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Processo nº 583/2014
(Autos de recurso laboral)

Data: 30/Outubro/2014

Assunto: A
Contrato a favor de terceiro
Compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal

SUMÁRIO
      - Tendo a Ré ora recorrente prometido perante uma Sociedade fornecedora de mão-de-obra não residente proporcionar condições remuneratórias mínimas e outras regalias aos trabalhadores a contratar, e sendo o Autor ora recorrido um dos trabalhadores contratados nessas circunstâncias, não deixaria de ser ele o terceiro beneficiário na relação estabelecida entre a recorrente e a Sociedade, e por conseguinte, passando a ter direito a uma prestação, independentemente de aceitação, nos termos estipulados no artigo 438º, nº 1 do Código Civil.
      - Nos termos do artigo 17º, nº 6 do Decreto-Lei nº 24/89/M, o trabalho prestado em dias de descanso semanal é pago pelo dobro da retribuição normal, para além do salário em singelo.
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong
Processo nº 583/2014
(Autos de recurso laboral)

Data: 30/Outubro/2014

Recorrentes:
- B (Autor)

- A (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Ltd (Ré)


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM a presente acção declarativa de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da Ré no pagamento do montante de MOP$91.741,00, acrescido de juros legais até integral e efectivo pagamento.
Realizado o julgamento, foi a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$36.765,29, acrescida de juros de mora calculados da data da sentença até efectivo e integral pagamento.
Inconformado com a sentença, dela interpôs o Autor recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. Ao concluir que “sem o facto de que resulta de que a Ré só pagou parcialmente ao A. os salários mensais durante todo o período (…) improcede, por não provada, a acção nesta parte”, o Tribunal a quo não se terá pronunciado sobre questão que deveria ter apreciado, pelo que a decisão é nula, nos termos da al. d) do n.º 1 do artigo 571º do CPC.
2. Com efeito, dos Requerimentos apresentados pelo Autor em 19/03/2013 e em 14/05/2013, e dos documentos apresentados pela Ré em 08/03/2013, resulta quais os valores salariais de base pagos pela Recorrida ao Recorrente durante todo o período da relação de trabalho.
3. Por outro lado, por Requerimento de 03/10/2013, o Recorrente solicitou, nos termos e para os efeitos do artigo 41º do CPT, o aditamento de três novos factos à base instrutória. Porém, tal Requerimento não mereceu qualquer resposta por parte do Tribunal a quo.
4. Não obstante, o Tribunal a quo dispunha de todos os elementos necessários para concluir pelos montantes salariais pagos pela Recorrida ao Recorrente durante todo o período da relação de trabalho, razão pela qual não poderia ter concluído pela “ausência de facto” a este concreto respeito.
5. Assim, constando dos presentes autos todos os elementos necessários à boa decisão da causa e relativos aos salários auferidos pelo Autor durante todo o período da relação de trabalho (vd. os Documentos juntos pela Ré em 08/03/2013) deve a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de MOP$39.496,00, a título de diferenças salariais.
6. Ao condenar a Recorrida a pagar ao Recorrente apenas o equivalente a um dia de trabalho (em singelo) pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, o Tribunal a quo procedeu a uma não correcta aplicação do disposto no al. a) do n.º 6 do artigo 17º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, pelo que a decisão deve ser julgada nula e substituída por outra que condene a Ré em conformidade com o disposto na referida Lei Laboral.
7. Com efeito, resulta do referido preceito que o trabalho prestado em dia de descanso semanal deverá ser remunerado pelo dobro do salário normal, entendido enquanto duas vezes a retribuição normal, por cada dia de descanso semanal prestado.
8. Do mesmo modo, ao condenar a Recorrida a pagar ao Recorrente apenas e tão-só um dia de salário em singelo, o Tribunal a quo desviou-se da interpretação que tem vindo a ser seguida pelo Tribunal de Segunda Instância sobre a mesma questão de direito, no sentido de entender que a compensação do trabalho prestado em dia de descanso semanal deverá ser feita em respeito à seguinte fórmula: (salário diário X n.º de dias de descanso não gozados X 2).
9. De onde, resultando que o Recorrente prestou trabalho durante os respectivos dias de descanso semanal entre 2006 e 2007, deve a Recorrida ser condenada a pagar ao Recorrente a quantia de MOP$18.000,58, e não apenas MOP$9.000,29, acrescida de juros até efectivo e integral pagamento.
Conclui, pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, para ser substituída por outra que atenda aos pedidos formulados pelo recorrente.
*
Também a Ré vem recorrer da sentença, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
a) O julgamento que incidiu sobre o ponto da matéria de facto proveniente do quesito 12º da base instrutória escorou-se nos depoimentos das testemunhas C e D.
b) No respeitante à matéria do aludido ponto da matéria de facto, quando perguntado pelo Ilustre Mandatário do A. sobre se este alguma vez teria faltado sem autorização, a testemunha C afirmou (nas declarações gravadas sob o ficheiro “Recorded on 07/Mar/2014 at 11.32.43 (1%2F!Z$G00711270).WAV”) que “Acredito que isto não é possível, aliás é a regra da companhia (…) agora, quanto aos outros, quando é que requereram, se pediram, não sei.”
c) A testemunha D, a instâncias do Ilustre Mandatário do A. e quando questionado sobre se o A. teria faltado sem pedir autorização, afirmou (nas declarações gravadas sob o ficheiro “Recorded on 07/Mar/2014 at 12.11.19 (1%2G8%KG00711270).WAV”) que “Não pode, porque tem de ter 3 dias de antecedência para o nosso pedido”.
d) Não se nos afigura que as testemunhas tenham demonstrado qualquer efectivo conhecimento acerca do facto sobre o qual se procurava indagar.
e) Ao que não obsta as alusões genéricas à possibilidade de os trabalhadores da R. serem despedidos caso faltassem sem autorização, na medida em que não quedaram demonstradas as circunstâncias em que um tal despedimento poderia ocorrer.
f) Face a todo o exposto, pela reapreciação da prova constante dos autos, nomeadamente do depoimento prestada pelas testemunhas C e D, deverá ser alterada a resposta ao facto acima identificado, julgando-se aquele não provado, com as devidas consequências quanto aos pedidos formulados pelo A.
g) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços.
h) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente.
i) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador.
j) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho.
k) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho.
l) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º.
m) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil.
n) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta.
o) As partes nos contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”.
p) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.
q) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros.
r) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro.
s) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações.
t) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro.
u) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro.
v) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços.
w) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro.
x) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário.
y) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º/2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest).
z) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal.
aa) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse.
bb) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro.
cc) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos.
dd) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º/2 e 437º do Código Civil.
ee) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação.
ff) Por outro lado, está provado que o A. foi contratado ao abrigo do contrato de prestação de serviços n.º 19/SS/2006.
gg) Nesse contrato não existe qualquer previsão respeitante a subsídio de alimentação.
hh) Pelo que terá que considerar-se que o A. não tem direito a tal subsídio.
ii) Acresce que, como é entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina, o pagamento de subsídio de alimentação depende da prestação efectiva de trabalho.
jj) Porém, na decisão recorrida parece ter sido propugnado o entendimento de que as faltas justificadas ou autorizadas que o A. tenha dado ao trabalho em nada relevam para aferição do subsídio de alimentação que lhe será devido.
kk) Ao decidir nesse sentido, o Tribunal recorrido fez errada interpretação da estipulação dos Contratos sobre o subsídio de alimentação, violando o art. 228º/1 do Código Civil.
ll) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade.
mm) Assim sucederá também pela procedência da reapreciação requerida quanto ao ponto da matéria de facto objecto do presente recurso, por falta de suporte factual susceptível de integrar o direito do A. a perceber tal subsídio.
nn) Acresce que, nos termos dos Contratos, o subsídio de efectividade é um mecanismo destinado a premiar a efectiva prestação de trabalho.
oo) Nesse sentido, é para o empregador irrelevante que o empregado, faltando, o faça por motivo atendível e justificado, ou até sob autorização prévia.
pp) Assim, ao decidir no sentido de que as faltas justificadas ou autorizadas não devem ser tidas em conta para a aferição do subsídio de efectividade, a decisão a quo violou uma vez mais o disposto no art. 228º/1 do Código Civil.
qq) Por outro lado, também neste particular a decisão recorrida não levou em devida conta o teor do contrato de prestação de serviços n.º 19/SS/2006, o qual não prevê qualquer subsídio de efectividade.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A R. é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores, entre outros. (alínea A) dos factos assentes)
A R. tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de “guarda de segurança”, “supervisor de guarda de segurança”, “guarda sénior”, entre outros. (alínea B) dos factos assentes)
A R. celebrou com a E Lda., entre outros, os “contratos de prestação de serviços”: n.º 02/94, de 03/01/1994; n.º 29/94, de 11/05/1994; n.º 45/94 de 27/12/1994. (alínea C) dos factos assentes)
Os contratos supra identificados dispõem de forma idêntica relativamente ao regime de recrutamento e cedência de trabalhadores; de despesas relativas à admissão dos trabalhadores; à remuneração dos trabalhadores; ao horário de trabalho e alojamento; aos deveres de assistência; aos deveres dos trabalhadores; às causas de cessação do contrato e repatriamento; às outras obrigações da R.; à provisoriedade; ao repatriamento; ao prazo do contrato e às disposições finais, dos trabalhadores recrutados pela E Lda., e posteriormente cedidos à R. (alínea D) dos factos assentes)
Do teor dos contratos aludidos em C) resulta que o A., e os demais trabalhadores não residentes ao serviço da Ré, teria o direito a auferir, no mínimo, MOP$90,00 diárias (cfr. doc. 2 junto com p.i.). (alínea E) dos factos assentes)
Acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação. (alínea F) dos factos assentes)
Que teria direito a auferir um subsídio mensal de efectividade “igual ao salário de quatro dias”, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço. (alínea G) dos factos assentes)
Sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, e o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (alínea H) dos factos assentes)
Ao longo da relação laboral, a R. utilizou dois contratos de conteúdos diferentes: o contrato celebrado com a E, e cujo conteúdo foi sucessivamente objecto de fiscalização e aprovação por parte da entidade competente, a Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE); e os concretos contratos individuais que ao longo dos anos foram assinados com o A. (alínea I) dos factos assentes)
O A. esteve ao serviço da R., para sob as ordens, direcção, instruções e fiscalização exercer funções de guarda de segurança, mediante o pagamento de salário. (alínea J) dos factos assentes)
Era a Ré quem fixava o local e horário de trabalho do Autor, de acordo com as suas exclusivas necessidades. (alínea K) dos factos assentes)
A R. celebrou com a E Lda., os denominados “contratos de prestação de serviços”; n.º 1/1 de 3 de Janeiro de 2001 e n.º 14/1, de 26 de Março de 2001, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (cfr. Docs. 1 e 2 que se junta com contestação). (alíneas L) dos factos assentes)
O A. exerceu funções para a R. entre 01/12/2006 e 30/09/2009. (Quesito 1º da base instrutória, aceite pelas partes)
O A. foi contratado pela R. ao abrigo do Despacho n.º 00749/IMO/DSAL/2006, mediante Contrato de Prestação de Serviços n.º 19/SS/2006, celebrado entre a R. e a F LDA, nos termos do qual o salário mensal do A. seria de MOP$4.000,00. (Quesito 2ºA da base instrutória, aceite pelas partes)
A partir de Março de 2007, a manutenção da relação de trabalho entre a R. e o A. foi disciplinada nos termos do Despacho n.º 09501/IMO/GRH/2007, nos termos do qual o salário mensal devido ao A. seria de MOP$5.070,00. (Quesito 2ºB da base instrutória, aceite pelas partes)
A partir de Março de 2008, a manutenção da relação de trabalho entre a R. e o A. foi disciplinada nos termos do Despacho n.º 04735/IMO/GRH/2008, nos termos do qual o salário mensal devido ao A. seria de MOP$4.868,00. (Quesito 2ºC da base instrutória, aceite pelas partes)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca a R. pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (Resposta ao quesito 3º da base instrutória)
Durante todo o período da relação laboral entre a R. e o A., nunca o A. – sem conhecimento e autorização prévia pela R. – deu qualquer falta ao trabalho. (Resposta ao quesito 4º da base instrutória)
Durante todo o período da relação quantia a título de “subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias”. (Resposta ao quesito 5º da base instrutória)
Até Janeiro de 2008 o A. não gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (Resposta ao quesito 6º da base instrutória)
A prestação de trabalho pelo A. nos dias de descanso semanal foi remunerada com o valor de um salário, em singelo. (Quesito 7º da base instrutória, aceite pelas partes)
Sem que lhe tenha sido concedido um dia de descanso compensatório. (Resposta ao quesito 8º da base instrutória)
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Cumpre decidir.
Comecemos pelo
Recurso final da Ré
Da impugnação da matéria de facto constante da resposta ao quesito 12º da base instrutória
Alega a Ré que, partindo da prova produzida em audiência, mormente a testemunhal, nunca poderia o Tribunal a quo dar como provado o facto constante do quesito 12º da base instrutória.
Não obstante ter alegado o quesito 12º, mas atento o teor das suas alegações, entendemos que a Ré queria referir o quesito 4º, tratando-se manifestamente de um lapso de escrita.
Consagra-se na resposta ao quesito 4º o seguinte:
“Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca o Autor – sem conhecimento e autorização prévia pela Ré – deu qualquer falta ao trabalho.”
Entende a Ré que, de acordo com o depoimento das testemunhas C e D, verificou-se que eles não tinham conhecimento concreto da matéria em causa, pelo que não se deveria dar como provado o tal quesito.
Salvo o devido respeito por melhor opinião, julgamos não assistir razão àquela recorrente.
Em nossa opinião, reapreciada a prova em discussão, as testemunhas mostraram-se ter conhecimento do facto questionado, nomeadamente, tendo elas durante vários anos exercido funções de guarda de segurança para a recorrente, nas mesmas condições do Autor, e segundo souberam não teve este último faltado ao trabalho sem para tal estar autorizado pela recorrente, para além de que descreveram de forma mais ou menos pormenorizada o procedimento geral implementado na recorrente em matéria de faltas, o qual é igualmente aplicável ao Autor, daí que não se vê razão para alterar a resposta dada ao quesito pelo Tribunal a quo.
*
Da aplicação do direito
A propósito da questão questionada pela recorrente A, este TSI já teve oportunidade de se pronunciar, de forma unânime, em vários processos congéneres, sobre o tipo de relação estabelecida entre a recorrente e a Administração e a natureza jurídica do negócio celebrado entre a recorrente e a E, Limitada, citando-se, a título exemplificativo, o conteúdo de um desses arestos (TSI, Processo 778/2010):
“4. Importa atentar no regime da contratação dos não residentes.
Não sem que se observe que, em princípio, só em relação aos residentes há liberdade negocial. A contratação dos não residentes está condicionada a uma autorização administrativa e se é assim actualmente, também o foi no passado.
Esta nota é muito importante para a abordagem do caso vertente, na medida em que os termos e condicionamentos de uma contratação como a presente não dependem ou não podem depender por e simplesmente da vontade dos contratantes, empregador e trabalhador.
Ora, na lógica do defendido pela recorrida e de certa forma com acolhimento na douta sentença recorrida este condicionalismo é marginalizado.
A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
Por sua vez, o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, vigente até 01 de Janeiro de 2009 (altura em que entrou em vigor a Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho) e aprovado para definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre os empregadores directos e os trabalhadores residentes, tal como resulta do seu artigo 1.º, n.º 2, esclareceu ele próprio que não seria aplicável a alguns conjuntos de relações de trabalho, entre os quais as relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, que seriam reguladas por normas especiais que se encontrem em vigor, nos termos do artigo 3.°, n.º 3, alínea d).
Essas normas especiais foram (não se conhecem outras), até à entrada em vigor da Lei n.º 21/2009 de 27.10, no dia 25 de Abril de 2010, as previstas no Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, considerando que o Dec.-Lei n.º 101º/84/M, de 25 de Agosto, onde no capítulo VII se previa a contratação de trabalhadores estrangeiros, apátridas e no capítulo VIII a de cidadãos chineses provenientes da RPC, aí se regulando os pressupostos de contratação e, em relação ao primeiro grupo ainda um conjunto de princípios que deviam enformar essa contratação, em particular a não discriminação baseada na nacionalidade (artigo 51º), foi revogado pelo já referido Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril.

Muito sumariamente que, aliás como a própria recorrida reconhece, o Despacho 12/GM/88 cuida tão somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
Não se trata de um regime jurídico de determinadas relações laborais, antes de um prontuário procedimental a que devem obedecer as contratações de um determinado grupo de trabalhadores, traduzindo-se muitas das normas em condicionamentos e instruções dirigidas aos respectivos Serviços, não tendo uma natureza normativa instituidora de direitos e obrigações para os sujeitos da relação laboral.
As normas específicas, constantes desse Despacho normativo, vigente enquanto esteve em execução o contrato de trabalho junto aos autos, regulam o procedimento para admissão em Macau de mão-de-obra não residente, impondo, nomeadamente, à Ré, enquanto empresa empregadora, elencam as condições mínimas de contratação que estava disposta a conceder ao trabalhador não residente, para obter a necessária aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, mas esse Despacho nada refere quanto aos princípios, às condições, aos direitos, deveres e garantias a que fica sujeita essa relação de trabalho.
Esta questão não se coloca na actualidade uma vez que o artigo 20.° da Lei n.º 21/2009 de 27/Out. (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece a aplicação subsidiária do regime geral das relações de trabalho aos contratos com trabalhadores não residentes (aplicação subsidiária essa que já é consentânea com a redacção do artigo 3.°, n.º 3, 1) da Lei n.º 7/2008, Lei das Relações de Trabalho), mas no âmbito do Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, não existia qualquer remissão para o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, sendo certo que este último diploma mesmo referia, como supra se consignou, que os contratos de trabalho celebrados entre empregadores e trabalhadores não residentes não seriam por ele abrangidos por estarem reguladas pelas normas especiais que se encontrem em vigor, como já acima dito.

6. Importa, então, apurar sobre o regime jurídico aplicável a este contrato de trabalho, sabido que o mesmo se iniciou em 8 de Outubro de 1996 e cessou em 31 de Maio de 2008.
Não é difícil perceber que ele deve ser iluminado por um conjunto de fontes reguladoras do regime jurídico aplicável ao caso - contratação administrativamente condicionada -, a saber:
- o Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro;
- o contrato celebrado entre a Ré e a E, Lda.
- o contrato celebrado entre o A. e a Ré;
- o RJRL ( DL24/89/M, de 3/Abril), na medida em que remissivamente aplicável.
Tanto mais que está provado que a Ré foi autorizada a contratar trabalhadores não residentes, entre os quais o ora Autor, para a prestação de funções relacionadas com a actividade de segurança privada.
O que foi feito ao abrigo do artigo de um contrato de prestação de mão-de-obra com a E, Lda, conforme previsto nos artigos 3º, 7º, 8º, 9º do Despacho n.º 12/GM/88.
Isto é, o contrato com o A. só foi celebrado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação(…)
É assim que as condições previstas no aludido contrato ganham força, sendo, como é óbvio, vista a natureza da relação laboral e os contornos administrativos a que é sujeita, que as condições de trabalho menos favoráveis para o trabalhador, resultantes do contrato de trabalho entre este e o empregador, hão-de ceder necessariamente perante as resultantes do contrato celebrado entre a empregadora e a empresa fornecedora mão-de-obra, condição decorrente da autorização de relação laboral em causa.
É certo que o contrato de trabalho, como negócio jurídico obrigacional, se baseia na autonomia privada, a qual engloba para além da liberdade de celebração, a liberdade de estipulação. Como ensina Pedro Romano Martinez, “como em qualquer negócio jurídico, as partes têm, liberdade de conformar as regras contratuais aos interesses que pretendem prosseguir. Todavia, no domínio laboral, a liberdade de estipulação contratual encontra-se limitada; a especial protecção do trabalhador, que o Direito do Trabalho pretende conferir, leva a que, frequentemente, se condicione a liberdade das partes na conformação das regras contratuais, até porque, não raras vezes, a situação factual de desigualdade entre as partes potenciaria o estabelecimento de regras desfavoráveis para o trabalhador”.
Razões estas, se não apodípticas, observáveis na nota preambular do referido Despacho n.º 12/GM/88, em que para além da contemplação dos interesses protagonizados pela defesa da mão-de-obra local e dos protagonizados pelos interesses empresariais se sublinhou o seguinte:
“Da parte do Governador há ainda a considerar um terceiro aspecto da questão, que é o de não consentir no Território situações que contendam com o padrão mínimo, ou que como tal seja aceite pela consciência social, relativamente às condições de alojamento da população trabalhadora. Entendeu-se assim que a solução do problema passava por uma clara destrinça entre as situações de emprego dos residentes, estas reguladas pela lei aplicável entre empregador e empregado como sujeitos autónomos de direitos e obrigações, e as situações de emprego de não-residentes, que, ao contrário das primeiras, traduzirão um vínculo de contrato de prestação de serviços com terceiras entidades. Estas têm que se responsabilizar pelo alojamento dos trabalhadores ocasionais e pelo pagamento dos salários que lhes sejam devidos, bem como pelo seu repatriamento quando os considerem dispensáveis. Fica claro, de qualquer forma, que esses trabalhadores ocasionais não têm qualquer direito de permanência em Macau. Nem de outra forma seria possível avançar, como é firme propósito do Governador, em defesa dos interesses dos trabalhadores residentes no Território. Para tal, estes hão-de constituir uma massa determinada, com peso específico próprio.
Nesta primeira fase, tal defesa consiste na regulação das condições de oferta do mercado, pedindo que os trabalhadores sob custódia de uma terceira entidade contratados por via de contrato de prestação de serviços possam constituir-se numa pressão que resulte em prejuízo dos trabalhadores residentes, quer no que diz respeito à estabilidade do emprego, quer no que diz respeito ao nível dos salários. E trata-se, é bom que se diga, de uma solução que se aceita a título experimental, determinada pela extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento. Por isso, aliás, se introduz por via do simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha.”
Torna-se assim mais claro o enquadramento que deve presidir ao estabelecimento do regime jurídico da relação em apreço e que passa pela aplicação das normas mais favoráveis que de qualquer um dos contratos em referência resulte, até em nome do princípio do favor laboratoris, entendido este como um princípio geral do Direito do Trabalho, entendido este com assento na concepção das opções legislativas pro operário e não como derrogando as regras imperativas da interpretação das normas decorrentes do Direito Civil.
7. Face à defesa, por banda da empregadora, aqui recorrida, das posições desenvolvidas na douta elaboração presente na sentença recorrida a propósito da incursão pelo Direito das Obrigações, para excluir em termos de caracterização do contrato entre a Ré e a E, Lda, a natureza ínsita a qualquer dos contratos-tipo analisados - contrato de trabalho, contrato para pessoa a nomear, contrato a favor de terceiro, contrato de cedência de trabalhadores, contrato de promessa - não nos eximiremos a algumas poucas palavras sobre o assunto.
Antes de mais, reafirmamos que a força da vinculação a tal regime resulta das normas condicionantes da autorização de trabalho, administrativamente contempladas. Isto é, só o trabalho prestado naquele condicionalismo seria autorizado. Donde, tais cláusulas, previstas nesse contrato serem condição de concessão de autorização de trabalho para aquela situação em concreto.
Não se pode proceder a uma análise desgarrada desse enquadramento e desse condicionalismo, donde, repete-se, o regime jurídico aplicável resultar desse acervo clausulado.
Mas, mesmo numa perspectiva de direito obrigacional puro, não somos a acompanhar, sem escolhos a leitura, aliás com mérito, que o Mmo Juiz faz dos diferentes institutos, muito particularmente no que se refere ao contrato a favor de terceiro.
Mas antes de prosseguirmos importa referir que não poucas vezes a realidade da vida é mais rica do que a realidade conceptualizada e, assim, as soluções do legislador não são bastantes para abarcar toda a factualidade.
Isto, para enfatizar que, por isso mesmo, os institutos previstos pelo legislador não são o bastante para regular toda a realidade negocial e daí que se devam conjugar, até em nome da liberdade contratual, diferentes contratos, surgindo-nos as situações de negócios mistos ou inominados.
É a partir desta constatação que nos damos a perguntar a nós próprios o que impede, em termos meramente de autonomia privada e de liberdade contratual, que alguém assuma perante outrem a obrigação de dar trabalho a um terceiro, mediante certas condições e estipulações. Sinceramente que não nos ocorre nenhum obstáculo.
Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.
Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
O objecto imediato do contrato a favor de terceiro pode ter, na verdade, diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos, bastando que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou de uma vantagem.
A razão excludente da configuração de um contrato a favor de terceiros, na tese do Mmo Juiz a quo, parece-nos algo limitativa.
Porque a obrigação assumida consiste numa prestação e não na celebração de um contrato, tal enquadramento não caberia ao caso.
Não estamos certos desta aparente linearidade.
A Ré compromete-se com uma dada Sociedade a dar trabalho ao A. e assume o compromisso de o fazer em determinadas condições.
Sinceramente que não vemos onde não exista aqui a assumpção de uma prestação, qual seja a de dar trabalho a A, a de contratar com ele e a de lhe pagar X.
Prestação é a conduta a que o devedor está obrigado ou seja o comportamento devido, na expressão lapidar de Pessoa Jorge.
Ora o facto de a Ré ter assumido a obrigação de dar trabalho, tal não é incompatível com uma prestação de contratar, relevando aí a modalidade de uma prestação de facere. Uma prestação de facto, na verdade, pressupõe o desenvolvimento, em prol do credor, de determinada actividade e pode até traduzir-se numa prestação de um facto jurídico quando as actividades desenvolvidas são jurídicas.
As coisas, postas assim, tornam-se agora mais claras e o instituto em referência mais se encaixa no nosso caso.
Nem o facto de a Ré se ter comprometido a celebrar um contrato exclui o enquadramento que se persegue.
O benefício para o terceiro está, como bem se alcança, não só na chance de obter trabalho (para mais enquanto não residente) e das utilidades e vantagens materiais que daí decorrem para o trabalhador, parte terceira nesse contrato, bem como das condições que a Ré se compromete a observar em benefício do trabalhador.
Aliás, esta possibilidade de acopulação entre o contrato primitivo e o contrato de trabalho posteriormente celebrado entre A. e Ré resulta como uma decorrência das obrigações primitivamente assumidas. É a primeira relação contratual, a relação de cobertura, que origina e modela a segunda relação, a relação entre o promitente e o terceiro.
Ora, nada obsta que desta relação entre o promitente e o terceiro, para além do assumido no primitivo contrato entre o promitente e o promissário, nasçam outras obrigações como decorrentes de um outro contrato que seja celebrado entre o promitente (Ré, empregadora) e o terceiro (A., trabalhador).
Esta aproximação encontramo-la também em Pires de Lima e A. Varela, enquanto anotam que “o artigo 443º(leia-se 437º) trata não só dos casos em que todo o contrato estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual. É o que sucede, por exemplo, na doação ou no legado com encargo a favor de terceiro que pode ser um direito de preferência sobre a coisa doada ou legada, ou ainda na instituição de uma fundação com encargo a favor de pessoa ou pessoas determinadas.”
Quanto ao argumento avançado na sentença, aliás douta, de que do contrato a favor de terceiros não podem nascer obrigações para o terceiro beneficiário, como está bem de ver, elas não resultam desse contrato, mas sim do contrato de trabalho entre o patrão e o empregado.
Nem se diga que esta posição contraria o sufragado por este Tribunal quando chamado a decidir sobre a excepção relativa à competência do Tribunal, nos termos da qual a ré propugnava pelo cometimento ao tribunal arbitral.
Como nessas decisões já se afirmou, configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação".
Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
Para além de que será de entender que essa cláusula compromissória de competência abrange apenas a relação de cobertura ou de provisão entre o promitente e o promissário e não já relação provisionada entre o promitente e o terceiro, ou a relação de valuta entre o promissário e o terceiro”
Na esteira do tal entendimento jurisprudencial, continuamos a julgar ser essa a boa solução para o caso, não se descortinando razão para alterar a posição já tomada nesta Instância.
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Refere ainda a recorrente que a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário, neste caso a Sociedade, tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, mas o Autor em momento algum o alegou ou provou, pelo que, no seu entender, não é possível qualificar o contrato em causa como contrato a favor de terceiro.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar a tese da recorrente.
A prestação corresponde a um interesse digno de protecção legal quando, por um lado, não se visem satisfazer um mero capricho do credor e, por outro, se excluem as prestações que, podendo ser dignas embora da consideração de outros complexos normativos, como por exemplo a religião, a moral, a cortesia, os usos sociais, todavia não merecem a tutela específica do direito.1
Ora bem, no presente caso, a promessa em causa traduz-se numa obrigação de carácter patrimonial ou económico, daí que não se vislumbra falta de interesse digno de protecção legal neste tipo de relação jurídica.
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Dos pedidos
Dos subsídios de alimentação e de efectividade
No concernente ao pedido dos subsídios de alimentação e de efectividade, entende a recorrente que não existe nos respectivos contratos de prestação de serviços qualquer previsão sobre a atribuição dos mesmos.
Ademais, em relação ao subsídio de alimentação, defende que este dependeria da prova do número de dias de trabalho efectivamente prestados pelo Autor, e não tendo sido alegados nem provados os tais factos, não poderia o Tribunal a quo ter condenado a recorrente nos termos em que o fez.
Quanto ao subsídio de efectividade, entende a recorrente que tal só é atribuído ao trabalhador caso este não tenha dado qualquer falta no mês anterior, e se houver qualquer tipo de interrupções deixará de ter direito ao seu recebimento, mesmo que o faça por motivo atendível e justificado, ou até sob autorização prévia.
No vertente caso, embora se tenha provado que a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídios de alimentação e de efectividade, mas não é menos verdade que tanto nos contratos de prestação de serviços com base nos quais a Ré outorgou os respectivos contratos individuais de trabalho com o Autor, como nos próprios contratos de trabalho celebrados entre os mesmos, não se prevê qualquer matéria sobre a atribuição dos subsídios de alimentação e de efectividade, razão pela qual se julga procedente o recurso quanto a esta parte.
Em bom rigor, não podemos deixar de salientar que, em relação ao Autor, os factos constantes das alíneas E), F) e G) foram indevidamente seleccionados como matéria assente, considerando que tal não foi objecto de confissão da Ré na contestação nem resultou de modo inequívoco da prova documental.
Nas palavras de Viriato Manuel Pinheiro de Lima, “a selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, pelo que se deve entender que, quanto às mesmas não se coloca, nem a questão do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, nem o caso julgado formal.(…) Assim, o juiz poderá, eliminar um facto da selecção dos factos assentes que, indevidamente, tivesse sido considerado assente.”2
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Sobre o recurso final do Autor
Das diferenças salariais
No tocante ao pedido das diferenças salariais, foi julgado o mesmo improcedente com fundamento na falta de matéria de facto para o efeito.
Na perspectiva do Tribunal a quo, não obstante que se provou os respectivos montantes salariais auferidos pelo Autor durante o período em que prestou trabalho à Ré, mas não foram apurados quais foram os montantes recebidos pelo Autor, para se poder calcular as respectivas diferenças salariais.
Defende o Autor que quer dos documentos por si apresentados quer dos apresentados pela Ré, resulta claramente quais os valores salariais de base pagos pela Ré ao Autor durante todo o período da relação laboral.
Alega ainda o Autor que por requerimento de 3.10.2013, solicitou o aditamento de três novos factos à base instrutória, mas tal requerimento não mereceu qualquer resposta por parte do Tribunal a quo.
Começamos por este último ponto, bastando dizer que não é verdade a tal afirmação, na medida em que o pedido formulado pelo Autor já foi apreciado na audiência de julgamento, segundo o que consta da acta de fls. 537 e 538.
Ademais, com base no princípio dispositivo, compete às partes alegar os factos que integram a causa de pedir, e o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes – artigo 5º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
Se a matéria de facto alegada for insuficiente, a parte processual ficará sujeita às respectivas consequências legais.
Por outro lado, a lei exige que os factos necessários à procedência da acção sejam devida e oportunamente alegados pelas partes interessadas, e não se basta com a mera junção de documentos, os quais servem apenas para a prova dos factos alegados.
Na falta de indicação de factos suficientes à procedência da acção no tocante ao pedido de diferenças salariais, inexiste a nulidade apontada, pelo que andou bem o Tribunal a quo ao julgar improcedente a acção quanto a esta parte.
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Da compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal
Entende o Autor ora recorrente que, nos termos do artigo 17º do Decreto-Lei nº 24/89/M, o trabalho prestado em dias de descanso semanal deveria ser remunerado pelo dobro do salário normal.
Em nossa opinião, julgamos assistir razão ao Autor.
De acordo com a interpretação que tem vindo a ser adoptada de forma quase unânime neste TSI, tem-se entendido que o trabalho prestado em dias de descanso semanal é pago pelo dobro da retribuição normal aos trabalhadores que auferem salário normal, para além do singelo já recebido.
No mesmo sentido, citam-se, a título exemplificativo, os Acórdãos deste TSI, proferidos no âmbito dos Processos 778/2010, 376/2012 e mais recentemente, Processo 61/2014.
Nesta conformidade, por o Autor ter direito a receber, por cada dia de descanso semanal não gozado, o dobro da retribuição normal, para além do salário em singelo, é revogada a decisão quanto a esta parte, e em sua substituição, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$18.000,58, a título de compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pelo recorrente B (Autor), sendo revogada a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$9.000,29, a título de compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, e em sua substituição, ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$18.000,58.
Mais acordam em conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pela recorrente A (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Ltd (Ré), sendo revogada a sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor as quantias de MOP$15.525,00 e MOP$12.240,00, a título de subsídio de alimentação e subsídio de efectividade.
Confirmando-se a sentença em tudo o mais.
Custas pelas partes, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.
Registe e notifique.
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Macau, 30 de Outubro de 2014
                   

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Tong Hio Fong
(Relator)
(Vencido quanto à fórmula adoptada na compensação do trabalho prestado em dias de descanso semanal, conforme as declarações de voto vencido dadas em processos congéneres, nomeadamente nos Processos 90/2014, 118/2014, 136/2014, 169/2014)


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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)
                   

1 Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 7ª edição, página 109 e 110
2 Viriato Manuela Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, páginas 447 a 449
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Processo 583/2014 Página 34