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 Processo n.º 128/2014
    (Recurso Cível)
    
    Relator: João Gil de Oliveira
    Data : 24/Julho/2014


ASSUNTOS:
- Impugnação da matéria de facto
- Contrato de trabalho de não residentes
- Regime mais favorável decorrente de um contrato celebrado entre empregador e uma empresa agenciadora de mão- de- obra
- Contrato a favor de terceiro
- Subsídio de alimentação
- Subsídio de efectividade
    
    
    SUMÁRIO :
    1. Há que ser muito prudente na reapreciação da matéria de facto, sendo de privilegiar a imediação vivenciada pelo Juiz do julgamento em 1ª Instância, havendo que contextualizar o depoimento da testemunha e tentar abarcar tudo aquilo que os monossílabos, se não os silêncios, encerram. Terá sido essa sensibilidade que o juiz na sua imediação não deixou de ter em relação a um certo depoimento, formalmente curto, mas substancialmente fazendo perceber toda a realidade que importaria abarcar.
    2. É de aplicar a uma dada relação de trabalho, para além do regulado no contrato celebrado directamente entre o empregador e o trabalhador, o regime legal mais favorável ao trabalhador e que decorre de um contrato celebrado entre o empregador e uma Sociedade prestadora de serviços, ao abrigo do qual o trabalhador foi contratado e ao abrigo do qual, enquanto não residente, foi autorizado a trabalhar em Macau, regime esse devidamente enquadrado por uma previsão normativa constante do Despacho 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
    3. A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
    4. O Despacho 12/GM/88 cuida tão somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
    5. O trabalhador só foi contratado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação, como flui do artigo 9º, d), d.2) do aludido despacho 12/GM/88.
    6. Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.
    7. Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
    8. O subsídio de alimentação, vista a natureza e os fins a que se destina, deve estar dependente do trabalho efectivamente prestado.
    9. Já o denominado subsídio de efectividade, não obstante a sua designação, tem uma natureza mais retributiva e, vistos os termos em que é concebido, atribuído por um mês sem faltas, as ausências autorizadas não o devem excluir.
              
              O Relator,
              João A. G. Gil de Oliveira

Processo n.º 128/2014
(Recurso Civil)
Data : 24/Julho/2014

Recorrente : A (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Lda.

Recorrida : B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    A (MACAU) - SERVIÇOS E SISTEMAS DE SEGURANÇA LIMITADA, R. nos autos em epígrafe, em que é A. B, tendo sido notificada da sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a A. a pagar ao R. a quantia total de MOP$176,612.70,a título de diferenças salariais, trabalho extraordinário, subsídio de alimentação, subsídio de efectividade e trabalho em dia de descanso semanal, acrescida de juros, dela vem recorrer, alegando em síntese conclusiva:
a) O julgamento que incidiu sobre o ponto 21 da matéria de facto escorou-se no depoimento da testemunha C;
    b) A testemunha revela-se, a este respeito, totalmente falha de razão de ciência ou riqueza de detalhe, por não avançar qualquer circunstância de facto que a habilitasse a proclamar que, durante quase 8 anos (i.e., o tempo em que foram ambos funcionários da R), o A nunca faltou sem justificação ou sem estar autorizado pela R para esse efeito, mais a mais quando reconhece que, nesse período de tempo, apenas por uma vez foi colocado a trabalhar no mesmo sítio que o A, tendo inclusive o Mmo. Tribunal a quo concedido que o depoimento da testemunha foi "algo hesitante";
    c) A testemunha não se pronunciou especificamente sobre a situação concreta do A, tendo opinado - porque foi isto que fez - sobre a situação e prática supostamente geral da R. nesta matéria.
    d) No entanto, e num depoimento em que nem se menciona o A ou a sua situação particular, o Tribunal recorrido permite-se extrapolar de forma inaceitável as generalidades debitadas pela hesitante testemunha, concluindo que, pelas regras de experiência comum, é possível verificar que o A. em particular nunca faltou sem conhecimento ou autorização da R..
    e) Razão por que o julgamento que incidiu sobre o referido ponto 21 se mostra equivocado;
    f) O ponto 23 da matéria de facto, relativo à ausência de gozo pelo A. de descanso semanal, suporta-se também no depoimento da testemunha C;
    g) Também quanto aos respectivos factos as respostas da testemunha são lacónicas e destituídas de qualquer detalhe que as credibilize ou sequer de menção ao A. e à sua situação concreta;
    h) Por outro lado, os registos de fronteiras do A. demonstram que por diversas vezes ao longo da sua relação laboral o mesmo se ausentou pontualmente do território de Macau, o que denota que gozava dias de descanso;
    i) O que uma vez mais leva a que se considere errado o julgamento que o Tribunal a quo proferiu sobre este ponto da matéria de facto;
    j) As provas têm por função demonstrar a realidade dos factos (art. 334º do Código Civil), e visam apurar factos relevantes para a decisão da causa (art. 433º do CPG);
    k) A prova faz-se vencendo a resistência da dúvida e introduzindo no mundo jurídico elementos que possam razoavelmente suportar um juízo sobre a realidade do facto sobre o qual se indaga;
    l) Se essa dúvida não é vencida, ela resolve-se contra quem invocou o facto (art. 437º do CPC);
    m) Não se pode promover o depoimento reconhecidamente hesitante duma testemunha a uma credibilidade que ele não tem, com base no facto de não existirem mais provas idóneas a confirmarem a posição assumida pelo A. nos presentes autos.
    n) Se tais provas não existem, tal não pode redundar num afrouxar das regras gerais de produção da prova, até porque essas regras existem (i) porque o legislador considerou que vir a juízo demandar seja o que for é um assunto sério, que apenas se deve promover com elementos aptos a confirmarem a posição das partes e (ii) para impedir que pedidos sem fundamento possam ser suportados por generalidades debitadas por testemunhas sem conhecimento específico dos factos.
    o) Face a todo o exposto, pela reapreciação da prova constante dos autos, nomeadamente do depoimento prestado pela testemunha C, gravado no ficheiro "Recorded on 15-May-2013 at 14.50.39 (0TC6GV(W05411270).mp3" e dos registos de fronteiras de fls., deverá ser alterada a resposta aos factos contidos nos pontos 21 e 23 da matéria de facto provada, julgando-se aqueles não provados, com as devidas consequências quanto aos pedidos formulados pelo A.;
    p) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
    q) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
    r) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
    s) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
    t) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
    u) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3° e 9°;
    v) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
    w) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
    x) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como "contratos de prestação de serviços";
    y) Deles é possível extrair que a Sociedade "contratou" trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
    z) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
    aa) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
    bb) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contra prestação de obrigações;
    cc) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
    dd) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
    ee) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
    ff) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
    gg) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
    hh) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400°/2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest);
    ii) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
    jj) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
    kk) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A, sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
    ll) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A, de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
    mm) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º/2 e 437º do Código Civil;
    nn) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A para reclamar quaisquer "condições mais favoráveis" emergentes destes contratos;
    oo) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
    pp) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
    qq) Por outro lado, quanto ao regime previsto nos Contratos para o cálculo da remuneração do trabalho extraordinário, deverá entender-se que o mesmo remete para o art. 11°/2 do Decreto-Lei n° 24/89/M, em cujo art. 11°/2, o qual deixa ao critério das partes o ajuste, em sede de contrato individual de trabalho, dos termos dessa remuneração;
    rr) Cabia pois ao A alegar os termos desse ajuste contratual, o que não fez;
    ss) Como tal, conclui-se que o A não demonstrou ser-lhe devida qualquer quantia adicional às que, como ficou provado nos pontos 16 a 19, lhe foram oportunamente pagas pela R. como remuneração do trabalho extraordinário prestado;
    tt) Ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou o art. 228°/1 do Código Civil;
    uu) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A qualquer direito a título de subsídio de alimentação;
    vv) Acresce que, como é entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina, o pagamento de subsídio de refeição depende da prestação efectiva de trabalho;
    ww) Porém, na decisão recorrida propugnou-se o entendimento de que as faltas justificadas ou autorizadas que o A. tenha dado ao trabalho em nada relevam para aferição do subsídio de alimentação que lhe será devido;
    xx) Ao decidir nesse sentido, o Tribunal recorrido fez errada interpretação da estipulação dos Contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228°/1 do Código Civil;
    yy) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade;
    zz) Assim sucederá também pela procedência da reapreciação requerida quanto ao ponto 21 da matéria de facto, por falta de suporte factual susceptível de integrar o direito do A. a perceber tal subsídio;
    aaa) Acresce que, nos termos dos Contratos, o subsídio de efectividade é um mecanismo destinado a premiar a efectiva prestação de trabalho;
    bbb) Nesse sentido, é para o empregador irrelevante que o empregado, faltando, o faça por motivo atendível e justificado, ou até sob autorização prévia;
    ccc) Assim, ao decidir no sentido de que as faltas justificadas ou autorizadas não devem ser tidas em conta para a aferição do subsídio de efectividade, a decisão a quo violou uma vez mais o disposto no art. 228°/1 do Código Civil.
    ddd) A modificação da decisão sobre o ponto 23 da matéria de facto terá o efeito de absolver a R. do pedido formulado a título de compensação por trabalho prestado em dia de descanso semanal, por via da inexistência do respectivo suporte factual;
    eee) Ainda assim, entende a R. que sempre haverá que considerar que a decisão recorrida enferma de erro de Direito, sendo nula por contradição entre os fundamentos e a decisão;
    fff) Por regular apenas as relações de trabalho com residentes da RAEM, o Decreto-Lei n° 24/89/M não é aplicável ao caso em apreço, devendo entender-se que a remuneração do descanso semanal era tema tratado de forma definitiva no âmbito do contrato de trabalho celebrado entre A. e R.;
    ggg) Ao decidir em sentido diverso, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 1°/2 e 3°/3/d) do Decreto-Lei n° 24/89M;
    hhh) Vem também provado que, pelo trabalho em dia de descanso semanal que efectivamente prestou, o A. foi remunerado pela R. com o valor de um salário diário, em singelo (ponto 24 da matéria de facto);
    iii) Ainda que se considere aplicável ao caso vertente o disposto no art. 17º do Decreto-Lei n° 24/89/M do RJRL, deverá ter-se em conta que o seu n° 6/a) estatui que o trabalho prestado em dia de descanso semanal deve ser remunerado pelo dobro da retribuição normal;
    jjj) Assim, terá que concluir-se que, para que lhe sejam satisfeitos os direitos que legalmente lhe assistam a esse título, o A. terá apenas que receber montante igual ao que já lhe foi liquidado pela R;
    kkk) Não obstante, a sentença recorrida condenou a R a pagar ao A. o valor correspondente ao dobro de um salário diário, desconsiderando por completo o facto - que na mesma sentença se deu por provado - de a R ter já pago ao A. metade desse valor.
    lll) Decidindo de outra forma, a sentença recorrida é nula, por contradição entre o fundamento de facto contido no ponto 24 e a decisão proferida quanto ao pedido a título de trabalho prestado em dia descanso semanal (conforme estatuído no art. 571°/1/c) do CPC), tendo violado além do mais o disposto no art. 17º/6/a) do Decreto-Lei n° 24/89/M.
    Nestes termos, pugna pela revogação da sentença.
    
    B, Autor nos autos à margem identificados, contra-alega, defendendo a bondade do julgado:
    1. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, a douta Sentença de que recorre procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis e, bem assim, a uma correcta aplicação da Lei e do Direito devendo, em consequência, manter-se na integra;
    2. Descontando algum excesso de linguagem, perfeitamente dispensável, por parte da Recorrente, o apontado "nervosismo" ou "hesitação" da testemunha relativamente às questões que lhe foram colocadas foi devidamente tido em conta pelo Tribunal a quo no âmbito da livre apreciação da prova;
    3. Seja como for, em caso algum se poderá pretender que a testemunha não fosse conhecedora da realidade sobre a qual se pronunciou, visto durante largos anos igualmente exerceu funções de guarda de segurança para a Recorrente, nas mesmas condições que o Recorrido e as demais de centenas de trabalhadores da Ré de origem Filipina;
    4. De onde, da prova testemunhal produzida em sede de audiência, discussão e julgamento, não existe um qualquer erro, contradição ou vício que possa inquinar o conteúdo da matéria de facto dada por provada, não se justificando uma qualquer reapreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
    Do Direito:
    5. É entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência de Macau que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, era um diploma com natureza e intencionalidade assumidamente normativa imperativa, destinado a definir um conjunto de requisitos tidos como mínimos e indispensáveis à contratação de trabalhadores não residentes;
    6. De onde, a Recorrente tão-só poderia celebrar contratos com trabalhadores não residentes desde que o fizesse ao abrigo do respectivo «despacho de autorização governamental», tendo por base as condições tidas por mínimas constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, as quais, por seu turno, se deveriam incorporar no clausulado do «contrato de prestação de serviços» a celebrar entre a entidade interessada (in casu a Recorrente) e uma entidade fornecedora de mão de obra não residente (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.);
    7. Assim, o Recorrido nunca poderia ter sido admitido como trabalhador da Recorrente (ou de qualquer outro empregador na RAEM) por via de um contrato que não tivesse obedecido ao disposto nos números 2, 3 e 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, maxime por via de um «contrato individual de trabalho», porquanto a contratação de trabalhadores não residentes estava sujeita a um regime especial e imperativo que em caso algum poderia ser derrogado pelas partes, excepto para consagrar condições de trabalho mais favoráveis ao trabalhador.
    8. Por outro lado,
    9. Constitui igualmente jurisprudência assente ao nível do Tribunal de Segunda Instância que os Contratos de Prestação de Serviços concluídos entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Limitada, e ao abrigo dos quais os trabalhadores não residentes (e, in casu, o ora Recorrido) eram autorizados a prestar trabalho, juridicamente se configuram como contratos a favor de terceiros;
    10. Basta ver que do próprio conteúdo literal dos referidos contratos resulta que os mesmos - na sua grande totalidade - não se destinavam a regular as relações jurídicas dos outorgantes mas antes de terceiros, maxime dos trabalhadores que seriam recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e que posteriormente eram cedidos à Recorrente (de entre os quais se inclui o ora Recorrido);
    11. Assim, tratando-se de um «contrato a favor de terceiro» e repercutindo-se o mesmo na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, mais do que líquido que o beneficiário da promessa (in casu, o Recorrido) adquire o(s) direito(s) - ou parte dele(s) - constantes do mesmo contrato independentemente de aceitação (art. 438.°, n.º 1 do C. Civil de Macau) e, em consequência, pode exigir o seu cumprimento directamente do obrigado (in casu, da Recorrente), tal qual acertadamente concluiu o Tribunal a quo;
    12. Ao que acresce que a "tese" apresentada pela Recorrente no sentido de a Sociedade de Apoio não ter "interesse digno de protecção legal" na contratação dos trabalhadores por si recrutados a pedido da Recorrente e posteriormente "cedidos" à primeira, para além de original e inovatória visto nunca antes ter sido formalmente apresentada - é desprovida de todo e qualquer sentido prático ou útil;
    Por outro lado,
    13. Igualmente de forma inovadora, a Recorrente vem defender (nunca o tendo feito anteriormente) que em caso algum seria admissível que Recorrido não pudesse receber a título de trabalho extraordinário uma quantia que fosse inferior à que se encontrava prevista no Contrato de Prestação de Serviços como sendo a sua remuneração diária, dividindo-a por 8 horas de trabalho diário;
    14. Desde logo, porque resulta do senso comum não ser de admitir que o valor da remuneração de cada hora de trabalho extraordinário prestado pudesse ser inferior ao valor da remuneração de cada hora do trabalho normal.
    Por outro lado,
    15. Não resulta do Contrato de Prestação de Serviços ao abrigo do qual o Recorrido foi autorizado a prestar trabalho para a Recorrente que a atribuição do subsídio de alimentação ou de refeição estivesse dependente da prestação efectiva de trabalho;
    16. Seja como for, nunca as faltas justificadas ou previamente autorizadas pela Recorrente poderiam ser aptas a justificar a não atribuição ao Recorrido do subsídio de alimentação ou do subsídio de efectividade, porquanto não é irrelevante que o trabalhador falte ao serviço com ou sem motivo ou mediante motivo atendível e justificado e precedido de autorização prévia por parte da respectiva entidade patronal, isto é, da Recorrente;
    17. Não existe qualquer contradição entre os fundamentos de facto e a decisão posta em crise pela Recorrente ao nível da decisão respeitante ao descanso semanal;
    18. Com efeito, o facto de o Recorrido ter sido pago pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal em singelo, em caso algum se mostra contraditório com o direito de ser pago em dobro da retribuição normal (isto é 2 X o salário normal diário), conforme dispõe o n.º 6 do artigo 17.° do DL 24/89/M, de 3 de Abril.
    19. Trata-se, de resto, de interpretação que tem vindo a seguida de forma quase unanime pelo Tribunal de Segunda Instância em processos em tudo similares ao presente;
    20. Ao que acresce que, a fórmula do pagamento do trabalho prestado em dia de descanso semanal contestada agora pela Recorrente, coincide com aquela que a mesma - ainda que em via subsidiária - avançou no artigo 77.° da sua Contestação;
    21. De onde, com o devido respeito, não se admite que a Recorrente procure questionar a concreta fórmula de cálculo utilizada pelo Tribunal a quo: número de dias de descanso semanal X salário diário X 2.
    Isto dito, importa igualmente dizer que,
    22. Não é correcto afirmar e pretender que o Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, em caso algum se mostra possível de aplicação aos presentes autos e, bem assim, que a Lei n.º 4/98/M, também não permite (ou sequer contribui) para fazer aplicar o primeiro diploma por analogia à situação dos trabalhadores não residentes e, in casu, à situação do ora Recorrido.
    23. Pelo contrário, seja por força do Princípio da igualdade expressamente consagrado no n.º 1 do artigo 5.º da Lei n.º 4/98/M, seja por aplicação analógica do regime contido no Decreto-Lei n.º 24/89/M, deverá ser sempre aplicável o disposto no artigo 17.0 daquele Diploma no que se refere à prestação de trabalho em dia de descanso semanal por parte do Recorrido.
    Nestes termos entende dever o recurso apresentado pela recorrente ser julgado totalmente improcedente.
    
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes.
    
    1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores. (A)
    2) Desde o ano de 1994, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior». (B)
    3) A Ré celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os denominados «contratos de prestação de serviços»: nº 2/94, de 03/01/1994; nº 29/94, de 11/05/1994; nº 45/94, de 27/12/1994.(C)
    4) Do teor dos contratos aludidos em C) resultava que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (D)
    5) A Ré sempre apresentou junto da entidade competente, maxime junto da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), cópia dos «contratos de prestação de serviço» supra referidos, para efeitos de contratação de trabalhadores não residentes.(E)
    6) O Autor esteve ao serviço da Ré para, sob as suas ordens, direcção, instruções e fiscalização exercer funções de guarda de segurança, mediante o pagamento de um salário.(F)
    7) Autor foi admitido ao serviço da Ré na sequência do contrato n.º 2/94, denominado de prestação de serviços, celebrado com a dita Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., (G)
    8) Ao longo da relação laboral, a Ré apresentou ao Autor vários documentos escritos denominados contratos individuais de trabalho, que este assinou.(H)
    9) A Ré celebrou ainda com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os denominados “contrato de prestação de serviços”: nº 1/01 de 03 de Janeiro de 2001 e n.º 14/01, de 26 de Março de 2001, constantes dos autos a fls. 103 a 107 e fls.108 a 112, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos. (I)
    10) O Autor exerceu funções para a Ré do dia 19.01.1996 até ao dia 14.02.2012 (resposta ao quesito 1.º).
    11) Desde a sua admissão e até ao dia 19 de Novembro de 1999 - data em que entrou em vigor o contrato de prestação de serviço n.º 02/94, datado de 06.07.1999, junto nos autos em anexo e que aqui se dá por integralmente reproduzido - o Autor exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré com as condições previstas nos contratos aludidos em G) e C). (2.º)
    12) Entre Fevereiro de 1996 e Junho de 1997, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,700.00 mensais. (3.º)
    13) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,800.00 mensais. (4.º)
    14) Entre Abril de 1998 e Fevereiro de 2005, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (5.º)
    15) Durante o período compreendido entre 19.01.1996 e Fevereiro de 2005, o Autor trabalhou, em média, 12 horas diárias. (Quesitos 8.º, 10.º, 12.º e 14.º)
    16) Entre 19 de Janeiro de 1996 e 30 de Junho de 1997 a Ré remunerou o trabalho extraordinário à razão de MOP$8.00, por hora. (9.º)
    17) Entre Julho de 1997 e 30 de Junho de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário à razão de MOP$9.30, por hora. (11.º)
    18) Entre Julho de 2002 e 28 de Dezembro de 2002, a Ré remunerou o trabalho extraordinário à razão de MOP$10.00, por hora.(13.º)
    19) Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005, a Ré remunerou o trabalho extraordinário à razão de MOP$11.00, por hora. (15.º)
    20) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (16.º)
    21) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca este, sem conhecimento e autorização prévia pela Ré, deu qualquer falta ao trabalho (17.º).
    22) Durante todo o período da relação laboral, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias. (18.º)
    23) Provado apenas que, pelo menos até 2003, o Autor nunca gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (19.º)
    24) A prestação de trabalho pelo Autor nos dias de descanso semanal foi remunerada pela Ré com o valor de um salário diário, em singelo. (20.º)
    25) E sem que lhe tenha sido concedido um dia de descanso compensatório. (21.º)
    26) A partir de 18.01.2002 o Autor passou a estar ao serviço da Ré no âmbito de uma autorização concedida em processo administrativo relativo ao contrato de prestação de serviços n.º 1/1, datado de 15 de Janeiro de 2002, constante dos autos em anexo e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (22.º e 23.º)
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
    - Julgamento da matéria de facto:
    - Configuração jurídica do contrato celebrado;
    - Análise das diferentes compensações.
    
    2. Decisão sobre a matéria de facto
a) Da prova relativa aos pontos 21 e 23 da matéria provada.
Atentemos no que diz a recorrente, não se pondo em causa que o que vem transcrito foi exactamente aquilo que a testemunha – a única testemunha ouvida em julgamento – disse efectivamente :
    “No que à matéria do presente recurso importa, encontram-se provados os seguintes factos:
    21) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca este, sem conhecimento e autorização prévia pela Ré, deu qualquer falta ao trabalho.
    23) Pelo menos até 2003, o Autor nunca gozou de qualquer dia a título de descanso semanal.
    Ora, considera a R. que o julgamento de facto que incidiu sobre os referidos pontos se mostra equivocado, devendo a correcta ponderação dos meios de prova constantes dos autos conduzir a decisão bem distinta.
    Para a prova dos factos acima elencados …o Tribunal recorrido louvou-se no depoimento da testemunha C, que o próprio Tribunal reconheceu ser, "algo hesitante" tendo até a Mma. Juiz tido necessidade de perguntar à testemunha se estaria "nervosa", porque não se percebiam as suas respostas.
    O depoimento da testemunha encontra-se gravado …
    A sua audição não pode, salvo o devido respeito, deixar de confirmar a hesitação da testemunha em toda a linha, tornando assim incompreensível o sentido e valoração que lhe foram dados pelo Tribunal recorrido.
    Efectivamente, no respeitante à matéria do ponto 21 da matéria de facto, a Ilustre Mandatária do A. apenas questionou a testemunha em termos gerais sobre se alguém (e não especificamente o A.) poderia dar qualquer falta fora daquelas circunstâncias, ao aludida testemunha, após hesitação, responde (a 47m30s da gravação acima referida) que:
    "Se precisarmos de descansar, temos que pedir com três dias de antecedência."
    A testemunha revela-se, a este respeito, totalmente falha de razão de ciência ou riqueza de detalhe, por não avançar qualquer circunstância de facto que a habilitasse a proclamar que, durante quase 8 anos (i.e., o tempo em que foram ambos funcionários da R), o A nunca faltou sem justificação ou sem estar autorizado pela R para esse efeito, mais a mais quando reconhece que, nesse período de tempo, apenas por uma vez foi colocado a trabalhar no mesmo local que o A…
    Não tendo a testemunha trabalhado permanentemente nos mesmos locais que o A, como poderia detectar pessoalmente as suas faltas? E além disso, teria a testemunha conhecimento das comunicações entre A e R a respeito de tais faltas, de modo a poder assegurar-se que nunca lhes faltou justificação ou autorização?
    Mais ainda, a testemunha não se pronunciou especificamente sobre a situação concreta do A., tendo opinado - porque foi isto que fez - sobre a situação e prática supostamente geral da R nesta matéria.
    (…)
    O depoimento da testemunha C constitui também o suporte em que o Tribunal a quo assentou o seu julgamento sobre o ponto 23 da matéria de facto, respeitante ao trabalho prestado pelo A em dia de descanso semanal.
    A este respeito, a testemunha voltou a não ser questionada pela Ilustre Mandatária do R sobre a situação concreta do A, tendo apenas sido questionado no plural sobre se "vocês" (os trabalhadores em geral) tinham descanso semanal, ao que a testemunha responde (a 49m46s da gravação acima referida):
    "Não, não."
    Uma vez mais a resposta é lacónica e destituída de qualquer detalhe que a credibilize …
    Uma vez mais, apenas uma grande proximidade com o A. conferiria à testemunha um conhecimento apto a suportar aquela sua resposta, proximidade que a testemunha não revela.
    A tudo acresce que, como resulta dos registos de fronteiras juntos aos autos, está demonstrado que por diversas vezes ao longo da sua relação laboral o A. se ausentou pontualmente do território de Macau,
    O que denota que efectivamente gozava dias de descanso, nos quais não prestava trabalho para a A..
    Ora, este facto abala a já rarefeita credibilidade do depoimento da testemunha C, por deixar claro que é falso que o A. trabalhasse permanentemente 7 dias por semana, sem gozar qualquer dia de descanso semanal,
    Tudo redundando em, uma vez mais, se considerar errado o julgamento que o Tribunal a quo proferiu sobre o ponto 23 da matéria de facto.
    (…)”
    À primeira vista, esta alegação parece impressionar.
    Tal como já temos afirmado a propósito desta aparente insuficiência probatória, importa colocarmo-nos na particular posição da testemunha, também ele trabalhador, naturalmente condicionado, se não fragilizado, ao depor num ambiente que lhe é estranho, sobre uma relação laboral que ele próprio vivenciou em termos próximos àqueles em que depôs, numa acção movida contra a ex-entidade patronal.
    Há que contextualizar aquele depoimento e tentar abarcar tudo aquilo que os monossílabos, se não os silêncios, encerram.
    Terá sido essa sensibilidade que a Mma Juíza na sua imediação não deixou de ter em relação àquele depoimento, formalmente curto, mas substancialmente fazendo perceber toda a realidade que importaria abarcar.
    Realça-se essa imediação e a atenção evidenciada pela Mma Juíza que a cada passo intervém, insta, pergunta e busca esclarecimentos, tal com resulta claramente da audição do CD junto aos autos.
    A testemunha mostrou conhecer a matéria sobre a qual foi questionado, visto durante largos anos ter igualmente exercido funções de guarda de segurança para a Ré/Recorrente nas mesmas condições que o autor e as demais centenas de trabalhadores de origem Filipina.
    Na linha do que já noutro passo se avançou e sem querer inverter as regras do ónus da prova importa registar que também por seu lado a ré, ora recorrente, nada fez para infirmar o que se perguntava, ou sequer se dignou a juntar documentação relativa a tais matérias, ou sequer apresentou uma qualquer outra testemunha que pudesse vir a infirmar o afirmado pela parte e sustentado pela testemunha ouvida, sendo que lhe cabia, ao nível da impugnação ter tomado posição marcada, definida, especificada sobre uma questão que também ela não podia ignorar.
    Há dois detalhes que não queremos deixar passar sem comentário.
    Finca-se a recorrente no facto de a testemunha se mostrar hesitante. Não nos impressiona sobremaneira essa postura, bastando referir que a personalidade de determinadas pessoas é menos afirmativa e tal afirmação pode ser entendida como a dúvida socrática base do conhecimento, no sentido de que, mesmo embora se tenha conhecimento de um facto, resguarda-se uma margem de erro e de falha, exactamente por se reconhecer a fabilidade humana. Exactamente na medida em que não há certeza absoluta, se a testemunha afirma que tem a certeza absoluta, convicta que está certa e se verifica que falha.
    Mostra a testemunha à saciedade que tinha bem conhecimento do funcionamento, horários, pagamentos e das práticas na empresa.
    Não se deixa de notar mais uma vez a preocupação da Mma Juíza em formar um juízo ponderado, bem expresso na sua motivação, a fls 349, enquanto diz que “pese embora o testemunho de C tenha sido algo hesitante, foi capaz de nos convencer de que o autor prestou, à semelhança dos demais colegas, um número constante de horas de trabalho diárias para manter o seu nível salarial. Por outro lado, não tendo a Ré disponibilizado os registos de entrada e saída diárias do Autor (alegando já não as possuir), ao Autor estaria vedada a prova de tais factos, a não ser através do relato de outros colegas de trabalho, com condições laborais idênticas á sua, como veio a acontecer.”
    Ouvido o CD, ficamos a saber da preocupação e da intervenção instante da Mma Juíza a cada momento. Até do esclarecimento expresso, perante uma dúvida insistente do Ilustre Advogado, de que o que estava em causa era o período de trabalho de 12 horas nos dias em que trabalhou, ressalvando-se que alguns teria havido em que foi autorizado a não trabalhar.
    Mas nada disso tem que ver com os dias de descanso legalmente consagrados.
    
    Não se deixa aqui de referir o entendimento que vem sendo sustentado neste Tribunal de Segunda Instância, a propósito da reapreciação da matéria de facto em matéria cível:1
“Ora, é certo que o princípio da livre apreciação da prova (art. 558º, do CPC) não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Mas, por outro lado, também é certo que a convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Portanto, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao trabalho do julgador, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita (Ac. do TSI, de 18/07/2013, Proc. nº 50/2013).
Por isso se diz que, geralmente, o princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita o Tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o Tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu (Ac. TSI, de 19/10/2006, Proc. nº 439/2006).”
    Não se deixa ainda de fazer uma referência às entradas e saídas da RAEM. O que se observa é que a maior parte das saídas e entradas se verifica no mesmo dia e apenas por escassas horas. E se saídas há, por alguns dias, tal não põe em causa o que foi afirmado na douta sentença, bem podendo tratar-se de ausências autorizadas, tal como consta da fixação da matéria de facto, com descontos de todas as remunerações, não correspondendo aos períodos de descanso a que o trabalhador tivesse direito nos termos legais.
    Razão, ainda aqui, por que, face aos dados adquiridos no caso concreto, inclusive a partir da prova testemunhal reproduzida, não se decide em sentido contrário ao seguido na 1ª Instância.
    Assim, sem mais, improcede todo o alegado pela recorrente a respeito da decisão sobre a matéria de facto.

3. Do regime aplicável à relação laboral em presença, da imperatividade do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro e da configuração de um contrato a favor de terceiros
    3.1. Sobre esta questão é conhecida a posição dominante nos Tribunais de Macau no sentido de que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, era um diploma com natureza e intencionalidade assumidamente normativa imperativa, destinado a definir um conjunto de requisitos tidos como mínimos e indispensáveis à contratação de trabalhadores não residentes.
    Assim, qualquer entidade interessada - e in casu a recorrente - tão só poderia celebrar contratos com trabalhadores não residentes desde que o fizesse ao abrigo do respectivo «despacho de autorização governamental», tendo por base as condições tidas por mínimas constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, as quais, por seu turno, se deveriam incorporar no clausulado do «contrato de prestação de serviços» a celebrar entre a entidade interessada (in casu a recorrente) e uma entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.).
    Daí que o recorrido nunca poderia ter sido admitido como trabalhador da recorrente (ou de qualquer outro empregador na RAEM) por via de um contrato que não tivesse obedecido ao disposto nos números 2, 3 e 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, máxime por via de um «contrato individual de trabalho», porquanto a contratação de trabalhadores não residentes está, como já se deixou dito, sujeita a um regime especial e imperativo que em caso algum poderá ser derrogado pelas partes, excepto para consagrar condições de trabalho mais favoráveis ao trabalhador.

3.2. Vamos repetir o que já noutros acórdãos aqui se tem afirmado.2

Importa atentar no regime da contratação dos não residentes.
     Não sem que se observe que, em princípio, só em relação aos residentes há liberdade negocial. A contratação dos não residentes está condicionada a uma autorização administrativa e se é assim actualmente, também o foi no passado.
Esta nota é muito importante para a abordagem do caso vertente, na medida em que os termos e condicionamentos de uma contratação como a presente não dependem ou não podem depender pura e simplesmente da vontade dos contratantes, empregador e trabalhador.
    Ora, na lógica do defendido pela recorrida este condicionalismo é marginalizado.
    A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
    Por sua vez, o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril, vigente até 01 de Janeiro de 2009 (altura em que entrou em vigor a Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho) e aprovado para definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre os empregadores directos e os trabalhadores residentes, tal como resulta do seu artigo 1.º, n.º 2, esclareceu ele próprio que não seria aplicável a alguns conjuntos de relações de trabalho, entre os quais as relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, que seriam reguladas por normas especiais que se encontrem em vigor, nos termos do artigo 3.°, n.º 3, alínea d).
    Essas normas especiais foram (não se conhecem outras), até à entrada em vigor da Lei n.º 21/2009 de 27.10, no dia 25 de Abril de 2010, as previstas no Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, considerando que o Dec.-Lei n.º 101/84/M, de 25 de Agosto, onde no capítulo VII se previa a contratação de trabalhadores estrangeiros, apátridas e no capítulo VIII a de cidadãos chineses provenientes da RPC, aí se regulando os pressupostos de contratação e, em relação ao primeiro grupo ainda um conjunto de princípios que deviam enformar essa contratação, em particular a não discriminação baseada na nacionalidade (artigo 51º), foi revogado pelo já referido Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril.
    Convém aqui fazer um parêntesis e analisar uma pretensa invalidade desse Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro.
    Esse Despacho foi proferido pelo então Governador no âmbito das suas funções executivas (art. 16º, n.º 2 do estatuto Orgânico de Macau - EOM - então em vigor), que a função legislativa que ao governador então incumbia e devia ser exercida por Decreto-Lei, conforme dispunha o artigo 13º e que a regulamentação das relações laborais, ainda que com não residentes não podiam caber dentro das funções executivas e ser regulada por um simples Despacho.
    O Despacho 12/GM/88 cuida tão-somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
    Não se trata de um regime jurídico de determinadas relações laborais, antes de um prontuário procedimental a que devem obedecer as contratações de um determinado grupo de trabalhadores, traduzindo-se muitas das normas em condicionamentos e instruções dirigidas aos respectivos Serviços, não tendo a natureza normativa instituidora de direitos e obrigações para os sujeitos da relação laboral.
    As normas específicas, constantes desse Despacho normativo, vigente enquanto esteve em execução o contrato de trabalho junto aos autos, regulam o procedimento para admissão em Macau de mão-de-obra não residente, impondo, nomeadamente, à Ré, enquanto empresa empregadora as condições mínimas de contratação que estava disposta a conceder ao trabalhador não residente, para obter a necessária aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, mas esse Despacho nada refere quanto aos princípios, às condições, aos direitos, deveres e garantias a que fica sujeita essa relação de trabalho.
    Esta questão não se coloca na actualidade uma vez que o artigo 20.° da Lei n.º 21/2009 de 27/Out. (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece a aplicação subsidiária do regime geral das relações de trabalho aos contratos com trabalhadores não residentes (aplicação subsidiária essa que já é consentânea com a redacção do artigo 3.°, n.º 3, 1) da Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho), mas no âmbito do Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, não existia qualquer remissão para o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, sendo certo que este último diploma mesmo referia, como supra se consignou, que os contratos de trabalho celebrados entre empregadores e trabalhadores não residentes não seriam por ele abrangidos por estarem reguladas pelas normas especiais que se encontrem em vigor, como já acima dito.
    Perante este quadro, não temos grande dificuldade em superar as críticas quanto a uma pretensa ineficácia por invalidade formal do dito Despacho, uma vez que não se trata de um diploma legislativo - no sentido estrito e formal de lei, enquanto disposição genérica provinda do órgão competente no limite da sua competência legislativa3 - e não tem razão quem pretende ver nele força bastante para coarctar a liberdade negocial dos cidadãos pois que tal argumento não colhe pela razão simples de que a limitação e condicionamento do trabalho de não residentes em Macau resulta de diplomas legislativos próprios, sob pena de ter de se considerar que como não se podia limitar a liberdade contratual dos empregadores por essa via seria franqueada a porta de Macau para qualquer pessoa não residente que aqui pretendesse trabalhar. Ou seja, não é esse Despacho que condiciona a admissão de não residentes. Estes não podem trabalhar, em princípio, pela razão simples de que aqui não podem residir.
    3.3. Temos, por conseguinte, por inabalada a eficácia do Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro.
    Importa, então, apurar sobre o regime jurídico aplicável ao contrato de trabalho em presença.
    Não é difícil perceber que ele deve ser iluminado por um conjunto de fontes reguladoras do regime jurídico aplicável ao caso - contratação administrativamente condicionada -, a saber:
- o Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro;
- o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
- o contrato celebrado entre o A. e a Ré;
- o RJRL ( DL24/89/M, de 3/Abril), na medida em que remissivamente aplicável.
    
Tanto mais que se sabe que a Ré foi autorizada a contratar trabalhadores não residentes, entre os quais o ora Autor, para a prestação de funções relacionadas com a actividade de segurança privada.
O que foi feito ao abrigo do artigo de um contrato de prestação de mão de obra com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, conforme previsto nos artigos 3º, 7º, 8º, 9º do Despacho n.º 12/GM/88.
Isto é, o contrato com o A. só foi celebrado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação, como flui do artigo 9º, d), d.2) do aludido despacho 12/GM/88:
“9. O procedimento para a admissão de mão-de-obra não-residente observará os trâmites seguintes:
a) O requerimento da entidade interessada será presente no Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos que despachará, mandando ouvir sobre o mesmo o Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia, ou determinará a prestação dos esclarecimentos que julgue convenientes;
b) O Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia pronunciar-se-ão sobre o pedido no prazo de 10 dias úteis;
c) Obtidos os pareceres referidos na alínea anterior, será proferido despacho que decidirá da admissão solicitada, determinando à requerente que, em caso afirmativo, faça presente o contrato de prestação de serviços com entidade habilitada como fornecedora de mão-de-obra não-residente, tal como previsto no n.º 7;
d) O contrato será remetido ao Gabinete para os Assuntos de Trabalho, a quem compete verificar e informar se se encontram satisfeitos os requisitos mínimos exigíveis para o efeito, designadamente os seguintes:
d.1. Garantia, directa ou indirecta, de alojamento condigno para os trabalhadores;
d.2. Pagamento do salário acordado com a empresa empregadora;
d.3. Assistência na doença e na maternidade;
d.4. Assistência em caso de acidentes de trabalho e de doenças profissionais;
d.5. Repatriamento dos trabalhadores considerados indesejáveis. (Os deveres mencionados em d.3. e d.4. serão obrigatoriamente garantidos através de seguro);
e) Fornecidos os elementos de informação referidos na alínea anterior será proferido despacho que decidirá da aprovação das condições de contratação dos trabalhadores não-residentes, fazendo remeter o processo ao Comandante das Forças de Segurança de Macau;
f) O Comandante das Forças de Segurança de Macau proferirá despacho, determinando lhe seja presente a lista nominativa dos trabalhadores a recrutar, e decidindo, posteriormente, sobre a sua entrada e permanência no Território.”
    3.4. É assim que as condições previstas no aludido contrato ganham força, sendo, como é óbvio, vista a natureza da relação laboral e os contornos administrativos a que é sujeita, que as condições de trabalho menos favoráveis para o trabalhador, resultantes do contrato de trabalho entre este e o empregador, hão-de ceder necessariamente perante as resultantes do contrato celebrado entre o empregadora e a empresa fornecedora de mão-de-obra, condição decorrente da autorização de relação laboral em causa.
    É certo que o contrato de trabalho, como negócio jurídico obrigacional, se baseia na autonomia privada, a qual engloba para além da liberdade de celebração, a liberdade de estipulação. Como ensina Pedro Romano Martinez, “como em qualquer negócio jurídico, as partes têm, liberdade de conformar as regras contratuais aos interesses que pretendem prosseguir. Todavia, no domínio laboral, a liberdade de estipulação contratual encontra-se limitada; a especial protecção do trabalhador, que o Direito do Trabalho pretende conferir, leva a que, frequentemente, se condicione a liberdade das partes na conformação das regras contratuais, até porque, não raras vezes, a situação factual de desigualdade entre as partes potenciaria o estabelecimento de regras desfavoráveis para o trabalhador”.
    Razões estas, se não apodícticas, observáveis na nota preambular do referido Despacho n.º 12/GM/88, em que para além da contemplação dos interesses protagonizados pela defesa da mão-de-obra local e dos protagonizados pelos interesses empresariais se sublinhou o seguinte:
    “Da parte do Governador há ainda a considerar um terceiro aspecto da questão, que é o de não consentir no Território situações que contendam com o padrão mínimo, ou que como tal seja aceite pela consciência social, relativamente às condições de alojamento da população trabalhadora. Entendeu-se assim que a solução do problema passava por uma clara destrinça entre as situações de emprego dos residentes, estas reguladas pela lei aplicável entre empregador e empregado como sujeitos autónomos de direitos e obrigações, e as situações de emprego de não-residentes, que, ao contrário das primeiras, traduzirão um vínculo de contrato de prestação de serviços com terceiras entidades. Estas tem que se responsabilizar pelo alojamento dos trabalhadores ocasionais e pelo pagamento dos salários que lhes sejam devidos, bem como pelo seu repatriamento quando os considerem dispensáveis. Fica claro, de qualquer forma, que esses trabalhadores ocasionais não têm qualquer direito de permanência em Macau. Nem de outra forma seria possível avançar, como é firme propósito do Governador, em defesa dos interesses dos trabalhadores residentes no Território. Para tal, estes hão-de constituir uma massa determinada, com peso específico próprio.
    Nesta primeira fase, tal defesa consiste na regulação das condições de oferta do mercado, pedindo que os trabalhadores sob custódia de uma terceira entidade contratados por via de contrato de prestação de serviços possam constituir-se numa pressão que resulte em prejuízo dos trabalhadores residentes, quer no que diz respeito à estabilidade do emprego, quer no que diz respeito ao nível dos salários. E trata-se, é bom que se diga, de uma solução que se aceita a titulo experimental, determinada pela extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento. Por isso, aliás, se introduz por via do simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha.”
    Torna-se assim mais claro o enquadramento que deve presidir ao estabelecimento do regime jurídico da relação em apreço e que passa pela aplicação das normas mais favoráveis que de qualquer um dos contratos em referência resulte, até em nome do princípio do favor laboratoris, entendido este como um princípio geral do Direito do Trabalho, com assento na concepção das opções legislativas pro operario e não como derrogando as regras imperativas da interpretação das normas decorrentes do Direito Civil.4
    
     3.5. Face à defesa, por banda da empregadora, aqui recorrente, da exclusão, em termos de caracterização do contrato entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., da natureza ínsita a qualquer dos contratos-tipo como contrato a favor de terceiro não nos eximiremos a algumas poucas palavras sobre o assunto.
    Antes de mais, reafirmamos que a força da vinculação a tal regime resulta das normas condicionantes da autorização de trabalho, administrativamente contempladas. Isto é, só o trabalho prestado naquele condicionalismo seria autorizado. Donde, tais cláusulas, previstas nesse contrato serem condição de concessão de autorização de trabalho para aquela situação em concreto.
    Daqui cai por terra o argumento avançado na douta alegação da recorrente quanto à falta do interesse atendível na celebração de um contrato a favor de terceiro por parte da Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, sendo evidente que a sua intervenção na importação de mão-de-obra é um instrumento de condicionamento das regras a aplicar à mão de obra não residente, só assim sendo admitida a tal importação.
    
    Não se pode proceder a uma análise desgarrada desse enquadramento e desse condicionalismo, donde o regime jurídico aplicável resultar desse acervo clausulado.
    Não poucas vezes a realidade da vida é mais rica do que a realidade conceptualizada e, assim, as soluções do legislador não são bastantes para abarcar toda a factualidade.
    Isto, para enfatizar que, por isso mesmo, os institutos previstos pelo legislador não são o bastante para regular toda a realidade negocial e daí que se devam conjugar, até em nome da liberdade contratual, diferentes contratos, surgindo-nos as situações de negócios mistos ou inominados.
    É a partir desta constatação que nos damos a perguntar a nós próprios o que impede, em termos meramente de autonomia privada e de liberdade contratual, que alguém assuma perante outrem a obrigação de dar trabalho a um terceiro, mediante certas condições e estipulações. Sinceramente que não nos ocorre nenhum obstáculo.
    Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.5
    Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
    O objecto imediato do contrato a favor de terceiro pode ter, na verdade, diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos, bastando que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou de uma vantagem.6
    A Ré compromete-se com uma dada Sociedade a dar trabalho ao A. e assume o compromisso de o fazer em determinadas condições.
    Sinceramente que não vemos onde não exista aqui a assunção de uma prestação, qual seja a de dar trabalho ao A, a de contratar com ele e a de lhe pagar X.
    Prestação é a conduta a que o devedor está obrigado ou seja o comportamento devido, na expressão lapidar do Prof. Pessoa Jorge.7
    Ora o facto de a Ré ter assumido a obrigação de dar trabalho, tal não é incompatível com uma prestação de contratar, relevando aí a modalidade de uma prestação de facere. Uma prestação de facto, na verdade, pressupõe o desenvolvimento, em prol do credor, de determinada actividade e pode até traduzir-se numa prestação de um facto jurídico quando as actividades desenvolvidas são jurídicas.8
    As coisas, postas assim, tornam-se agora mais claras e o instituto em referência mais se encaixa no nosso caso.
    Nem o facto de a Ré se ter comprometido a celebrar um contrato exclui o enquadramento que se persegue.
    O benefício para o terceiro está, como bem se alcança, não só na chance de obter trabalho (para mais enquanto não residente) e das utilidades e vantagens materiais que daí decorrem para o trabalhador, parte terceira nesse contrato, bem como das condições que a Ré se compromete a observar em benefício do trabalhador.
    Aliás, esta possibilidade de acoplação entre o contrato primitivo e o contrato de trabalho posteriormente celebrado entre A. e Ré resulta como uma decorrência das obrigações primitivamente assumidas. É a primeira relação contratual, a relação de cobertura, que origina e modela a segunda relação, a relação entre o promitente e o terceiro.9
    Ora, nada obsta que desta relação entre o promitente e o terceiro, para além do assumido no primitivo contrato entre o promitente e o promissário, nasçam outras obrigações como decorrentes de um outro contrato que seja celebrado entre o promitente (Ré, empregadora) e o terceiro (A., trabalhador).10
    Esta aproximação encontramo-la também em Pires de Lima e A. Varela, enquanto anotam que “o artigo 443º(leia-se 437º) trata não só dos casos em que todo o contrato estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual. É o que sucede, por exemplo, na doação ou no legado com encargo a favor de terceiro que pode ser um direito de preferência sobre a coisa doada ou legada, ou ainda na instituição de uma fundação com encargo a favor de pessoa ou pessoas determinadas.”11
    Quanto ao argumento que do contrato a favor de terceiros não podem nascer obrigações para o terceiro beneficiário, como está bem de ver, elas não resultam desse contrato, mas sim do contrato de trabalho entre o patrão e o empregado.
    
    3.6. Nem se diga que esta posição contraria o sufragado por este Tribunal quando chamado a decidir sobre a excepção relativa à competência do Tribunal, nos termos da qual a ré propugnava pelo cometimento ao tribunal arbitral.
    Como nessas decisões já se afirmou, configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
    O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação"
    Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
    Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
    Para além de que será de entender que essa cláusula compromissória de competência abrange apenas a relação de cobertura ou de provisão entre o promitente e o promissário e não já relação provisionada entre o promitente e o terceiro, ou a relação de valuta entre o promissário e o terceiro.
    Posto isto, somos a sufragar o entendimento acolhido na douta sentença recorrida.

4. Das diferenças salariais
Face à posição acima assumida, as diferenças salariais levadas em conta na sentença recorrida não merecem qualquer reparo.

5. Do trabalho extraordinário
    Ainda aqui não merece reparo a quantia arbitrada, não se podendo admitir que o trabalhador ganhasse pelo serviço extraordinário menos do que pelo serviço normal.
    Serve aqui a posição expressa no acórdão 737/2010, deste TSI:
“O Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, não prevê sobre a forma ou o modo de fixação do acréscimo de salário pela prestação de trabalho extraordinário, nem sobre o montante mínimo desse acréscimo salarial, mas isto não representa que a “livre” fixação, em sede do art. 11.º, n.º 2, desse diploma legal, do valor remuneratório de cada hora extra de trabalho possa nomeadamente prejudicar as condições de trabalho mais favoráveis já observadas e praticadas entre a própria sociedade comercial arguida e os trabalhadores ofendidos então ao seu serviço (cfr. A norma do n.º 1 do art. 5.º do próprio Decreto-Lei).
Na verdade, não se pode admitir, ao arrepio do senso comum das pessoas, como fosse concretamente mais favorável a esses trabalhadores o facto de o valor da remuneração de cada hora extra do trabalho ser ainda inferior ao valor da remuneração de cada hora do trabalho normal.”

6. Do subsídio de alimentação e de efectividade
    Não se abalando a matéria dada como provada, de que o trabalhador prestou serviço todos os dias por que perdurou a relação laboral, ainda aqui não merece qualquer censura o que foi decidido, reafirmando-se a posição já anteriormente assumida neste TSI de que o subsídio de alimentação só é devido quando o trabalhador presta serviço12 e já não assim com o serviço de efectividade13.
    O subsídio de alimentação ou de refeição depende da prestação efectiva de trabalho, fazendo todo o sentido que assim seja, tendo até em vista a sua natureza e os fins a que se propõe. Destinar-se-á a fazer face a um custo suplementar a suportar por quem trabalha e por quem tem de comer fora de casa ou com custos acrescidos por causa do trabalho.
    É esta a Jurisprudência deste Tribunal, concretizada no acórdão n.º 376/2012, de 14/6, onde se fez constar:
    “Ora, este subsídio tem uma função social radicada numa despesa alimentar efectuada por causa da prestação de trabalho efectiva.14
    E embora tenha havido por parte da jurisprudência alguma tendência para o considerar prestação retributiva, a verdade é que nem por isso outra a associava, mesmo assim, à noção de trabalho efectivo, tal como, por exemplo, foi asseverado no Ac. da Relação de Lisboa de 29/06/1994, Proc. nº 092324 “ Quer a Jurisprudência, quer a Doutrina têm vindo a entender que o subsídio de alimentação, sendo pago regularmente, integra o conceito de retribuição .... Porém, estando ligada essa componente salarial à prestação de facto do trabalho, só será devida quando o trabalhador presta serviço efectivo à entidade patronal…”.
    Com o art. 260º do Código do Trabalho Português, o panorama mudou de figura, pois o nº2, do art. 260º deixou claro que esse subsídio não devia ser considerado remuneração, salvo nos casos em que o seu valor excede o montante da despesa alimentar. E assim, terá ficado mais claro que ele só é assumido pelo empregador por causa da prestação efectiva de trabalho. Ele “visa compensar uma despesa diariamente suportada pelos trabalhadores quando realiza a sua actividade”.15 Ou “…visa compensar uma despesa na qual o trabalhador incorre diariamente, sempre que vai trabalhar…” (destaque nosso).16
    Em Macau, não está regulada a atribuição destes subsídios, mas não cremos que o sentido da sua natureza que melhor se adequa à geografia local é aquele que atrás descrevemos. Por conseguinte, por não estar regulada na lei (DL nº 24/89/M), nem no referido contrato de prestação de serviços nº 45/94 (…), deveremos considerá-lo como compensação pela prestação de serviço efectivo.
    Logo, da mesma maneira que deverá descontar-se o subsídio nos períodos de férias ou naqueles em que a pessoa está de licença de maternidade, também ele deve ser subtraído quando o trabalhador não prestou serviço por outra qualquer razão.17”
    Não será assim de sufragar o decidido, realizando apenas os dias de desconto dos dias de descanso anual e feriados obrigatórios legais, pois, tendo o autor faltado autorizadamente, incorrectos estarão os cálculos no sentido de se terem contabilizado todos os dias por que perdurou a relação laboral para esse efeito. O trabalhador não podia faltar sem autorização; o trabalhador faltou sem autorização; se faltasse não tinha o subsídio de alimentação. Importa computar esses dias e, à míngua dos indispensáveis elementos, esse cálculo terá de ser relegado para execução de sentença.18
    7. Quanto ao subsídio de efectividade, trata-se de um subsídio que carece de uma prestação de serviço regular e sem faltas, pois assim o dizem os contratos.Com efeito, o trabalhador teria direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tivesse dado qualquer falta.
    Em relação a este subsídio, vista a sua natureza e fins - já não se manifestam as razões que levam a considerar que a sua atribuição esteja excluída numa situação de não assiduidade justificada ao trabalho. Se o patrão autoriza uma falta seria forçado retirar ao trabalhador uma componente retributiva da sua prestação laboral, não devendo o trabalhador ser penalizado por uma falta em que obteve anuência para tal e pela qual o patrão também assumiu a sua responsabilidade. 19

8. Do trabalho prestado em dia de descanso semanal
    O mesmo raciocínio é válido para a compensação dos descansos semanais não gozados.
    A recorrente está equivocada quando afirma que o DL 24/89/M, de 3 de Abril não é aplicável aos presentes autos, pois sobre a aplicação analógica do DL24/89/M aos casos do trabalho por trabalhadores não residentes também já este Tribunal se pronunciou sobejamente e para aí nos remetemos.20
    A este propósito e na esteira da Jurisprudência quase unânime deste Tribunal mantém-se a fórmula usada na sentença, x2.

    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, apenas no que respeita à compensação do subsídio de alimentação, relegando-se para execução de sentença o que aí vier a ser apurado em função dos dias de trabalho efectivo e, no mais, julgando-se improcedente o recurso, confirmando aí a sentença recorrida.
    Custas pela recorrente, na proporção do decaimento em ambas as instâncias..
Macau, 24 de Julho de 2014,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Ac. do TSI, Proc. n.º 562/2013, de 8/5/2014

2 - V.g., A. do TSI, Proc. 574/2010, de 12/5/2011
3 - Cfr. art. 1º do CC; Oliveira Ascensão, IAED, AAFDL, 1970, 241
4 - Pedro Romano Martinez, ob. cit., 220
5 - Diogo Leite Campos, Contrato a favor de terceiro, 2ª ed., 1991, 13
6 - Leite de Campos, ob. cit., 17
7 - Obrigações, 1966, 55
8 - Menezes Cordeiro, Dto Obrig., 1980, 1º, 336 e 338
9 - Leite de Campos, ob. cit.27
10 - Leite Campos, ob. cit. 79 e 115
11 - CCAnot. 4ª ed.,1987, vol I, 426
12 - Ac. 376/2012, 322/2013, 78/2012 e 414/2012
13 - Ac. 322/2013
14 - Neste ponto, corrige-se a posição anteriormente tomada no proc. nº 781/2011.
15 - Luis M. Telles de Meneses Leitão, in Direito de Trabalho, Almedina, 2008, pag. 349. No mesmo sentido, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, pag. 547 e Diogo Vaz Marecos, in Código do Trabalho anotado, Coimbra Editora e Wolters Kluver, pag. 662-663.
16 - Pedro Romano Martinez e outros, in Código do Trabalho anotado, 5ª edição, 2007, pag. 498.
17 - A não ser nas situações em que a não prestação se fica a dever a causa imputável ao empregador e em que, apesar disso, o trabalhador teve que efectuar a despesa alimentar.
18 - Assinala-se aqui uma evolução, em nome de um maior rigor probatório, em relação à posição assumida no proc. n.º 627/2013, de 29/5/14, onde se ficcionava que o trabalhador trabalhara todos os dias
19 - Ac. deste TSI, Proc. n.º 322/2013, de 2577/2013
20 - Acs. do TSI, Processos n.º 596/2010; 737/2010; 805/2010

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128/2014 50/50