Processo nº 770/2013
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 3/Julho/2014
Assuntos:
- Interrupção da instância
- Deserção da instância
SUMÁRIO :
1. A instância para ser declarada interrompida depende de três requisitos: estar parado o processo; durar a paralisação mais de um ano; e ser devida a inércia das partes. Mas a verificação desses pressupostos depende de um despacho judicial – art- 227º do CPC.
2. Já a deserção da instância, tal como resulta expressamente da lei, actua ope legis, independentemente de despacho - art. 233º, n.º 1 do CPC.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 770/2013
(Recurso Civil)
Data : 3/Julho/2014
Recorrente : B
Objecto do Recurso : Despacho que declarou a interrupção da instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
B, S.A., mais bem identificada pelos sinais nos autos à margem cotados, em que é Ré, inconformada com o despacho que declarou a interrupção da instância, vem dele recorrer, alegando em síntese conclusiva:
A) A tramitação regular de um processo pára a partir do momento em que uma parte se abstenha de praticar um acto que a lei configure como dever seu dentro do prazo para tal consignado e de cuja prática a lei faça justamente depender o prosseguimento normal da lide;
B) Tratando-se de um acto para o qual dispunha de prazo peremptório, o processo considera-se parado desde o momento em que a parte poderia ter praticado o acto;
C) As Autoras não procederam ao pagamento dos preparos inicial e para julgamento do incidente de valor da causa;
D) Nem mesmo depois de terem sido notificadas pelo Tribunal a quo para proceder ao respectivo pagamento, acrescido do sancionatório e da multa previstos no Artigo 34.°/ 1 e 2 do Regime das Custas nos Tribunais;
E) Tendo sido notificadas, para os efeitos do referido na Conclusão anterior, por carta expedida em 16/01/2009, e considerando-se notificadas em 19 de Janeiro de 2009, podiam ter procedido ao pagamento a partir de 20/01/2009;
F) Não o tendo feito, a instância deve considerar-se parada desde o dia 20/01/2009, por força do disposto no Artigo 34.°/3 do RCT.
G) As Autoras também não pagaram os complementos dos preparos da acção, nem o respectivo sancionatório e multa aplicados pelo Tribunal a quo em cumprimento do Artigo 34.°/ 1 e 2 do RCT;
H) As Autoras foram notificadas para o efeito por carta expedida em 28/04/2009, considerando-se notificadas em 01/05/2009;
I) A instância não prosseguiu, devendo considerar-se parada, desde o dia 2 de Maio de 2009;
J) Ainda que assim também não se entenda, por despacho de fls. 1237 o Tribunal a quo considerou que o processo se encontra parado, pelo menos, desde 18/07/2009;
K) Em 7 de Dezembro de 2009, os autos foram remetidos à Secção Central para efeitos de conta, por força do disposto no Artigo 40.°/2 b) do RCT;
L) Nos termos do referido artigo, são remetidos à conta os processos que estejam parados por mais de três meses por facto imputável às partes;
M) O processo deve, assim, ser considerado parado, pelo menos desde 06/09/2009;
N) Nos termos do conjugadamente disposto nos Artigos 227.° e 233.° do Código de Processo Civil, a instância fica deserta, ope legis, após o decurso de três anos e um dia a contar da data em que os autos ficaram parados;
O) A presente instância encontra-se deserta desde 21 de Janeiro de 2012 ou, no caso em que assim senão entenda, desde, respectivamente, 3 de Maio de 2012, 19 de Julho de 2012 ou 7 de Setembro de 2012, razão pela qual deve ser declarada extinta.
Normas jurídicas violadas pela decisão recorrida (indicação feita nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do Artigo 5980° do Código de Processo Civil): Artigos 227.°, 229.° c) e 233.° do Código de Processo Civil e Artigos 34.° e 40.° do Regime das Custas nos Tribunais.
Nestes termos, requer seja o presente recurso julgado procedente, por provado e legalmente fundado, e, em consequência, seja a decisão recorrida revogada e substituída por outra que declare a presente instância extinta, por deserção.
II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se a factualidade seguinte:
(i) Por notificação postal expedida em 16 de Outubro de 2008 (cfr. fls. 1132), as Autoras foram notificadas para proceder ao pagamento das guias de fls. 1131, no valor de MOP$62.980,00, referente aos preparos inicial e para julgamento do incidente de verificação do valor da causa;
(ii) As Autoras não pagaram as referidas guias;
(iii) Em requerimento autuado a fls. 1133 e ss, as Autoras reclamaram da emissão das referidas guias;
(iv) Por despacho de fls. 1138 e ss, o Tribunal julgou improcedente a referida reclamação;
(v) Por notificação postal expedida em 10 de Novembro de 2008 (cfr. fls. 1140), as Autoras foram notificadas para proceder ao pagamento das novas guias dos preparos inicial e para julgamento do incidente de verificação do valor da causa (Cfr. guia de fls. 1141);
(vi) As Autoras, mais uma vez, não procederam ao respectivo pagamento;
(vii) Por notificação postal expedida em 3 de Dezembro de 2008 (cfr. fls 1143), as Autoras foram, de novo, notificadas para proceder ao pagamento dos referidos preparos, acrescidos da taxa de justiça referida no n.º 1 do artigo 34.° do Regulamento das Custas nos Tribunais, ou apenas "RCT" (cfr. guia de fls. 1144);
(viii) As Autoras também não procederam à respectiva liquidação;
(ix) Por despacho de fls. 1145, proferido em 15 de Janeiro de 2009, o Meritíssimo Juiz determinou a aplicação da multa constante no n.º 2 do mesmo preceito;
(x) As Autoras foram notificadas do referido despacho, bem como da correspondente guia de fls. 1147, por notificação postal expedida em 16 de Janeiro de 2009 (cfr. notificação de fls. 1146);
(xi) As Autoras não procederam à respectiva liquidação;
III – FUNDAMENTOS
1. Objecto do recurso
O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal Judicial de Base de fls. 1287 que declarou a presente instância interrompida, ao abrigo do alegadamente disposto no Artigo 227.° do Código de Processo Civil.
Cita-se o teor integral do despacho recorrido, para mera facilidade de referência de V. Exas.:
"Declaro, ao abrigo do disposto no artigo 227.º do CPCM a interrupção da instância."
Tal despacho foi proferido em 2/5/2013.
Basicamente, pretende a ora recorrente que seja declarada extinta a instância, por deserta - que não apenas interrompida - por o processo ter estado parado desde 20 de Janeiro de 2009.
Afigura-se-nos que não lhe assiste razão.
2. Defende a recorrente que esse despacho desconsiderou factos processuais de relevo para o Juízo sobre a subsistência da lide, fazendo uma errada aplicação dos artigos 227.° e 233.° do Código de Processo Civil.
Diz ainda que esse despacho dá cobertura à manutenção da lide, traduzindo-se num beneficio ilegítimo para as autoras, permitindo que a lide se mantenha não obstante o incumprimento da obrigação de preparar desde o ano de 2008.
3. É verdade que importa determinar o momento a partir do qual o processo se considera ter estado parado, se o esteve por negligência das autoras e se essa situação a da interrupção e consequente deserção opera automaticamente ou está dependente da prolação do despacho que reconheça essa situação processual.
É também verdade que a tramitação regular de um processo pára a partir do momento em que uma parte se abstenha de praticar um acto que a lei configure como dever seu dentro do prazo para tal consignado e de cuja prática a lei faça justamente depender o prosseguimento normal da lide.
Em anotação ao artigo 285.° do Código de Processo Civil de Portugal - correspondente ao artigo 227.° do Código de Processo Civil de Macau - pronuncia-se LEBRE DE FREITAS:
“A interrupção da instância pressupõe que, por imposição de lei especial, as partes, maxime o autor, tenham o ónus de impulso subsequente, em derrogação da regra segundo a qual ao juiz cabe providenciar pelo andamento do processo (art. 265-1). Se, tendo-o, mantiverem o processo parado durante mais de 1 ano, negligenciando a prática do acto de que depende o seu prosseguimento, a instância interrompe-se.
O acto omitido pode respeitar ao próprio processo ou a um incidente de que dependa o seu prosseguimento, Exemplo do primeiro é o pagamento do preparo inicial pelo autor (…). Exemplo do segundo é o requerimento da habilitação de herdeiros da parte falecida na pendência da causa.
O prazo de 1 ano conta-se a partir do dia em que a parte deixou de praticar o acto que condicionava o andamento do processo, isto é, a partir do dia em que se lhe tornou possível praticá-lo ou, se para o efeito tinha um prazo (não peremptório), a partir do dia em que ele terminou".
A instância considera-se, assim, parada desde que se verifica a inércia de uma das partes em praticar os actos necessários ao respectivo andamento e, no que, mais em particular, diz respeito ao incumprimento de prazos peremptórios, o processo considera-se parado desde o momento em que a parte podia ter praticado o acto.
Não tendo sido impugnados os diversos despachos que determinaram o pagamento dos preparos devidos e do qual dependia o prosseguimento da instância, pode considerar-se, em princípio, que o processo esteve parado desde 20 de Janeiro de 2009, primeiro dia após o terceiro em que se presume notificado o despacho que habilitou à prática do acto em falta.
E se dizemos que esse pagamento era condição do prosseguimento da instância é porque face ao disposto nos artigos 28.°, 32.° e 34º, n.º 3do Regime das Custas nos Tribunais, incumbe ao requerido de um incidente proceder ao pagamento do respectivo preparo inicial e para julgamento, sob pena de, esgotadas as faculdades concedidas para pagar, o processo não prosseguir.
4. Mas esse é um juízo que tem de ser produzido no processo pelo juiz. Pode ser discutível se o processo esteve ou não parado, devendo ser dada oportunidade às partes de se pronunciarem sobre essa situação processual. Basta pensar em actos que tenham sido praticados no processo sem o deverem ser..
Razão por que somos a entender que não só a paragem do processo, como a imputação de omissão às autoras deve ser tema de discussão, bem podendo sobre a questão surgir divergência.
Embora, na configuração da recorrente, a instância aparentemente não pudesse prosseguir e, como tal, devendo considerar-se parada, por inércia das autoras, desde o dia 20 de Janeiro de 2009, essa é uma questão sobre a qual não pode deixar de haver pronúncia jurisdicional.
Tal como já decidido neste Tribunal1a instância interrompe-se quando se verificarem cumulativamente os três requisitos: 1. Estar parado o processo; 2. Durar a paralisação mais de um ano; e 3. ser devida a inércia das partes; a deserção ocorre ope legis após o decurso de três anos e um dia a contar da data em que os autos ficaram parados por inércia da parte a quem competia impulsionar o processo.
Anota-se que nesse caso, não obstante os termos usados poderem induzir em erro, a que acresce uma referência à natureza declarativa e não constitutiva do despacho que declarou a instância interrompida, o certo é que a prolação desse despacho ocorreu no tempo certo, não acontecendo como no caso dos presentes autos, onde supostamente o prazo da interrupção já há muito ocorrera.
5. A questão que então aqui se coloca é algo diferente: tem ou não de sobrevir um despacho judicial a declarar interrompida a instância?
A resposta não deixa de ser afirmativa. Tal como já acima fomos avançando, só depois dessa pronúncia se inicia a contagem do prazo conducente à deserção da instância, esta sim, expressamente na lei, ocorrendo independentemente de despacho, face ao disposto no artigo 223º, n.º 1 do CPC, contrariamente ao que dispõe o art. 227º do mesmo diploma legal para a interrupção da instância.
Esta a melhor interpretação que resulta da letra, do espírito e da razão de ser dos institutos em presença.
Repare-se, aliás, que no caso, que, aparentemente devia estar parado desde 20 de Janeiro de 2009, não deixaram de se praticar outros actos, tanto assim que vão eles servir de fundamento a outras causas de pretensa deserção da instância por banda da ora recorrente.
Não é só processo estar parado, mas a prática de actos inúteis ou impertinentes e o julgamento da própria inércia que deve ser equacionada, na esteira, aliás, da ressalva avançada pelo insigne Prof. Alberto dos Reis, ao dizer que não é a prática de qualquer acto, é a prática de actos tendentes a fazer andar o processo. 2
6. Esta interpretação é igualmente acolhida na Jurisprudência Comparada que vai, toda ela, no sentido de que tem sempre de ser proferido despacho, só pode considerar-se deserta depois do despacho que a considerou interrompida. Quando o juiz profira despacho a declarar a instância interrompida, por não a ter impulsionado, há mais de um ano, é esse despacho que demarca o prazo dos cinco anos[redacção pretérita] e um dia para habilitar o juiz a declarar deserta a instância sem necessidade de averiguações, acerca da conduta da parte eventualmente prejudicada (…) O prazo para que seja declarada a deserção da instância nos termos do art.º 291.º do CPC, conta-se a partir da data do despacho que declarou interrompida a instância(…)3
7. Como está bem de ver, as restantes razões que subsidiariamente se avançam para se julgar extinta a instância, por deserta, soçobram, a partir do momento em que só agora, em 2/5/2013 foi proferido tal despacho.
Se esse despacho devia ter sido prolatado mais cedo, se devia ter sido provocado, se suscitada oportunamente a sua prolação, essa é questão que não importa agora curar.
Tal despacho mostra-se indispensável e só a partir dele se contará o prazo de deserção de instância, este sim que produz efeitos independentemente do despacho.
Nesta conformidade, o recurso não deixará de improceder
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 3 de Julho de 2014,
Relator João A. G. Gil de Oliveira
Primeiro Juiz-Adjunto Ho Wai Neng
Segundo Juiz-Adjunto José Cândido de Pinho
1 - Proc. n.º 740/2011 de 22/3/2012
2 - Comentário ao CPC, , 3º vol., Coimbra Editora, 1946, 329
3 - Ac. STJ 06B3632, de 31/1/2007; Ac. STJ de 12/1/1999, BMJ 483, 167 ; RE de 12/3/98, BMJ 475,799; Ac. Rel, CJV/98, 263
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770/2013 1/12