Processo n.º 363/2014
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 16/Outubro/2014
ASSUNTOS:
- Julgamento da matéria de facto
SUMÁRIO :
Não é pelo facto de algumas testemunhas, empregados de uma companhia vendedora de automóveis, referirem um procedimento genérico quanto às matrículas dos automóveis, que se exclui, numa determinada situação em concreto, que não seja contratado um serviço especial de obtenção de matrícula do Interior da China, contrato esse que, uma vez incumprido, implica o pagamento dos prejuízos causados à contraparte pelo incumpridor e se traduzem, no caso, no reembolso do que foi prestado, acrescido dos respectivos juros.
O Relator,
Processo n.º 363/2014
(Recurso Civil)
Data : 16/Outubro/2014
Recorrente : Companhia de A, Limitada
Recorrido : E
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. COMPANHIA DE A, LIMITADA, vem interpor recurso da douta sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo julgou procedente a acção, condenando a ré a pagar ao autor o valor de MOP$497.940,00, acrescido de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento, com custas a cargo da mesma.
Para tanto, alega em síntese conclusiva:
A - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, pela qual o Tribunal a quo julgou procedente a acção, condenando a Ré a pagar ao Autor o valor de MOP$497.940,00, acrescido de juros de mora a contar da data da citação até integral pagamento, com custas a cargo da mesma.
B - Atentos os pressupostos estritos e de cariz pessoal para obtenção de matrícula da República Popular da China (RPC), entende a ora Recorrente que mal esteve o Tribunal a quo ao dar os factos referentes à colocação de matrícula da RPC como provados.
C - É sabido que a obtenção de uma matrícula da RPC depende mais das condições do própria pessoa que a solicita, razão pela qual o Tribunal a quo não poderia ter concluído singelamente que a Ré se disponibilizou para prestar tal serviço.
D - Pelo que, no caso, entende o Recorrente que se verificou um incorrecto julgamento da matéria de facto, determinante igualmente que se tenha verificado uma incorrecta subsunção dos factos ao direito.
E - Nos termos do art. 599.°, n.º 1, al. a) do C.P.C., analisada a prova produzida em sede de audiência de julgamento e devidamente documentada, é possível concluir que foram indevidamente considerados provados os quesitos n.ºs 2.°, 3.°, 5.°, 12.° e 13.° nos termos acima transcritos nas alegações.
F - Nos termos do art. 599.°, n.º 1, al. b) e n.º 2 do C.P.C., os elementos de prova que impõem decisão diversa da recorrida são os seguintes: declarações de B, ouvido na sessão de julgamento de 03.12.2013, gravação (0ˆ()08-DG06611270), às 10h43.22, minuto 57.30 a 1h29.21 e gravação (Oˆ(1@@LW066112708), às 12h13.01, minuto 00.00 a minuto 06.20, declarações da testemunha C, ouvido na sessão de julgamento de 03.12.2013 gravação (Oˆ(1@@LW066112708), às 12h13.01, minuto 07.13 a minuto 20.26, cujos depoimentos se encontram transcritos nas alegações.
G - Acresce que o próprio recibo junto como documento 5 da petição inicial é um recibo diferente, que não se encontrava em utilização pela Ré em 2011, nem tem aposto o carimbo da mesma.
H - Com base nos referidos depoimentos, associados à certidão do registo comercial da Ré e ora Recorrente (cfr. Doc. 1 da petição inicial), bem como à lista de trabalhadores da Recorrente (cfr. doc. 1 da contestação), entende a mesma que o Tribunal a quo podia ter concluído com segurança que D era um intermediário que apresentava Clientes à Recorrente, recebendo pelo seu trabalho uma comissão.
I - Com efeito, basta a análise da certidão do registo comercial da Ré - doc. 1 da petição inicial - para logo se concluir que D não era representante da Ré e ora Recorrente. Por outro lado, mais resulta do documento 1 junto com a contestação - Modelo M3/M4 - Declarações para efeitos de liquidação de imposto profissional – que D não era trabalhador da Ré e ora Recorrente. É o que resulta da própria prova documental junta aos autos.
J - Devendo, em consequência, o Tribunal a quo ter dado o quesito 12 como PROVADO, respondendo que D não era trabalhador, nem representante, da Recorrente.
K - Pelo exposto, perante a prova produzida em audiência e acima referida, bem como dos documentos juntos aos autos, o Tribunal a quo não podia ter dado como provados os quesitos n. Os 2º, 3º, 5º da base instrutória, requerendo-se assim a Vossas Excelências que seja modificada a matéria de facto no sentido de tais factos passarem a ser dados como NÃO PROVADOS. Por outro lado, o quesitos n.º 12 e 13 da base instrutória deverão ser dados como PROVADOS.
L - A colocação de matrículas da República Popular da China obedece a requisitos estritos, de cariz pessoal, que não dependem de uma obrigação de meios da Recorrente.
M - Com efeito, é sabido que para obtenção de matrícula da China é necessária a demonstração de o Requerente ter feito investimentos relevantes na China ou, em alternativa, ter uma profissão oficial associada a cargos políticos ou à carreira diplomática.
N - A Recorrente não aceita que o Tribunal a quo tenha considerado que o contrato de colocação adicional de matrícula da RPC tenha sido validamente celebrado de forma a vincular a ora Recorrente. Como não aceita ter recebido quaisquer valores a esse propósito.
O - No caso, em virtude da alteração da matéria de facto, impõe-se a conclusão de que D não era trabalhador, nem representante da Recorrente.
P - Ora, não sendo trabalhador, nem representante da Ré e ora Recorrente, o eventual contrato de colocação adicional de colocação de matrícula da RPC não vincula a ora Recorrente, na medida em que tal negócio não foi pela mesma ratificado (art. 261.º n.º 1 do Código Civil)
Q - A Ré nunca aceitou e muito menos ratificou qualquer negócio de colocação de matrícula adicional da RPC.
R - Acresce que, no caso não se verifica - nem foi alegada pelo Autor e ora Recorrido, nomeadamente na réplica apresentada nos autos - a excepção a que se refere o art. 261.°, n.° 2 do Código Civil, na medida em que o Autor não alegou que, no obstante a falta de ratificação, existiram circunstâncias que motivaram a sua confiança na legitimidade do representante sem poderes, ou seja, de D.
S - Tal facto não foi alegado, razão pela qual não foi objecto de prova nos presentes autos.
T - Entende a Recorrente que, no caso, o Autor e ora Recorrido não podia ignorar que a Recorrente não se podia comprometer a celebrar o contrato adicional de colocação de matrícula da RPC.
U - Isto porque a colocação de matrícula da RPC estava como está muito dependente de características ou qualidades do próprio Autor e ora Recorrido, o que o próprio não podia desconhecer.
V - Pelo exposto, entende a Recorrente que a decisão recorrida viola o disposto no art. 261.°, n.º 1 do Código Civil.
X - Por último, em qualquer caso, mal andou igualmente a decisão recorrida ao ter condenado unicamente a Ré e ora Recorrente pelas custas, em vez de as ter repartido entre Autor e Ré, na proporção do respectivo decaimento, nos termos impostos pelo art. pelo art. 376.° do C.P.C..
Termos em que, entende, deverá o recurso interposto ser declarado procedente e, em consequência, ordenada a revogação da decisão recorrida.
2. E, autor do processo acima indicado e aí mais bem identificado, contra-alega, em síntese:
A) ASSIM, perante os depoimentos referidos não pode restar qualquer dúvida de que o douto Tribunal a quo decidiu correctamente ao considerar PROVADOS os três quesitos referidos, enquadrando-se, pois, os factos concretos verificados nas normas legais aplicadas pelo mesmo.
B) Por outro lado, perante os depoimentos referidos não pode restar qualquer dúvida de que o douto Tribunal decidiu correctamente ao considerar NÃO PROVADO o quesito n.º 12.
C) Todas as declarações prestadas pelas testemunhas e referidas acima são aplicáveis a este quesito na medida em que das mesmas resulta que não há qualquer dúvida sobre a conclusão de que tem de ser considerado como NÃO PROVADO este quesito n.º 13.
D) Assim, entende o Autor que não se verificou no processo, por parte do douto Tribunal a quo, qualquer incorrecção no julgamento da matéria de facto, bem como na subsunção dos factos ao direito.
Pugna, pois, pela improcedência do recurso.
3. Foram colhidos os vistos legais.
I - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
a) Em 18 de Abril de 2011, o A. como comprador, e a R, como vendedora, efectuaram um contrato de compra e venda de um automóvel Mercedes Benz S600;
b) Na data referida na al. anterior o A. entregou à R o montante de HKD$400,000.00;
c) A R. entregou o referido veículo ao A;
d) O preço de compra e venda do automóvel descrito em A) é de HKD$2,300,000.00;
e) Na mesma data de compra e venda do automóvel, ora 18 de Abril de 2011, o A. e a R. celebraram um contrato de colocação adicional da matrícula da República Popular da China no valor de HKD$482,500.00, a fim deste circular com as duas matrículas – de Macau e da RPC,
f) Ao mesmo tempo, o A. entregue à R. um montante de HKD$100,000,00.
g) Em 23 de Junho de 2011, a R. entregou o veículo com a matrícula de Macau MX-XX-66;
h) Na mesma data de entrega do automóvel, em 23 de Junho de 2011, o A. efectuou o pagamento remanescente do automóvel, no montante de HKD$1,900,000.00;
i) Em 11 de Julho de 2011, o A. efectuou o pagamento remanescente de HKD$382,500.00 previstas no respectivo contrato verbal entre as partes, de modo a complementar o pagamento da colocação, pela R. da matrícula da RPC que lhe permitiria circular no Interior da China;
j) A Ré nunca entregou a chapa de matrícula da RPC;
k) Os contactos para venda do automóvel foram feitos por um agente, o Sr. D;
l) Os recibos junto aos autos pelo A. como documentos n.º 2 a 5, forma assinados pelo Sr. D;
m) Não se sabe onde se encontra D
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Julgamento da matéria de facto;
- Aplicação do Direito em função da matéria de facto que venha a ser fixada.
2. O recurso interposto pela Ré da sentença proferida nos autos acima indicados visa essencialmente convencer que se verificou um incorrecto julgamento da matéria de facto, nomeadamente pelo facto do tribunal a quo considerar provados os quesitos 2.°, 3.° e 5.° da base instrutória e não considerar provados os quesitos 12.° e 13° da mesma, entendendo o recorrente que se verificou um incorrecto julgamento da matéria de facto determinante e que se tenha verificado uma incorrecta subsunção dos factos ao direito.
3. O quesito n.º 2.° diz o seguinte: "Na mesma data de compra e venda do automóvel, em 18 de Abril de 2011, a A. e a R. celebraram um contrato de colocação da matrícula da República Popular da China no valor de HKD482,500.00, a fim deste circular com as duas matrículas de Macau e da RPC? “
O quesito n.º 3.º : "Ao mesmo tempo o Autor entregou à Ré um montante de HKD100,000.00?"
O quesito n.º 5.°: "Em 11 de Julho de 2011, o A. efectuou o pagamento remanescente de HKD382,500.00 previstos no respectivo contrato verbal entre as partes, de modo a complementar o pagamento da colocação pela Ré da matrícula da RPC que lhe permitiria circular no Interior da China?"
Analisado o depoimento das testemunhas da recorrente, verifica-se que as suas respostas são genéricas, ou seja, enquanto empregados da Ré, limitaram-se a responder àquilo que era o procedimento normal da empresa, mas isso não exclui que neste caso concreto tenha sido acordado diferentemente entre o vendedor e o comprador do automóvel um serviço de obtenção da referida matrícula.
O que aliás é corroborado pelo depoimento de outras testemunhas, em particular a testemunha do autor, F que declara que presenciou a celebração do contrato da colocação da matrícula da RPC na viatura em causa e ainda da 2ª testemunha do autor que assistiu à entrega dos HKD100.000,00 A sendo esse dinheiro destinado à colocação da matrícula da RPC.
Não há, pois, razão para descrer da convicção formada pelo Colectivo de juízes na 1ª Instância.
4. Quanto ao quesito n.º 12.º dispõe ele o seguinte: "O Senhor D não é trabalhador, nem representante, nem associado da Ré?"
Não obstante as testemunhas indicadas pela recorrente desmentirem que essa pessoa fosse empregada da ré, não deixam de admitir uma ligação com aquela Companhia, em particular no que respeita à angariação e apresentação de clientes, para além de receber até uma comissão por esse seu trabalho.
Por outro lado, da banda do autor, testemunhas há que referem que o referido sujeito se apresentou como empregado de vendas da A, tal como constava do seu cartão-de-visita, foi ele que prometeu tratar de tudo, foi ele que tratou do negócio, tendo sido ele até a passar os recibos.
Acresce que a motivação do Mmo Juiz-Presidente do Colectivo de juízes de fls 86v. a 88 não deixa de ser muito esclarecedora, responde às possíveis dúvidas que são colocadas em sede deste recurso, não se mostrando aqui abaladas as razões explanadas e que conduziram às respostas dadas.
5. Discorda ainda a recorrente da resposta ao quesito 13º - "Pela venda do referido automóvel, a Ré apenas recebeu os valores de HKD400,000.00 e HKD1,800,000.00 como preço da venda?" - mas não concretiza porquê, o que leva a que este Tribunal não possa conhecer da sua razão ou sem-razão neste particular aspecto.
6. Inalterada que fica a matéria de facto, não é de censurar a aplicação do Direito vertida na douta sentença que condenou a Ré a pagar ao autor o prejuízo por ele sofrido em função do incumprimento do aludido contrato de prestação de serviços concretizado na obtenção da matrícula do Interior da China. Com efeito, por parte da ré vendedora, traduzido no reembolso do despendido e respectivos juros, face ao disposto no artigo 787.°, 788º, n.º 1, 566º a 558º e n.º 1 do art. 560º do CC.
7. Quanto às custas, não podem elas ser objecto de recurso, em termos de impugnação directa para este Tribunal, devendo o seu conhecimento ser precedido de uma decisão em sede de reforma de custas. Afigura-se, no entanto, estar-se perante um lapso susceptível de ser corrigido pelo próprio autor da sentença.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença proferida.
Custas pela recorrente.
Macau, 16 de Outubro de 2014,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)
(com a declaração de que conheceria também da questão das custas, vista a natureza da questão e a unidade de conhecimento do objecto do recurso)
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Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
363/2014 12/12