Processo n.º 710/2013
(Recurso Laboral)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 24/Julho/2014
ASSUNTOS:
- Declaração remissiva da dívida
- Quitação da dívida
- Renúncia de créditos
- Indisponibilidade de direitos
SUMÁRIO:
1. A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
2. Maiores razões proteccionistas do trabalhador já não são tão válidas quando não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
3. A remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
4. A declaração do trabalhador, aquando da cessação de uma relação laboral, em que aceita uma determinada quantia para pagamento de créditos emergentes dessa relação e em que declara prescindir de quaisquer outros montantes, não deixa de consubstanciar válida e relevantemente uma declaração de quitação em que se consideram extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda e qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 710/2013
(Recurso Laboral)
Data: 24/Julho/2014
RECORRENTE : B
RECORRIDA : S.T.D.M.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. B, mais bem identificada nos autos, patrocinada por advogado, veio interpor contra Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., igualmente mais bem identificada nos autos, pedindo a condenação da Ré, a título de créditos laborais a pagar-lhe a quantia de MOP$454.760,00 acrescida dos respectivos juros desde a notificação da ré para a tentativa de conciliação.
2. Julgada a causa, foi decidido absolver a ré do pedido, com base na procedência da excepção peremptória de pagamento dos créditos invocados pela A.
3. Da decisão final vem recorrer a A., alegando, em síntese:
A decisão viola lei expressa no sentido de que o trabalhador não pode ceder ou alienar os seus créditos ao salário;
A apelidada remissão traduziu-se numa renúncia de créditos;
Os créditos salariais são totalmente indisponíveis;
Os créditos peticionados são devidos por compensação pelo trabalho prestado;
A remissão de dívidas tem um carácter bilateral, pelo que uma declaração unilateral do trabalhador não pode assumir esse carácter;
O pagamento da quantia constante da “Declaração” jamais prefigurará o consentimento previsto no artigo 854º do Código Civil;
Termos em que pede a revogação da sentença, pugnando pela procedência da acção.
4. A ré defende o acerto da sentença recorrida.
5. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
Factos
Após realizado o debate e audiência de julgamento, são os factos abaixo indicados considerados provados pelo Tribunal (dado que os articulados apresentados pelas partes foram redigidos em português):
A Autora começou a trabalhar para a Ré em 21 de Outubro de 1992. (A)
A Autora foi admitida como empregada de casino e recebia, de dez em dez, dias uma remuneração da entidade patronal, como contrapartida da sua actividade laboral. (B)
A ordem e o horário dos turnos estabelecidos eram os seguintes (repartindo-se num ciclo de três dias e voltando-se a repetir de novo após o terceiro dia, sem interrupções):
a) 1º e 6º turnos: das 07h00 às 11h00, e das 03h00 às 07h00;
b) 3º e 5º turnos: das 15h00 às 19h00, e das 23h00 até 03h00 (dia seguinte);
c) 2º e 4º turnos: das 11h00 às 15h00, e das 19h00 às 23h00. (C)
A 16 de Julho de 2003 a Autora emitiu a declaração constante de fls. 70, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
Eu, B,
titular do BIR n.º X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 22.641,42 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
(A Declarante): (ass.) B
BIR n.º: X/XXXXXX/X,
Data: 16-7-2003 (D)
A Autora recebeu junto da então Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), que deu origem ao processo n.º 1476/2002, a quantia de MOP 11.320,71. (E)
A relação laboral entre Autora e Ré cessou em 30 de Junho de 2002. (2º)
Os rendimentos recebidos pela Autora, por força desta relação laboral, entre os anos de 1992 e 2002, foram de:
a) 1992 = MOP 11.525,00
b) 1993 = MOP 58.655,00
c) 1994 = MOP 69.970,00
d) 1995 = MOP 114.693,00
e) 1996 = MOP 136.214,00
f) 1997 = MOP 136.707,00
g) 1998 = MOP 144.241,00
h) 1999 = MOP 127.585,00
i) 2000 = MOP 132.780,00
j) 2001 = MOP 148.967,00
k) 2002 = MOP 184.255,00 (3º)
Desde o início da relação laboral até 30 de Abril de 1995, a quantia fixa que a Autora auferia era no valor de HKD 10,00 por dia; HKD 15,00 por dia, desde 1 de Maio de 1995 até à data da cessação da relação laboral. (4º)
Os rendimentos da A. têm uma componente quantitativa incerta. (5º)
A contabilização do quantitativo incerto era efectuado exclusivamente pela R. (6º)
A Autora sempre prestou serviços nos seus descansos semanais. (7º)
A Autora nunca recebe qualquer compensação salarial pelos serviços prestados nos descansos semanais. (8º)
Nem compensado com outro dia de descanso pela Ré por cada dia de descanso semanal não gozado. (9º)
A Autora prestou serviços também nos feriados obrigatórios na duração da sua relação laboral. (10º)
A Autora nunca recebe qualquer compensação salarial pelos serviços prestados nos feriados obrigatórios. (11º)
A Autora prestou serviços nos descansos anuais, respeitantes ao período da duração da relação laboral. (12º)
A Autora nunca recebe compensação salarial pelos serviços prestados nos descansos anuais. (13º)
Sem prejuízo das respostas dadas aos quesitos 7.º, 10.º e 12.º, a Autora gozou os seguintes dias de descanso não remunerados:
a) No ano de 1994, a A. gozou 102 dias de descanso;
b) No ano de 1995, a A. gozou 40 dias de descanso;
c) No ano de 1996, a A. gozou 5 dias de descanso;
d) No ano de 1997, a A. gozou 13 dias de descanso;
e) No ano de 1998, a A. gozou 5 dias de descanso;
f) No ano de 1999, a A. gozou 20 dias de descanso;
g) No ano de 2000, a A. gozou 12 dias de descanso. (18º)
A exerceu funções para a R. e, posteriormente, trabalhou para a SJM até 2006. (19º)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por apreciar a validade e relevância em termos de eficácia jurídica da declaração assinada pela trabalhadora, nos termos da qual declarou ter recebido já as compensações devidas.
O que se desdobra na análise das seguintes questões:
- Da observância da forma legal
- Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 87/89/M de 3/Abril
- Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
- Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
A Mma juiz considerou que a dita declaração consubstanciada no documento de fls 70 era válido consubstanciando uma espécie de quitação, donde ter absolvido a ré do pedido contra ela formulado na acção.
Trata-se de matéria exaustivamente abordada neste Tribunal e também já pelo TUI, pelo que nos remetemos para as posições que maioritariamente aqui têm feito vencimento.
2. Importa então ver da natureza dessa declaração de forma a indagar se se observam ou não a invalidade que lhe é assacada pela recorrente.
Insurge-se a recorrente contra quem fora pedido o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação na sentença recorrida do artigo 776º do CC, enquadrando-se como quitação da dívida a declaração acima referida, e segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
E por considerar que a situação está prevista no RJRL (artigo 33º do DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, proibindo-se a disponibilidade dos créditos do trabalhador, donde entender que essa declaração é nula e de nenhum efeito.
3. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que a trabalhadora assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, o sentido que um declaratário normal - face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali se retira que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
4. Mas vem agora a trabalhadora demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava paga, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que foi induzida em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido alegada e comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
Essa, contudo, é questão que não importa agora apreciar.
5. Nem se diga que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
Não releva a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
A protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL,no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que “O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T. ”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como aconteceu no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
6. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.”, poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"1
Noutra perspectiva2, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
7. Nesta conformidade falece ainda eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”,
tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostrou cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência Comparada.3
8. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte4, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
Esse consentimento do devedor, que a recorrente diz inexistente, resulta claramente do facto de ser o próprio devedor que se pretende servir dessa mesma declaração, sendo evidente que aceita aquela declaração unilateral.
9. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.5
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido6
Pode-se dizer, num certo sentido que, hoje, na remissão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
10. Mas mesmo que, ainda por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda e qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado7, uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se a autora renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
11. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento à autora, do que ela solicita. Daí que ela passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
Não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida à autora e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que a A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
12. Anota-se ainda que no aludido documento, para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, deu-se até quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
Tem-se até noutros casos invocado o argumento de o trabalhador se encontrar em notória situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não terá tomado uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, vista a continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Trata-se, no entanto, de questão que não é colocada.
13. Não se deixa de referir que esta interpretação, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.8
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, sendo de manter a douta decisão proferida, o que prejudica necessariamente o recurso final.
14. Estamos, pois, em condições de concluir que o referido documento assume uma natureza de quitação e de remissão abdicativa pela qual ficou claro que o trabalhador renunciava a quaisquer direitos emergentes da relação laboral que então cessava.
15. Assim, concluindo, relevando-se o documento de fls 70, como se releva, procedente deve ser julgada a referida excepção peremptória, vista a renúncia expressa e relevante de quaisquer créditos sobre a Ré por parte da A.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, mantendo a decisão proferida.
Custas do recurso pela recorrente.
Macau, 24 de Julho de 2014,
(Relator) João A. G. Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto) Ho Wai Neng
(Segundo Juiz-Adjunto) José Cândido de Pinho
1 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
2 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
3 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
4 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
5 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
6 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
7 - A Protecção do Salário, pag. 225, separata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
8 - Acs do TUI46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, 748/2012, 906/2012, 248/2012, 951/2010, entre muitos outros
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