Processo nº 214/2014
Data do Acórdão: 25SET2014
Assuntos:
Marca mista
Capacidade distintiva
SUMÁRIO
A fim se averiguar se uma marca registanda é portadora da capacidade distintiva, é preciso que a marca seja analisada no seu todo, e não dissecá-la elemento por elemento.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 214/2014
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos do recurso jurisdicional na matéria de propriedade industrial, registado sob o nº CV3-13-0040-CRJ, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:
I – RELATÓRIO
A, sociedade comercial com sede em XXXXXX USA,
inconformada com a decisão da Direcção dos Serviços de Economia que indeferiu o registo da marca N/XXXXX, vem, ao abrigo do artº275º, dela interpor recurso.
Apresenta as seguintes conclusões:
a) - A marca a que se reporta o pedido de registo N/XXXXX é uma marca mista, em cuja composição surge um elemento nominativo e um elemento figurativo.
b) - A decisão recorrida dissecou a marca e limitou-se a analisar o elemento nominativo, do mesmo passo que afirma, erroneamente, que o elemento figurativo corresponde à figura de uma roleta.
c) - A marca é registável quando possua um mínimo de capacidade distintiva.
d) - O elemento nominativo, pela forma como se apresenta e pela sua particular configuração, é distintivo.
e) - Mais distintivo é quando associado a um elemento figurativo de fantasia, que nada tem de descritivo, como é o caso dos autos.
f) - Uma marca genérica é uma marca constituída exclusivamente por sinais que indicam os produtos ou serviços marcados, o que não é o caso da marca dos autos.
g) - A marca mista em causa possui, assim, capacidade para distinguir, em função da origem, os serviços da Recorrente dos serviços de outros comerciantes.
h) - Ao considerar que a marca N/XXXXX é composta exclusivamente por termos usuais e correntes, o despacho recorrido procede a uma errada aplicação da norma contida na alínea c) do n.º 1 do artigo 199.º RJPI.
Foi citado a Direcção dos Serviços de Economia nos termos do artº278º do RJPI e na sequência do qual pugnou pela legalidade da respectiva decisão.
II - SANEAMENTO
O recurso é tempestivo e legal.
O Tribunal é competente em razão da matéria, territorial e hierarquia.
O processo é o próprio.
As partes têm legitimidade e dotados de capacidade.
Não existem excepções ou questões prévias que obstam ao conhecimento do mérito da causa.
III - MOTIVAÇÃO
A. DE FACTO
- A ora Recorrente requereu em 30 de Dezembro de 2011, junto da Direcção dos Serviços de Economia, o registo da marca N/XXXXX, que consiste na expressão “B”, conjugada com a figura constante de fls32, cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos, e na qual constam dois zeros (00).
- O referido pedido foi feito para os serviços de casino e jogos a dinheiro, incluídos na classe 41ª.
- A DSE recusou o referido pedido de registo de marca, o que fez com fundamento no n.º 3 do artigo 214.º, a contrário, conjugado com a alínea c) do n.º 1 do artigo 199.º, ambos do Regime Jurídico da Propriedade Industrial .
B. DE DIREITO
A questão a decidir reconduz-se a saber se ocorre motivo de recusa de registo da Marca supra referida.
Louva-se a DSE no disposto no artº214º nº3, a contrário, conjugado com a al.c) do nº1 do artº 199º do RJPI, para fundar a sua decisão de recusa do registo da marca supra descrita.
Vejamos então.
Nas palavras de Coutinho de Abreu “as marcas são signos (ou sinais) susceptíveis de representação gráfica destinados sobretudo a distinguir certos produtos de outros produtos idênticos ou afins” – Cfr. A. cit. in Curso de Direito Comercial, VI., 4ª ed., pag.348
Esta noção reconduz-se, ao fim ao resto, à noção de marca que se pode retirar do enunciado artº197 do RJPI.
Dispõe este preceito que “só podem ser objecto de registo ao abrigo do presente diploma, mediante um título de marca, o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluindo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou a respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”.
Emerge destes enunciados, doutrinário e legal, pois, que a marca deve, sendo a “pedra de toque” da mesma, por definição e no cumprimento do seu escopo, ter relevantes capacidades distintivas, deve ser idónea, per si, de individualizar uma espécie de produtos ou serviços.
Note-se que, como se refere na decisão recorrida, essa capacidade distintiva deve ser perscrutada também na relação da composição da marca com os produtos ou serviços que visam identificar, no caso referentes a serviços de casino e jogos a dinheiro incluídos na classe 41ª.
Por se exigir a dita capacidade distintiva, nega-se o registo às situações contempladas no nº1 al. a) a d) do artº199 RJPI, e para o que releva e a benefício da decisão, “os sinais (….) que se tenham tornado usuais na linguagem corrente (….)” (al.b).
Nas palavras de Américo carvalho, “pretende-se com esta disposição que não seja atribuído o exclusivo a alguém, de sinais ou denominações, cuja livre disponibilidade é necessário para que os empresários actuem eficientemente no mercado”.
Adianta ainda.
“Na verdade, os sinais que se tenham tornado correntes na linguagem ou nos hábitos leais e constantes, não diferem das marcas compostas exclusivamente por sinais que possam servir no comércio para designar a espécie, a qualidade do produto. Estes sinais têm de ser acessíveis a todos os comerciantes e dos quais nenhum pode ter o exclusivo” – Cfr. Autor cit., in Direito de Marcas, pág.253 e 254.
No caso vertente, confirmando-se o que efectivamente se refere na decisão recorrida, diremos que os sinais em crise, correspondem efectivamente a um tipo de jogo de casino (de roleta), expressão essa que é usada na linguagem corrente para o identificar: trata-se da chamada roleta americana, pelos vistos muito popular nos casinos e no jogo online. - Cfr. documentos de fls.9 e ss dos autos administrativos apensos.
Nessa medida não é a marca susceptível de registo nos termos do predito preceito e tendo por referência também os serviços a que se destina.
Doutra forma estar-se-ia a inibir que outras concessionárias de jogo identificassem um jogo que exploram com o nome que se tornou usual. A marca confundir-se-ia com o próprio jogo, com o próprio serviço que visava proteger.
Argumentar-se-á que, nos termos do artº214 nº3 do RJPI, o facto de a marca ser constituída por aqueles sinais e indicações referidos na al. b) do nº1 do artº199º do RJPI não constituem fundamento de recusa do registo desde que tenham adquirido carácter distintivo.
Diremos ainda: “… o registo (de sinais ou figuras comummente utilizados no mercado) deve ser negado apenas quando os sinais ou indicações de que a marca for exclusivamente composta se tiverem efectivamente tornado usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio em relação aos produtos ou aos serviços para que tiver sido requerido o registo da referida marca, podendo ser concedido se não existir essa relação (….) ou se a marca incluir outros elementos que lhe forneçam suficiente capacidade distintiva” – Cfr. Código de Propriedade Industrial Anotado, coordenação de António Campinos e Luís Couto Gonçalves, 2010, pág.437.
É verdade, em termos dogmáticos estão os conceitos, a propósito necessários, convenientemente definidos e “arrumados”. O problema é a concretização dos mesmos nos casos da vida real.
É mesmo esta a grande e difícil tarefa que se nos depara sistematicamente, quer pela fluidez dos conceitos e princípios jurídicos onde nos devemos aportar (que estão estratificados, não há dúvida), quer pela grande componente subjectiva que envolve esta substancial apreciação: em situações de fronteira nunca estaremos preparados para afirmar peremptoriamente que é indubitável a capacidade distintiva ou não.
Pela nossa parte, na procura da melhor solução, diremos que a expressão em causa - de matriz mais ou menos estilizada, e diremos muito pouco estilizada -, ainda que conjugada com elementos de natureza figurativa - por isso a marca em causa é mista - que a compõem, ou seja, o desenho referido nos factos provados - elemento desenhístico ou emblemático -, utilizando-se como critério a bitola do consumidor comum, não tem aquela virtualidade ou capacidade distintiva.
Na verdade, tal desenho, apesar de não corresponder exacta e escrupulosamente a uma roleta (e nós sabemos como são hábeis os agentes económicos na “construção” das suas marcas e para fugir às proibições impostas pela Lei), também não deixa de o ser, ou dito doutra forma, não pode ser outra coisa que não uma roleta, tanto mais quanto mais associada se encontra com a expressão supra referida e os serviços a que se destina.
Não se aplica aqui, pois, na nossa óptica, a doutrina segunda a qual uma marca pode ser distintiva se não for exclusivamente descritiva, ou seja, se, sendo composta por elementos descritivos e não descritivos, a combinação oferecer um conjunto distintivo e, ainda, se não for directamente descritiva, ou seja, se só se limitar a sugerir ou evocar por forma inabitual e invulgar uma característica do produto ou serviço designando-se, nesta última hipótese, por marca sugestiva, expressiva ou significativa – Cfr. Luís M. Couto Gonçalves, Manuel de Direito Industrial, págs. 173 e 174.
E não se aplica também porque a parte nominativa da marca tem uma presença fortemente dominante no conjunto da marca e no confronto com o elemento figurativo.
Afirma-se, pois, que não se logra no caso concluir por aquela capacidade distintiva através do recurso à análise do “conjunto” da marca.
A razão de ser deste critério está no facto de ser a imagem de conjunto aquela que, normalmente, sensibiliza mais o consumidor, não se devendo pressupor que este tenha condições de efectuar um exame comparativo e contextual dos sinais entre si.
Não cremos, reafirmamos, que a marca cujo registo se pretende, consubstanciando uma expressão de uso corrente, com as características de que reveste e emergem da sua visualização, tenha essa virtualidade distintiva, conclusão, essa mesmo levando em conta os demais elementos que a compõem.
Destarte, não procedendo as doutas e hábeis razões que motivam o recurso, resta confirmar a decisão recorrida.
IV - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso interposto pela LA, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Registe e notifique.
Oportunamente cumpra o disposto no art. 283º do RJPI.
Macau, ds
Não se conformando com o decidido, vem a Requerente A recorrer da mesma para este TSI e motivar o seu recurso concluindo e pedindo que:
a) A marca a que se reporta o pedido de registo N/XXXXX é uma marca mista, em cuja composição surge um elemento nominativo e um elemento figurativo.
b) A sentença recorrida dissecou a marca e limitou-se a analisar o elemento nominativo, do mesmo passo que afirma que o elemento figurativo não é suficiente para lhe emprestar capacidade distintiva.
c) A marca é registável quando possua um mínimo de capacidade distintiva.
d) O elemento nominativo, pela forma como se apresenta e pela sua particular configuração, é distintivo.
e) Mais distintivo é quando associado a um elemento figurativo de fantasia, que nada tem de descritivo, como é o caso dos autos.
f) Uma marca genérica é uma marca constituída exclusivamente por sinais que indicam os produtos ou serviços marcados, o que não é o caso da marca dos autos.
g) A marca mista em causa possui, assim, capacidade para distinguir, em função da origem, os serviços da Recorrente dos serviços de outros comerciantes.
h) Ao considerar que a marca N/XXXXX é composta exclusivamente por termos usuais e correntes, a sentença recorrida procede a uma errada aplicação da norma contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 199.º RJPI.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada e substituída por decisão que conceda o registo da marca N/XXXXX.
Notificada veio a responder a Direcção dos Serviços de Economia pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 78 a 81 dos p. autos.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do disposto no artº 282º do RJPI, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com o alegado nas conclusões dos recursos, as questões levantadas que delimitam o thema decidendum na presente lide recursória podem ser reduzida à questão de saber se a marca registanda tem capacidade distintiva de produtos e serviços a que se destina individualizar, susceptível de protecção, face ao disposto no artº 197º do RJPI.
Assim, passemos a debruçar-nos sobre essa única questão levantada.
Está em causa a capacidade distintiva da marca registanda.
A propósito de conceito de marcas, o Prof. Ferrer Correia ensina que se trata de um sinal destinado a individualizar produtos ou mercadorias e a permitir a diferenciação de outros da mesma espécie e que a marca é um sinal distintivo de mercadorias ou produtos – in Lições de Direito Comercial, Vol. I, 312 a 313.
Quanto à constituição de marcas, diz o mesmo Mestre que “Os interessados gozam de grande liberdade na escolha dos sinais distintivos que hão-de constituir a marca. Prevalece aqui em grande escala a imaginação e a fantasia. A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais nominativos (marca nominativa), figurativos ou emblemáticos (marca figurativa ou emblemática), ou por uma e outra coisa conjuntamente (marca mista ……)” – ibidem, 321 a 322.
In casu, a marca registanda consiste no seguinte:
B
Trata-se de uma marca mista por ser constituída por um conjunto de sinais nominativos e figurativos.
Sinteticamente falando, para a Direcção dos Serviços de Economia, a recusa do pretendido registo da marca registanda deve-se à sua constituição por designações genéricas e portanto à falta da capacidade distintiva.
Ao passo que na óptica do Exmº Juiz a quo, a marca registanda apresenta-se “muito pouco estilizada”, ainda que conjugada com elementos de natureza figurativa que a compõem, utilizando-se como critério a bitola do consumidor comum, não tem a virtualidade ou capacidade distintiva.
Salvo o devido respeito, não sufragamos este entendimento.
Ora, a fim de se averiguar se uma marca é portadora da capacidade distintiva, é preciso que a marca registanda seja analisada no seu todo, e não dissecá-la elemento por elemento.
In casu, conforme se vê na marca registanda, o que se representa nos elementos constituintes dela é uma marca preponderantemente figurativa, pois apesar de alguns dos elementos nominativos consistirem em designações genéricas, nomeadamente os algarismos 00 e os dizeres B, o certo é que os tais elementos nominativos foram “trabalhados” por forma a apresentar-se com um especial estilo estético que os torna diferentes do algarismo “0” e da expressão “B” quando utilizados na linguagem comum para indicar uma certa quantidade numérica de coisas e um determinado jogo conhecido no meio de um determinado círculo das pessoas ligadas a jogo de fortuna e azar.
Por outro lado, estes elementos nominativos, para nós bem estilizados, quando inseridos na marca em causa, dado o seu grau de estilização da expressão B, passaram a penetrar nos elementos figurativos e fundir com estes por forma a habilitar a marca, quando globalmente considerada, a ganhar a suficiente capacidade distintiva exigida pelo artº 197º do RJPI por forma a tornar-se digna da protecção jurídica mediante a concessão ao seu titular o requerido registo.
Pelo que fica supra dito e face ao disposto no artº 197º do RJPI, é de concluir que a marca registanda é susceptível de protecção por dotada da capacidade distintiva dos serviços a que se destina e consequentemente deve ser concedido o registo à requerente, ora recorrente.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso revogando a sentença recorrida e determinando que seja concedido o registo conforme se requer.
Sem custas.
Cumpre o disposto no artº 283º do RJPI.
Registe e notifique.
RAEM 25SET2014
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng