Processo nº 156/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 13/Novembro/2014
Assunto: Novos factos
Junção de documentos às alegações
Impugnação da matéria de facto
SUMÁRIO
- Todos os meios de defesa (impugnações e excepções) que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação, sob pena de, não o fazendo em momento próprio, preclude a possibilidade de o fazer depois.
- Se os factos invocados pela recorrente fossem objectiva ou subjectivamente supervenientes, teria que deduzi-los em novo articulado até ao encerramento da discussão e julgamento na 1ª instância, e não nesta instância recursal.
- Uma vez que os factos invocados pela recorrente podiam e deveriam ter sido alegados na 1ª instância, mas não o fez em altura própria, e não constituindo tais factos como meios de defesa que a lei expressamente admite posteriormente à contestação nem meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, precludida está a possibilidade de o fazer agora em sede de recurso.
- Só se podem juntar com as alegações de recurso os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, bem como aqueles cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
- Não é admitida a junção, com as alegações de recurso, de declarações redigidas e assinadas por determinadas pessoas tanto na primeira instância como na instância de recurso, considerando que, de um modo geral, todos os depoimentos têm que ser prestados em Tribunal, e não por escrito, salvo excepções previstas na lei.
- Também não é admitida a junção às alegações de algum documento, se a parte não vem demostrar que não lhe foi possível juntar ao processo até ao encerramento de discussão na primeira instância.
- Se, reapreciada e valorada a prova indicada pela recorrente de acordo com o princípio da livre apreciação, o Tribunal ad quem achar que a prova ainda não é suficiente para permitir a alteração das respostas dadas aos quesitos, improcede o recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 156/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 13/Novembro/2014
Recorrente:
- A (Ré)
- B (Autor)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
B (Autor), melhor identificado nos autos, intentou contra A (Ré) uma acção especial de divórcio litigioso junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM.
Realizado o julgamento, foi julgada a acção procedente, tendo sido decretado o divórcio entre o Autor e a Ré, declarando-se esta última como única culpada.
Inconformada com a sentença, dela interpôs a Ré o presente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. 原審判決存在瑕疵,因為違反《民法典》第1635條第1款及《民事訴訟法典》第556條第2條以及558條之規定。
2. 原審法院聽取了兩名證人之證言及卷宗內之文件,以認定裁判書內之事實(載於第77頁背頁至78頁)。
3. 根據已證事實,不能得出被告有過錯下違反夫妻義務且該違反之嚴重性或重覆性導致不可能繼續共同生活。
4. 按照已證事實,當中並沒有指出被告沒有負擔家庭開支及家務工作的時間長短,根本不能得出原告結婚25年從來沒有負擔家庭開支及家務工作的結論。
5. 法院認定原告任職導遊,眾所週知,導遊上班及下班時間一般不固定。
6. 而且,原告任職導遊不少於20年,差不多每月均會外出帶團,根本不能全權負責處理家中事務。
7. 自結婚以來,家務一直主要由具有固定上下班時間之原告負責,而被告只是當空閒時或原告夜間進修上課時才會協助做家務。
8. 家庭開支方面,並不是由原告一人支付,被告亦有付出。
9. 被告將大部份工作收入所得之積蓄,用來支付購買家庭居所之部份樓款、裝修及傢俬費用。
10. 另外,原告與被告一直有共識,由原告管理雙方擁有之其他物業租金收入全由原告收取,並用作支付家庭開支。
11. 自2011年9月開始,原告因為外面有女人,開始經常夜歸及間中在外過夜,亦因此與被告產生爭執。
12. 綜上所述,不能得出被告存在重覆性及嚴重性違反夫妻尊重、扶持及合作義務。
13. 原審判決違反《民事訴訟法典》第556條及第558條之規定。
14. 原審法院認定了“A Ré é empregada de escritório mas não contribui em nada para as despesas familiares”及“A Ré não se ocupa das lidas domésticas, deixando o respectivo trabalho totalmente a cargo do Autor.”
15. 根據庭審中第一名證人之證言: “我頭個半年係老豆屋企度住架,直至我個仔出世,我都淨係見到我老豆做囉,都係我老豆做,直至我搬開左,有時番去,番屋企,見到老豆一個人,都係佢自己係度做緊囉呢啲嘢。”(參見庭審錄音時間00:05:25-00:05:46)以及“ER,都大約一個月番去兩三次度啦。” (參見庭審錄音時間00:06:43-00:06:47)
16. 根據庭審中第二名證人之證言: “證人:家庭細務都…都係佢做得多。” (參見庭審錄音00:42:48-00:43:05)
17. 就負擔家庭開支方面,兩名證人均表示不清楚原告與被告之間是否互相俾番開支或者是否存在其他情況。(參見庭審錄音00:28:10-00:28:16以及00:50:16-00:50:53)
18. 另外,倘若家務全部都係由原告做,則被告亦不會話原告“也野都唔做”。 (參見庭審錄音00:21:15-00:21:29)
19. 上述矛盾顯而易見,從上述兩名證人之證言,不足以認定被告完全沒有做家務及沒有支付家庭開支。
20. 雖然證據由法院自由評價,法官須按就每一事實之審慎心證作出裁判。
21. 本案中,被告沒有參與聽證,不能就證人之作證行使辯論權。
22. 但證人所述之證言,明顯存在矛盾,違反一般經驗法則。
23. 基於不能認定被告在有過錯下違反夫妻義務且違反之嚴重性及重覆性導致不可能共同生活以及原審判決違反《民事訴訟法典》第556條及第558條之規定,故此原審法院之離婚判決應予以止。
Conclui, pedindo a revogação da sentença recorrida, ou a renovação da prova prevista nos termos do nº 3 a 5 do artigo 629º do Código de Processo Civil.
*
Notificado, ofereceu o Autor resposta às alegações, tendo dado as seguintes conclusões:
1. A Recorrente vem alegar factos novos a coberto dos artigos 10º/2ª parte, 11º a 23º, 25º, 26º, 27º/1ª parte e 28º a 33º das respectivas alegações de recurso, com vista a demonstrar que não houve da sua parte qualquer violação dos deveres conjugais, de forma grave e reiterada, apresentando ainda a Recorrente, para prova dessa matéria, os documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4.
2. Por factos novos entendem-se apenas os factos novos para o processo e não novos para a parte interessada que os invoca; o que quer dizer que são novos na instância de recurso, os factos que, destinados a fazer prova dos fundamentos de facto da acção ou da defesa, podiam ter sido alegados em 1ª instância pela parte interessada – i.e., factos que já tinham acontecido e que a sua existência já era conhecida pela parte antes de encerrada a discussão na 1ª instância – mas que esta, ao invés, não alegou nesse período temporal.
3. Ora, em sede de recurso só podem ser considerados os factos novos – sendo como tal considerados aqueles que, por não serem supervenientes ao encerramento da discussão em 1ª Instância, devem ser objecto de alegação pela parte até esse momento (ex vi artigos 425º, n.º 3 e 450º, n.º 2 do CPC – que dispensem alegação de parte, ou seja, os factos notórios ou de conhecimento oficioso (v., artigo 434º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
4. De igual modo, não se admite a junção de documentos na instância de recurso para suporte de factos novos se tais factos se não reconduzirem a factos notórios ou cujo conhecimento seja permitido ao Tribunal ex officio.
5. Não nos podemos esquecer que, em processo civil, reina o princípio da preclusão que, como se sabe, traduz-se no reconhecimento de que um processo contém ciclos processuais rígidos, com finalidades específicas e estanques entre si.
6. No caso em apreço, todos os fundamentos da acção e da defesa devem ser alegados de uma vez, respectivamente na petição e na contestação – sem prejuízo da possibilidade de alteração do pedido e da causa de pedir em momento subsequente -, cabendo assim às partes alegar logo nesse momento temporal a respectiva matéria factual – cfr., a propósito, artigo 389º, n.º 1, al c), quanto à petição, e artigos 408º e 409º, em relação à contestação, todos do CPC; vide, ainda, artigos 216º e 217º do mesmo Código quanto às limitações da alteração do pedido e da causa de pedir.
7. E o mesmo se refira relativamente ao momento do oferecimento da prova e às limitações inerentes à sua alteração, requerimento de novos meios ou oferecimento tardio.
8. Está assim excluída a possibilidade de invocação de jus novorum na instância de recurso (a chamada “exclusão do jus novorum”), ou seja, não é possível poder-se invocar factos novos em sede de recurso, embora isso não resulte de qualquer proibição legal mas antes da ausência de qualquer permissão expressa, podendo afirmar-se que os recursos interpostos visam normalmente reapreciar o pedido formulado na 1ª Instância com a matéria de facto nele alegada.
9. Neste contexto legal, a instância de recurso visa apenas o controlo da decisão recorrida, os chamados recursos de reponderação, não possibilitando um novo julgamento da causa como é norma nos recursos de reexame, o que tem de ser entendido cum grano salis.
10. No caso sub judice, todos os factos invocados pela Recorrente na presente instância de recurso são novos, ou seja, podiam e deveriam ter sido alegados em sede de 1ª instância pela parte interessada tomando em consideração que já tinham acontecido e a sua existência já era conhecida pela Recorrente antes de encerrada a discussão na 1ª instância, sendo certo que esta, apesar de ter citada para os presentes autos, não alegou.
11. Por outro lado, todos aqueles factos novos não constituem factos notórios ou de conhecimento oficioso (v., artigo 514º, n.ºs 1 e 2 do CPC), pelo que, também por esta razão, deveriam ter sido objecto de alegação pela parte até ao encerramento da discussão em 1ª Instância (ex vi artigos 425º, n.º 3 e 451º, n.º 1 do CPC).
12. O mesmo se diga quanto aos documentos ora apresentados pela Recorrente (com os n.ºs 1 a 4), não sendo admissível a junção de documentos na instância de recurso para suporte aqueles factos novos considerando que, como se disse, tais factos se não reconduzem a factos notórios ou cujo conhecimento seja permitido ao Tribunal ex officio.
13. Refira-se ainda que a apresentação da prova por documentos em sede de recurso rege-se pelo artigo 616º, n.º 1 do CPC.
14. Ora, só em situações excepcionais as partes são autorizadas a juntar documentos após os articulados ou mesmo após o encerramento da discussão em primeira instância, nos termos permitidos pelo artigo 451º do CPC (ex vi artigo 616º, n.º 1, 1ª parte do CPC).
15. Ora, no caso em apreço, os documentos que foram apresentados pela Recorrente nesta instância de recurso respeitam a factos que deveriam ter sido deduzidos na contestação, tendo em conta o que foi alegado na minuta do recurso e o teor dos mesmos documentos, tratando-se, ao fim ao cabo, de documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da defesa.
16. Para que fosse lícita a junção tardia deste tipo de documentos, quer na primeira instância quer no recurso, a Recorrente tinha de convencer o tribunal da superveniência dos respectivos documentos, ou porque os documentos em causa se formaram depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento é que a parte teve conhecimento da existência dos mesmos, ou porque não pôde obtê-los até essa altura, o que não foi feito pela Recorrente na presente instância.
17. Resta assim apurar se a junção daqueles documentos se mostraria necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, a coberto do artigo 616º, n.º 1, in fine, do CPC, situação em que sucederá quando na sentença se rejeita o critério seguido pelas partes e se adoptam factos novos.
18. Sucede que, in casu, o tribunal de 1ª instância, em momento algum, e em particular na fundamentação da sentença recorrida, introduziu qualquer meio probatório com que a recorrente podia não contar.
19. Neste particular da prova documental ora apresentada pela Recorrente, impõe-se ainda dizer que os próprios documentos 1 a 3 são, por si, totalmente inadmissíveis à luz do regime do processo civil vigente em Macau, tratando-se obviamente de prova proibida que não poderia ser admitida pelo Tribunal a quo em 1ª instância, quanto mais em sede de instância de recurso.
20. Em conclusão, todos os factos invocados pela Recorrente na presente instância de recurso não deverão ser atendidos por V. Exas., devendo como tal essa matéria ser considerada como não escrita.
21. De igual forma, não se verificando qualquer das situações previstas no artigo 616º, n.º 1 do CPC que permitem excepcionalmente a junção de documentos às alegações do recurso, é de indeferir a pretendida junção dos documentos aos presentes autos e, consequentemente, deve ser ordenado o seu desentranhamento, sendo de frisar, mais uma vez, que os documentos n.ºs 1 a 3 juntos pela Recorrente constituem obviamente prova proibida.
22. Vem ainda a Recorrente alegar, com todo o despropósito, que o Tribunal a quo não valorou adequadamente das duas testemunhas prestado em sede de julgamento que impunha, sobre determinados pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida, ou seja, que o depoimento dessas testemunhas deveria ter implicado uma realidade diferente da que foi apurada pelo tribunal recorrido.
23. Considerando particularmente o depoimento da 1ª testemunha com conhecimento directo sobre a matéria em causa – vide, em particular, passagem da gravação da audiência de discussão e julgamento retratada no doc. 5 junto pela Recorrente – 00:04:20 – 00:05:45 -, esteve bem o Tribunal a quo ao decidir do modo com o fez no sentido de dar como provado de que a Recorrente não se ocupa das lides domésticas, deixando todo o trabalho a cargo do Recorrido, dentro do princípio da livre apreciação das provas que lhe assiste e em estrito respeito do critério de objectividade e das regras da experiência comum (veja-se ainda no mesmo sentido o depoimento da 2ª testemunha: passagem da gravação 00:42:08 – 00:43:30).
24. Quanto à questão das despesas familiares, decidiu o Tribunal a quo de forma igualmente acertada ao dar como provado que a Recorrente não contribui em nada para as despesas familiares, tomando em conta particularmente o depoimento da 1ª testemunha que tem conhecimento directo sobre a mesma matéria – vide, em particular, passagem da gravação da audiência de discussão e julgamento retratada no doc. 5 junto pela Recorrente – 00:07:17 – 00:10:03 e 00:27:24 – 00:29:32 (veja-se ainda no mesmo sentido o depoimento da 2ª testemunha: passagem da gravação 00:48:05 – 00:51:16).
25. Ao abrigo do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artigo 558º do CC, o Tribunal recorrido deu como assente a matéria em causa em função das provas produzidas e examinadas em audiência.
26. A recorrente limita-se nas suas alegações de recurso apenas a discordar do julgamento da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido, pretendendo, ao fim ao cabo, impor o seu juízo pessoal ao juízo do tribunal, colocando em causa o princípio da livre apreciação da prova regulado naquele artigo 558º do CC.
27. Não nos podemos esquecer que a possibilidade conferida pela lei do Processo Civil de reapreciação da matéria de facto não deve ser erigida num regime-regra, antes configura um meio excepcional, circunscrito às hipóteses em que a renovação dos meios de prova se revele absolutamente indispensável ao apuramento da verdade material e ao esclarecimento cabal das dúvidas surgidas quanto aos pontos da matéria de facto impugnada.
28. Acresce que o depoimento das testemunhas que foi prestado em julgamento não se afigura minimamente contraditório e sustenta, de forma cabal, a decisão de facto perfilhada pelo Tribunal recorrido, sendo que a Recorrente não apresenta qualquer meio probatório, claro e evidente, ao ponto de determinar uma resposta diferente da que foi dada pelo mesmo Tribunal.
29. Nesta conformidade, o recurso não poderá deixar de improceder no tocante à impugnação da matéria de facto pretendida, sendo que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal, designadamente os artigos 556º e 558º do CC.
30. Na sentença o Tribunal a quo foi criterioso na análise doutrinal que implicou a aplicação ao caso sub judice do disposto no artigo 1635º do CC, explicitando em que termos a violação culposa dos deveres conjugais por parte da Recorrente foi relevante para se ter decretado o divórcio.
31. É que estamos perante uma violação culposa daqueles deveres conjugais (particularmente dos deveres de respeito, cooperação e assistência) por parte da Recorrente, violação essa grave e censurável, que constituem motivo suficiente para se decretar o divórcio e declarar aquela como única culpada.
32. Da avaliação da factualidade dada como assente nestes autos resulta, de forma inequívoca, que a Recorrente violou os deveres conjugais como os de respeito e de cooperação e assistência, pelo que, nos termos do artigo 1635º do CC, não merece qualquer censura a decisão recorrida em decretar a dissolução do casamento por divórcio, em função do elevado grau de reprovabilidade da conduta da Recorrente que foi determinante para a ruptura irreversível da vida em comum do casal.
33. A violação dos deveres conjugais de respeito e de cooperação e assistência por parte da Recorrente foi notória, cumprindo dizer ainda que, para efeitos de declaração de cônjuge culpado, o que importa é a existência de factualidade provada que permitiu identificar a Recorrente como responsável pela eclosão da crise conjugal que conduziu à ruptura matrimonial.
34. No caso dos presentes autos, é manifesto que a responsabilidade pela crise conjugal que levou à ruptura do casal é, a todos os títulos, imputável à Recorrente, como salienta, e bem, a sentença recorrida, na medida em que foi apenas a sua conduta que se caracterizou numa sistemática e reiterada iniciativa culposa de quebra daqueles vínculos conjugais que deveriam suster a comunhão de vida com o Recorrido, comprometendo assim a Recorrente a vida comum do casal de forma irremediável.
35. Por isso, não merece qualquer censura a decisão recorrida de considerar a Recorrente exclusiva culpada da dissolução do vínculo conjugal que a unia ao Recorrido, pelo que deverá ser julgado improcedente o recurso a que ora se responde, mantendo-se na íntegra a sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Autor e Ré contraíram casamento em Macau em 22 de Fevereiro de 1988.
A fracção autónoma, para habitação, designada por “HXX”, correspondente ao XXº andar “H”, do edifício denominado XX, sito na Av. XX, n.º XX, em Macau foi adquirido pelo casal em 6 de Março de 2002.
Desse casamento nasceram dois filhos, a saber:
* C, casado, nascido em Macau, em XX de XX de 1989; e
* D, solteiro, menor, nascido em Macau, em XX de XX de 1995.
O Autor suporta as despesas de telefone da casa e telefones portáteis do Autor e do filho mais novo, as despesas de água, electricidade, gás e condomínio da lar familiar, as despesas escolares do filho mais novo e os demais encargos familiares.
O Autor é guia turística em Macau.
A Ré é empregada de escritório mas não contribui em nada para as despesas familiares.
A Ré provoca frequentemente discussões com o Autor.
Quando o Autor precisava de descansar em casa por causa de dores de costas, a Ré dizia que o Autor era 死豬 (porco morto) ou 死蛇爛鱔(cobra morta e enguia podre).
Depois de uma discussão ocorrida em 2012, a Ré colocou uma faca debaixo da almofada em que dormia o que deixou o Autor com medo.
A Ré não se ocupa das lidas domésticas, deixando o respectivo trabalho totalmente a cargo do Autor.
A Ré tranca com frequência a porta da casa morada de família, impedindo o Autor de aceder ao interior da mesma após o seu regresso do trabalho e ignora os telefonemas feitos pelo Autor com o intuito de a convencer para abrir a porta.
O que obriga o Autor a pernoitar por vezes fora da casa morada de família.
O Autor tentou conversar com a Ré acerca desse problema, mas não surtiu qualquer efeito.
Depois de uma discussão entre as partes em Abril de 2012, a Ré bateu no Autor, com bofetadas e pontapés.
*
São as seguintes questões colocadas neste recurso:
- Da apresentação de novos factos em sede de recurso
- Da junção de documentos às alegações
- Da impugnação da matéria de facto
- Do mérito da sentença recorrida
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Da apresentação de novos factos em sede de recurso
A Ré ora recorrente invocou um conjunto de factos novos, designadamente os constantes dos artigos 10º a 39º da petição de recurso, com vista a demonstrar que não houve por sua parte violação dos deveres conjugais.
Estatui-se nos termos do artigo 409º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1. Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2. Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”
Traduzindo-se esta disposição legal no chamado princípio da concentração da defesa, na medida em que todos os meios de defesa (impugnações e excepções) que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem, em princípio, ser deduzidos na contestação1, sob pena de, não o fazendo em momento próprio, preclude a possibilidade de o fazer depois.
Como observa o Professor Alberto dos Reis, “O princípio da concentração da defesa na contestação justifica-se sem dificuldade. A boa ordem e a disciplina do processo postulam esse princípio. Não faz sentido que o réu disperse a sua defesa por vários momentos ou fases da acção; não é admissível que o réu vá deduzindo a sua posição pouco a pouco, à medida que lhe apetecer, e que reserve para a última hora o que pode logo alegar na contestação. Tal liberdade de dedução criaria o tumulto, a desordem, a anarquia processual, por um lado, e por outro prestar-se-ia a especulações e manobras insidiosas.”2
Não obstante que, em regra, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, mas o legislador tem o cuidado de admitir algumas excepções: meios de defesa supervenientes; meios de defesa que a lei expressamente admite posteriormente à contestação e meios de defesa de que o tribunal pode conhecer oficiosamente.
No caso vertente, a Ré ora recorrente foi devida e pessoalmente citada para contestar mas não contestou, e da análise dos factos invocados pela Ré na petição de recurso, é fora de dúvida que são factos conhecidos pela mesma antes de encerrada a discussão na 1ª instância.
Em boa verdade, se a Ré ora recorrente pretende invocar factos objectiva ou subjectivamente supervenientes, terá que deduzi-los em novo articulado até ao encerramento da discussão e julgamento na 1ª instância, mas não é o caso.
Também não se trata daquelas situações em que a dedução tardia de meios de defesa seja admitida expressamente por lei, muito menos de situações em que seja permitido o seu conhecimento oficioso.
Aqui chegados, por que os factos invocados pela recorrente podiam e deveriam ter sido alegados na 1ª instância, mas não o fez em altura própria, somos a entender que precludida está a possibilidade de o fazer agora em sede de recurso.
Nesta conformidade, ao contrário do que entende a recorrente, os factos constantes dos artigos 10º a 39º da petição de recurso não podem ser objecto de apreciação na nossa instância.
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Da junção de documentos às alegações
A recorrente juntou 5 documentos às suas alegações para prova daqueles factos novos por si invocados na petição de recurso.
Dispõe o nº 1 do artigo 616º do Código de Processo Civil que “as partes podem juntar documentos às alegações nos casos a que se refere o artigo 451º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”
Por sua vez, preceitua-se no artigo 451º do mesmo Código que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.”
Com base naquelas disposições legais, é forçoso concluir que as partes só podem juntar com as alegações de recurso os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, bem como aqueles cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Temos aqui duas situações:
A primeira é o caso em que os documentos se destinam a fazer prova dos factos fundamentais da acção ou da defesa, neste caso cabe à parte interessada convencer o Tribunal da superveniência dos mesmos: ou porque os documentos se formaram depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência dos documentos ou porque não pôde obtê-los até àquela altura.3
A segunda refere-se à situação em que a junção dos documentos se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Quanto a este aspecto, o Venerando TUI no seu Acórdão no Processo 2/2003 já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão, nele se decidiu que “o documento torna-se necessário só por virtude do julgamento proferido na 1ª instância (e não desde a formulação do pedido ou a dedução da defesa), quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado”.
Vejamos agora se são admissíveis os documentos apresentados pela recorrente.
Simplesmente, os documentos nº 1 a 3 juntos com as alegações são declarações redigidas e assinadas por determinadas pessoas, cuja junção não pode ser admitida tanto na primeira instância como nesta, considerando que, de um modo geral, todos os depoimentos terão que ser prestados em Tribunal, e não por escrito (artigos 481º, nº 1 e 522º, ambos do Código de Processo Civil), salvo excepções previstas na lei.
E em relação ao documento 4, cuja junção também não pode ser admitida, uma vez que a recorrente não logrou justificar a razão por que não lhe foi possível apresentar o tal documento na primeira instância.
Nestes termos, ordena-se o desentranhamento dos documentos 1 a 4 juntos pela recorrente.
Quanto ao documento 5, por ser uma mera reprodução a escrito do depoimento das testemunhas em audiência, embora sem relevância substancial, mas nada obsta a que o mesmo fique nos autos para servir de mera consulta.
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Da impugnação da matéria de facto
Alega a recorrente que, partindo dos meios de prova existentes nos autos, o Tribunal não deveria dar como provada a seguinte a matéria de facto:
- “A Ré é empregada de escritório mas não contribui em nada para as despesas familiares.” (artigo 10º); e
- “A Ré não se ocupa das lides domésticas, deixando o respectivo trabalho totalmente a cargo do Autor.” (artigo 16º)
Dispõe o artigo 629º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outros casos, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
Quando exista gravação dos depoimentos prestados em audiência, nos termos do nº 2, a Relação vai, na sua veste de tribunal de apelação, reponderar a prova produzida em que assentou a decisão impugnada, valorando-a de acordo com o princípio da livre apreciação, para tal atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente e do recorrido, que têm o ónus de identificar os depoimentos, ou parte deles, que invocam para infirmar ou sustentar a decisão de 1ª instância, (…) na verdade, o alegado erro de julgamento normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo facto, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.4
Alega a recorrente que o Tribunal a quo não valorou adequadamente a prova testemunhal, por se verificar, na sua óptica, contradições nos depoimentos das testemunhas e falta de observação das regras de experiência comum.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, julgamos não assistir razão à recorrente.
De facto, pelo depoimento da primeira testemunha do Autor, filho do casal, ele afirmou que desde os tempos de criança até à presente data, era só o pai ora recorrido que prestava as lides domésticas, preparava as refeições, fazia as limpezas da casa, etc.
Referiu ainda que as despesas familiares, tais como os encargos de água, electricidade e gás, despesas escolares, de alimentação e vestuário, eram suportadas unicamente pelo pai ora recorrido.
Salientou ainda que, não obstante ter mudado de residência após o casamento, mas todas as vezes que voltava à casa, habitualmente duas ou três vezes por mês, continuava a verificar a mesma situação, isto é, só viu o pai a lidar com os trabalhos domésticos.
É fora de dúvida que, sendo a testemunha filho de ambas as partes, com eles vivia desde os tempos de criança, seria normal ter conhecimento amplo dos factos ocorridos na vida familiar.
Já em relação à segunda testemunha, irmã mais velha do recorrido, embora sem conhecimento directo e profundo dos factos, por que apenas “ouviu-dizer”, mas o seu depoimento não deixava de coincidir com o da primeira testemunha.
Com base na prova testemunhal produzida na audiência, dando-se maior relevo às passagens da gravação transcritas pelas partes, não se retira do depoimento daquelas testemunhas de forma clara e peremptória a tese defendida pela recorrente.
Aqui chegados, feita a valoração do depoimento das testemunhas de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, somos a entender que as passagens da gravação indicadas não são suficientes para permitir a alteração das respostas dadas pelo Tribunal Colectivo aos artigos 10° e 16° da petição inicial, pelo que improcede o recurso no tocante à impugnação da matéria de facto.
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Do mérito da sentença recorrida
Em termos da matéria de facto, está provado o seguinte:
- O Autor suporta as despesas familiares e as despesas escolares do filho mais novo;
- A Ré não contribui em nada para as despesas familiares;
- A Ré provoca frequentemente discussões com o Autor;
- Quando o Autor precisava de descansar em casa por causa de dores de costas, a Ré o chamava “porco morto” ou “cobra morta e enguia podre”;
- Depois de uma discussão ocorrida em 2012, a Ré colocou uma faca debaixo da almofada em que dormia o que deixou o Autor com medo;
- A Ré não se ocupa das lidas domésticas, deixando o respectivo trabalho totalmente a cargo do Autor;
- A Ré tranca com frequência a porta da casa de morada de família, impedindo o Autor de aceder ao interior da mesma após o seu regresso do trabalho, obrigando o Autor a pernoitar por vezes fora da casa;
- Depois de uma discussão entre as partes em Abril de 2012, a Ré bateu no Autor, com bofetadas e pontapés.
Da análise da factualidade acima elencada resulta que a recorrente violou culposamente os deveres de respeito, cooperação e assistência, e não sendo difícil admitir que as aludidas condutas violadoras dos deveres conjugais prolongaram-se durante toda a vida conjugal e de forma continuada.
Tendo em conta a gravidade e reiteração no cometimento dessas condutas, bem como o tempo por que essas duraram, podemos concluir sem margem para dúvidas que o comportamento da recorrente compromete necessariamente a vida comum do casal de forma irremediável.
E também para apontar que a recorrente é a única culpada do divórcio.
Por tudo o que se disse, encontrando-se verificados os condicionalismos previstos no artigo 1635º do Código Civil, não merece provimento o recurso.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pela Ré, confirmando a sentença recorrida.
Ordena-se o desentranhamento dos documentos 1 a 4 juntos com a petição de recurso, fixando-se em 1 U.C. pelo desentranhamento, a cargo da recorrente.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
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Macau, 13 de Novembro de 2014
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Tong Hio Fong
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, página 294
2 Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, 3ª reimpressão, página 44
3 Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, Coimbra Editora, 3ª reimpressão, página 15
4 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º, pág. 96 e 97
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Processo 156/2014 Página 24