Processo nº 673/2013
(Recurso Contencioso)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 11/Setembro/2014
Assuntos:
- Proibição de entrada na RAEM;
- Violação de lei; erro nos pressupostos;
- Poderes discricionários;
- Desrazoabilidade;
- Perigo para a segurança; conceito indeterminado;
- Boa-fé.
SUMÁRIO:
1. O vício de violação de lei consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis e, muito embora tal vício ocorra normalmente no exercício de poderes vinculados, o certo é que não deixa de se verificar no exercício de poderes discricionários quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam de forma genérica a discricionariedade administrativa, tais como o princípio da imparcialidade, igualdade, justiça, proporcionalidade.
2. Para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, quer o espaço de escolha esteja apenas entre duas decisões contraditoriamente opostas, quer entre várias decisões à escolha numa relação disjuntiva.
3. As penas são a reacção pública ao crime, enquanto a medida administrativa de segurança, como esta é - a de interdição de entrada na RAEM -, destina-se a salvaguardar um certo padrão social de ordem e tranquilidade públicas sob a forma de reacção a uma atitude comportamental de alguém que se não dobrou às regras de convivência societária.
4. Não há falta de pressupostos da aplicação da medida de proibição de entrada na RAEM, se se observa que a entidade recorrida formulou um juízo de perigosidade efectivo para a segurança ou ordem pública da RAEM - art. 12º, n.º 3 da Lei 6/2004 e a discordância de entendimento não é argumento bastante que possa inverter a decisão proferida, sob pena de se subverter o princípio da separação de poderes.
5. Neste âmbito o Tribunal só deve intervir quando for manifesta a desproporção das medidas impostas à gravidade da situação ou quando elas sejam de tal forma grosseiras que mereçam a intervenção correctiva do Tribunal.
6. Se se descortina a prossecução do interesse público, a adequação do comportamento à prossecução do interesse público e se compreende ainda o sacrifício dos interesses privados em função da importância do interesse público que se procura salvaguardar, afastada estará a desproporcionalidade da medida.
7. O "perigo efectivo para a segurança e ordem públicas" traduz um conceito indeterminado puro ou em sentido próprio que admite uma larga margem de livre de apreciação, o que determina que a sua avaliação administrativa concreta seja fortemente subtraída à sindicância dos órgãos judiciais.
8. No que respeita a violação do princípio da boa-fé remete esse princípio para um padrão ético de comportamento na sua relação com os cidadãos, agindo de forma correta, leal e sem reservas. Trata-se de um princípio programático de comportamento que se materializa através da observância de três outros princípios: O princípio da protecção da confiança; o princípio da materialidade (devendo a Administração orientar-se pela tutela das situações jurídicas); o princípio da transparência - cfr. art. 8º do CPA.
O Relator,
Processo n.º 673/2013
(Recurso Contencioso)
Data : 11 de Setembro de 2014
Recorrente: A
Entidade Recorrida: Secretário para a Segurança
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, mais bem identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 5 de Agosto de 2013, que lhe indeferiu o recurso hierárquico de despacho que lhe impusera a proibição de entrada na RAEM, alegando em síntese conclusiva:
a) Recorre-se do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 5 de Agosto de 2013;
b) Estão reunidos os pressupostos processuais;
c) O despacho em apreço viola os princípios, insitos na lei, da proporcionalidade, boa fé e eficiência;
d) Revelando, por conseguinte uma "total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários";
e) É, por isso, anulável.
Nestes termos entende dever ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, anulado o despacho recorrido, com todas as consequências legais.
CONTESTA a entidade recorrida, o Exmo Senhor Secretário para a Segurança do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, refutando os argumentos invocados e defendendo a justeza do despacho recorrido.
A, recorrente nos autos à margem referenciados, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 68° do C.P.A.C., veio apresentar as suas alegações facultativas, dizendo, em suma:
a) Recorre-se do despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança de 5 de Agosto de 2013;
b) Estão reunidos os pressupostos processuais;
c) O despacho em apreço viola os princípios, insitos na lei, da proporcionalidade, boa fé e eficiência;
d) A actuação do recorrente em 23/09/2007 não fez (nem faz) perigar efectivamente a "segurança e ordem pública da R.A.E.M ";
e) Já que, parece óbvio, "os ilícitos não graves", nunca poderão atentar contra a "segurança e ordem pública" da R.A.E.M.;
f) A decisão de "interdição de entrada" na R.A.E.M. por 3 anos é desproporcionada face à decisão judicial, já que a pena de 2 meses de prisão que motivou esta interdição foi suspensa e será extinta muito antes de decorridos aqueles 3 anos; finalmente,
g) Não foi salvaguardado o princípio da eficiência, uma vez que a decisão ora posta em causa, por ''falta de celeridade", só foi proferida mais de 6 anos após os factos que alegadamente a teriam justificado;
h) O Despacho em apreço revela, por conseguinte, "ilegalidade" e uma "total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários";
i) É, por isso, anulável.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso.
O Exmo Senhor Secretário para a Segurança do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, recorrido, vem apresentar as suas ALEGAÇÕES FACULTATIVAS, concluindo:
1. Conforme supra artigos 1.º a 3.º, a existência de fortes indícios da prática do crime imputado ao recorrente (agressão a um jogador numa mesa de jogo dentro de um dos casinos da Região), consta de sentença condenatória, ao tempo, não transitada em julgado (a fls., do processo), e consabido que é a importância da segurança na actividade do jogo para a economia da Região, nos termos dos artigos 11.º a 18.º, da contestação, não deve ser atendido o entendimento do recorrente que lia actuação do recorrente (...) não faz perigar (...) a segurança e ordem pública da R.A.E.M." e que "«os ilícitos não graves», nunca poderão atentar contra a «segurança e ordem pública da RAEM", a conclusões d) e e), das Alegações.
2. A aplicação da medida de interdição de entrada, ao recorrente, (cfr. artigos 27.º, da contestação) respeitou o equilíbrio dos interesses em presença, "in casu" o interesse público - salvaguarda da segurança ou ordem públicas e o interesse privado do recorrente (dr., supra art. 6.º).
3. Pelo que ponderados os interesses em presença, da parte do recorrente não se vislumbram quaisquer interesses, juridicamente tuteláveis, que assumam especial relevo pois não é residente, apenas permanecendo ocasionalmente como turista, não exerce qualquer actividade em Macau (funcionário de empresa privada em Hong Kong, a fls., do processos), nem consta que aqui exerça ou se dedique a qualquer actividade económica e que aqui pague impostos e, em suma, pode concluir-se pela inexistência de qualquer sacrifício do recorrente, destinatário do acto em crise (cfr. supra arts. 6.º a 8.º e 17.º, 18.º; e, art. 27.º, da Contestação).
4. Dentro da previsão da lei a Administração só tinha duas escolhas: não aplicar qualquer medida administrativa ou aplicar a medida de interdição de entrada, mas sempre visando a segurança e ordem pública da RAEM e com observância do princípio da proporcionalidade e dos subprincípios da idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (cfr., supra arts. 9.º e 10.º; e expresso nos arts. 17.º, 18.º, 22.º e 24.º a 31.º, da Contestação).
5. O rigor utilizado pela Administração não pode ser confundido com o desnecessário sacrifício dos interesses do recorrente que se verifica em sede de salvaguarda da segurança de Macau (dr. supra art. 11º), pelo que deve improceder o entendimento do recorrente expresso no artigo 14.º, das Alegações e, igualmente devem improceder os alegados vícios de violação de lei por ofensa aos princípios da proporcionalidade, da legalidade e da razoabilidade imputados a conclusões f) e h), das Alegações.
6. Não tendo o princípio da eficiência alcançado uma autonomia própria no plano substantivo do procedimento administrativo subjacente à decisão afim, em regra, a sua aplicação tem vindo a ser extraída dos princípios da boa administração e da proporcionalidade, sendo este último aquele que aqui nos interessa, na vertente da necessidade (cfr., supra arts. 15.º).
7. Porém, utilizado como critério jurídico, por referência ao princípio da proporcionalidade na vertente necessidade, o mesmo não tem aplicação ao caso em apreço por apenas existir uma única medida administrativa que a Administração pode escolher como meio de satisfazer a necessidade de segurança, interesse público em presença (cfr., supra arts. 9.º, 16.º e 17:º).
Por outro lado,
8. Sendo sempre necessária a "existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas" para aplicar a medida de interdição de entrada independentemente de o pressuposto de facto ser uma condenação ou a existência de fortes indícios não deve ser aceite o entendimento do recorrente constante no artigo 17.º, das Alegações).
9. Sabendo que o CPSP "em virtude do exercício das suas funções" tem competência e legitimidade para receber informações o que configura o conhecimento, por aquele órgão, naquele preciso momento, de um facto - condenação ou existência de fortes indícios, que permite iniciar o procedimento administrativo com vista à verificação do preenchimento dos pressupostos legais para em decisão aplicar a medida administrativa de natureza preventiva/securitária, nos termos da lei, independentemente do período de tempo que medeia entre a data do conhecimento (do facto) e as datas da sentença de condenação ou da prática dos actos ilícitos que fundam a existência de fortes indícios (cfr., supra arts. 21.º a 23.º).
10. Destarte, considerando o acima referido e a posição da jurisprudência dos Tribunais de Macau (respectivamente, supra arts. 22.º e 23.º), "maxime" expressa nas afirmações que "Para a lei não é particularmente relevante o tempo decorrido desde a prática de crimes e as condenações" e "( ... ) as condenações criminais anteriores, bem como os fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes susceptíveis de ser motivo de recusa de entrada dos não residentes de Macau".
11. E, face ao acima exposto, a artigos 13.º a 24.º, deve improceder o vício de violação de lei por ofensa ao princípio da eficiência alegado pelo recorrente a conclusão g), da Alegações.
12. No mais, reitera-se todo o conteúdo da contestação de fls., pugnando-se pela improcedência do presente recurso.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto ofereceu o seguinte doutom parecer:
Imputa o recorrente, A ao acto - despacho do Secretário para a Segurança de 5/8/13 que, em sede de apreciação hierárquica, reformando-a embora quanto à fundamentação, manteve decisão do comandante do CPSP de aplicação ao visado da medida de interdição de entrada na RAEM pelo período de 3 anos - o atropelo dos princípios da proporcionalidade, boa fé e eficiência e rematando com a consignação de que o mesmo revela "ilegalidade", além de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, entendendo, em síntese, que a sua actuação. com factos delituosos "não graves", não fez nem faz perigar efectivamente a segurança e ordem públicas da Região, apresentando-se, de todo o modo, o período da medida como excessivo, face à decisão penal de 2 meses de prisão, suspensa, tendo tal medida sido tomada mais de 6 anos após os factos que a justificaram.
Perante a argumentação assim expendida, bem se poderá concluir que, embora assim o não nominando, o recorrente assaca ao acto erro nos pressupostos respectivos, dado entender que a conduta que lhe é imputada, a preencher, no seu critério, "ilícito não grave", nunca poderá fazer perigar a segurança e ordem públicas da RAEM, requisito ínsito nos dispositivos legais em que a decisão ablatória se fundou (conjugação dos art°s 4°, n° 2, al g) da Lei 4/2003 e 12°, n° 3 da Lei 6/2004).
Não vemos, porém, como lhe possa assistir qualquer razão, desde logo quanto a este específico.
Pese embora a "consubstanciação", expressa pelo acto, reportada exclusivamente à "possibilidade de virem a ser praticados crimes", não seja, por si só, em nosso critério, suficiente para válido preenchimento do requisito (sob pena de, perante a prática de todo e qualquer infracção, sempre se poder antecipar aquela "possibilidade" da prática de infracções futuras), a verdade é que mal se vê como possa o tribunal validam ente sindicar aquele juízo de prognose relativo à existência do dito perigo, área de ampla margem de discricionaridade por parte da Administração, (justificável, atenta a necessidade de garantia de protecção de pessoas e bens, prevenção da criminalidade e salvaguarda do regular exercício dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos), quando da análise do acervo carreado para os autos se não descortina que tal juízo de prognose se tenha, porventura, fundado em erro grosseiro ou manifesto, incorrido em injustiça gritante ou afrontado qualquer princípio fundamental, sendo que, ao invés, a postura do visado, não consonante, desde logo, com os propósitos da sua autorização de permanência em Macau (turismo, visita familiar) o autoriza com normalidade.
Quanto à proporcionalidade, sendo certo não se vislumbrar para o caso medida de natureza diferente, apta à salvaguarda dos interesses a proteger, a questão seria de equacionar relativamente ao respectivo "quantum".
Só que, nesta sede, mais uma vez nos encontramos, quiçá ainda com maior acuidade, em face de matéria de grande discricionaridade concedida à Administração, revelando-se, a tal propósito, inócua a esgrima com a concreta medida da pena criminal aplicada, respectiva suspensão e possível extinção, dado encontrarmo-nos, obviamente, em sede completamente diversa, a proteger valores e interesses completamente diferentes, pelo que, não se mostrando, também a esse nível, como absolutamente desconforme, desrazoável ou injusto o tempo concretamente fixado para o efeito, não haverá o tribunal que se imiscuir na matéria, desde logo por respeito ao sagrado princípio da separação de poderes.
Depois, face à sua própria postura e conduta, da sua exclusiva responsabilidade e pese embora o discricionaridade existente no domínio, não se alcança que o visado pudesse validamente augurar, configurar ou alimentar qualquer expectativa de reacção por parte da Administração, juridicamente fundada, muito diferente da ocorrida, pelo que mal se percebe a argumentação referente a eventual ofensa da boa fé.
Finalmente, revelando-se salutar e desejável que o procedimento administrativo decorra (salvaguardada a imprescindível segurança) com celeridade e aceitando-se que, no caso, a decisão terá sido tomada algo tardiamente, mesmo em função dos interesses a salvaguardar, a verdade é que "malgré tout", se não descortina que, atentos os circunstancialismos específicos do caso, a Administração se tenha guiado por escusados procedimentos impertinentes ou dilatórios, provocados pela própria ou por terceiros, sendo certo que, apesar de o acto ora sob escrutínio ter sido proferido após a decisão sobre a matéria penal por este tribunal, não se terá tratado de aguardar a mesma, já que o acto primário havia sido proferido antes disso.
Donde, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, sermos a entender não merecer provimento o presente recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.
III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
1. O recorrente foi notificado nos seguintes termos:
“O CPSP decidiu aplicar ao seu patrocinado A (de sexo masculino, nascido a XX de XX de 19XX, titular do BIRPHK n.º HXXXXX0(7)) a medida de interdição de entrada da RAEM. Junta-se em anexo uma cópia autenticada do despacho emitido pelo CPSP.
Notificado o seu patrocinado para, querendo, recorrer desta decisão para o Secretário para a Segurança, no prazo de 30 dias contados desde a recepção deste despacho. A desobediência à medida referida violará o disposto no artigo 21.º da Lei n.º 6/2004 de 2 de Agosto e será punida com pena de prisão.
A cópia autenticada do despacho de interdição de entrada acima referido foi enviada ao seu patrocinado.
Com os melhores cumprimentos.
Comandante do CPSP
(Ass. vd. o original)
Superintendente Geral XX
*
Corpo de Polícia de Segurança Pública
Despacho
Assunto: medida de interdição de entrada na RAEM
Referência: proposta n.º 99/2013-Pº222.18 de 7 de Fevereiro de 2013
A, de sexo masculino, nascido a XX de XX de 19XX, titular do BIRPHK n.º HXXXXX0(7), cometeu em Macau crime, designadamente:
Em 23 de Setembro de 2007, A foi jogar no Casino B, sentando-se à mesa n.º 3 do jogo «Texas Holdem Poker» na sala comum do 3º andar. A e o ofendido estavam a jogar sozinho e nada tinham a ver um com o outro até, por causa duma disputa de oferta, começaram a ter uma briga e, de seguida, A agrediu o ofendido, causando-lhe lesões com 2 dias de convalescença. Por isso, A foi condenado, em 19 de Abril de 2012 no TJB, pela prática de um crime de ofensas simples à integridade física previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do CPM, na pena de 2 meses de prisão.
Tendo em conta o acima referido facto e as suas circunstâncias, a presença de A em Macau causará perigo para a ordem e segurança pública da Região. A fim de defender o interesse público local e de exercer a atribuição especial do CPSP, venho ordenar, exercendo a competência subdelegada pelo Secretário para a Segurança e nos termos do artigo 4.º, n.º 2, al. 2) da Lei n.º 4/2003 conjugado com o artigo 12.º, n.º 2, al. 1) e n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 6/2004, que seja interditada a entrada na RAEM do indivíduo acima referido por três anos (contados desde 22 de Maio de 2013).
Notificado o interessado para, querendo, recorrer da respectiva decisão para o Secretário para a Segurança no prazo de 30 dias. Notifique o interessado de que a desobediência à medida de interdição violará o disposto no artigo 21.º da Lei n.º 6/2004 de 2 de Agosto e será punida com pena de prisão.
Aos 22 de Maio de 2013, no CPSP
Comandante do CPSP
(Ass. vd. o original)
Superintendente Geral XX
2. Na sequência do recurso hierárquico interposto do despacho supra veio a ser proferido o seguinte despacho, objecto do presente recurso contencioso:
“ASSUNTO: Recurso hierárquico necessário
RECORRENTE: A
Por despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), de 22/05/2013, que aqui se dá por reproduzido, foi aplicada a medida de interdição de entrada a A, residente da Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK), titular do HKIC n.º HXXXXX0(7), pelo período de 3 (três) anos, com fundamento no artigo 4.º, n.º 2, alínea 2), da Lei n.º 4/2003 conjugado com o artigo 12.º, n.ºs 2, alínea 1), 3 e 4, da Lei n.º 6/2004.
O despacho do Comandante do CPSP sufragou os fundamentos legais do parecer e proposta n.º 99/2013, P. 222.18, de 07/02/2013, que aqui se dá por reproduzido, para aplicar a medida de interdição de entrada em apreço, tendo como fundamento de facto a condenação do recorrente, por sentença de 19/04/2012, do Tribunal Judicial de Base (TJB) / 3.º Juízo Criminal (JC), na pena de 2 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo prazo de 1 ano, pela prática do crime de ofensa simples à integridade física (art. 137.º, n.º 1, do Código Penal), a fls., do processo instrutor.
Atento ao teor do recurso hierárquico necessário, de 19/06/2013, que aqui, também, se dá por reproduzido;
Compulsado o processo instrutor,
Colhe-se que o recorrente quando do exercício do direito de audiência escrita, face ao projecto de decisão de lhe ser aplicada a medida administrativa de interdição de entrada na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), juntou àquela, documento comprovativo da interposição de recurso para o Tribunal de Segunda Instância (TSI) da sentença condenatória do TJB/3.º JC (cfr. fls., do processo instrutor);
Assim, em consequência da interposição, pelo recorrente, do recurso acima referido, a sentença condenatória do TJB/3.º JC, de 19/04/2012, não transitou em julgado;
Facto que, sendo do conhecimento do autor, no momento da prática, do acto em crise, deveria ter sido bastante para, na apreciação dos elementos de facto e de direito e respectiva fundamentação, afastar a norma da alínea 2) do n.º 2 do artigo 4.º, da Lei n.º 4/2003;
Razão, pela qual, não concordo com a fundamentação de facto e de direito expressa no despacho aqui impugnado.
Porém, ainda assim,
O procedimento administrativo com a finalidade de aplicar a medida de interdição de entrada é autónomo relativamente ao processo penal, não dependendo deste no que respeita à aplicação e determinação do "quantum" do período de interdição de entrada, pois tem natureza e produz efeitos completamente distintos, não comparáveis, dos fins das penas.
Neste sentido,
A aplicação da medida de interdição de entrada à situação com os contornos do caso em apreço justifica-se e depende da verificação de dois requisitos essenciais:
- A existência de fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes (al. 3), n.º 2, art. 4.º, da Lei n.º 4/2003) conjugada com a existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM; (n.º 3, art. 12.º, da Lei n.º 6/2004);
- Sendo que, a verificação do segundo destes requisitos está sempre dependente do primeiro no que respeita à natureza e gravidade das infracções e do modo como eventualmente se repercutem em sede de segurança interna e ordem pública;
No caso em apreço, no que respeita ao crime de ofensa simples à integridade física retira-se da própria sentença os elementos de facto que sustentaram o despacho de acusação do Ministério Público, a fls., do processo instrutor; e que,
Concretizam, um acervo de elementos que permite concluir pela existência de fortes indícios da prática do crime imputado ao recorrente e pela constatação, "in casu" da existência de perigo efectivo para a segurança e ordem públicas, consubstanciado na possibilidade de virem a ser praticados crimes;
Destarte, a conduta, fortemente indiciada, do recorrente é violenta e lesiva dos interesses de segurança e ordem públicas, pelo que se mostra legal, adequada, necessária e proporcional em sentido a medida de interdição de entrada por 3 (três) anos aplicada pelo acto recorrido;
Pelo que, nos termos do artigo 161.º, n.º 1 conjugado com o artigo 126.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo, mantenho a decisão impugnada, mas reformando-a, quanto a sua fundamentação de facto e de direito, nos termos já expressos neste despacho, respectivamente, existência de fortes indícios da prática do crime de ofensas simples à integridade física e de perigo efectivo para a segurança e ordem públicas, consubstanciado na possibilidade de virem a ser praticados crimes, conforme o artigo 4º, n.º 2, al. 3), da Lei n.º 4/2003 conjugado com o artigo 12º, n.ºs 2, al. 1), 3 e 4, da Lei n.º 6/2004.
Gabinete do Secretário para a Segurança da Região Administrativa Especial de Macau, aos 05 de Agosto de 2013.
O Secretário para a Segurança
XX”
3. É do seguinte teor o acórdão condenatório em que se louvou a entidade recorrida para aplicar ao recorrente a referida interdição:
“Processo n.º 973/2012
(autos de recurso penal)
Recorrente: o arguido A
Tribunal recorrido: o Tribunal Singular do 3º Juízo Criminal do TJB
Número do processo no Tribunal a quo: CR3-12-0033-PCS
I. Relatório
O Tribunal Singular do 3º Juízo Criminal do TJB conheceu o processo n.º CR3-12-0033-PCS na ausência do arguido A e condenou este, em 19 de Abril de 2012, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensas simples à integridade física previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º 1 do CPM, na pena de 2 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 1 ano (vd. o teor da sentença a fls. 73 a 76 dos autos).
O arguido interpôs recurso ordinário da referida decisão de primeira instância para este Tribunal de Segunda Instância, indicando que, dado que ele nunca tinha sido notificado do teor da acusação ou da data designada para a audiência, o processo padece de nulidade prevista no artigo 106.º, al. c) do CPPM e deverá o Tribunal de recurso declarar nulos todos os processos datadas do dia da falta da notificação (devida), incluindo a audiência de julgamento feita pelo Tribunal a quo, por este ter violado os artigos 50.º, n.º 1, al. a), 100.º, n.º 7 e 316.º, n.º 1 do CPPM. (vd. o teor da petição de recurso em língua portuguesa constante de fls. 101 a 107 dos autos)
O Magistrado do MP junto do Tribunal a quo, no exercício do direito de resposta atribuída pelo artigo 403.º, n.º 1 do CPP, entendeu que deverá improceder o recurso interposto pelo arguido (vd. o teor da resposta ao recurso em língua portuguesa a fls. 109 a 113 dos autos).
Remetido ao TSI, o processo foi com vista ao Procurador-Adjunto junto deste Tribunal nos termos do artigo 406.º do CPP, e o Procurador-Adjunto também entendeu improcederá o recurso. (vd. o teor do parecer em língua portuguesa a fls. 122 a 123 dos autos).
Concluídos o exame preliminar do processo pelo relator e o visto dos dois juízes-adjuntos que formaram o Tribunal Colectivo, foi realizada na quinta-feira passada a audiência referida no artigo 414.º do CPP.
Profere-se a decisão deste acórdão segundo o resultado da deliberação.
II. Fundamentação de facto
Apreciados os autos, o Tribunal conheceu que:
O ora recorrente A foi interrogado em 23 de Setembro de 2007 na PJ de Macau em relação a este caso, altura em que ele declarou a residência em XX.º Andar XX, n.º XX, XX Road, XX, Hong Kong e deu dois números de telefones: 852-9XXXXX05 e 852-2XXXXX13 (vd. o auto de interrogatório a fls. 14 a 15 dos autos).
Em 16 de Dezembro de 2011, o MP deduziu acusação penal contra o recorrente pela prática de um crime de ofensas simples à integridade física (vd. o conteúdo da acusação a fls. 43 a 44 dos autos).
Em 21 de Dezembro de 2011, o pessoal do Serviço de Acção Penal do Ministério Público enviou na Sede da DSC de Macau uma carta registada que visou comunicar a acusação ao recorrente, sendo o destinatário A e o endereço XX.º Andar XX, n.º XX, XX Road, XX, Hong Kong; a carta foi de seguida devolvida para Macau pela instituição de correio de Hong Kong por motivo de: “devolver-se ao remetente por não levantamento – a correspondência não foi levantada pelo destinatário no prazo de posta restante” (vd. o conteúdo a fls. 45 a 45v e 51 dos autos).
Em 6 de Fevereiro de 2012, o Juiz a quo do TJB proferiu nos autos um despacho fixando a data e o tempo para início da audiência em 29 de Março de 2012 e às 11h00 de manhã (vd. o conteúdo do despacho a fls. 54 dos autos).
Em 8 de Fevereiro de 2012, o pessoal do Tribunal a quo enviou na Sede da DSC de Macau uma carta registada que visou comunicar o despacho acima referido ao recorrente, sendo o destinatário A e o endereço XX.º Andar XX, n.º XX, XX Road, XX, Hong Kong (vd. o conteúdo a fls. 57 e v dos autos); a carta foi também devolvida para Macau pela instituição de correio de Hong Kong, mais uma vez por motivo de: “devolver-se ao remetente por não levantamento – a correspondência não foi levantada pelo destinatário no prazo de posta restante” (vd. o conteúdo a fls. 66 dos autos).
Face ao exposto e sob proposta do Magistrado, o juiz a quo decidiu em 7 de Março de 2012 notificar o recorrente por editais para comparecer na audiência (vd. o conteúdo a fls. 66 a 67 dos autos). Os respectivos editais foram afixados em 8 de Março de 2012 (vd. o conteúdo a fls. 68 e v dos autos).
Em 29 de Março de 2012, pelas 11h00, realizou-se no Tribunal a quo a audiência de julgamento na ausência do recorrente (vd. o conteúdo do registo do julgamento a fls. 72 e v dos autos).
Em 19 de Abril de 2012, o Juiz a quo efectuou a leitura da sentença (vd. o registo da condenação a fls. 77 dos autos).
Emitido o mandado de detenção pelo Tribunal a quo, o recorrente foi notificado da sentença em 5 de Novembro de 2012. (vd. o conteúdo a fls. 90v dos autos).
Na sua petição de recurso, o recorrente alegou que tinha usado o endereço de Hong Kong acima referido, mas não revelou o motivo de não ter levantado as duas cartas registadas acima referidas. (vd. o conteúdo da petição de recurso em língua portuguesa constante de fls. 101 a 107 dos autos).
III. Fundamentação de direito
Importar indicar, em primeiro lugar, que o Tribunal de recurso só precisa de resolver as questões concretamente deduzidas pelo recorrente na parte de conclusão da sua petição de recurso, sem ter de analisar os fundamentos da dedução das mesmas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso. (tal entendimento vê-se no acórdão n.º 47/2002 de 25 de Julho de 2002, acórdão n.º 63/2001 de 17 de Maio de 2001, acórdão n.º 18/2001 de 3 de Maio de 2001, acórdão n.º 130/2000 de 7 de Dezembro de 2000 e acórdão n.º 1220 de 27 de Janeiro de 2000 do Tribunal de Segunda Instância).
O recorrente entendeu que, nos termos do artigo 100.º, n.º 5, al. b) do CPP, antes de o Tribunal a quo ter decidido notificá-lo mediante editais para comparecer na audiência, devia este, por via telefónica, avisá-lo da data designada para a audiência e de todos os assuntos relacionados de acordo com os dois números de telefone que ele deu no inquérito, para que ele possa exercer o direito de resposta.
Quanto à esta questão, nos termos do artigo 295.º, n.º 3 do CPP, a notificação do arguido do despacho que designa dia para a audiência tem lugar nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 100.º, isto é, a) Contacto pessoal com o notificando no lugar em que este for encontrado; b) Via postal, por meio de carta ou aviso registados.
Neste caso, tal como se referiu, o pessoal do Tribunal a quo enviou o respectivo aviso registado para o endereço de Hong Kong que o recorrente anteriormente tinha declarado, mas não tentou ligar-lhe para os referidos números de telefone para notificá-lo do respectivo dia designado para a audiência.
Este Tribunal entende que a notificação por via telefónica prevista no artigo 100.º, n.º 5, al. b) perde o pressuposto de aplicação perante as formas de notificação especialmente exigidas pelo artigo 295.º, n.º 3. O legislador escreve no diploma do n.º 5 que, “Valem como notificação, salvo nos casos em que a lei exigir forma diferente, as convocações e comunicações feitas…”
Dado que o recorrente reside em Hong Kong, o pessoal do Tribunal a quo não conseguiam ter em Macau contacto pessoal com ele para notificá-lo do início da audiência, mas só podiam fazer isso mediante cartas registadas.
Por outro lado, nos termos do artigo 316.º, n.º 1 do CPP, se, depois de realizadas as diligências previstas no n.o 3 do artigo 295.º, o arguido ainda faltar à audiência injustificadamente, é o mesmo notificado por editais do despacho que designa o novo dia para a audiência. Segundo o n.º 2 do mesmo artigo, os editais contêm a cominação de que a audiência será realizada na sua ausência caso não esteja presente no dia designado para a audiência.
Neste caso, ao saber a devolução da carta registada da notificação do dia designada para a audiência, o Tribunal a quo decidiu notificar por editais o recorrente para comparecer na audiência no dia designado.
O Tribunal entende que, tendo em conta os motivos de devolução das respectivas cartas registadas, é óbvio que o arguido colocava-se voluntariamente em posição de não conseguir estar presente na audiência. Isso é porque, da sua conduta de não ter levantado as cartas registadas das notificações do dia designado para a audiência e da acusação pelo MP pode-se resultar que ele queria ignorar este caso. Além disso, ele não explicou na petição de recurso a razão pela qual não tinha levantado as duas cartas registadas. Assim sendo, dado que ele não levantou, no prazo fixado pelo correio de Hong Kong, a carta registada que visou notificar o dia designado para a audiência, não foi notificado do mesmo.
Desde que foi o arguido que não levantou a correspondência, o Tribunal a quo não ficou obrigado a enviar-lhe de novo o aviso ou, no dia anteriormente designado para a audiência, com a sua falta injustificada, a designar o novo dia para a audiência para notificá-lo por editais.
Na verdade, a “falta injustificada” prevista no artigo 316.º, n.º 1 do CPP tem como pressuposto de que o arguido foi notificado do dia designado para a audiência. No entanto, se dos autos resulte que o arguido colocava-se numa situação de não conseguir ser notificado, poderia o Tribunal decidir imediatamente notificá-lo por editais da designação do dia para a audiência.
Por outro lado, importa mencionar que havia mais de 14 dias entre o dia em que o pessoal do Tribunal a quo afixou os editais e o dia designado para a audiência, pelo que o recorrente não pode acusar o Tribunal a quo de não ter observado o prazo mínimo de aviso prévio previsto no artigo 295.º, n.º 2 do CPP.
São totalmente legais as práticas e decisões feitas pelo Tribunal a quo no que toca à referida notificação do dia designado para a audiência e não há neste caso nulidade prevista no artigo 106.º, al. c) do CPP e indicada pelo recorrente. O recorrente “não conseguiu” exercer o direito de defesa porque ele não tinha levantado a carta registada no correio de Hong Kong, devendo ele responsabilizar-se pela sua conduta própria.
Quanto às formas de notificações da acusação, nos termos do artigo 100.º, n.º 7 do CPP, as notificações são feitas ao arguido quando sejam respeitantes à acusação.
Além disso, o artigo 265.º, n.º 5 do mesmo Código também prevê que as notificações da acusação efectuam-se mediante as duas vias previstas no artigo 100.º, n.º 1, al.s a) e b) do mesmo Código, prosseguindo o processo quando, depois de se terem utilizado as duas vias de notificação, elas se tenham revelado ineficazes.
Por isso, dado que o recorrente reside em Hong Kong, o pessoal do MP só conseguiu, com certeza, notificar a acusação ao recorrente mediante a via (aviso registado) prevista no artigo 100.º, n.º 1, al. b) do referido Código.
Tendo em conta o referido disposto especial no artigo 265.º, n.º 5, as notificações, quando sejam respeitantes à acusação, não podem ser feitas, de forma qualquer, por via telefónica prevista no artigo 100.º, n.º 5, al. b).
Nestes termos, não se verifica neste caso qualquer ilegalidade em relação à notificação da acusação pelo MP.
O recurso interposto pelo recorrente é totalmente improcedente por o MP e o TJB de Macau já ter efectuado ao recorrente as notificações por via postal de acordo com a lei.
IV. Decisão
Face ao exposto, o Tribunal Colectivo do TSI julga improcedente o recurso interposto pelo arguido A e mantém a decisão a quo.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 10 UCs.
Comunique a decisão ao Comandante do CPSP e ao ofendido C.
Em Macau, aos 25 de Julho de 2013.”
IV - FUNDAMENTOS
1. O recorrente vem impugnar a decisão do Exmo Senhor Secretário para a Segurança, de 05/08/2013, que, em sede de recurso hierárquico necessário, reformou o despacho do Comandante do Corpo de Polícia de Segurança Pública (CPSP), de 22/05/2013, nos fundamentos de facto e de direito, mas mantendo a decisão de aplicar ao recorrente a medida de interdição de entrada pelo período de três anos.
Imputa-lhe, em síntese, o vício de violação de lei, por não lograr, no seu entender o preenchimento do pressuposto do artigo 12.º, n.º 3, da Lei n.º 6/2004 "Perigo efectivo para a segurança e ordem públicas"; violação do princípio da proporcionalidade por referência ao artigo 12.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2004 e artigo 5.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo (CPA); violação do princípio da boa fé por referência ao artigo 8.º do CPA e violação do princípio da eficiência.
2. Vejamos a questão relativa à legalidade da decisão na vertente de integração dos respectivos pressupostos de facto e direito da decisão tomada.
O recorrente ataca o referido despacho, argumentando, no essencial, que não se comprova que com a condenação sofrida, ainda que não transitada ao tempo da interdição, se tenha posta em causa a segurança e ordem pública da RAEM.
Na perspectiva da anulação do acto, o vício de violação de lei consiste na “discrepância entre o conteúdo ou o objecto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis”1 e, muito embora tal vício ocorra normalmente no exercício de poderes vinculados, o certo é que não deixa de se verificar no exercício de poderes discricionários quando sejam infringidos os princípios gerais que limitam ou condicionam de forma genérica a discricionariedade administrativa, tais como o princípio da imparcialidade, igualdade, justiça, proporcionalidade, etc..2
Dentro de um certo entendimento, tanto o erro na interpretação ou indevida aplicação de uma regra de direito como o erro baseado em factos materialmente inexistentes ou apreciados erroneamente entram no vício de violação de lei. A ideia falsa sobre os pressupostos de facto em que se funda a decisão traduzem violação de lei, na medida em que, se os poderes forem discricionários, aquela mesma lei não os deixa de conferir para serem exercidos ponderando a existência de “certas circunstâncias cuja apreciação conduza o agente a optar, entre várias decisões possíveis, pela que considere mais adequada à realização do fim legal. Se estes afinal não existirem nos termos supostos, a lei foi violada no seu espírito.”3
3. Importa atentar no preceito normativo em que se estribou a decisão ora posta em causa, o artigo 4º da Lei 4/2003, de 17/3:
“1. É recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Terem sido expulsos, nos termos legais;
2) A sua entrada, permanência ou trânsito estar proibida por virtude de instrumento de direito internacional aplicável na RAEM;
3) Estarem interditos de entrar na RAEM, nos termos legais.
2. Pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Tentarem iludir as disposições sobre a permanência e a residência, mediante entradas e saídas da RAEM próximas entre si e não adequadamente justificadas;
2) Terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior;
3) Existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes;
4) Não se encontrar garantido o seu regresso à proveniência, existirem fundadas dúvidas sobre a autenticidade do seu documento de viagem ou não possuírem os meios de subsistência adequados ao período de permanência pretendido ou o título de transporte necessário ao seu regresso.
3. A competência para a recusa de entrada é do Chefe do Executivo, sendo delegável.”
Havendo que o conjugar com o artigo 12º da Lei 6/2004, de 2/8:
“1. As pessoas a quem seja decretada a expulsão ficam, depois de esta ser concretizada, interditas de entrar na RAEM por um período a fixar na ordem de expulsão.
2. Pode igualmente ser decretada a interdição de entrada:
1) Preventiva ou sucessivamente, quando os motivos que levam à recusa de entrada, nos termos das alíneas 1) a 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, justifiquem que essa medida seja prolongada no tempo;
2) Às pessoas a quem seja revogada a autorização de permanência nos termos do n.º 1 do artigo anterior.
3. A interdição de entrada pelos motivos constantes das alíneas 2) e 3) do n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003 deve fundar-se na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
4. O período de interdição de entrada deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.”
Deste artigo resulta que casos há em que se concede à Administração um poder de interditar a entrada, poder esse vinculado à ocorrência de determinados factos, ali taxativamente enumerados.4
4. Convirá rememorar, a propósito da discricionariedade, alguns conceitos, acolhendo a lição de Freitas do Amaral5:
“Em rigor, não há actos totalmente vinculados, nem actos totalmente discricionários. Todos os actos administrativos são em parte vinculados e em parte discricionários. Assim, quando na linguagem corrente se fala em actos vinculados, está-se no fundo a pensar em actos predominantemente vinculados (ou então está-se a pensar nos aspectos em que tais actos são vinculados); e quando se fala em actos discricionários, está-se no fundo a pensar em actos predominantemente discricionários (ou então está-se a pensar nos aspectos em que tais actos são discricionários)
(...)
Para haver discricionariedade é necessário que a lei atribua à Administração o poder de escolha entre várias alternativas diferentes de decisão, quer o espaço de escolha esteja apenas entre duas decisões contraditoriamente opostas (v.g., conceder ou não uma autorização), quer entre várias decisões à escolha numa relação disjuntiva (v. g., nomeação de um funcionário para um determinado posto de uma lista nominativa de cinco).”
E tal escolha será livre?
Responde aquele Autor da seguinte forma:
“Porém, hoje, reponderando a questão, entendemos que se deve responder negativamente à questão posta.
Efectivamente, o processo de escolha a cargo do órgão administrativo não está apenas condicionado pelo fim legal – em termos de se poder afirmar serem indiferenciadamente admissíveis à face da lei todas as soluções que o respeitem. A realidade dos nossos dias demonstra, antes, que tal processo é ainda e sobretudo condicionado e orientado por ditames que fluem dos princípios e regras gerais que vinculam a Administração Pública (designadamente, igualdade, proporcionalidade e imparcialidade), estando assim o órgão administrativo obrigado a encontrar a melhor solução para o interesse público – demonstra, noutros termos, que o poder discricionário não é um poder livre, dentro dos limites da lei, mas um poder jurídico.”
Em sentido próximo, diz entre nós Vieira de Andrade, na esteira de Rogério Soares, que «a discricionariedade não é uma liberdade (...), mas sim uma competência, uma tarefa, corresponde a uma função jurídica. A Administração não é remetida para um arbítrio, ainda que prudente, não pode fundar na sua vontade as decisões que toma. A decisão administrativa tem de ser racional, porque não pode ser fruto de emoção ou capricho, mas, mais que isso, tem de corresponder à solução que melhor sirva o interesse público que a lei determinou. A discricionariedade não dispensa, pois, o agente de procurar uma só solução para o caso: aquela que considere, fundadamente, a melhor do ponto de vista do interesse público».
Em suma, na discricionariedade, a lei não dá ao órgão administrativo competente liberdade para escolher qualquer solução que respeite o fim da norma, antes o obriga a procurar a melhor solução para a satisfação do interesse público de acordo com princípios jurídicos de actuação.”
Para salientar ainda que certas situações que antes considerava ser de discricionariedade imprópria (tais situações eram três: a liberdade probatória, a discricionariedade técnica e a justiça burocrática) - em geral, aquelas em que um poder jurídico conferido por lei à Administração houvesse de ser exercido em termos tais que o seu titular não se devia considerar autorizado a escolher livremente entre várias soluções possíveis, mas antes era obrigado a procurar a única solução adequada que o caso comportava - representavam exemplos de verdadeira autonomia por parte da Administração, entende agora que a Administração pode exorbitar dos seus poderes e sair abertamente do campo da discricionariedade para entrar no da pura e simples ilegalidade, motivo por que o tribunal administrativo pode anular a decisão tomada pela Administração – embora não possa nunca substituí-la por outra que repute mais adequada. Pelo que as hipóteses de erro manifesto de apreciação correspondem, dogmaticamente, a situações de desrespeito do princípio da proporcionalidade, na sua vertente da adequação.
5. O "perigo efectivo para a segurança e ordem públicas" traduz um conceito indeterminado puro ou em sentido próprio que admite uma larga margem de livre apreciação, o que determina que a sua avaliação administrativa concreta seja fortemente subtraída à sindicância dos órgãos judiciais.6
Ora, é sensato e razoável que as entidades públicas competentes, em face de indivíduo sobre quem recaiam indícios de prática de crimes, lhe vedem, de acordo com os dispositivos legais vigentes, a entrada no Território, por forma a prevenir a criminalidade e salvaguardar a segurança pública.
No caso sub judice estamos perante uma situação em que cabia à Administração escolher uma conduta condicionada ao preenchimento de conceitos vagos e imprecisos e de apreciação subjectiva, tal como ameaça para a ordem pública e segurança do Território.
A lei, ao conferir os poderes discricionários, pretende que eles sejam exercidos em face da existência de certas circunstâncias cuja apreciação conduza o agente a optar, entre as várias decisões possíveis, pela que considere mais adequada à realização do fim legal, daí que se a decisão se fundamentar numa falsa ideia sobre os factos, se estes não existirem nos termos supostos, a lei acaba por ser violada no seu espírito, importando, assim, analisar a questão de eventual erro nos pressupostos de facto.
Não se deixa de reconhecer que a sindicabilidade do preenchimento daquele conceito e sua avaliação pode sair eventualmente postergada pela falta de concretização dos elementos em que a Administração se baseou, o que não acontece quando esse juízo parte de uma condenação de cometimento de um crime contra as pessoas, ainda que não transitada ao tempo, mas mais tarde até se veio a concretizar. Pode-se dizer que essa condenação é curta, a factualidade que a integra foi esporádica, pontual, que não atenta contra aqueles valores supremos da vida em sociedade. Tudo bem, mas isso é a opinião da recorrente, que não a da Administração, sendo a esta que cabe tal avaliação. Avaliação em que os Tribunais não se devem imiscuir, a não ser quando essa avaliação seja grosseira e manifestamente desproporcionada, tanto mais quando é o próprio legislador que abre as portas com tal formulação à possibilidade de por essa via se interditar alguém de vir a Macau.
6. Aliás, como é sabido, não estamos neste caso de aplicação de medidas de prevenção em similitude de regras que são próprias do plano puramente penal. As penas são a reacção pública ao crime, enquanto a medida administrativa de segurança, como esta é, destina-se a salvaguardar um certo padrão social de ordem e tranquilidade públicas sob a forma de reacção a uma atitude comportamental de alguém que se não dobrou às regras de convivência societária.7
Não se exige, vistos os fins prosseguidos e a natureza da medida aplicada, que se tenha do conceito em causa uma visão penalista, de forma a considerar apenas a factualidade relevante como aquela que seja constituída como o “conjunto dos elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado pelo crime que lhe imputam.”8 Mas não se pode deixar de reclamar a existência daquele mínimo integrante do próprio conceito de indícios tidos como os “elementos sensíveis, materiais do crime, tais como vestígios, sinais, rastos, marcas, impressões, traços”9 ou o reporte documental a esses elementos, no caso, tudo reforçado até já com uma condenação, ainda que à revelia.
7. Posto isto, visto o invocado fundamento para a interdição, observa-se que a entidade recorrida formulou um juízo de perigosidade efectivo para a segurança ou ordem pública da RAEM - art. 12º, n.º 3 da Lei 6/2004.
A discordância, neste caso, não é argumento bastante que possa inverter a decisão proferida, sob pena de se subverter o princípio da separação de poderes.
O fundamento invocado precisa de ser complementado com um juízo de perigosidade para a segurança interna de Macau, o que foi expressamente invocado.
Assim se conclui pela verificação dos pressupostos da aplicação da medida decretada.
8. Importa ainda referir, por outro lado, contrariamente ao afirmado, que a aplicação da medida de interdição não decorreu da existência de um crime “julgado”, mas de indícios de um crime “praticado, como bem claramente resulta da reforma do acto.
O procedimento administrativo apenas teve início10, conforme se colhe do processo instrutor, quando o CPSP teve conhecimento da condenação do recorrente (matéria de facto), a 03/05/2012, data em que recebeu o mandado de detenção contra o mesmo, com sentença de condenação em apenso, pelo ofício n.º 2089/2012/SC/K/RAEM, de 03/05/2012 (a fls. do processo instrutor).
Perante este circunstancialismo e atenta a reforma da decisão proferida tem-se por não demonstrada a falta de actualidade alegada, pelo recorrente, no art. 17.º da P. R. que por isso improcede.
9. Igualmente deve improceder o alegado vício de violação de lei por ofensa ao princípio da eficiência "por falta de celeridade", pois decorre dos autos que a Administração, no decorrer da marcha do processo, não se determinou por procedimentos impertinentes ou dilatórios, mas, ao invés, verificada a existência de matéria de facto que preenchia os requisitos legais promoveu com eficiência e celeridade a conclusão do mesmo.
10. Entra-se aí, no entanto, num domínio em que não cabe em situações normais aos Tribunais sindicar a actuação da Administração, competindo a esta fazer um juízo baseado na sua experiência e nas suas convicções, juízo esse não determinado, apenas enquadrado, por critérios jurídicos, em que o espaço de conformação da Administração não se cinge à fixação dos efeitos da decisão, antes se alarga igualmente à determinação das próprias condições da decisão considerada na perspectiva do interesse público.11
Reconhece-se que diferentes podem ser os circunstancialismos de tempo, lugar e de modo, de forma a justificar que agora se interdite por mais ou menos tempo.
Neste âmbito o Tribunal só deve intervir quando for manifesta a desproporção das medidas impostas à gravidade da situação ou quando elas sejam de tal forma grosseiras que mereçam a intervenção correctiva do Tribunal.
Não sem que se refira o dever de actuação proporcionada e razoável das autoridades, não podendo a discricionariedade dos actos sufragar uma qualquer irrazoabilidade sob pena de arbitrariedade, impondo-se, até, como já se tem afirmado, que a Administração se auto vincula à sua própria actuação e, podendo mudar de critério, deve, no entanto justificar essa mudança.
Isto, para afirmar que, em sede da medida aplicada, se as razões que se deparam não são suficientes para anular o acto, tal não significa, nem tem que significar, que o juízo que ora se pronuncia seja o da aprovação da medida.
Só que, como se disse e reafirma, o Tribunal só deve intervir quando a desrazoabilidade for grosseira ou totalmente desrazoável, deixando-se ainda aqui o espaço próprio à Administração, dentro da margem de discricionariedade da entidade recorrida, como órgão administrativo competente para a aplicação da medida de polícia em causa, sendo certo que não deverá ela deixar, visto o disposto no n.º 4 do artigo 12º da Lei 6/2004, de adequar o período de interdição de entrada que deve ser proporcional à gravidade, perigosidade ou censurabilidade dos actos que a determinam.
11. Quanto à alegada desrazoabilidade e pretensa desproporcionalidade no uso de poderes discricionários, ainda que imperfeitamente concretizado, entende-se que se pressupõe a violação dos princípios de adequação e proporcionalidade na decisão proferida.
E quanto a isto, dir-se-á tão somente que, ao entender-se que foi feita correcta aplicação da lei, constituindo tais princípios índices aferidores do controle da discricionariedade, em vista da conformação da decisão com a prossecução do interesse público, afastada estará a desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários conferidos à Administração no caso concreto.
Descortina-se aqui a prossecução do interesse público, a adequação do comportamento à prossecução desse interesse público e compreende-se ainda o sacrifício dos interesses privados em função da importância do interesse público que se procura salvaguardar.12
12. No que respeita à medida da duração do tempo de interdição, não vindo especificado este fundamento de desrazoabilidade, dele não se curará, sem deixar de dizer que tal fixação “está dentro da margem de discricionariedade da entidade recorrida como órgão administrativo competente para a aplicação da medida de polícia em causa, pelo que a medida feita por ela é princípio insindicável jurisdicionalmente devido ao basilar princípio da separação de poderes, salvo casos de erro manifesto ou injustiça notória”13, hipóteses estas que não ocorrem no caso concreto.
13. No que respeita a violação do princípio da boa-fé remete esse princípio para um padrão ético de comportamento na sua relação com os cidadãos, agindo de forma correta, leal e sem reservas. Trata-se de um princípio programático de comportamento que se materializa através da observância de três outros princípios: O princípio da protecção da confiança; o princípio da materialidade (devendo a Administração orientar-se pela tutela das situações jurídicas); o princípio da transparência – cfr. art. 8º do CPA.
Ora no estabelecimento e na ponderação de valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações em concreto, com relevo para a confiança suscitada na contra parte em face da actuação em apreço e a prossecução do objectivo com a actuação pretendida, percebe-se bem em que valores se estribou a Administração tomada, não se descortinando que tenha havido deslealdade ou quebra da confiança que deve merecer na sua actuação.
Não se vê que tenha sido demonstrada pelo recorrente a adopção, por parte da entidade aqui recorrida, de qualquer actuação injusta ou de relevante afronta dos valores da ordem jurídica, e, muito menos, parcial e de má-fé.
Nos termos expostos há que negar provimento ao recurso sub judice por não se verificarem as assacadas ilegalidades do acto recorrido ou quaisquer outras de que cumpra oficiosamente conhecer.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao presente recurso contencioso.
Custas pela recorrente, com 6 UC de taxa de justiça.
Macau, 11 de Setembro de 2014
_________________________ _________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira Mai Man Ieng
(Relator) (Fui presente)
(Magistrado do M.oP.o)
_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Freitas do Amaral, in Dto Adm., II, 2002, 390v.
2 - Freitas do Amaral, ob. cit., 392
3 - Marcelo Caetano, in Man. Dto Adm, 10ª ed., I, 504v.
4 - Ac. TSI de 3/2/2000, Acs. do TSI, 2000, I 20
5 - Curso de Dto Administrativo, 2002, 78 e segs
6 Vide, Ac. do TUI de 27/04/2000, Proc. n.º 6/2000; Ac. do TSI de 18/10/2012, Proc. 127/2012
7 - Vd. Ac. deste TSI, Proc. n.º 647/2012, de 18/Abril
8 - Ac. do TSJM de 11/12/96, Jurisp. 1996, II, 1035 e cfr. ainda Ac. TSJM de 9/7/97, Jurisp. 1997, II, 923
9 - Leib Soibelman, Dic. Geral Dir., 2º, 315
10 Vide, a exemplo, Acs. do TSI, de 31/03/2011, Proc. 209/2007; de 18/10/2012, Proc. n.º 127/2012
11 - Freitas do Amaral, ob. cit., 111 e 112
12 - João Caupers, in Int. ao Dto. Administ., 2001, 80
13 -Ac. do TSI de 24/4/2003, proc. 107/2001
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673/2013 38/39