Processo nº 17/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Julho de 2014
Descritores:
-Revisão de sentença
-Divórcio
-Bens situados em Macau
SUMÁRIO
I - Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
II - Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
III - É de confirmar a decisão da Conservatória do Registo Civil da República Popular da China, competente segundo as leis deste país, que autoriza e regista o divórcio por “conciliação civil” ou mútuo consentimento, desde que não se vislumbre qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública ou qualquer obstáculo à sua revisão.
Proc. Nº 17/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, do sexo masculino, divorciado, de nacionalidade chinesa, portador do Bilhete de Identidade de Residente da República Popular da China, n.º XXX, emitido pela República Popular da China em 15 de Novembro de 2005, residente na Cidade de Guangzhou, em 番禺區XXX
e
B, do sexo feminino, divorciada, de nacionalidade chinesa, portadora do Bilhete de Identidade de Residente Não Permanente de Macau n.º XXX, emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação de Macau em 10 de Fevereiro de 2012, residente em Macau, na Rua de Luís Gonzaga Gomes XXX,
Vieram requerer a presente Acção especial de revisão de decisão proferida por tribunal do exterior de Macau.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido do deferimento do pedido.
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O Tribunal goza, assim, de competência internacional, material e também em razão da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
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III – Os Factos
1 - A e B, requerentes, contraíram casamento no interior da China em 16 de Novembro de 1988.
2 - Desse casamento adveio o nascimento da filha C e do filho D, ambos, actualmente, maiores.
3 - A requerente B é residente de Macau.
4 - Em 27 de Janeiro de 2011, ambos assinaram, conforme a Lei de Casamento da República Popular da China, o acordo de divórcio no Cartório Notarial do Distrito de Panyu da Cidade de Guangzhou da República Popular da China (Doc. 1).
5 – Tal acordo apresenta o seguinte teor:
«Escritura Pública
Cartório Notarial Guangzhou da Cidade de Guangzhou da Província de Guangdong da República Popular da China
Acordo de Divórcio
Marido: A, nascido em 27 de Junho de 1964, portador do Bilhete de Identidade n.º XXX, com residência em 廣東省廣州市番禺區XXX.
Mulher: B, nascida em 28 de Fevereiro de 1966, portadora do Bilhete de Identidade n.º XXX, com residência em 廣東省廣州市番禺區XXX.
Contraímos casamento em 16 de Novembro de 1988. Após o casamento, não conseguimos viver em conjunto por causa da incompatibilidade dos caracteres pessoais, e em consequência, concordamos voluntariamente em divorciar-se e chegamos a um acordo comum sobre a prestação de alimentos aos filhos, os bens, as dívidas, etc. O acordo sobre a prestação de alimentos aos filhos e os bens é o seguinte:
1. A e B divorciam-se voluntariamente.
2. A filha C (de 18 anos de idade) e o filho D (de 17 anos de idade) na constância do casamento serão entregues aos cuidados de B, e por sua vez, A pagará mensalmente uma quantia de RMB1.000,00 como pensão de alimentos até 2017.
3. A terá o direito de visita sempre que quiser, não podendo B impedir o exercício do direito de visita desse.
4. Os nossos bens comuns incluem:
(1) Cada um terá 50% do proveito resultante da venda ou do arrendamento da fracção situada em 廣東省廣州市番禺區XXX (Yue Fang Di Zheng Zi n.º XXX) e o empréstimo sobre a referida fracção será solidariamente suportado por ambos.
(2) Cada um terá 50% do proveito resultante da venda ou do arrendamento da fracção situada no Edifício XX, Taipa, RAEM.
(3) O veículo Hyundai (matrícula n.º XXX) ficará com B.
5. Após o divórcio, cada um responsabilizar-se-á pelos seus próprios créditos e obrigações existentes na constância do casamento.
6. Este acordo é celebrado de livre vontade por ambos os cônjuges e é juridicamente vinculativo para ambos. O inadimplente deverá assumir as responsabilidades legais.
7. O presente acordo entrará em vigor na data da emissão da “certidão de divórcio”.
Nós, com plena, capacidade jurídica civil, concordamos voluntariamente em divorciar-nos e concordamos totalmente nas disposições deste acordo, sem outra opinião diferente.
Contraentes:
A (Assinatura): Vide o original (com impressão digital)
B (Assinatura): Vide o original (com impressão digital)».
6 – A certidão de divórcio foi emitida no mesmo dia 27 de Janeiro de 2011 e, nos termos do nº7 do acordo o divórcio começa a produzir efeitos nesse mesmo dia.
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IV – O Direito
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida; 342/2009 28/34
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública. 2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Neste tipo de processos - de revisão formal - não se conhece do fundo ou do mérito da causa, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito.
Vejamos, então, os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
Os documentos constantes dos autos reportam e certificam a situação verificada perante o Cartório Notarial do Distrito de Panyu da Cidade de Guangzhou da Província de Guangdong da República Popular da China (Departamento para os Assuntos Cívicos). Revelam, além da autenticidade, a inteligibilidade da cessação da união conjugal por divórcio por mútuo consentimento com observância dos preceitos legais em vigor aplicáveis à situação.
Por outro lado, a decisão em apreço não conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública (cfr. art. 20º e 273º do C.C.). Com efeito, o direito substantivo de Macau prevê a dissolução do casamento, igualmente com fundamento na cessação dos laços e convivência conjugal.
Reunidos estão, pois, os requisitos de verificação oficiosa do art. 1200º, n.º 1, als. a) e f), do CPC.
Além destes, não se detecta que os restantes (alíneas b), d) e e)) constituam aqui qualquer obstáculo ao objectivo a que tendem os autos.
Na verdade, o registo do divórcio ocorreu no mesmo dia em que os cônjuges celebraram o acordo, pelo que nenhum impedimento a propósito do trânsito da decisão se verifica.
A aceitação, autorização e registo do divórcio, por outro lado, foi proferida por entidade competente face à lei em vigor na República Popular da China e não versa sobre matéria exclusiva da competência dos tribunais de Macau, face ao que consta do art. 20º do Cod. Civil.
Também não se vê que tivesse havido violação das regras de litispendência e caso julgado ou que tivessem sido violadas as regras da citação no âmbito daquele processo ou que não tivessem sido observados os princípios do contraditório ou da igualdade das partes.
Posto isto, tudo se conjuga para a procedência do pedido (cfr. art. 1204º do CPC).
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder a revisão e confirmar o acordo de divórcio registado no Cartório Notarial do Distrito de Panyu da Cidade de Guangzhou da Província de Guangdong da República Popular da China (Departamento para os Assuntos Cívicos) nos termos acima transcritos.
Custas pelos requerentes.
TSI, 03 de Julho de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong