Proc. nº 345/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 11 de Setembro de 2014
Descritores:
-Impugnação da matéria de facto
-Contrato a favor de terceiro
-Contratação de mão-de-obra não residente
-Subsídio de alimentação
-Subsídio de efectividade
SUMÁRIO:
I - O princípio da livre apreciação da prova (art. 558º, do CPC) não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Mas, por outro lado, também é certo que a convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Portanto, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao trabalho do julgador, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita.
II - A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de mão-de-obra não residente em Macau e outra empregadora dessa mão-de-obra, no qual esta assume desde logo um conteúdo substantivo mínimo das relações laborais a estabelecer com os trabalhadores que vier a contratar, tal como imposto por despacho governativo, representa para estes (beneficiários) um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da promitente empregadora gera um correspondente direito de indemnização a favor daqueles.
III - O subsídio de alimentação visa compensar uma despesa diariamente suportada pelos trabalhadores quando realiza a sua actividade, visa compensar uma despesa na qual o trabalhador incorre diariamente, sempre que vai trabalhar, e portanto, deve ser considerado como compensação pela prestação de serviço efectivo.
IV - O subsídio de efectividade é um subsídio que carece de uma prestação de serviço regular e sem faltas injustificadas.
Proc. nº 345/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, de nacionalidade filipina, intentou no TJB acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação de “B – Limitada”, com sede na XXXX em Macau, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de Mop$ 344.074,00 a título de indemnização por dias de trabalho prestado em dias de descanso semanal, subsídio de efectividade, subsídio de alimentação, trabalho extraordinário e diferenças salariais.
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Contestou a ré, pugnando pela improcedência da acção ou, subsidiariamente, a redução do valor da indemnização em termos que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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Após o despacho saneador, a ré insistiu para que o tribunal oficiasse aos Serviços de Migração da PSP no sentido de informarem quais os contratos celebrados entre si e a “C”.
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A fls. 187 a mesma ré de novo pediu que se voltasse a oficiar aos Serviços de Migração com o mesmo propósito e para informarem o movimento de entrada e saída do autor da RAEM em determinado período, além de requerer o depoimento de parte do autor.
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Por despacho de fls. 201 estes pedidos foram indeferidos.
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Deste despacho recorreu a ré “B”, cujas alegações concluiu da seguinte forma:
«a) O Tribunal a quo indeferiu o requerimento da recorrente para prestação de depoimento pelo A à matéria dos pontos 15º e 16º, com o fundamento de que os factos em causa não são pessoais do A, ora recorrido;
b) No entender da recorrente, o facto que se procura indagar através do ponto 16º da base instrutória é um facto pessoal do A, por respeitar à sua situação laboral individual;
c) Assim, no mínimo quanto a este facto, deveria ter sido deferido o depoimento de parte do A;
d) Por outro lado, nos termos do art. 479º, nº 1 do CPC, o depoimento de parte pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento;
e) Tanto o ponto 16º da base instrutória como o próprio ponto 15º respeitam a factos de que o A tem que ter - e efectivamente tem - conhecimento, na medida em que respeitam ao enquadramento jurídico-administrativo da entrada, permanência e prestação da actividade profissional do A na RAEM;
f) Ao indeferir o requerido depoimento de parte, o douto Tribunal a quo violou o disposto no art. 479º, nº 1 do CPC;
g) O Tribunal recorrido indeferiu também o requerimento da R. para que os Serviços de Migração informassem nos autos sobre os contratos de prestação de serviços celebrados entre a R. e a C que serviram de base às renovações da autorização de trabalho do A na RAEM, para prova da matéria dos pontos 14º a 16º da base instrutória, com o fundamento de que tal diligência já fora realizada;
h) No douto despacho saneador foi efectivamente deferida a diligência de prova em causa, a qual fora requerida pela R. em sede de contestação, ordenando-se a notificação dos Serviços de Migração da RAEM para lhe dessem cumprimento;
i) Porém, em resposta a tal solicitação, o Corpo de Polícia de Segurança Pública informou nos autos que não possuia o “contrato de trabalho” solicitado;
j) Tal resposta não era congruente com o teor da diligência de prova ordenada pelo douto Tribunal, a qual não respeitava aos contratos de trabalho celebrados entre a R e o A.;
k) Assim, a R reiterou o pedido de tal diligência de prova, fazendo constar do seu requerimento probatório que a diligência requerida se destinava a obter o cumprimento efectivo da que anteriormente fora ordenada;
l) Face ao exposto, impunha-se que o Tribunal deferisse a diligência de prova, insistindo na mesma de modo a obter o seu cabal cumprimento;
m) Ao decidir em sentido inverso, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 462º do CPC;
n) O Tribunal recorrido indeferiu, por fim, o requerimento da R para que os Serviços de Migração informassem nos autos sobre todos os movimentos de entrada e saída do A. da RAEM, com indicação das respectivas datas, no período em que durou a relação laboral entre A. e R, pretendendo com isso fazer prova negativa da matéria dos pontos 6º a 8º, 10º, 12º e 13º da base instrutória, com o fundamento de que o A. “podia perfeitamente ausentar-se após o período laboral”;
o) O A. assenta os seus pedidos no pressuposto fáctico de ter trabalhado, ao longo de dez anos, todos os dias, 12 horas por dia, sem gozar férias ou descanso semanal;
p) Assim, bastará que do seu registo de entradas e saídas conste que o R permaneceu 24 horas fora do território da RAEM, para que fique imediatamente beliscada a veracidade daquela sua alegação;
q) A consideração como “inútil” da diligência de prova em causa pressupõe uma antecipação do seu resultado, mais concretamente, de que no registo de entradas e saídas do A. da RAEM não constará qualquer ausência do território superior a 12 horas num dia, o que, em nome da descoberta da verdade, não se afigura admissível;
r) Face ao exposto, ao indeferir a requerida diligência de prova, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 462º do CPC.
Nestes termos, e nos mais de Direito, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra que defira o requerimento probatório apresentado pela recorrente, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA.»
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O autor respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações da seguinte maneira:
«a) Contrariamente ao alegado pela Recorrente, não é verdade que o Recorrido conhecesse ou tivesse obrigação de conhecer os Contratos de Prestação de Serviços n.º 1/1 e 14/1, porquanto os mesmos em nada respeitam à sua situação laboral individual;
b) Trata-se, com efeito, de Contratos que foram alegados pela própria Recorrente e nunca pelo Recorrido;
c) O único Contrato de Prestação de Serviço que o Autor conhece e efectivamente tem conhecimento do seu conteúdo é o Contrato de Prestação de Serviço n.º 2/92, ao abrigo do qual foi contratado e exerceu a sua actividade laboral para a Recorrente;
d) Com efeito, Recorrente nunca forneceu ao Recorrido uma cópia Contratos de Prestação de Serviços n.º 1/1 e 14/1;
Ou melhor,
e) A ser verdade que se trata de contratos que “respeitam ao enquadramento jurídico-administrativo da entrada e permanência e prestação de actividade profissional do Autor na RAEM”, não se vê razão para que até hoje a Recorrente não tenha disponibilizado ao Recorrido uma simples cópia de tais contratos!
Em segundo lugar,
f) É injustificável a desconfiança da Recorrente perante a Resposta fornecida pelo Corpo de Polícia Pública da RAEM, ao que efectivamente havia sido ordenado judicialmente pelo Tribunal a quo e que já havia sido requerido pela própria Recorrente;
g) De onde, o Recorrido limita-se a discordar da posição assumida pela Recorrente, porquanto não vê nenhuma razão para que o Tribunal a quo tivesse de “insistir” com os Serviços de Migração para fornecimento de informação que o mesmo já revelou não possuir, sabido que os Serviços Públicos da RAEM fornecem sempre todas e quaisquer informações, desde que sejam judicialmente ordenados para o efeito;
h) Por último, em lugar de se insurgir quanto ao indeferimento ao pedido de movimentos de entrada e saída do Autor do Território, a Recorrente tem um outro” expediente” muito mais simples e rápido de comprovar o trabalho (ou ausência dele) prestado pelo Autor durante todo o período da relação laboral, e que já foi requerido pelo Recorrido à Recorrente: basta que apresente a lista de presenças diárias do Autor durante todo o período da relação laboral e que se encontra - ou deveria encontrar-se na posse efectiva da Ré!
i) Face ao exposto, bem se percebe o sentido do indeferimento dos pedidos apresentados pela Ré/Recorrente, pelo que a decisão do Tribunal a quo se deverá manter, por correcta e isenta de qualquer vício.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve a decisão posta em crise pela Recorrente manter-se, porque é correcta e isenta de qualquer erro ou vício».
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O processo prosseguiu para julgamento, vindo a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de Mop$ 229.661,96 e juros legais.
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Contra essa sentença recorreu o autor, cujas alegações sintetizou do seguinte modo:
«1. Versa o presente recurso sobre a parte da douta Sentença na qual foi julgada parcialmente improcedente ao Autor, ora Recorrente, a atribuição de uma compensação devida pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal na medida de um dia de salário em dobro.
2. Porém, ao condenar a Ré a pagar ao ora Recorrente apenas o equivalente a um dia de trabalho (em singelo) pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, o Tribunal a quo procedeu a uma não correcta aplicação do disposto na al. a) do n.º 6 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, pelo que a decisão deve ser julgada nula e substituída por outra que condene a Ré em conformidade com o disposto na referida Lei Laboral;
3. Com efeito, salvo melhor opinião, resulta do referido preceito que o trabalho prestado em dia de descanso semanal deverá ser remunerado pelo dobro do salário normal, entendido enquanto duas vezes a retribuição normal, por cada dia de descanso semanal prestado;
4. Ademais, ao condenar a Ré a pagar ao Autor, ora Recorrente, apenas e tão-só o “equivalente a um dia de trabalho”, o Tribunal a quo desviou-se da interpretação que tem vindo a ser seguida pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a mesma questão de direito, no sentido de entender que a compensação do trabalho prestado em dia de descanso semanal deverá ser feita em respeito à seguinte fórmula: (salário diário X n.º de dias de descanso não gozados X 2);
5. Ao que acresce que, a própria Recorrida - ainda que a título subsidiário - aceita no artigo 78.º da sua Contestação a fórmula de cálculo utilizada pelo Autor na sua Petição Inicial (isto é, 2 X o salário normal diário X o número de dias de descanso semanal não gozados), apenas divergindo quanto ao concreto montante do salário diário devido;
6. De onde, resultando provado que o Recorrente, durante todo o período da relação laboral prestou trabalho todos os dias de descanso semanal, deve a Recorrida ser condenada a pagar ao mesmo a quantia de MOP$77,940.00, e não apenas a quantia de Mop$46.035,96 conforme resulta da decisão ora posta em crise, acrescida de juros até efectivo e integral pagamento.
Nestes termos e nos de mais de Direito que V. Exas. encarregar-se-ão de suprir, deve a Sentença ora posta em crise, na parte em que condena a Ré a pagar ao Autor apenas o equivalente a um dia de trabalho em singelo, ser julgada nula e substituída por outra que atenda ao pedido tal qual formulado pelo Recorrente, assim se fazendo a já costumada JUSTIÇA!».
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Não houve resposta a este recurso.
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Recorreu igualmente a ré da acção “B”, em cujas alegações apresentou as conclusões que seguem:
«a) O julgamento que incidiu sobre o ponto 18) da matéria de facto escorou-se no depoimento da testemunhas D, gravado no ficheiro “Recorded on 14-Jan-2014 at 10.38.36 (1#AT1S@105811270).WAV”;
b) A testemunha não foi questionada especificada mente sobre a matéria do ponto 18) da matéria de facto, razão por que nada disse a respeito das faltas que o A terá ou não dado ao trabalho durante a sua relação com a R.;
c) A testemunha foi questionada, pelo Ilustre Mandatário do A, por remissão para o depoimento que anteriormente prestara a respeito de um outro autor em acção semelhante à presente, mas sem referência individualizada à questão da autorização de faltas (a 38m18s da gravação referida);
d) Sendo certo que, em qualquer caso, depoimento da mesma testemunha (a 33m50s da gravação acima referida) a respeito daquele outro autor (Sr. Artemio Garzon, autor no proc. Nº LB1-12-0024-LAC), consistira apenas numa descrição do procedimento geral implementado na R. para a autorização de faltas dos seus funcionários, sem que no entanto tenha logrado demonstrar qualquer conhecimento específico quanto ao facto de aquele autor ter ou não observado tal procedimento.
e) Levando a que se considere errado o julgamento que o Tribunal a quo proferiu sobre o ponto 18) da matéria de facto;
f) Face a todo o exposto, pela reapreciação da prova constante dos autos, nomeadamente do depoimento prestado pela testemunha D, gravados no ficheiro “Recorded on 14-Jan-2014 at 10.38.36 (1#AT1S@105811270).WAV”, deverá ser alterada a resposta ao facto contido no ponto 17) da matéria de facto provada, julgando-se aquele não provado, com as devidas consequências quanto aos pedidos formulados pelo A;
g) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
h) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
i) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
j) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
k) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
l) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º;
m) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
n) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
o) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”;
p) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
q) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
r) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
s) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contra prestação de obrigações;
t) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
u) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
v) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
w) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
x) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A, que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
y) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º/2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest);
z) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
aa) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
bb) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A, sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
cc) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A, de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
dd) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º/2 e 437ºdo Código Civil;
ee) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos;
ff) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
gg) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
hh) Por outro lado, quanto ao regime previsto nos Contratos para o cálculo da remuneração do trabalho extraordinário, deverá entender-se que o mesmo remete para o art. 11º/2 do Decreto-Lei nº 24/89/M, em cujo art. 11º/2, o qual deixa ao critério das partes o ajuste, em sede de contrato individual de trabalho, dos termos dessa remuneração;
ii) Cabia pois ao A. alegar os termos desse ajuste contratual, o que não fez;
jj) Como tal, conclui-se que o A. não demonstrou ser-lhe devida qualquer quantia adicional às que, como ficou provado nos pontos 14) a 16), lhe foram oportunamente pagas pela R. como remuneração do trabalho extraordinário prestado;
kk) Ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou o art. 228º/1 do Código Civil;
ll) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação;
mm) Por outro lado, como se viu supra, considera a R. que o A. não provou jamais ter faltado ao trabalho sem justificação ou autorização;
nn) E ainda que o tivesse feito, tal prova não seria de molde a demonstrar o número de dias de trabalho efectivo que prestou;
oo) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade;
pp) Assim sucederá também pela procedência da reapreciação requerida quanto ao ponto 18) da matéria de facto, por falta de suporte factual susceptível de integrar o direito do A. a perceber tal subsídio;
Nestes termos, e nos mais de Direito, revogando a decisão recorrida nos termos e com as consequências expostas supra, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA».
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O autor contra-alegou da seguinte maneira conclusiva:
«Da decisão da matéria de facto
1. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, a douta Sentença de que recorre procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis e, bem assim, a uma correcta aplicação da Lei e do Direito devendo, em consequência, manter-se na integra;
2. Partindo da prova testemunhal produzida em sede de audiência, discussão e julgamento, não existe um qualquer erro, contradição ou vício que possa inquinar o conteúdo da matéria de facto dada por provada;
3. No testemunho prestado, e num depoimento claro e sem contradições, tal qual sublinhou o Tribunal a quo, a testemunha explicou com detalhe todo o procedimento e/ou política da empresa relativamente à possibilidade de os trabalhadores poderem faltar ao serviço, o que nunca podiam fazer sem a autorização prévia por parte da Recorrente;
4. Assim, deve improceder o alegado pela Recorrente a respeito da Decisão sobre a matéria de facto, não se justificando uma qualquer reapreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Do Direito:
5. É entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência de Macau que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, era um diploma com natureza e intencionalidade assumidamente normativa imperativa, destinado a definir um conjunto de requisitos tidos como mínimos e indispensáveis à contratação de trabalhadores não residentes;
6. A Recorrente tão-só poderia celebrar contratos com trabalhadores não residentes desde que o fizesse ao abrigo do respectivo «despacho de autorização governamental», tendo por base as condições tidas por mínimas constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, as quais, por seu turno, se deveriam incorporar no clausulado do «contrato de prestação de serviços» a celebrar entre a entidade interessada (in casu a Recorrente) e uma entidade fornecedora de mão de obra não residente (in casu, a C);
7. O Recorrido nunca poderia ter sido admitido como trabalhador da Recorrente (ou de qualquer outro empregador na RAEM) por via de um contrato que não tivesse obedecido ao disposto nos números 2, 3 e 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, maxime por via de um «contrato individual de trabalho», porquanto a contratação de trabalhadores não residentes estava sujeita a um regime especial e imperativo que em caso algum poderia ser derrogado pelas partes, excepto para consagrar condições de trabalho mais favoráveis ao trabalhador.
8. Por outro lado, constitui igualmente jurisprudência assente ao nível do Tribunal de Segunda Instância que os Contratos de Prestação de Serviços concluídos entre a Recorrente e a C, e ao abrigo dos quais os trabalhadores não residentes (e, in casu, o ora Recorrido) eram autorizados a prestar trabalho, juridicamente se configuram como contratos a favor de terceiros;
9. Basta ver que do próprio conteúdo literal dos referidos contratos resulta que os mesmos - na sua grande totalidade - não se destinavam a regular as relações jurídicas dos outorgantes mas antes de terceiros, maxime dos trabalhadores que seriam recrutados pela C e que posteriormente eram cedidos à Recorrente (de entre os quais se inclui o ora Recorrido);
10. Assim, tratando-se de um «contrato a favor de terceiro» e repercutindo-se o mesmo na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, mais do que liquido que o beneficiário da promessa (in casu, o Recorrido) adquire o(s) direito(s) - ou parte dele(s) - constantes do mesmo contrato independentemente de aceitação (art. 438.º, n.º 1 do CCivil de Macau) e, em consequência, pode exigir o seu cumprimento directamente do obrigado (in casu, da Recorrente), tal qual acertadamente concluiu o Tribunal a quo.
11. De onde, concluído que o Contrato de Prestação de Serviço celebrado entre a Recorrente e a C juridicamente se qualifica como sendo um Contrato a favor de terceiros e, deste modo, repercutindo-se na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, forçoso concluir que o Recorrido terá direito a reclamar todas as condições que se mostrem mais favoráveis dos mesmos emergentes e, em concreto, reclamar e receber os montantes devidos a título de diferenças salariais, tal qual, aliás, acertadamente concluiu o Tribunal a quo.
12. Do mesmo modo, resulta do senso comum não ser de admitir que o valor da remuneração de cada hora de trabalho extraordinário prestado pudesse ser inferior ao valor da remuneração de cada hora do trabalho normal.
13. Não resulta do Contrato de Prestação de Serviços ao abrigo do qual o Recorrido foi autorizado a prestar trabalho para a Recorrente que a atribuição do subsídio de alimentação ou subsídio de efectividade estivessem dependentes da prestação efectiva de trabalho;
14. Seja como for, nunca as faltas justificadas ou previamente autorizadas pela Recorrente poderiam ser aptas a justificar a não atribuição ao Recorrido do subsídio de alimentação ou do subsídio de efectividade, porquanto não é irrelevante que o trabalhador falte ao serviço com ou sem motivo ou mediante motivo atendível e justificado e precedido de autorização prévia por parte da respectiva entidade patronal, isto é, da Recorrente.
Nestes termos e nos de mais de Direito e sempre com o douto suprimento de V. Exas., devem as presentes Alegações de Resposta serem aceites e o Recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir.
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II – Os factos
Do recurso interlocutório
A fls. 201 dos autos foi proferido o seguinte despacho:
«Rol de folhas 185, fique nos autos.
Quanto ao depoimento de parte do Autor, uma vez que os factos dos itens 6º a 14º são alegados pelo próprio Autor e como tal são-lhe favoráveis, face ao disposto no artº 345º do C.Civ. não é admissível a confissão, pelo que, fica destituído de sentido o depoimento de parte deste.
Quanto aos factos dos itens 15º e 16º os mesmos não são factos pessoais do Autor mas da Ré e da C Pelo que, também, não é admissível a confissão do Autor, sendo igualmente inútil o depoimento de parte.
Termos em que, pelos fundamentos expostos vai indeferido o depoimento de parte do Autor.
No concerne ao pedido de informação das entradas e saídas do Autor da RAEM o mesmo é inútil nos termos em que é formulado uma vez que o Autor podia perfeitamente ausentar-se após o período laboral.
Quando ao pedido de informação relativamente aos contratos de prestação serviços a diligência já foi realizada.».
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Do recurso da sentença
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
«1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vi~i1ância, transporte de valores; (A)
2) Desde o ano de 1994, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior»; (B)
3) Desde 1992, a Ré celebrou com a C, os «contratos de prestação de serviços»: nº 09/92, 2/94; nº 29/94 e nº 45/94; (C)
4) O contrato de prestação de serviços com base no qual a Ré outorgou o contrato individual de trabalho com o Autor era o “Contrato de Prestação de Serviços n.º 09/92”; (D)
5) Do contrato referido em D) cuja cópia está a de fls. 28 a 33 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau; (E)
6) O A. Trabalhou sob as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré, no local e horário de trabalho fixado pela R. de acordo com as suas exclusivas necessidades; (F)
7) Durante a relação referida no item anterior foi a Ré quem pagou o salário ao Autor; (G)
8) A Ré apresentou ao Autor vários contratos individuais de trabalho que foram assinados pelo Autor; (H)
9) O Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança” entre 1 de Setembro de 1992 e 15 de Janeiro de 2003. (1.º)
10) Entre Setembro de 1992 e Setembro de 1995 como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$1,500.00 mensais. (2.º)
11) Entre Outubro de 1995 e Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$1,700.00 mensais. (3.º)
12) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP$1,800.00 mensais. (4.º)
13) Entre Abril de 1998 e Janeiro de 2003 como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor a quantia de MOP $2,000.00 mensais. (5.º)
14) Entre 01.09.1992 e 30.06.1997 o A. trabalhou 12 horas por dia tendo a Ré remunerado as 4 horas de trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$8.00 por hora. (6.º)
15) Entre 01.07.1997 e 30.06.2002 o A. trabalhou 12 horas por dia tendo a Ré remunerado as 4 horas de trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$9,30 por hora. (7.º)
16) Entre 01.07.2002 e 31.12.2002 o A. trabalhou 12 horas por dia tendo a Ré remunerado as 4 horas de trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$10,00 por hora. (8.º)
17) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (9.º)
18) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca o Autor - sem conhecimento e autorização prévia pela Ré - deu qualquer falta ao trabalho. (10.º)
19) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (11.º)
20) Durante todo o período que o A. prestou a sua actividade para a Ré, nunca o Autor gozou de dias de descanso semanal. (12.º)
21) Pela prestação de trabalho pelo Autor nos dias de descanso semanal, o Autor sempre foi remunerado pela Ré com o valor de um salário diário, em singelo e não lhe foi concedido um dia de descanso compensatório. (13.º)
22) O Autor nunca auferiu da Ré qualquer quantia relativa ao documento constante de fls. 477.».
***
III – O Direito
1 – Do recurso interlocutório interposto pela “B”
Estava em causa, por um lado, o requerimento formulado pela ré no sentido de se tomar o depoimento de parte do autor e, por outro, o pedido da mesma demandada no sentido de se obter junto dos Serviços de Migração informação sobre os contratos de prestação de serviços celebrados entre a “B e a “C”, bem como, finalmente, informação sobre as saídas e entradas do autor de Macau.
O despacho impugnado indeferiu as pretensões.
Entende a recorrente “B” que a matéria dos arts. 15º e 16º da base instrutória, mesmo não sendo pessoais, são factos de que o autor tinha conhecimento.
Assim, podia o seu depoimento de parte ser obtido, nos termos do art. 479º, nº1, do CPC.
Vejamos.
Como é sabido, o depoimento de parte tem uma essência probatória (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, pág. 430), isto é, tem por objectivo, precisamente, obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e à parte a que pertence e o reconhecimento de factos favoráveis à parte contrária. Verdadeiramente, o depoimento de parte visa obter a confissão judicial (v.g., Ac. RL, 10/03/2000, Proc. nº 4840/00; Ac. RE, de 26/04/2005, Proc. nº 580/01; RL, de 21/04/2004, Proc. nº 972/2004; 8/06/2004, Proc. nº 1700/03; RC, de 12/06/2005, Proc. nº 2824/2005; RL, de 5/06/2007, Proc. nº 3129/2007).
A confissão (“declaração de ciência”, apud Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, II, 697 e Mário de Brito, “Cod. Civil Anotado”, I, 470 e nota 843) tem, assim, uma marca “probatória” que o juiz avaliará no âmbito da sua actividade decisória. O depoimento de parte destina-se, por conseguinte, à obtenção do meio de prova a que se referem os artigos 345º e sgs. do CC. E se falamos de “meio de prova”, então é porque estamos no domínio de uma actividade jurisdicional que tem em vista, precisamente, a recolha de dados de facto necessários à subsunção deles ao direito a aplicar na sentença.
Isto é, admite-se o depoimento de parte nos casos em que as declarações prestadas podem acabar por ser contrárias à pessoa que as presta e decisivas no quadro da actividade julgadora que o tribunal terá que efectuar quando chegar o momento de decidir o litígio e de o tribunal se munir de elementos suficientes e imprescindíveis ao reconhecimento do direito (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, pág. 325).
Mas, o depoimento de parte pode prestar-se não apenas sobre factos de natureza pessoal, mas também sobre factos de que o depoente deva ter conhecimento (cfr. art. 479º, nº1, do CPC).
Todavia, o que se quesitava naqueles pontos da BI era se os contratos referidos em C) foram substituídos pelos contratos 1/1 e 14/1 (15º) e se a partir de 15/01/2001 o autor esteve ao serviço da ré ao abrigo dos contratos atrás referidos (16º).
Ora, esta matéria nunca a mostrou saber o autor nos autos, nem são factos pessoais ou de que devesse ter conhecimento (neste sentido, o Ac. deste TSI, de 29/05/2014, Proc. nº 627/2013. Disse, aliás, este aresto: “Trata-se de matéria que deve ser comprovada documentalmente, estando a ré em melhores condições para a fornecer, tanto mais que foi com base nesses contratos que foi autorizada a contratar, tratando-se de contratos que "respeitam ao enquadramento jurídico-administrativo da entrada e permanência e prestação de actividade profissional do autor na RAEM", não se vê razão para que a recorrente nunca tivesse disponibilizado uma simples cópia integral de tais contratos quer ao Autor/Recorrido, quer ao próprio Tribunal”.
Trata-se da melhor solução, que aqui fazemos nossa e que, de resto vem na linha de outros acórdãos deste mesmo tribunal (v.g., Ac. do TSI, de 22/05/2014, Proc. nº 169/2014).
Sendo assim, e sem mais considerandos, somos a julgar improcedente o recurso quanto a esta parte (neste sentido se decidiu já, entre outros, no Ac. deste TSI, de 19/06/2014, Proc. nº 189/2014).
*
Mas a recorrente “B” também impugnou o despacho em crise na parte em que indeferiu o pedido de diligência junto dos Serviços de Migração da PSP no sentido de se obter a indicação sobre quais os contratos de prestação de serviços celebrados entre a “B” e a “C”, bem como sobre os movimentos de saída e entrada do autor da RAEM durante o período da sua relação laboral.
Mas, também aqui se lhe nega razão.
No que respeita à primeira diligência, ela claramente tinha que ser negada, uma vez que já o Juiz tinha, por ocasião do despacho saneador, solicitado a respectiva indicação aos Serviços de Migração (fls. 159 vº dos autos), diligência que de novo foi solicitada em 4/03/2013 (fls. 279 vº) e reiterada pelo despacho de 9/04/2013 (fls. 295) e de 4/07/2013 (fls. 302 e 303). E a resposta desta entidade que veio a ser fornecida aos autos foi junta a fls. 307 e sgs.
Sendo assim, nesta parte é de improceder o recurso, até por estar já resolvida a questão a que a diligência requerida tendia.
*
No que concerne ao ponto restante, também ele nos remete para a circunstância de se estar perante uma prova que à recorrente cumpria efectuar, no âmbito da observância do seu ónus (cfr. art. 335º do CC).
Neste sentido, igualmente, se pronunciaram os arestos deste tribunal acima referidos (Acs. TSI, de 22/05/2014, Proc. nº 169/2014 e de 29/05/2014, Proc. nº 627/2013). É deste último, aliás, o trecho que segue: “A iniciativa probatória incumbe, antes de mais, às partes, só devendo o Tribunal substituir ou suprir essa iniciativa quando ficarem bem claras as razões por que a parte não consegue angariar determinada prova, especialmente quando se trata de pedir elementos ou informações a outras entidades que não deixarão de ter, no mínimo, natureza reservada.”
Por isso, também nesta parte o recurso tem que improceder (assim se decidiu no referido Ac. deste TSI, de 19/06/2014, Proc. nº 189/2014).
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2 – Recurso da sentença
2.1 – Do autor
O que move o recorrente é o valor da compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, na sua opinião, em violação do disposto no art. 17º do DL nº 24/89/M, de 3 de Abril.
Vejamos.
A sentença, reconhecendo embora que o trabalho prestado em dia de descanso semanal devia ser pago em dobro, a este acabou por abater a prestação salarial em singelo que efectivamente lhe foi paga por cada um desses dias. E, consequentemente, apenas lhe concedeu mais um dia de indemnização.
Mas, sem razão, salvo o devido respeito, como desde há muito tempo este TSI tem vindo a afirmar (por mais recentes, ver os Acs. TSI de 15/05/2014, Proc. nº 61/2014, de 15/05/2014, Proc. nº 89/2014, de 29/05/2014, Proc. nº 627/2014).
Com efeito, no que a este assunto concerne, vale o disposto no art. 17º, nºs 1, 4 e 6, al. a), do DL nº 24/89/M.
Nº1: Tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”).
Nº4: Mas, se trabalhar nesse dia, fica com direito a gozar outro dia de descanso compensatório e, ainda,
Nº 6: Receberá em dobro da retribuição normal o serviço que prestar em dia de descanso semanal.
Ora, como o trabalhador trabalhou o dia de descanso semanal terá direito ao dobro do que receberia, mesmo sem trabalhar (n.º 6, al. a)).
Numa 1ª perspectiva, se o empregador pagou o devido (pagou o dia de descanso), falta pagar o prestado. E como o prestado é pago em dobro, tem o empregador que pagar duas vezes a “retribuição normal” (o diploma não diz o que seja retribuição normal, mas entende-se que se refira ao valor remuneratório correspondente a cada dia de descanso, que por sua vez corresponde a um trinta avos do salário mensal).
Numa 2ª perspectiva, se se entender que o empregador pagou um dia de salário pelo serviço prestado, continuam em falta:
- Um dia de salário (por conta do dobro fixado na lei), e ainda,
- O devido (o valor de cada dia de descanso, que não podia ser descontado, face ao art. 26º, n.º 1);
Portanto, em qualquer caso, a fórmula será sempre: AxBx2. Significa que a 1ª instância não deveria ter abatido ao total obtido o valor em singelo pago ao recorrente. O mesmo é dizer que a indemnização a arbitrar tem que corresponder a Mop$ 92.071,92 (e não metade como foi decidido)
Procede, pois, o recurso do autor.
*
2.2 – Da ré “B”
2.2.1 – Da alteração da matéria de facto
Considera a recorrente que o tribunal a quo fez um incorrecto julgamento da matéria de facto, face ao conteúdo das declarações da testemunha cujo nome indica e a cujo depoimento fez alusão específica com referência ao registo da prova.
Ora, a testemunha ouvida (aproveitando-se o seu depoimento também para o Proc. nº LB1-12-0024-LAC), ainda que não tenha descido ao pormenor das faltas concretas referentes ao autor dos presentes autos, acabou por desenhar o regime geral de trabalho implementado por esta empresa “B”, sobre todos os aspectos ligados aos subsídios, ao número de horas diárias de serviço, à inexistência de qualquer dia de descanso, à remuneração nos dias de descanso semanal e também às faltas que pudessem ou quisessem os trabalhadores dar. E a ideia que transmite – coincidente, de resto, com todo os depoimentos prestados por outras testemunhas no âmbito de outros processos que este TSI teve a oportunidade de conferir em sede de recurso jurisdicional – é a de que o regime seguido era o de tolerância zero às faltas, até por a empresa se debater com falta de empregados.
Neste sentido, não temos dados para dirigir alguma censura ao julgador se, com base na sua livre convicção, fundamentada aliás, no despacho de fls. 576/577, considerou que o trabalhador nunca faltou ao serviço. E não seria difícil, enquanto empresa com uma escrita organizada que deve ter, procurar nos seus ficheiros e nos livros de registo de cada um dos seus trabalhadores, demonstrar que o autor da acção apresentou faltas, identificando-as.
Como este tribunal teve já oportunidade de dizer (Ac. de 8/05/2014, Proc. nº562/2013):
“Ora, é certo que o princípio da livre apreciação da prova (art. 558º, do CPC) não surge na lei processual como um dogma que confere total liberdade ao julgador, uma vez que o tribunal não pode alhear-se de critérios específicos que o obrigam a caminhar em direcção determinada, de que é exemplo a inversão do ónus de prova em certos casos, a prova legal por confissão, por documentos autênticos, por presunção legal, etc. Mas, por outro lado, também é certo que a convicção do julgador é o farol de uma luz que vem de dentro, do íntimo do homem que aprecia as acções e omissões do outro. Portanto, se a prova só é “livre” até certo ponto, a partir do momento em que o julgador respeita esse espaço de liberdade sem ultrapassar os limites processuais imanentes, a sindicância ao trabalho do julgador, no tocante à matéria de facto, só nos casos e moldes restritos dos arts. 599º e 629º do CPC pode ser feita (Ac. do TSI, de 18/07/2013, Proc. nº 50/2013).
Por isso se diz que, geralmente, o princípio da imediação e da livre apreciação das provas impossibilita o Tribunal de recurso de censurar a relevância e credibilidade que o Tribunal recorrido atribuiu ao depoimento de testemunhas a cuja inquirição procedeu (Ac. TSI, de 19/10/2006, Proc. nº 439/2006).”
No mesmo sentido, podem ver-se os Acs. do TSI, de 20/09/2012, Proc. nº 551/2012 e de 29/05/2014, Proc. nº 627/2013; 19/06/2014, Proc. nº 189/2014.
Improcede, pois, o recurso quanto a esta parte.
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2.2.2 – Do regime do Despacho nº 12/GM/88 e da Qualificação dos contratos celebrados entre a “C“ e a “B”.
Em nossa opinião, tudo foi já dito e redito sobre o assunto.
Por comodidade, limitar-nos-emos a transcrever um acórdão em que a questão foi tratada pelo mesmo colectivo julgador neste Tribunal (Ac. TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 824/2010):
“1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre B e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (B) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (C).
Aquele despacho disse, ainda, que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a) - manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b) - garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante B) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (B e C) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e abusos eventuais. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E, por isso mesmo, é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
*
2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre B e C?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre B e C, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre B e C é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
A sentença em crise entende, porém, que não, por não sentir emergir daquele contrato de prestação de serviços nenhuma das figuras contratuais que costumam associar terceiros não intervenientes, como foi o caso.
Por outras palavras, a questão é a do apuramento da natureza jurídica desse contrato no que a estes terceiros concerne.
E considerando não se estar perante um contrato de trabalho, um contrato de trabalho para pessoa a nomear, ou um contrato de cedência de trabalhadores – por razões que explicita e com as quais concordamos, mas que, por comodidade e desnecessidade ao desfecho decisório do recurso nos dispensamos de reproduzir – acabou por concluir que, do mesmo modo, não se estaria em presença do contrato a favor de terceiros, mas eventualmente ante um contrato de promessa de celebrar um contrato de trabalho com pessoa a nomear (sem qualquer efeito na relação laboral contratada entre empregador e trabalhador) e que apenas permitiria à beneficiária (C) reclamar prejuízos resultantes do incumprimento.
E para assim concluir, arrancando da leitura do art. 437º do Código Civil, foi peremptório em afirmar que no conceito da figura do contrato a favor de terceiro avulta o requisito da “prestação”, que aqui julga não ser possível, uma vez que essa prestação apenas equivaleria à “celebração de outro contrato” (ver fls. 20 vº a 22 da sentença). Argumento a que ainda adita o de que de um contrato a favor de terceiro não podem nascer obrigações para este. Dois obstáculos, portanto, que, em sua óptica, o impediam de preencher os elementos-tipo desta espécie contratual.
A solução a dar a ambos estes impedimentos invocados pelo Ex.mo juiz “a quo” merece um tratamento em bloco.
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre B e C, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que B se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que equivale a dizer que(…), o contrato a favor de terceiro9 será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes”.
Não vemos razão para alterar o entendimento exposto no trecho transcrito, pelo que, quanto a esta parte, improcede o recurso.
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2.2.3 – Das diferenças salariais
Partiu a sentença do Contrato de Prestação de Serviços 9/92 para apurar a diferença entre o que foi pago e o que era devido a título de remuneração.
A sentença comparou as remunerações por períodos e, no final, contabilizou um total de diferenças no valor Mop$ 69.050,00.
Tal valor – que o autor da acção computava em Mop$ 113.750,00 - não foi directamente questionado no recurso do autor.
Assim, face à posição acima assumida, não se vê que haja qualquer motivo para divergir da sentença no que a este capítulo concerne.
Será, pois, o valor de Mop$ 69.050,00 a considerar para este efeito.
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2.2.4 – Do trabalho extraordinário
No que a este assunto respeita, o autor da acção faz o cálculo do valor de cada uma das quatro horas de serviço prestado extraordinariamente em relação ao que seria normal. Fê-lo com reporte a diversos períodos de tempo devidamente escalonados, tendo em atenção a diferença entre as sucessivas alterações do valor da remuneração horária decorrente do Contrato de Prestação de Serviço aprovado pela DSTE e o valor efectivamente pago.
E nesse sentido, computou em Mop$ 37.409,00 o valor da indemnização a receber.
A sentença, porém, apenas contabilizou, em termos que não foram questionados no recurso e que, portanto, também não poderemos censurar, o período entre 1/09/1992 e 31/12/2000 (uma vez que o contrato de prestação de serviços 9/92 deixou de produzir efeitos a partir de 1/01/2001: facto provado 21), considerando o valor global a este título de Mop$ 32.916,00.
Ora, de acordo com os factos provados, para aqueles períodos a ré/recorrente pagou ao autor a remuneração horária para cada uma das horas de serviço extraordinário de Mop$ 8,00 (facto 14), Mop$ 9,30 (facto 15), Mop$ 10,00 (facto 16).
O autor, porém, tinha direito a um acréscimo de remuneração (cfr. art. 11º, nº2, DL 24/89/M).
Certo é que a lei não estabelece o modo de remunerar esse acréscimo de trabalho, conforme foi já expressado por este TSI (Ac. de 16/06/2011, Proc. nº 737/2010). Todavia, a fixação desse valor não pode ser livre, nem deixada ao arbítrio da entidade patronal. Ora, se o valor a considerar era de 90 patacas diárias, dificilmente se aceitaria que a remuneração horária a título de serviço extraordinário fosse satisfeita por valor inferior ao da prestação do serviço normal de oito horas de trabalho.
Portanto, não tendo sido fixado especificamente entre as partes esse acréscimo, então o valor a considerar deverá ser a diferença entre o valor mínimo de Mop$ 11,25 (resultado da divisão por 8 horas do valor da remuneração diária de 90 patacas a que a ré se comprometeu, conforme factos 4 e 5) e o valor pago efectivamente, como acima vimos (neste sentido, entre outros, tb. Ac. do TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 824/2010).
É essa diferença, variável consoante o valor realmente pago (factos 14 a 17), que deverá ser considerada no cálculo da indemnização, sem que se possa acolher, sequer, a ideia da imputada violação do art. 228º, nº1, do CC.
Como se disse, a sentença calculou o valor de Mop$ 32.916,00 e esse será o valor a arbitrar por não ultrapassar o valor peticionado.
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2.2.5 – Do subsídio de alimentação
Recorre também a ré “B” no que respeita ao subsídio de alimentação.
O autor achou-se na petição com direito à indemnização de Mop$ 56.835,00 e a sentença reconheceu-lho limitando-o ao valor de Mop$ 45.660,00.
Sobre esta prestação, foi dito no Ac. do TSI, de 14/06/2012, Proc. nº 376/2012:
“Ora, este subsídio tem uma função social radicada numa despesa alimentar efectuada por causa da prestação de trabalho efectiva10. E embora tenha havido por parte da jurisprudência alguma tendência para o considerar prestação retributiva, a verdade é que nem por isso outra a associava, mesmo assim, à noção de trabalho efectivo, tal como, por exemplo, foi asseverado no Ac. da Relação de Lisboa de 29/06/1994, Proc. nº 092324 “ Quer a Jurisprudência, quer a Doutrina têm vindo a entender que o subsídio de alimentação, sendo pago regularmente, integra o conceito de retribuição .... Porém, estando ligada essa componente salarial à prestação de facto do trabalho, só será devida quando o trabalhador presta serviço efectivo à entidade patronal…”.11.
Com o art. 260º do Código do Trabalho Português, o panorama mudou de figura, pois o nº2, do art. 260º deixou claro que esse subsídio não devia ser considerado remuneração, salvo nos casos em que o seu valor excede o montante da despesa alimentar. E assim, terá ficado mais claro que ele só é assumido pelo empregador por causa da prestação efectiva de trabalho. Ele “visa compensar uma despesa diariamente suportada pelos trabalhadores quando realiza a sua actividade”12. Ou “…visa compensar uma despesa na qual o trabalhador incorre diariamente, sempre que vai trabalhar…” (destaque nosso)13.
Em Macau, não está regulada a atribuição destes subsídios, mas não cremos que o sentido da sua natureza que melhor se adequa à geografia local é aquele que atrás descrevemos. Por conseguinte, por não estar regulada na lei (DL nº 24/89/M), nem no referido contrato de prestação de serviços nº 45/94 (fls. 137 e sgs. dos autos), deveremos considerá-lo como compensação pela prestação de serviço efectivo.
Logo, da mesma maneira que deverá descontar-se o subsídio nos períodos de férias ou naqueles em que a pessoa está de licença de maternidade, também ele deve ser subtraído quando o trabalhador não prestou serviço por outra qualquer razão14.”
Ora, a sentença recorrida aplicou o valor do subsídio multiplicando-o pelo número de dias de trabalho por que durou a relação laboral, face ao que ficou provado nos factos 5, 17 e 18.
É claro que a ré/recorrente se manifesta contra o assim decidido, por considerar que o facto 18 (relativo às faltas) contém implicitamente o reconhecimento de o réu alguns dias ter faltado com justificação ou autorização.
O acórdão deste TSI de 29/05/2014 (Proc. nº 627/2013) deu a resposta para esta questão:
«Contrariamente ao sustentado, não será de afirmar que se retira necessariamente do facto de o autor não faltar sem ser autorizado o facto implícito de ter faltado…. Esse facto pode ser compatibilizado … se dele se retirar que aí se enuncia uma regra que não deixou de ser observada: o trabalhador não podia faltar sem autorização; o trabalhador não faltou sem autorização; se faltasse tinha que ser autorizado. Daqui não se pode concluir que faltou autorizadamente, ou seja, que alguma vez tenha usado essa faculdade»
Sucede, contudo, que tal solução não responde cabalmente às situações em que tenha havido gozo efectivo dos dias de descanso anual e de feriados obrigatórios, razão por que a deixamos de sufragar. Por outro lado, estamos em crer que uma leitura mais objectiva da resposta ao quesito 18º permite pensar que o trabalhador terá dado algumas faltas ao serviço, ainda que com autorização.
Assim, a melhor solução é aquela que propende para remeter a fixação da indemnização a este título para execução de sentença (assim foi decidido, por exemplo, nos Acs. de Ac. de 13/03/2014, Proc. nº 414/2012, 24/04/2014, Proc. nº 687/2013, 29/05/2014, Proc. nº 168/2014, 24/07/2014, Proc. nº 128/2014).
Assim se fará também, neste caso, dando-se, pois, provimento ao recurso nesta parte.
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2.2.6 – Do subsídio de efectividade
Como se sublinhou, por exemplo, nos Acs. deste TSI de 14/06/2012, Proc. nº 376/2012 e 25/07/2013, Proc. nº 322/2013, trata-se de um subsídio que carece de uma prestação de serviço regular e sem faltas. Com efeito, o trabalhador teria direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tivesse dado qualquer falta.
Resulta do facto 19 da factualidade assente na sentença recorrida que a ré nunca pagou ao autor qualquer quantia a título de “subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias”.
Quanto a este aspecto, o autor pedia o valor de Mop$ 45.360,00, mas a sentença arbitrou o valor de Mop$ 36.000,00, considerando que a partir de 1/01/2001 os contratos de prestação de serviços já não previam os subsídios de efectividade e de alimentação.
Será, pois, esse o valor a considerar: Mop$ 36.000,00.
O autor conformou-se com esta decisão e não a atacou no recurso jurisdicional que interpôs. Razão por que nada mais este tribunal pode afirmar.
Nenhuma censura merece a sentença, pois, quanto ao recurso da ré “B”.
*
Tudo visto, a liquidação da indemnização a arbitrar ascende neste momento a Mop$ 230.037.92, sem prejuízo do que vier a ser fixado em liquidação de sentença quanto à devida pelo subsídio de alimentação.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em:
1 - Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela ré “B”;
Custas pela recorrente (art. 17º, nº4, do RCT).
2 - Conceder provimento ao 1º recurso jurisdicional da sentença interposto pelo autor da acção, no que respeita à indemnização pelo trabalho prestado por si nos dias de descanso semanal;
3 – Conceder parcial provimento ao recurso interposto pela Ré, revogando-se a parte da sentença que a condenou a pagar ao autor a quantia de Mop$ 45.660,00 a título de subsídio de alimentação, em consequência do que vai a ré condenada a pagar àquele a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença;
4 – Negar provimento ao recurso na parte restante, em consequência do que vai a ré condenada a pagar de imediato a parte ora liquidada no valor de Mop$ 230.037,92, acrescida dos juros legais, contados pela forma referida pelo TUI no seu acórdão de 2/03/2011, no processo n. 69/2010.
Custas:
Custas pelas partes em ambas as instâncias em função do decaimento, em relação aos pontos 2, 3 e 4 supra.
TSI, 11 de Setembro de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
(Vencido quanto à formula adoptada na compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal)
Lai Kin Hong
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492.
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 410;
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pag. 13.
4 Ob. cit, pag. 417
5 Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 493. Também, E. Santos Junior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pag. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit, pag. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pag. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pag. 336 e 338.
9 O TSI assim tem considerado de forma insistente (v.g., Ac. TSI, de 23/06/2011, Proc. nº 69/2011; 25/07/2013, 25/04/2013, Proc. nº 372/2012, 13/09/2012, Proc. nº 396/2012).
10 Neste ponto, corrige-se a posição anteriormente tomada no proc. nº 781/2011.
11 No sentido de que só deve ser pago nos períodos de prestação efectiva de serviço, ainda Ac. R.P. de 6/05/1995, Proc. nº 9411201; É por isso que ele não deve ser pago nos subsídios de férias e de Natal (Ac. R.E., de 21/09/2004, Proc. nº 1535/04-2).
12 Luis M. Telles de Meneses Leitão, in Direito de Trabalho, Almedina, 2008, pag. 349. No mesmo sentido, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Manual de Direito do Trabalho, Verbo, pag. 547 e Diogo Vaz Marecos, in Código do Trabalho anotado, Coimbra Editora e Wolters Kluver, pag. 662-663.
13 Pedro Romano Martinez e outros, in Código do Trabalho anotado, 5ª edição, 2007, pag. 498.
14 A não ser nas situações em que a não prestação se fica a dever a causa imputável ao empregador e em que, apesar disso, o trabalhador teve que efectuar a despesa alimentar.
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