é residente em "Hong Kong, não se verifica a situação prevista na al. b) do artigo 17.° do CPC, e a requerida B não é residente em Macau, não se verifica a situação prevista na al. a) do artigo 17.° do CPC. Significa que não se verificam as situações previstas no artigo 17.° do CPC. Pelo exposto, julgo que os tribunais de Macau não têm competência para estes autos de interdição.
Nos termos dos artigos 30.°, 31.° n.º 1 e 32.° do CPC, declaro que os tribunais de Macau não têm competência para os presentes autos. Pelo exposto, absolvo a requerida de instância (artigos 412.°,413.° a) e 414.° do CPC).
Custas pela requerente.
Notifique e D.N. “
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa por saber se os tribunais de Macau são incompetentes para julgar os presentes autos, em que se pedia a interdição e formulavam outros pedidos conexos em relação a B, aliás A .
A sentença recorrida declarou incompetentes os tribunais da RAEM porque a requerida não era residente de Macau.
Insurge-se o recorrente, sustentando em síntese que a requerida beneficia daquele estatuto, pelo que deve ser considerada aqui residente e ainda, se outras razões não houvesse porque aqui tem e desenvolve as suas actividades profissionais.
Estamos em crer que não lhe assiste razão.
2. Quanto à prova da situação da residência da requerida
O Bilhete de Identidade de Residente da requerida, ora recorrida, foi cancelado na sequência do requerimento para o efeito apresentado pela recorrida no dia 30 de Abril de 2002.
É a própria recorrente que alega que a requerida teve «última residência em Macau, na XX» e que actualmente tem «residência em Hong Kong, XX, XXX, XXº andar X e X, XXX Court.»
Alega também que «apesar de constar nos autos a alegação de que a Requerida tem residência habitual em Hong Kong, a verdade é que não existe prova, documental ou outra, dessa alegação.» Concluindo que a «presunção de que a Requerida tem residência habitual em Macau só pode ser ilidida por prova em contrário».
Como bem se assinala, quanto à situação de facto, acompanha-se a reflexão da recorrida, enquanto diz que “foi a Requerente que, no Requerimento Inicial indicou a morada de Macau como sendo a «última residência» da Requerida em Macau. Sendo esse o termo utilizado nas situações em que esse tal último domicílio não corresponde ao actual domicílio do visado. Caso assim não fosse, a Requerente teria simplesmente indicado que a Requerida tem residência em ambas as moradas; ao invés, expressamente demarcou a diferença, reconhecendo assim Hong Kong como a sua residência habitual. Pelo que não se percebe a razão pela qual vem agora indicar que não existe nos autos qualquer prova dessa alegação que foi por si efectuada.”
Temos assim que é a própria requerida que admite residir em Hong Kong, essa é a morada que consta das procurações, o que é do nosso conhecimento pessoal por força das nossas funções, fazendo juntar, para tanto, a respectiva certidão, como determina o artigo 434º, n.º 2 do Código de Processo civil.
O BIR da requerida foi cancelado e nem se percebe como é que a requerida podia residir ou viver em Macau sem esse documento; para tal só com passaporte ou BIR de Hong Kong, mas necessariamente por tempo limitado.
3. Vejamos agora do direito à residência.
Alega a recorrente que a requerida, não obstante não ter BIR de Macau, não deixa de ter o estatuto de residência.
O artigo 24ª da lei básica define quem é residente de Macau, norma regulada na Lei nº 8/1999, onde o n.º 1 do artigo 1º estabelece:
“1. São residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente designada por RAEM:
1) Os cidadãos chineses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
2) Os cidadãos chineses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM;
3) Os filhos dos residentes permanentes referidos nas alíneas 1) e 2), de nacionalidade chinesa e nascidos fora de Macau, se à data do seu nascimento o pai ou a mãe satisfazia os critérios previstos nas alíneas 1) ou 2);
4) Os indivíduos nascidos em Macau antes ou depois do estabelecimento da RAEM, de ascendência chinesa e portuguesa, que aqui tenham o seu domicílio permanente, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
5) Os indivíduos de ascendência chinesa e portuguesa, que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
6) Os filhos dos residentes permanentes referidos nas alíneas 4) e 5), de nacionalidade chinesa ou que ainda não tenham feito opção de nacionalidade, nascidos fora de Macau e que aqui tenham o seu domicílio permanente, se o pai ou a mãe, à data do seu nascimento, satisfazia os critérios previstos nas alíneas 4) ou 5);
7) Os portugueses nascidos em Macau, antes ou depois do estabelecimento da RAEM e que aqui tenham o seu domicílio permanente, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe já residia legalmente ou tinha adquirido o direito de residência em Macau;
8) Os portugueses que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
9) As demais pessoas que tenham residido habitualmente em Macau pelo menos sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, e aqui tenham o seu domicílio permanente;
10) Os filhos dos residentes permanentes referidos na alínea 9), nascidos em Macau, de idade inferior a dezoito anos, se à data do seu nascimento, o pai ou a mãe satisfazia os critérios previstos na alínea 9).”
No n.º 2 do artigo 2º:
“2. Os residentes permanentes da RAEM referidos nas alíneas 9) e 10) do n.º 1 do artigo 1.º perdem o direito de residência se deixarem de residir habitualmente em Macau por um período superior a 36 meses consecutivos.”
O artigo 4º do mesmo diploma prevê:
“1. Um indivíduo reside habitualmente em Macau, nos termos da presente lei, quando reside legalmente em Macau e tem aqui a sua residência habitual, salvo o previsto no n.º 2 deste artigo.
2. Considera-se que um indivíduo não reside em Macau numa das seguintes situações:
1) Se entrou em Macau ilegalmente;
2) Se permanece em Macau ilegalmente;
3) Se apenas tem autorização de permanência;
4) Se permanece em Macau na qualidade de refugiado;
5) Se permanece em Macau na qualidade de trabalhador não residente;
6) Se é membro de posto consular recrutado não localmente;
7) Se, após a entrada em vigor da presente lei, for sujeito a prisão por sentença condenatória transitada em julgado ou a prisão preventiva, salvo posterior absolvição;
8) Outros casos previstos em diplomas legais.
3. Para os efeitos do estatuto de residente permanente referido nas alíneas 2), 5), 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º e da perda do direito de residência referida no n.º 2 do artigo 2.º, a ausência temporária de Macau não determina que se tenha deixado de residir habitualmente em Macau.
4. Para a determinação da residência habitual do ausente, relevam as circunstâncias pessoais e da ausência, nomeadamente:
1) O motivo, período e frequência das ausências;
2) Se tem residência habitual em Macau;
3) Se é empregado de qualquer instituição sediada em Macau;
4) O paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores.
5. Os sete anos consecutivos referidos nas alíneas 8) e 9) do n.º 1 do artigo 1.º, são os sete anos consecutivos imediatamente anteriores ao requerimento do estatuto de residente permanente da RAEM.”
O artigo 5º:
“1. Presume-se que os portadores de Bilhete de Identidade de Residente de Macau, abreviadamente designado por BIR, de Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM e de Bilhete de Identidade de Residente da RAEM válidos, residem habitualmente em Macau.
2. No caso de existirem dúvidas sobre se o interessado reside habitualmente em Macau, cabe ao director dos Serviços de Identificação, abreviadamente designados por DSI, apreciar o facto nos termos do n.º 4 do artigo 4.º.”
O artigo 8º, n.º 1:
“1. Ao requerer o estatuto de residente permanente, os indivíduos referidos nas alíneas 4) a 9) do n.º 1 do artigo 1.º devem assinar uma declaração em como têm o seu domicílio permanente em Macau.”
4. Torna-se claro que, para o legislador ordinário (assim como para o da Lei Básica, pois assim mesmo o determina o art. 24º, al. 5), a respeito do conceito de residente permanente), o período de sete anos é necessário e suficiente ao estabelecimento de um vínculo do indivíduo com a Região.
Mas da concatenação das diversas normas se retira que esse período de 7 anos deve corresponder a uma ideia de uma especial ligação à RAEM, aferida aliás por factores que, em última análise, serão casuisticamente apreciados pela DSI. Deve existir uma vontade de aqui residir e estabelecer o seu centro de vida e se a permanência por mais de sete anos é um elemento aferidor dessa vontade, podendo ser muito difícil a comprovação desse elemento anímico, o certo é que quando esse requisito deixa de se verificar e o residente deixar de aqui ter o seu centro de vida pode perder o seu estatuto.
Constituem elementos constitutivos do conceito de "residência habitual" os factos e as circunstâncias concretas do caso em apreciação. A determinação da "residência habitual" depende da "intenção de se fixar". «o termo "residir" pressupõe não só a presença física de uma pessoa num determinado país, mas também um determinado período de permanência» Desde que um indivíduo «resida num país por um período legalmente fixado, considera-se que esta pessoa adquire ali a residência habitual.» Verificando-se assim que a "residência habitual" integra dois elementos constitutivos, a intenção de se fixar num determinado país e um período efectivo de residência. «A “residência habitual” não se perde por causa de uma pessoa pretender sair da respectiva residência, mas sim em consequência da sua saída efectiva do país em causa, sem intenção de voltar, factor que provocará a perda da residência habitual num só dia.»1
5. É, pois, neste contexto que deve ser visto o caso vertente.
Que a requerida deteve o BIR de Macau é um facto; que deixou de o ter é outro facto, o que aponta para a perda do estatuto substantivo a que a recorrente alude, não se podendo dizer que por aqui ter vivido por aquele período de tempo manteve o seu estatuto.
Tanto assim que se não houver essa especial ligação permanente – o que não significa necessariamente uma estadia ininterrupta sem possibilidade de ausência - esse estatuto se extingue em determinados casos.
Resulta ainda das normas citadas que a emissão do BIR, se prova o direito, não deixa de constituir uma presunção do estatuto do residente que não resulta, é verdade, do cartão – não é o hábito que faz o monge - , mas sim da titularidade substantiva de um estatuto que passa pela verificação de determinados requisitos.
6. É claro que para a determinação da residência habitual se parte da definição do nº 1 do art. 4º da citada lei.
Como já aqui se afirmou “Para o Direito Civil o que importa é o Lugar onde a pessoa vive habitualmente, onde mora, onde tem o seu centro habitual de vida e de interesses”.2
Tal como se assinalou neste Tribunal, a primeira conclusão a extrair é a de que qualquer pessoa, se tiver residido com carácter habitual em Macau por um período não inferior a sete anos consecutivos, antes ou depois do estabelecimento da RAEM, é considerado pela lei como “residente permanente”. Direito que pode perder caso se coloque sob a mira da previsão do nº2 do art. 2º da Lei, isto é, se deixar de residir em Macau por um período superior a 36 meses consecutivos”.
Mas o legislador, porém, não deixou de contemplar as situações em que, mesmo na hipótese de ausência, o interesse pode manter a sua condição de residente habitual para efeito da conservação do estatuto de residente permanente. São as circunstâncias consagradas no art. 4º, nº4. E entre elas, avulta a do “paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores” (art. 4º, nº4, alínea 4)).
Tem interesse citar esta norma, porque ela ajuda a revelar o espírito da lei. Este diploma não visa regular as relações familiares, nem é seu mister, sequer, prevenir os casos de reunificação familiar. É, simplesmente, um texto legal de ordem pública, que tem por escopo e missão a definição de um quadro jurídico dentro do qual se hão-de compor as situações da vida necessárias ao preenchimento da fattispecie erguida como fundamental ao estabelecimento do estatuto de residente permanente. Isso e nada mais, seguramente. Por isso, quando a alínea 4) do nº4 do art. 4º manda que a Administração se sirva do elemento ali previsto, o que está a fornecer é um subsídio de ajuda à densificação de uma situação concreta de residente. Isto é, para que ela possa concluir pela manutenção de um “status” de “residência habitual” de um qualquer interessado que tenha eventualmente estado “ausente”, pode socorrer-se de elementos vários, tais como “o motivo, período e frequência das ausências” (alínea 1)), a circunstância “se tem residência habitual em Macau” (alínea 2)), “o facto de ser “…empregado de qualquer instituição sediada em Macau” (alínea 3)) e, finalmente, “ o paradeiro dos seus principais familiares, nomeadamente cônjuge e filhos menores” (alínea 4)).
Atente-se muito bem nisto: o próprio legislador prevê que alguém possa manter a “residência habitual” para efeito do estatuto de residente permanente, mesmo que se ausente temporariamente da RAEM por causa do paradeiro dos seus “principais familiares”, como são os “cônjuges e filhos menores”. Isto exemplifica com toda a clareza que para o legislador é indiferente que o interessado seja casado, viúvo, divorciado ou unido de facto. Qualquer que seja o seu estado civil, pode ser residente habitual da RAEM, independentemente das pessoas do seu agregado e do local onde elas residam. Sendo, porém, casado e tendo filhos menores, para efeito do preenchimento do conceito de residência habitual podem as respectivas ausências temporárias relevar ou não, tudo dependendo do caso concreto e do peso das circunstâncias específicas que nele intervierem. Tais ausências podem justificar-se, portanto, para visita dos membros do seu agregado que residam habitualmente noutro local do mundo.3
7. Acresce que do facto de a requerida ter possuído BIR de Macau, emitido pela Administração portuguesa, em 1999, tal não significa que esteja provado que ela residiu necessariamente sete anos seguidos em Macau, pois houve BIRs, antes da transferência que foram emitidos com base em bilhetes de identidade de cidadão nacional da República Portuguesa.
Essa prova, para que a recorrente se possa prevalecer desse facto, não podia deixar de ser provado nos autos.
8. Tal como fica por provar o alegado quanto aos familiares que tem em Macau e ligações afectivas e actuantes com eles.
As ligações profissionais e interesses económicos e patrimoniais na RAEM, embora possam constituir ser um índice, não serão por si só suficientes, par integrar o conceito de residência
9. O certo é que ela própria pede o cancelamento do BIR de Macau, demonstrando bem, com essa conduta, a vontade em não querer ser residente de Macau, não se alcançando outro interesse nesse cancelamento se não a demonstração clara de pretender um corte com a residência da RAEM.
Nesta perspectiva, conforme determinado pelo n.º 1 do art. 30.º do Código Civil, a lei pessoal é a da residência habitual do individuo. O conceito de residência habitual coincide com o conceito de domicílio voluntário, consubstanciando-se como o local onde uma pessoa singular normalmente vive, tem o centro estável da sua vida pessoal e de onde se ausenta, em regra, por períodos mais ou menos curtos. É o que decorre do n.º 2 do art. 30.º do Código Civil.
10. Considerando os factos acima acabados de expor, é fácil concluir-se pela não aplicabilidade da al. a) do art. 17.º do Código de Processo Civil, uma vez que a recorrida não tem domicílio ou residência em Macau.
11. Da fraude à lei
Defende a recorrente que com a sua conduta, renúncia à nacionalidade portuguesa e cancelamento do BIR procura a recorrida furtar-se à aplicação da lei local.
Como está bem de ver, esta afirmação não está sustentada nos autos.
Não se visa com a acção de interdição analisar qualquer outro desiderato que não seja avaliar a capacidade daqueles que sofram de anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira de governar as suas pessoas e bens, pelo que não há que analisar nestes autos os motivos que levaram a Requerida, depois do ano 2000, a renunciar à nacionalidade Portuguesa, a pedir o cancelamento do seu BIR de Macau e evitar este território, como se pretende.
Nem faz muito sentido invocar uma actuação forjada e artificiosa de alguém querer furtar-se à acção da lei local, numa acção de interdição, não se acreditando que não haja em Hong Kong mecanismos legais de intervenção de forma a prevenir a regência de pessoas e bens de um incapaz sujeito às leis daquele ordenamento.
Pelo que não competindo ao tribunal avaliar esses motivos e não estando provada por qualquer outro meio a alegada fraude à lei, não pode a mesma ser trazida à colação.
12. Conexão material
Pretendendo a aplicação da lei de Macau em função da conexão material alega a Recorrente que o património mais valioso da requerida se encontra directamente relacionado com Macau, ou seja, as acções representativas do capital social da STDM.
O acto em que consubstancia a causa de pedir teria sido praticado em Macau – cfr. art. 15º do CPC.
Ainda aqui se observa uma falta de concretização dos actos consubstanciadores da causa de pedir na acção que se pretende que aqui prossiga, para que se possam ter por realizados na RAEM.
A transmissão de acções consubstancia um acto de gestão normal e inerente da actividade empresarial, considerando que a Requerida é empresária, para além de que essa transmissão foi feita para uma sociedade sua, não podendo ser tal facto fundamento, sem mais, de uma pretensa interdição.
Sucede que como se mostra provado nos autos os filhos da requerida, XXX e XXX, instauraram contra si uma acção judicial, através da qual a recorrida se encontra actualmente proibida de efectuar qualquer transmissão das acções de que é titular ela própria e a sociedade XXX, donde se observa inexistir perigo de delapidação por eventual incapaz em relação a património sito na RAEM .
Conclui-se, assim, que não se mostra preenchido o alegado requisito previsto na al. a) do art. 15.º do Código de Processo Civil porquanto, incumbindo-lhe esses ónus, a recorrente não identificou nem demonstrou factos reveladores de que o facto que serve de causa de pedir na acção ou que a integram foi praticado em Macau.
13. A capacidade das pessoas é regulada pela lei pessoal dos respectivos sujeitos, nos termos do art. 24.º do Código Civil.
Nos termos do n.º 1 do art. 30.º do mesmo diploma, a lei pessoal é a da residência habitual do individuo, esclarecendo o número posterior que considera-se residência habitual o lugar onde o indivíduo tem o centro efectivo e estável da sua vida pessoal e, como se viu, a recorrida não tem aqui residência.
Nestes termos o recurso não deixará de improceder.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 17 de Julho de 2014,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - LIU, Yideng, O conceito de residência habitual no direito internacional privado / Liu Yideng
Perspectivas do direito, Macau, n.11(2002), p.185-200
2 - Ac. TSI, de 7/12/2011, Proc. n.º 874/2010
3 - Ac. do TSI, Proc. n.º 112/2013, de 10710/2013
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42/2014 1/26