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Processo nº 311/2014 Data: 24.07.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “fuga à responsabilidade”.
Erro notório na apreciação da prova.
In dubio pro reo.



SUMÁRIO

1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.


Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.

2. O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição.

Constatando-se que em momento algum teve o Mmo Juiz a quo qualquer “dúvida” (ou hesitação) aquando da sua decisão sobre a factualidade imputada ao arguido, inviável é também conceber-se que ocorreu violação do dito princípio.

3. Não é a demora na chegada da Polícia que legitima o abandono do local do acidente por qualquer dos seus intervenientes, excepto, comprovada e inadiável necessidade, (o que, no caso, não sucedeu), certo sendo que nestas situações, sempre deve a pessoa em questão assegurar que (minimamente) clarificadas e apuradas fiquem as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os seus respectivos intervenientes, assim como facultar elementos que permitam a sua identificação e contacto, (o que, igualmente, não sucedeu).



O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 311/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (XXX), com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 89° da Lei n.° 3/2007, (“Lei do Trânsito Rodoviário”), na pena de 60 dias de multa, à taxa de MOP$150.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$9.000,00 ou 40 dias de prisão subsidiária, e na pena acessória de inibição de condução por 3 meses; (cfr., fls. 84 a 86-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para em conclusões e (em síntese) imputar apenas à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 103 a 110).

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Respondendo, pugna o Ministério Público pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 113 a 115-v).

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Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.l03 a 110 dos autos, o recorrente A assacou à douta sentença de fls.84 a 86 verso, o erro notório na apreciação de prova e a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previstos respectivamente nas alíneas. c) e a) do n.° 2 do art.400° do CPP, e ainda a violação do princípio in dubio pro reu.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega na Resposta (cfr. fls.l13 a 116 verso), no sentido de não provimento do presente recurso na sua totalidade. E, com efeito, nada temos, de relevante, a acrescentar-lhes.
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Quanto ao significado do «erro notório na apreciação de prova», é pacífica e consolidada a jurisprudência de (por exemplo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009 e n.°52/2010): O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.
No caso sub judice, em sede fundamentar o invocado «erro notório na apreciação de prova», o recorrente alegou que sabendo embora o acidente, ele não tinha intenção de fugir da responsabilidade, por não tomar conhecimento de que a sua viatura tinha provocado dano ao automóvel do ofendido e ele próprio foi autor do acidente.
Trata-se, na nossa modesta óptica, duma asserção manifestamente descabida, visto que está inquestionavelmente provado que logo depois do acidente, o ofendido manifestou ao recorrente a vontade de apresentar queixa à Polícia, e lhe exigiu não sair do local (leia-se na douta sentença a seguinte frase: 意外發生後,XXX立即向嫌犯表示會報警處理,並著嫌犯不要離開現場).
Sopesadas em consonância com a regra de experiência, as palavras do ofendido dão suficientemente, para qualquer pessoa de inteligência normal, a entender que o recorrente causou dano ou prejuízo a si próprio ou ao seu automóvel. E confessada pelo recorrente na Motivação, a sua palavra «如果交通十五分鐘吾來,我就走 » mostra a montante que ele sabia ter feito mal ao ofendido.
Sendo assim, e tendo em conta que o recorrente saiu do local sem deixar nenhum meio de contacto ao ofendido, afigura-se-nos que na dita altura, o recorrente tinha intenção de arriscar à sorte (僥倖心態) para fugir da responsabilidade, pelo que não há in casu o erro notório na apreciação de prova para concluir pela existência da culpa do recorrente.
Ora, o recorrente não pôs em dúvida o facto provado de que cerca de 15 minutos posteriores ao acidente, e depois de saber que o ofendido chamara a polícia, ele abandonou do lugar de acidente, sem dar qualquer meio de contacto ao ofendido. Tal conduta implica a intenção de arriscar à sorte (僥倖心態) para fugir da responsabilidade.
Nesta medida, o aludido facto provado garante, só por si, a firmeza da dedução de que «嫌犯在自由、自願及有意識的情況下,明知發生交通意外且自己為意外的肇事者,仍故意駕車逃離現場,企圖逃避可能引致的民事或刑事責任。» O que nos leva a crer com tranquilidade que não se verifica, no vertente, caso, a arguida insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do n. °2 do art.400° do CPP.
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Em sede de fundamentação dos factos provados, a MMB Juiz a quo referiu que (sublinha nossa): «……, 由此,法庭認為嫌犯當時存在沒有正面處理事件的心態,一走了之,或多或少抱或許有可能就此能逃脫心態,基此,認定其逃避責任的意圖。» (cfr. fls. da sentença recorrida)
É patente que, como bem observou e esclareceu a ilustre colega, a locução «或多或少» (mais ou menos) não é a alicerce dos factos dados por provados, mas se destina a descrever a atitude do recorrente para chegar à conclusão da existência da intenção de fugir da responsabilidade. Daí que não faz sentido invocar a violação do princípio in dubio pro reu.
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Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do recurso em apreço”; (cfr., fls. 126 a 127).

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Nada obstando, passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados na sentença recorrida a fls. 84-v e 85, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer da sentença que o condenou pela prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 89° da Lei n.° 3/2007, na pena de 60 dias de multa, à taxa de MOP$150.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$9.000,00 ou 40 dias de prisão subsidiária, e na inibição de condução por 3 meses.

Diz que a decisão padece de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “violação do princípio in dubio pro reo”.

Cremos porém que nenhuma razão lhe assiste, necessária não sendo uma abundante fundamentação para assim concluir.

–– De facto, no que toca ao sentido e alcance do vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, tem sido entendido que o mesmo apenas se verifica quando “o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013).

No caso dos autos, e como sem esforço se verifica da sentença recorrida, o Tribunal a quo, pronunciou-se sobre toda a matéria objecto do processo, elencando a matéria que do julgamento resultou provada, identificando a que resultou não provada, fundamentando também esta sua decisão, adequado não sendo assim dizer-se que incorreu no vício em questão.

–– Vejamos agora do imputado “erro notório na apreciação da prova”.

Sobre o vício de “erro notório” tem este T.S.I. consignado que:

“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 13.02.2014, Proc. n.° 754/2013 do ora relator).

E, dito isto, evidente é que nenhum “erro” existe, limitando-se o recorrente a tentar controverter a matéria de facto dada como provada, (tentando) impor a sua versão dos factos, (alegando a sua “inocência”), o que não pode ser acolhido sob pena de frontal violação do princípio da livre apreciação da prova, (e da imediação e oralidade da audiência de julgamento em 1ª Instância).

Na verdade, e como também temos afirmado, “erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.

Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.

O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.

Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014).

E, no caso, diz o recorrente que se devia ter dado como provado que “não teve intenção de fugir do local”, já que após o acidente, “esperou pela Polícia por 15 minutos”.

Ora, tal não constitui nenhum “erro notório” nem tão pouco constitui motivo para alterar o decidido.

Com efeito, nos termos do art. 89° da Lei n.° 3/2007:

“Quem intervier num acidente e tentar, fora dos meios legais ao seu alcance, furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tenha incorrido é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”..

E, como bem se pode ver, não é a (eventual) demora na chegada da Polícia que legitima o abandono do local do acidente por qualquer dos seus intervenientes, excepto, comprovada e inadiável necessidade, (o que, no caso, não sucedeu), certo sendo que nestas situações, sempre deve a pessoa em questão assegurar que (minimamente) clarificadas e apuradas fiquem as circunstâncias em que ocorreu o acidente e os seus respectivos intervenientes, assim como facultar elementos que permitam a sua identificação e contacto, (o que, igualmente, não sucedeu).

–– Por fim, quanto ao “princípio “in dubio pro reo”, o mesmo identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dúbio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o Ac. de 06.04.2000, Proc. n.° 44/2000, e mais recentemente, de 19.09.2013, Proc. n.° 157/2013).

Constatando-se que em momento algum teve o Mmo Juiz a quo qualquer “dúvida” (ou hesitação) aquando da sua decisão sobre a factualidade imputada ao arguido, inviável é também conceber-se que ocorreu violação do dito princípio.

Nesta conformidade, e outra questão não havendo, à vista está a solução.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o arguido a taxa de justiça de 5 UCs.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.500,00.

Macau, aos 24 de Julho de 2014
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 311/2014 Pág. 16

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