Processo nº 203/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 11/Setembro/2014
Assunto: Ineptidão da petição inicial
Falta de indicação da causa de pedir
Petição deficiente
Rectificação e concretização da matéria de facto na réplica
SUMÁRIO
- Nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 139º do Código de Processo Civil, a petição inicial é inepta quando há falta de indicação da causa de pedir.
- A ineptidão da petição distingue-se das situações em que o autor, embora alegue o facto ou factos de que decorre o seu direito, fá-lo em termos deficientes, omitindo factos necessários para fundamentar o direito.
- Nas situações em que a causa de pedir é complexa, composta por vários factos, a falta de indicação de alguns deles não conduz à ineptidão da petição, mas simplesmente à sua deficiência.
- Quando os articulados apresentem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada, o juiz convida as partes a completá-los ou corrigí-los, marcando prazo para o efeito, por o aperfeiçoamento ser o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados.
- Além de ter como função primária permitir ao autor responder à reconvenção e às excepções suscitadas pelo réu na contestação, a réplica tem também uma função secundária, no sentido de que o autor pode modificar o pedido, a causa de pedir ou ambos, e por maioria de razão, pode ainda aproveitar a réplica para completar, rectificar ou concretizar a matéria de facto que integra a causa de pedir.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 203/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 11/Setembro/2014
Recorrente:
- A有限公司 (Autora)
Recorrida:
- B (Ré)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A有限公司 intentou acção de despejo contra a Ré B, junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo a declaração de cessação do contrato de arrendamento celebrado com a última para o termo do prazo, por denúncia unilateral, e a condenação desta mesma Ré a entregar à Autora o imóvel livre e desocupado de pessoas e bens logo que cesse o contrato de arrendamento em 30 de Novembro de 2012.
Findos os articulados, foi proferida decisão que absolveu a Ré da instância, com fundamento na excepção dilatória de nulidade do processo, nos termos dos artigos 413º, alínea b), 139º, nº 1 e 2, alínea a) e 412º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Inconformada com a decisão, dela vem a Autora interpor recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
A. O saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo, não colhe a aquiescência da Autora, ora Recorrente, porquanto, a petição inicial não padece, nem de falta de causa de pedir, nem tão pouco de ininteligibilidade da mesma, não podendo em caso algum ser julgada inepta.
B. Ao contrário do que decisão recorrida afirma, a Recorrente especificou inteligivelmente a causa de pedir.
C. A causa de pedir consiste nos factos produtores de efeitos jurídicos apontados pelo autor, e não da qualificação jurídica que este lhe atribui ou a valoração jurídica que o mesmo entende emprestar-lhe.
D. No caso em apreço, ao indicar que é a denúncia do contrato de arrendamento que consubstancia o direito invocado (de reaver o bem locado), bem como a obrigação da Recorrida (de desocupar esse mesmo bem), a Recorrente está a enunciar muito claramente a causa de pedir.
E. Sendo certo que a Recorrente não se alongou a explicar os motivos da responsabilidade exclusiva da Recorrida pela impossibilidade de o Tribunal proceder à sua notificação judicial avulsa, na verdade não era necessário fazê-lo, porquanto tal resulta dos factos invocados já na petição inicial, bem como dos documentos juntos à mesma.
F. A existência do contrato de arrendamento ficou desde logo provada, porquanto não foi impugnada ou posta em causa pela Recorrida, pelo que há uma presunção de que a Recorrida reside na morada da fracção arrendada.
G. E o facto de a Recorrida não se encontrar na morada da fracção arrendada para receber correspondência ou notificações é da sua própria responsabilidade, não cabendo ao senhorio provar, ou sequer invocar factos relativos à residência actual daquela.
H. Como é sabido e resulta dos presentes autos, a Recorrida foi citada nessa mesma morada sem qualquer dificuldade (cfr. respectiva certidão a fls. 44) para contestar a presente acção de despejo, tendo ainda comparecido à tentativa de conciliação realizada em 30 de Outubro de 2013.
I. Segundo a nossa lei processual civil, o que torna a petição inepta não é a falta ou insuficiência de prova dos factos invocados, mas sim a falta de alegação dos mesmos.
J. A Recorrente invocou factos suficientes que fundamentam o seu direito de ver decretado o despejo da Recorrida da fracção arrendada, propondo-se vir a provar esses factos, como é evidente, na fase de instrução do processo.
K. A petição inicial só pode ser julgada inepta “quando não se puder determinar, em face do articulado do autor, qual o pedido ou causa de pedir por falta absoluta da respectiva indicação ou por ela estar feita em termos inaproveitáveis por insanáveis ou contraditórios” – cfr. Acórdão do STJ de 10/06/1990 (Proc. nº 080329).
L. Assim, quanto à alegada falta de causa de pedir, resulta que a Recorrente expôs de forma clara os factos constitutivos do direito invocado e, se bem que não exaustivamente, devido à falta de documento escrito e em face da conduta da Recorrida, fundamentou convenientemente o seu pedido.
M. Concluindo-se pois que o acórdão recorrido enferma de uma errada aplicação da lei processual, motivo porque deverá o mesmo ser revogado.
N. Ainda que se entenda que a petição carece de causa de pedir ou que a mesma é ininteligível, o que se admite apenas por cautela de patrocínio, há que atender ao disposto no art. 139º, nº 3 do CPC, o qual determina que se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na falta ou inintigibilidade da causa de pedir, não se julga procedente a arguição quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
O. A Recorrida contesta a acção não só por excepção, mas também por impugnação, em especial nos artigos 16º a 22º, demonstrando ainda de forma inequívoca que apreendeu claramente ser o acto de denúncia do contrato de arrendamento que constitui a causa de pedir.
P. Não havendo omissão ou ininteligibilidade absoluta da causa de pedir ou dos factos que fundamentam o pedido da Recorrente, não pode a petição ser tida como inepta.
Q. O tribunal a quo dispunha de duas alternativas para sanar a eventual imperfeição ou insuficiência da petição.
R. A primeira seria a Mma. Juíza do tribunal a quo convidar a Recorrente a aperfeiçoar ou complementar a petição nos termos do artigo 397º do CPC, o que não fez.
S. Por outro lado poderia e deveria o tribunal a quo ter considerado que a Recorrente, na réplica, procedeu à ampliação da causa de pedir, o que lhe é permitido nos termos do artigo 217º do CPC, questão que não abordou na decisão recorrida.
T. A ampliação da causa de pedir feita na réplica de forma tácita é admissível.
U. Sucede que a Recorrida apresentou a tréplica por considerar que os factos carreados pela Recorrente na réplica podem ser considerados como modificação da causa de pedir; se assim não fosse, a tréplica nunca poderia ser admitida por força do art. 421º do CPC.
V. Não tendo sido ordenado o desentranhamento da tréplica, tem de ser admitido que a Recorrente ampliou a causa de pedir na réplica.
W. Em face do princípo da cooperação processual (art. 8º do CPC) e ainda de acordo com o disposto no art. 6º do mesmo diploma, segundo o qual o juiz deve providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, nunca deveria o tribunal a quo, nas circunstâncias acima descritas, ter decidido pela ineptidão da petição inicial.
Conclui, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 397º do Código de Processo Civil ou, caso assim não se entenda, por despacho saneador que seleccione a matéria de facto e indique os factos assentes e a base instrutória com base nos articulados apresentados pelas partes, nos termos do artigo 430º, nº 1 do Código de Processo Civil.
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Notificada, contra-alegou a Ré ora recorrida, pugnando pela negação de provimento do recurso.
Cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Provada está a seguinte matéria de facto relevante para a decisão da causa:
A有限公司, sociedade por quotas, com sede em Macau, propôs a presente acção especial de despejo, que segue a forma de processo ordinário, contra B, pedindo que seja decretada a cessação do contrato de arrendamento do 2º andar dos Cules, freguesia de S. Lourenço, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 22495 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº XX, a fls. XX, do Livro B8, por denúncia da Autora, nos termos e com fundamento no disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 1039º do Código Civil, sendo essa denúncia efectuada para o termo do prazo, ou seja, 30 de Novembro de 2012 e que seja a Ré condenada a entregar à Autora, livre e desocupado de pessoas e bens, a fracção acima identificada, na aludida data.
Para tanto invoca a Autora, na petição inicial, a seguinte matéria:
- a Autora é a actual proprietária da fracção dada de arrendamento à Ré, em 01 de Dezembro de 1972;
- e requereu em 27 de Julho de 2012 a notificação judicial avulsa da Ré, a fim de lhe dar conhecimento de que a Autora é a actual proprietária do prédio urbano supra identificado, de cujo 2º andar a Ré é arrendatária; o pagamento da renda mensal deveria ser efectuado na conta bancária nº 1XX-2-1XXX9-X do Banco Tai Fung; e requerendo ainda a denúncia do contrato de arrendamento do qual a Ré é parte para o termo do prazo, 30 de Novembro de 2012;
- em 7 de Agosto de 2012 foi extraída certidão negativa da referida notificação judicial, por facto da exclusiva responsabilidade da Ré, concluindo que a frustração dessa notificação não pode impedir que se considere que o contrato foi validamente denunciado;
- a cessação do arrendamento, por denúncia da Autora na qualidade de senhoria, deveria ter se efectuado no dia 1 de Setembro do corrente o que só não acontece porque não foi possível efectuar judicialmente a Ré;
- tal facto, por ser única e exclusivamente da responsabilidade desta, não pode impedir que se considere que o contrato de arrendamento se tenha por denunciado no termo do prazo, ou seja, a 30 de Novembro de 2012, só assim se assegurando o legítimo direito da Autora de gozo total da sua propriedade.
Na contestação, a Ré arguiu a nulidade da petição inicial, defendendo estar esta afectada de ineptidão, decorrente da falta de causa de pedir, uma vez que a Autora se limita a afirmar que entre o anterior proprietário da fracção e a Ré terá sido celebrado um contrato de arrendamento urbano para habitação através do qual o primeiro deu de arrendamento à segunda a fracção dos autos, alegação que é meramente jurídica e, por outro lado, tendo sido afirmado pela Autora que a notificação judicial avulsa da Ré se frustrou, mas não foram alegados factos constitutivos de uma denúncia eficaz para pôr termo ao contrato de arrendamento.
Na réplica, a Autora vem esclarecer o seguinte:
- o endereço indicado na notificação judicial avulsa da Ré corresponde ao endereço que consta quer da certidão do registo predial quer da própria escritura de compra e venda celebrada entre anterior proprietário e Autora;
- era esse o endereço para o qual a comunicação da Autora para a denúncia do contrato de arrendamento deveria ser legalmente endereçada, como aliás o foi, numa primeira fase a 30 de Maio de 2012 por correio registado com aviso de recepção e numa segunda fase por meio da referida notificação judicial avulsa de 27 de Julho de 2012;
- no entanto, em nenhuma das duas tentativas a Ré resolveu aceitar as comunicações que lhe eram dirigidas, provavelmente por desconfiar do teor das mesmas;
- da factualidade supra resulta provado que a declaração apenas por culpa da destinatária não foi por esta oportunamente recebida.
Posteriormente, o Tribunal a quo deu a seguinte decisão, fundamentalmente nos seguintes termos:
“Incumbia à Autora narrar de que forma a impossibilidade de efectivar a notificação judicial avulsa era imputável única e exclusivamente à Ré (por exemplo, dizendo se recusou recebê-la, se se ausentou para parte incerta, se não abre a porta do locado, etc), para que, pese embora não tenha recebido a comunicação de denúncia, ela se pudesse considerar eficaz nos termos legais. Não o tendo feito na petição inicial, a sua pretensão está votada ao fracasso, por falta de causa de pedir que a suporte.
Pelo exposto, julgo procedente a excepção dilatória de nulidade de todo o processo, nos termos dos artigos 413º, b), 139º, nº 1 e 2 alínea a) e 412º, nº 2 todos do Código de Processo Civil e, em consequência, absolvo a Ré da instância.”
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Esta é a decisão recorrida.
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É perante a matéria de facto acima descrita que se vai conhecer do recurso, tendo em conta as respectivas conclusões que delimitam o seu âmbito.
Prevê-se no artigo 589º, nº 3 do Código de Processo Civil de Macau que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”.
Com fundamento nesta norma tem-se entendido que se o recorrente não leva às conclusões da alegação uma questão que tenha versado na alegação, o tribunal de recurso não deve conhecer da mesma, por se entender que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.1
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A questão que se coloca no presente recurso é saber se a petição inicial é inepta, e se está correcta a decisão que absolveu a Ré da instância.
Dispõe o nº 1 e a alínea a) do nº 2 do artigo 139º do Código de Processo Civil que “é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, e diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
O que estaria em causa aqui nos autos não era a questão de ininteligibilidade, mas sim a falta de indicação da causa de pedir.
Diz-se causa de pedir o facto jurídico constitutivo do efeito pretendido pelo autor (artigo 417º, nº 4 do Código de Processo Civil).
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, “Os factos essenciais realizam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou da excepção deduzida pelo réu: sem eles não se encontra individualizado esse direito ou excepção, pelo que a falta da sua alegação pelo autor determina a ineptidão da petição inicial por inexistência da causa de pedir”.2
Defendem Cândida Pires e Viriato de Lima que “da falta de causa de pedir, que provoca a ineptidão da petição, convém distinguir as situações em que o autor, embora alegue o facto ou factos de que decorre o seu direito, fá-lo em termos deficientes, omitindo factos necessários para fundamentar o direito. São as situações em que a causa de pedir é complexa, composta por vários factos. Nestas situações, a petição não é inepta, mas simplesmente deficiente o que deverá conduzir a um despacho do juiz no sentido do aperfeiçoamento da petição (artigo 397º, nº 1, na parte em que se refere a “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada”)”.3
No caso vertente, alega a Autora ser proprietária de fracção autónoma dada de arrendamento à Ré, e pretendendo denunciar o contrato de arrendamento para o termo do prazo da sua renovação, requereu a notificação judicial avulsa da Ré, mas frustrou-se.
Por outro lado, também alega a Autora, embora de forma conclusiva, que a frustração da referida notificação judicial foi da responsabilidade exclusiva da Ré pelo que não podia, por esta razão, impedir que se considerasse denunciado validamente o contrato de arrendamento.
Em nossa opinião, entendemos que, sendo a causa de pedir complexa, composta por vários factos, a falta de indicação de alguns deles não conduz à ineptidão da petição, mas simplesmente à sua deficiência.
Em termos de direito comparado, cita-se o Acórdão do STJ, de 6/5/2002, Processo 03B560, in dgsi, o qual segue o mesmo entendimento:
“Verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou seja, “quando se não puder determinar, em face do articulado do autor, qual o pedido e a causa de pedir por falta absoluta da respectiva indicação ou por ela estar feita em termos inaproveitáveis por insanáveis ou contraditórios”. Se essa indicação existe, embora seja “insuficiente, irregular ou deficiente, susceptível de comprometer o êxito da acção não ocorre já o vício da ineptidão, podendo o juiz convidar o autor a completá-la ou a corrige-la, apresentando uma nova em prazo fixado””.
Analisada a petição inicial, verifica-se que, embora alguns elementos de factos não estejam devidamente concretizados, por serem conclusivos, mas é fácil de descobrir qual é a causa de pedir apontada pela Autora para formular os seus pedidos, daí que, salvo o devido respeito, entendemos que a petição inicial não está inquinada de ineptidão, mas simplesmente de deficiência.
Nesta conformidade, por a petição inicial ser meramente deficiente, não há nulidade processual por ineptidão, e em consequência, não deve a Ré ser absolvida da instância.
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Em seguida, temos ainda a questão de saber se uma vez revogada a decisão recorrida, como vão prosseguir os ulteriores termos processuais?
Dispõe o artigo 427º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 6º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados posteriores à petição inicial, nos termos dos números seguintes.
2. Quando os articulados não preencham os requisitos legais ou não venha acompanhados de documentos essenciais, o juiz convida as partes a corrigí-los ou a apresentar os documentos em falta, marcando prazo para o efeito.
3. Quando os articulados apresentem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada, o juiz convida as partes a completá-los ou corrigí-los, marcando prazo para o efeito.
4. Se a parte corresponder ao convite a que se refere o número anterior, os factos objecto de aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
5. As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos nos artigos 217º, 409º e 410º.
6. Não cabe recurso do despacho previsto na alínea b) do nº 1.”
Nas palavras do Professor Castro Mendes, quando a causa de pedir, embora inteligível, não é suficientemente concretizada como facto, deve ser usado o despacho de aperfeiçoamento.4
Igual entendimento foi perfilhado por José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, referindo que “o aperfeiçoamento é o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco.”5
Embora a alínea b) do nº 1 do artigo 427º se refira apenas ao aperfeiçoamento dos articulados posteriores à petição inicial, mas somos da opinião de que se deve entender ser possível o convite ao aperfeiçoamento deste articulado.6
E a razão em que fundamentou a tal viabilidade do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial reside no facto de que “bem pode acontecer, por um lado, que a necessidade de correcção da petição só se apresente mais clara após a produção de todos os articulados; e, por outro lado, é sabido que o exame que o juiz efectua das posições das partes, quando se trata de elaborar o despacho de selecção da matéria de facto assente e controvertida, é muito mais profundo que o exame feito à petição inicial”.7
E também não podemos deixar de assinalar que o poder do juiz, neste caso, é meramente discricionário, e não vinculativo, daí que, se a parte não acatar o convite ao aperfeiçoamento, a acção prossegue, assumindo a mesma o risco de que a decisão de mérito lhe seja desfavorável.
Nesta conformidade, entendemos que o Tribunal recorrido pode convidar a Autora a completar ou concretizar a matéria de facto alegada na petição inicial, se assim entender.
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Caso assim não se entenda, cremos que também constam na réplica factos destinados a concretizar ou complementar a causa de pedir invocada na petição inicial.
Em boa verdade, a réplica tem por função primária permitir ao autor responder à reconvenção e às excepções suscitadas pelo réu na contestação. Além desta função primária, a réplica tem também uma função secundária, no sentido de que o autor pode modificar o pedido, a causa de pedir ou ambos, e por maioria de razão, pode ainda aproveitar a réplica para completar, rectificar ou concretizar a matéria de facto que integra a causa de pedir.8
Defende também Viriato de Lima a mesma posição, no sentido de que “nada obstará que o autor, quando haja réplica, possa, nesta peça, completar, rectificar ou concretizar a matéria de facto alegada na petição e que integra a causa de pedir, por duas ordens de razões: porque, se pode modificar o pedido ou a causa de pedir ou ambos, na réplica (art. 217º), por maioria de razão poderá praticar os mencionados actos; e porque as partes podem completar ou corrigir os articulados a convite do juiz, findos os articulados, pelo que não haveria razão para negar tal possibilidade na réplica, por iniciativa própria (art. 427º, nº 3)”.9
Em termos de direito comparado, cita-se, a título exemplificativo, o Acórdão do STJ de Portugal, no Processo 500/08.4TBMNC.G1-S1, de 24.9.2013, no que à questão em discussão se concerne, referiu-se que “está-se perante uma actuação processual de conteúdo bem menor que a alteração da causa de pedir, pois que não vai além da sua integração mediante a concretização de um facto…com referência à qualificação jurídica que suporta o pedido, de sorte que, se a lei permite, por exemplo, alterar a causa de pedir da responsabilidade por actos ilícitos para actos lícitos, não se vislumbra razão para que vedasse a clarificação/completamento de uma causa de pedir inidentificável, por insuficiência e obscuridade, através da pertinente clarificação, um quid menos relativamente à alteração ou ampliação.”
Salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que a Autora introduziu na réplica alguns factos tendentes a consubstanciar o motivo por que não foi possível notificar judicialmente a Ré da cessação do arrendamento, nomeadamente por que esta resolveu não aceitar as comunicações que lhe eram dirigidas, provavelmente por desconfiar do teor das mesmas.
Nesta conformidade, estamos a crer que os factos carreados pela Autora na réplica também podem ser considerados como factos complementares aos alegados na petição inicial e que integram a causa de pedir, sendo assim, se não achar que haverá necessidade de convidar as partes a aperfeiçoarem os articulados, nomeadamente a petição inicial, a fim de suprir as eventuais deficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, o Tribunal recorrido terá que proferir despacho saneador que seleccione a matéria de facto relevante para a decisão da causa, nos termos do artigo 430º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Destarte, julgamos procedente o recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A有限公司, revogando a decisão recorrida, e determinando que se o Tribunal a quo não achar que haverá necessidade de convidar as partes a aperfeiçoarem os articulados, nomeadamente a petição inicial, a fim de suprir as eventuais deficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, terá que proferir despacho saneador que seleccione a matéria de facto relevante para a decisão da causa, nos termos do artigo 430º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
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Macau, 11 de Setembro de 2014
_________________________
Tong Hio Fong
(Relator)
_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, página 663
2 Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª edição, 1997, pág. 70
3 Cândida da S.A. Pires e Viriato M.P. de Lima, in Código de Processo Civil de Macau Anotado e Comentado, Volume I, FDUM, 2006, pág. 363
4 João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil II Vol, 1987, pág. 516 e 517
5 José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 354
6 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág 340
7 Mesma obra citada, rodapé da pág 12
8 José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 331
9 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág 316
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Processo 203/2014 Página 20