Processo nº 730/2013
(Autos de recurso civil)
Data: 23/Outubro/2014
Assunto: Alvará de táxi
Usucapião
SUMÁRIO
- O alvará de táxi, emitido ao abrigo do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, aprovado pela Portaria nº 366/99/M, de 18/Out, e com vista a transferir para o particular o direito de exercer uma actividade pública referente ao transporte de passageiros em táxis, não tem natureza real.
- Tal alvará não deixa de ser um mero documento que titula os direitos conferidos ao respectivo particular, devidamente concedidos dentro do procedimento administrativo.
- Por não estar em causa um direito real, não há lugar a usucapião.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 730/2013
(Autos de recurso civil)
Data: 23/Outubro/2014
Recorrentes:
- Associação dos ...... de Macau, BBB, CCC, DDD, EEE e FFF
Recorridos:
- GGG e herdeiros incertos de HHH que também usava HHh
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Associação dos ...... de Macau, BBB, CCC, DDD, EEE e FFF, Autores no processo de acção ordinária a correr termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformados parcialmente com a sentença final, dela interpuseram o presente recurso ordinário, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a douta Sentença, proferida em 2 de Maio de 2013, a fls. 309 a 326 verso, na parte que respeita à decisão proferida no ponto 2, alínea b) e no ponto 3 da referida Sentença.
2. É pois desta parte decisória da referida Sentença, com a qual os Autores, ora Recorrentes, não se conformam, que vem interposto o presente recurso, isto por, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, aí se ter feito uma incorrecta subsunção da matéria de facto assente e provada nos autos ao direito aplicável, nomeadamente, por se ter feito uma incorrecta aplicação do disposto nos artigos 1230º e 1232º, ambos do CC, bem como uma incorrecta interpretação do disposto no n.º 4 do artigo 2º e do artigo 17º, ambos do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis, o que acarreta a ilegalidade da dita decisão, devendo, em consequência, a mesma ser revogada e substituída por outra nos termos que em seguida melhor se explicará.
3. Da discussão da causa resultaram provados os factos que ora se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
4. Os Autores intentaram a presente acção contra os Réus pedindo, além do mais, que a “Associação dos ...... de Macau”, ora 1ª Recorrente seja declarada, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como a exclusiva proprietária, por força da aquisição originária advinda pela sua posse de forma pública, continuada, de boa fé, na convicção do exercício do direito sem oposição de quem quer que seja, ao abrigo do disposto nos artigos 1251º, 1260º, 1261º, 1262º, 1263º, alíneas a) e b), 1268º e 1287º do Código Civil de 1996, actualmente, 1175º, 1184º, 1185º, 1186º, 1187º, alíneas a) e b), 1193º e 1212º e seguintes do Código Civil, entre outros, dos seguintes bens: alvará de táxi n.º 24/I/2004 e o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a chapa de matrícula M-XX-XX.
5. Mais pediram que, seja declarado para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, que o falecido III, aliás IIi não era o dono e legítimo proprietário dos referidos bens: o alvará de táxi n.º 24/I/2004 e o veículo automóvel ligeiro de passeiros, com a chapa de matrícula M-XX-XX.
6. Como bem se refere na decisão ora recorrida “Resulta dos factos dados por assentes que, efectivamente, por deliberação da 1ª Autora tomada em Janeiro de 1992, foi decidido adquirir o alvará de táxi e o táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX então pertencentes a HHH que também usava o nome de HHh tendo a aquisição sido efectuada com o produto da venda de outros bens da 1ª Autora mas que, por força da prática habitual da mesma, os bens ficaram registados em nome de III, aliás IIi. Posteriormente, em 8 de Junho de 2001, foi deliberado pela 1ª Autora a substituição do veículo utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX tendo o novo veículo automóvel também sido registado em nome de III, aliás IIi.
7. Mais ficou provado que, depois da aquisição em 1992, a 1ª Autora passou a dar de aluguer o táxi, a receber os respectivos alugueres, aplicar as quantias correspondentes no pagamento das suas despesas ordinários, tratar das formalidades inerentes quer à renovação do alvará quer à substituição do veículo automóvel destinado a ser utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX e suportar todas as despesas necessárias para o efeito.
8. Além disso, consta também da matéria assente que a 1ª Autora pratica esses actos sem violência, nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a consciência de não lesar eventuais direitos de outrem sendo a 1ª Autora reconhecida por todos os seus associados como a exclusiva proprietária do alvará de táxi e do veículo automóvel utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX”.
9. Por sua vez, resulta da fundamentação da decisão ora recorrida que “Dos factos alegados pelos Autores e dos que constam da matéria provada, conclui-se que a posse em questão diz respeito ao veículo automóvel utilizado em 1992, como táxi com a chapa de matrícula, ao veículo automóvel adquirido, em 2001, para ser utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX em substituição do anterior e eventualmente ao(s) veículo(s) automóvel(eis) que veio(ieram) sucessivamente substituir o segundo. Pois, os factos e actos referidos nos três parágrafos anteriores dizem respeito ao veículo automóvel utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX que, como resulta desses próprios factos, não era sempre o mesmo veículo automóvel.”
10. Ora, admitindo-se que o pedido de aquisição originária, por usucapião, do veículo automóvel ligeiro da marca Toyota, Corolla 2.0 Diesel Taxi M/T, como o VIN n.º JTDBJ43E709005163, actualmente utilizado como táxi, com a chapa de matrícula M-XX-XX, não poderá proceder por a posse da 1ª Autora, ora 1ª Recorrente sobre o referido veículo automóvel não ter ainda perdurado pelo prazo legal necessário para o efeito, importa esclarecer que a pretensão da 1ª Autora, ora 1ª Recorrente não se cingia, nem se cinge ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel sub judice, enquanto coisa autónoma e independente.
11. Ao pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel com a chapa de matrícula M-XX-XX, invocando a sua aquisição por meio de usucapião, a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, pretendia e pretende incluir toda a universalidade de poderes que se referem a esse bem.
12. Para além disso os Autores, ora Recorrentes também pretendem que seja declarado, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, que o falecido III, aliás IIi não era o dono e legítimo proprietário, além do mais, do alvará de táxi n.º 24/I/2004 e do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a chapa de matrícula M-XX-XX.
13. O(s) veículo(s) automóvel(eis) com a chapa de matrícula M-XX-XX de que a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente alega ser possuidora desde 1992, destinava(m)-se e destina(m)-se a ser(em) utilizado(s) como táxi e a afectação do(s) referido(s) veículo(s) automóvel(is) a essa finalidade obriga a que o(s) mesmo(s) fique(m) sujeito(s) ao cumprimento das formalidades e dos requisitos previstos no Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis, aprovado pela Portaria n.º 366/99/M, de 18 de Outubro, constituindo algumas dessas formalidades as que vêm previstas nos artigos 8º e 9º do referido diploma.
14. Assim, em cumprimento das referidas exigências legais e fazendo uso da faculdade prevista no citado artigo 9º do referido diploma, a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente procedeu à substituição do veículo automóvel que utilizava como táxi antes de esgotado o respectivo período de utilização (conforme resulta da resposta dada ao alegado nos artigos 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 30º, 31º, 32º, 33º da Petição Inicial).
15. Mas, para que o(s) novo(s) veículo(s) automóvel(eis) pudesse(m) continuar a ser utilizado(s) como táxi, ao abrigo do alvará de táxi n.º 24/I/2004, a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, ao proceder à sua substituição atribuía-lhe(s) a mesma chapa de matrícula M-XX-XX.
16. Com efeito, ficou provado nos autos que o veículo automóvel utilizado como táxi em 1992, com a chapa de matrícula M-XX-XX, foi substituído por outro, adquirido em 2001, ao qual foi atribuída a mesma chapa de matrícula M-XX-XX que, por sua vez, também foi substituído por outro veículo automóvel, cujo primeiro registo na Direcção dos Serviços de Assuntos de Tráfego foi efectuado em 10 de Dezembro de 2009 e o registo inicial na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis em 8 de Janeiro de 2010, ao qual, mais uma vez, foi atribuída a referida chapa de matrícula M-XX-XX.
17. Sendo certo que, se o(s) novo(s) veículo(s) automóvel(eis) fosse(m) afecto(s) a outra finalidade, ou se não fosse(m) substituído(s) no prazo legalmente previsto, ou se não lhe(s) fosse atribuída a chapa de matrícula correspondente ao alvará de táxi n.º 24/I/2004, certamente que este último seria cancelado, nos termos do disposto no artigo 17º do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis.
18. Ora, fazendo uma análise da resposta dada aos factos alegados, além dos mais, nos artigos 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 12º, 13º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 23º, 24º, 25º, 30º, 31º, 32º e 33º da Petição Inicial, em conjugação com o disposto nos supra citados artigos 8º, 9º, e 17º do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis, resulta que a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente tem vindo a praticar os actos de posse aí melhor identificados, sem violência, nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a consciência de não lesar eventuais direitos de outrém, sendo reconhecida por todos, nomeadamente, os seus associados, como a exclusiva proprietária do alvará de táxi n.º 24/I/2004 e da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
19º Assim, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo na Sentença ora recorrida, salvo melhor opinião, a posse que releva para os efeitos pretendidos pela 1ª Autora, ora 1ª Recorrente não é apenas a que incidia e incide sobre o veículo automóvel que actualmente tem a chapa de matrícula M-XX-XX, enquanto coisa autónoma e independente, mas também e sobretudo, a posse que a mesma vem exercendo, desde 1992, de forma autónoma e independente, sobre o alvará de táxi n.º 24/I/2004 e a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
20. Ao indicar como objecto(s) do seu pedido o “alvará de táxi n.º 24/I/2004” e o “veículo automóvel com a chapa de matrícula M-XX-XX”, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, não poderá deixar de se entender que a chapa de matrícula M-XX-XX é um bem autónomo e independente dos demais e atendendo aos pedidos formulados pelos ora Recorrentes, poderá e deverá ser apreciada separadamente em relação aos demais.
21. Pelo que, ainda que o pedido de aquisição por usucapião, formulado pela 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, sobre o veículo automóvel não possa proceder, pelas razões invocadas pelo Tribunal a quo na Sentença ora recorrida, ainda assim, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, deveria e deverá ser apreciado separadamente o pedido de aquisição, por usucapião, da chapa de matrícula M-XX-XX, como um bem autónoma e independente.
22. Ao partir do pressuposto incorrecto de que o pedido formulado pelos ora Recorrentes incidia apenas sobre o veículo automóvel, o Tribunal a quo, não apreciou e consequentemente, não julgou correctamente o(s) pedido(s) formulados pelos ora Recorrentes.
23. Atento o supra exposto e sem prejuízo do que em seguida se dirá, mais concretamente, sobre o alvará de táxi n.º 24/I/2004, deverá concluir-se que, desde 1992, a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, tem exercido a posse correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro(s) direito(s) real(ais) sobre o referido alvará de táxi e a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
24. Ora, o direito de propriedade é um direito real, absoluto, de gozo e caracteriza-se pelo gozo de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição que à coisa se podem referir.
25. Como afirma Oliveira Ascensão, in Direito Civil – Reais, pg. 448, “a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à coisa se podem referir.”
26. A usucapião é uma forma de aquisição de originária de direitos reais em geral, e do direito de propriedade em particular.
27. Considerando o disposto no artigo 1175º do Código Civil, a posse pode ser definida como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
28. A posse é, assim, composta por dois elementos: o corpus, ou seja, a coisa terá de ser manter no âmbito de actuação da vontade do sujeito, e o animus, a vontade de actuar como titular do direito.
29. Ora, face aos factos provados, resulta que não só nada obsta, como a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente preenche todos os pressupostos legalmente requeridos para adquirir, por usucapião o alvará de táxi n.º 24/I/2004, bem como, a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
30. Porquanto, a 1º Autora, 1ª Recorrente, vem exercendo de forma permanente e reiterada o seu poder de facto sobre os referidos bens, como o corpus e o animus de ser a sua exclusiva proprietária.
31. Na verdade, a 1ª Autora vem exercendo múltiplos actos materiais correspondentes ao respectivo direito real, de que se considera titular, exercitando sobre o referido alvará de táxi n.º 24/I/2004 e a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX, há mais de 10 anos uma posse susceptível de por todos ser conhecida, mesmo os interessados, sem violência nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a consciência de não estar a lesar eventuais direitos de outrem.
32. A 1ª Autora, ora 1ª Recorrente é, para além do mais, reconhecida por todos os seus membros e associados, como a exclusiva proprietária de tais bens.
33. A posse nas circunstâncias e com as características acima descritas confere à 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, o direito de invocar a aquisição por usucapião do direito de propriedade e de outro(s) direito(s) reais sobre os supra referidos bens.
34. Tal conclusão encontra suporte legal no disposto nos artigos 1251º, 1260º, 1261º, 1262º, 1263º, alíneas a) e b), 1268º e 1287º e seguintes do Código Civil de 1966 ou, tendo em conta que, conforme estatuído no artigo 1º do Decreto-Lei n.º 48/99/M, de 27 de Setembro, o Código Civil em vigor passou a aplicar-se em Macau a partir de 1 de Novembro de 1999, ao abrigo das disposições contidas neste Código, nos artigos 1175º, 1184º, 1185º, 1186º, 1187º, alíneas a) e b), 1193º, 1212º a 1214º, 1219º e 1223º.
35. Finalmente, uma vez que, com a presente acção a 1ª Autora, ora Recorrente, pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o alvará de táxi n.º 24/I/2004 e a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX, os Recorrentes pretendem igualmente, que seja declarado que o falecido III, aliás IIi, não era o dono e legítimo proprietário dos supra referidos bens e, assim, impedir que o valor dos referidos bens seja considerado como parte do acervo de bens a partilhar, no âmbito dos autos de inventário facultativo para partilha da herança aberta por óbito de III, aliás, IIi.
36. Sendo certo que o referido III, aliás IIi nunca poderia ser o proprietário do veículo automóvel ligeiro da marca Toyota, Corolla 2.0 Diesel Taxi M/T, como o VIN n.º JTDBJ43E709005163, com a chapa de matrícula M-XX-XX, cujo primeiro registo na Direcção dos Serviços de Assuntos de Tráfego foi efectuado em 10 de Dezembro de 2009 e o registo inicial na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis em 8 de Janeiro de 2010, porque faleceu em 5 de Janeiro de 2008 (conforme resulta da resposta dada ao alegado no artigo 69º da Petição Inicial).
37. Para o efeito, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, não basta declarar como se declarou no ponto 2, alínea b) da Sentença ora recorrida que “2. (…) que o falecido III, aliás IIi não era: (…) b) O sujeito que, em 1992, adquiriu o alvará actualmente com o n.º 24/I/2004:
38. Pelo que requerem a revogação da referida decisão e a sua substituição por outra que declare isso mesmo, isto é, que o falecido III, aliás IIi, não era o dono e legítimo proprietário do alvará de táxi n.º 24/I/2004 e da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
39. Em relação ao pedido de aquisição, por usucapião, pela 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, do alvará de táxi n.º 24/I/2004, a questão que cumpre apreciar por parte deste Tribunal ad quem é a de saber se o Tribunal a quo decidiu bem ao concluir que “por não estar em causa um direito real, a pretensão da 1ª Autora de usucapir o alvará de táxi n.º 24/I/2004 nunca pode proceder.”
40. A este propósito cumpre desde já referir que os Autores, ora Recorrentes não pretendem criar um direito ou qualquer outra figura jurídica não prevista na lei.
41. Os Autores, ora Recorrentes pretendem apenas que seja reconhecido e declarado o direito de propriedade da 1ª Autora, ora 1ª Recorrente sobre os bens objectos dos presentes autos.
42. Por isso, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, é desprovida de qualquer sentido a invocação e aplicação do disposto no referido artigo 1230º do CC ao caso sub judice, por ser inaplicável.
43. Com efeito, os pedidos formulados pelos Autores, ora Recorrentes não violam o disposto no referido artigo 1230º do CC, porque o que se pretende é que a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente seja declarada como a dona e legítima proprietária do alvará de táxi n.º 24/I/2004, bem como, da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX, isto é, que seja reconhecido que preenche todos os pressupostos legalmente requeridos para adquirir, por usucapião os referidos bens.
44. Para fundamentar a sua decisão o Tribunal a quo defende ainda que, apesar do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis prever a transmissibilidade do alvará, “(…) a par disso, o artigo 17º deste diploma prevê expressamente a possibilidade de cancelamento do alvará do qual não decorre qualquer direito a indemnização.”
45. Mais referindo que nos termos do 1232º do CC – que diz respeito às expropriações – “Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei”, esclarecendo que “A lei aí referida é o Decreto-Lei n.º 43/97/M, de 20 de Outubro, cujo artigo 7º garante o pagamento de uma indemnização ao expropriado ou aos demais interessados (…)” e que “nada disso acontece com os casos de cancelamento do alvará (…)” daí concluindo que “por não estar em causa um direito real, a pretensão da 1ª Autora de usucapir o alvará de táxi n.º 24/I/2004 nunca pode proceder.”
46. Sucede que, no modesto entendimento dos ora Recorrentes, ao decidir desta forma, o Tribunal a quo partiu de um pressuposto errado e consequentemente, julgou incorrectamente esta questão.
47. Porque, na verdade, durante o prazo de validade do alvará de táxi, o seu titular tem uma relação de direito (de natureza jurídica) e não apenas de facto (ou de natureza fáctica) sobre esse bem.
48. Com efeito, o titular do alvará de táxi pode exercer toda a universalidade de poderes que se referem a esse bem, incluindo o direito de o transmitir a terceiros, bem como, o direito de o onerar, conforme decorre do disposto no n.º 4 do artigo 2º do supra citado Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis.
49. Por sua vez, em caso de desaparecimento ou morte do titular do alvará de táxi, o(s) seu(s) familiare(s) ou herdeiro(s), pode(m) utilizar e suceder nos direitos do proprietário do alvará de táxi, nos termos da Lei.
50. De resto como sucedeu no caso sub judice, porquanto, recorde-se que em 3 de Novembro de 2008, foi aberto um processo de inventário facultativo para partilha da herança aberta por óbito do referido III, aliás IIi, o qual correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau sob o n.º CV3-08-0063-CIV.
51. E que apenas se procedeu à abertura dos referidos autos de inventário facultativo, porque quando III, aliás IIi faleceu, a licença de táxi, o táxi e 1/5 das fracções autónomas ainda se encontravam registados em seu nome.
52. Sendo certo que, por Sentença proferida em 17 de Abril de 2009 e transitada em julgado em 4 de Maio de 2009, foi homologada a partilha nos termos requeridos na respectiva Conferência de Interessados, tendo sido adjudicados todos os bens descritos na relação de bens ao aí Requerente e cabeça-de-casal, CCC, ora 3º Recorrente, ou seja, foram adjudicados a CCC, ora 3º Recorrente, a licença de táxi, o táxi e 1/5 das fracções autónomas objecto dos presentes autos (tudo conforme resulta do Doc. n.º 18 junto com a Petição Inicial que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
53. Acresce que, a transmissão do alvará de táxi a terceiros constituí, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 5 da Portaria n.º 17/91/M, de 28 de Janeiro – aplicável na altura em 1ª Autora ora 1ª Recorrente adquiriu o alvará de táxi n.º 24/I/2004 e a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX, uma verdadeira “transferência de propriedade”, pela qual, então, era cobrada uma taxa de MOP$1.000,00.
54. Atento o supra exposto não podem restar dúvidas de que a pretensão da 1ª Autora, ora 1ª Recorrente, atenta a factualidade dada como provada, não pode deixar de proceder.
55. Pois, conforme resulta da fundamentação da decisão ora recorrida, ficou provado que “(…), quando a 1ª Autora deliberou adquirir o veículo automóvel que era usado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX, também decidiu adquirir o correspondente alvará de táxi que, por força da prática habitual da mesma, ficou registado em nome de III, alias IIi.
56. Resulta igualmente da fundamentação da sentença ora recorrida que ficou provado que “(…) depois da aquisição em 1992, a 1ª Autora passara a dar de aluguer o táxi, receber os respectivos alugueres, aplicar as quantias correspondentes no pagamento das suas despesas ordinárias, tratar das formalidades inerentes quer à renovação do alvará quer à substituição do veículo automóvel destinado a ser utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX e suportar todas as despesas necessárias para o efeito; que a 1ª Autora praticara esses actos sem violência, nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a consciência de não lesar eventuais direitos de outrem sendo à 1ª Autora reconhecido por todos os seus associados como a exclusiva proprietária do alvará de táxi e do veículo automóvel utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX.
57. Por todo o exposto, resulta que não só nada obsta, como a 1ª Autora, ora 1ª Recorrente preenche todos os pressupostos legalmente requeridos para adquirir, por usucapião o alvará de táxi n.º 24/I/2004, bem como, a correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
58. Pelo que, também nesta parte a Sentença ora recorrida fez uma incorrecta subsunção da matéria de facto assente e provada nos autos ao direito aplicável, fazendo ainda uma errada aplicação do disposto nos artigos 1230º e 1232º do CC e uma errada interpretação do disposto no n.º 4 do artigo 2º do supra citado Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer, ou Táxis, o que acarreta a ilegalidade da dita decisão, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que declare a “Associação dos ...... de Macau”, ora 1ª Recorrente, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como a exclusiva proprietária, por força da aquisição originária advinda pela sua posse de forma pública, continuada, de boa fé, na convicção do exercício do direito sem oposição de quem quer que seja, ao abrigo do disposto nos artigos 1251º, 1260º, 1261º, 1262º, 1263º, alíneas a) e b), 1268º e 1287º do Código Civil de 1996, actualmente, 1175º, 1184º, 1185º, 1186º, 1187º, alíneas a) e b), 1193º e 1212º e seguintes do Código Civil, do alvará de táxi n.º 24/I/2004 e da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
59. E ainda que, seja declarado para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, que o falecido III, aliás IIi não era o dono e legítimo proprietário do referido alvará de táxi n.º 24/I/2004 e da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
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Devidamente notificados, os recorridos não ofereceram contra-alegações.
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II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Por deliberação tomada em reunião da Direcção e do Conselho Fiscal de 1ª Autora realizada por volta de Janeiro de 1992 foi aprovada a aquisição do alvará de táxi a que corresponde ao actual alvará de táxi n.º 24/I/2004 e do veículo automóvel ligeiro de passageiros (táxi) com a chapa da matrícula M-XX-XX.
O alvará de táxi e o táxi, que se encontravam em nome do então Vice-Presidente da Direcção HHH que também usava HHh, foram adquiridos pela 1ª Autora, pelo preço de HKD$1.300.000,00.
Com o produto da venda das fracções autónomas sitas em Macau, na Avenida ...... n.º ... (antigamente com o n.º 15) do Edifício denominado “......”, ...º andar ... e ..., onde estava instalada a sede social da 1ª Autora.
Nos termos do disposto no artigo 10º, alínea d) dos Estatutos da Associação, a 1ª Autora, competia e compete à Direcção da Associação “d) indicar os directores para se encarregar do património da Associação, tratar das formalidades e outorgar, em nome da Associação, escrituras de compra e venda, precisando para tanto da respectiva deliberação da Direcção (…).
Era prática habitual da Associação, 1ª Autora, que os bens imóveis e / ou móveis sujeitos a registo de que era titular ficassem registados em nome do Presidente ou de outros membros da Direcção.
No caso concreto, foi deliberado que o alvará de táxi e o táxi ficariam registados provisoriamente em nome do, então Presidente da Direcção, III, aliás IIi.
Por essa razão, o alvará de táxi e o táxi foram registados em nome do, então Presidente da Direcção, III, aliás IIi junto, respectivamente, do então Leal Senado de Macau, actual Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais de Macau e da Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis de Macau.
Por declaração datada de 5 de Maio de 1992 o referido Presidente da Direcção, III, aliás IIi, expressamente afirmou que “(…) em Janeiro de 1992 adquiri, em representação da Associação dos ...... de Macau, o táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX (e o alvará), o qual é bem comum de todos, não pertencendo a mim”.
Tal declaração foi assinada pelo referido Presidente da Direcção, III, aliás IIi na presença de outros associados da 1ª Autora.
Logo após a aquisição, a 1ª Autora passou a dar de aluguer o táxi.
Recebendo como contrapartida os respectivos alugueres.
Aplicando os referidos alugueres no pagamento de despesas ordinárias da 1ª Autora.
Desde a aquisição do alvará de táxi e do táxi tem sido a 1ª Autora quem trata de todas as formalidades inerentes quer à renovação do referido alvará.
Quer à substituição do veículo automóvel destinado a ser utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX.
Suportando todas as despesas necessárias para o efeito.
Por deliberação tomada em reunião da Direcção da 1ª Autora realizada no dia 8 de Junho de 2001, foi aprovada a substituição do veículo automóvel destinado a ser utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX.
Na mesma reunião foi igualmente aprovado que o alvará de táxi e o novo veículo automóvel continuariam a ser registados em nome do então Presidente da Direcção, III, em representação da 1ª Autora.
De modo que o veículo automóvel utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX continuou a ser registado em nome do então Presidente da Direcção, III, aliás IIi.
Os actos acima referidos têm sido praticados sem violência, nem oposição de ninguém.
De forma ininterrupta.
Com a consciência de não estar a lesar eventuais direitos de outrem.
A 1ª Autora é reconhecida por todos os seus associados como a exclusiva proprietária dos referidos bens.
A 1ª Autora deliberou comprar fracções autónomas designada por “...” e “...” do ...º andar “...” e “...”, para habitação, do prédio sito em Macau, com o n.º ..., da Rua do ......, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXX, a fls. 54 do Livro B-34, inscrita na matriz predial da freguesia de S. Lourenço, sob o artigo 071496, por volta de Janeiro de 1992.
Tendo pago o respectivo preço com o produto da venda das fracções de que era dona e onde, na altura, era a sua sede social, ou seja, das fracções autónomas sitas em Macau, na Avenida ...... n.º ... (antigamente com o n.º 15) do Edifício denominado “......”, ...º andar ... e ....
A respectiva escritura pública de compra e venda das fracções autónomas foi outorgada, em 12 de Junho de 1996, pelo então Presidente da Direcção, III, aliás IIi, e pelos membros da Direcção, HHH que também usava HHh, DDD, JJJ e KKK, na qualidade de compradores.
Tendo as referidas fracções autónomas sido registadas na Conservatória do Registo Predial a favor do, então Presidente da Direcção, III, aliás IIi, e dos membros da Direcção, KKK, HHH que também usava HHh, JJJ e DDD, sob a inscrição n.º XXXX, a fls. 308, do Livro F34K.
Depois de aquisição, a 1ª Autora instalou a sua sede social nas referidas fracções autónomas.
Sem pagar quaisquer rendas que nunca julgou devidas.
A 1ª Autora sempre efectuou por sua conta, ao longo dos anos, todas as obras de reparação, conservação e beneficiação das fracções autónomas objecto dos presentes autos.
Pagando as contribuições devidas pelas mesmas.
Esses actos têm sido praticados sem violência, nem oposição de ninguém.
De forma ininterrupta.
Com a consciência de não estar a lesar eventuais direitos de outrem.
A 1ª Autora é reconhecida por todos os seus associados como a exclusiva proprietária das referidas fracções autónomas.
Em 14 de Fevereiro de 2011, os membros da Direcção, DDD, JJJ e KKK, procederam à transmissão a favor da 1ª Autora, de 3/5 das citadas fracções autónomas correspondente as quotas-partes que, respectivamente, se encontravam registadas em seu nome, nos termos e pelas razões acima mencionadas.
Presentemente, encontram-se registadas respectivamente em nome do anterior membro da Direcção, HHH que também usava HHh (1/5 de cada fracção autónoma) e do filho do anterior membro da direcção III, aliás IIi, 3ª Autor, CCC (1/5 de cada fracção autónoma).
Em 5 de Janeiro de 2008, faleceu intestado em Macau, III, aliás IIi.
Tendo sido aberto, em 3 de Novembro de 2008, um processo de inventário facultativo para partilha da herança aberta por óbito do referido III, aliás IIi.
O qual correu termos pelo 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau sob o n.º CV3-08-0063-CIV.
Procedeu-se à abertura dos referidos autos de inventário facultativo, porque quando III, aliás IIi faleceu, o alvará de táxi, o táxi e 1/5 das fracções autónomas ainda se encontravam registados em seu nome.
Os 2ª a 6ª Autores sabiam que o alvará de táxi, o táxi e 1/5 das fracções autónomas acima referias se encontravam registados em nome de III, aliás IIi porque, na altura em que os respectivos registos foram efectuados, este era o Presidente da 1ª Autora.
Os 2ª a 6ª Autores pretendiam efectuar a transmissão da titularidade dos referidos bens para a 1ª Autora.
Para isso, os 2ª a 6ª Autores procederam à abertura de um processo de inventário facultativo para partilha dos referidos bens.
Para depois de os registar em nome de um dos herdeiros.
Os poderem transmitir a favor da 1ª Autora, através da outorga da respectiva documentação.
Assim, o 3º Autor, requerente e cabeça-de-casal nos referidos autos de inventário facultativo, por si e na qualidade de procurador dos demais interessados directos na partilha no âmbito dos referidos autos de inventário, os 1ª, 2ª, 4º, 5ª e 6ª Autores.
Declarou, na conferência de interessados realizada em 19 de Fevereiro de 2009, além do mais, que por acordo de todos os interessados directos na partilha, todos os bens descritos na relação de bens lhe fossem adjudicados.
Por sentença proferida em 17 de Abril de 2009, foi homologada a partilha nos termos requeridos na referida conferência de interessados.
Tendo sido adjudicados os bens acima referidos ao 3º Autor.
Por apresentação n.º 81 de 1 de Julho de 2009, foi registada a favor do 3º Autor, sob a inscrição n.º XXXX95G, a aquisição por sucessão hereditária de 1/5 das fracções autónomas objecto dos representes autos.
Porém, em 21 de Outubro de 2009, foi requerida nos referidos autos de inventário facultativo a reabertura do mesmo por um dos filhos do inventariado, GGG, o 1º Réu, não ter participado na partilha.
Em 18 de Janeiro de 2010, foram prestadas novas declarações de cabeça-de-casal reconhecendo-se que o referido GGG, 1º Réu, é filho de III, aliás IIi.
Em 14 de Abril de 2010, o 1º Réu, AAA intentou uma acção judicial para anulação da partilha, a qual se encontra a correr termos por apenso aos supra mencionados autos de inventário facultativo, sob o n.º CV3-08-0063-CIV-A.
Na referida acção judicial, AAA, 1º Réu, pede que seja (i) anulada a partilha judicialmente homologada no âmbito do processo n.º CV3-08-0063-CIV; e que seja (ii) ordenada o cancelamento do registo do direito de propriedade sobre 1/5 das fracções autónomas a favor do 3º Autor.
O então membro da Direcção, HHH que também usava HHh, faleceu intestado em Macau no dia 28 de Janeiro de 1998.
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Cumpre decidir.
São três as questões colocadas neste recurso.
1) Usucapião do veículo automóvel/chapa de matrícula
Os Autores ora recorrentes intentaram a acção contra os Réus ora recorridos pedindo, entre outros pedidos, que a 1ª recorrente seja declarada, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como a exclusiva proprietária, por força da aquisição originária advinda pela sua posse de forma pública, continuada, de boa fé, na convicção do exercício do direito sem oposição de quem quer que seja do veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a chapa de matrícula M-XX-XX.
O recurso recai sobre a seguinte decisão:
“Dos factos alegados pelos Autores e dos que constam da matéria provada, conclui-se que a posse em questão diz respeito ao veículo automóvel utilizado, em 1992, como táxi com a chapa de matrícula, ao veículo automóvel adquirido, em 2001, para ser utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX em substituição do anterior e eventualmente ao(s) veículo(s) automóvel(eis) que veio(ieram sucessivamente) substituir o segundo. Pois, os factos e actos referidos nos três parágrafos anteriores dizem respeito ao veículo automóvel utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX que, como resulta desses próprios factos, não era sempre o mesmo veículo automóvel.
Trata-se de um aspecto importante, visto que, pela forma como vem formulado o pedido (usucapião do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a chapa de matrícula M-XX-XX), o mesmo pode apenas incidir sobre o veículo automóvel que actualmente tem a chapa de matrícula M-XX-XX. É que, o(s) veículo(s) que chegou(aram) a ter a mesma chapa de matrícula não pode(m) tê-la agora.
Deste modo, é relativamente ao veículo automóvel actualmente utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX, enquanto coisa autónoma e independente dos outros veículos que chegaram a ser utilizados como táxi com a mesma chapa de matrícula, que deve ser apreciada a verificação ou não da alegada posse e a procedência ou não do pedido de usucapião.
Perspectivando as coisas do lado oposto, a pretensão da 1ª Autora não pode basear-se na posse que alega ter exercido sobre o veículo automóvel utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX em 1992, nem pode fundar-se na posse sobre o veículo automóvel que veio substituir o de 1992 se este segundo veículo automóvel, adquirido em 2001, tiver sido substituído por outro ou outros.
Dos documentos juntos a fls. 29 a 37 vê-se que o veículo automóvel actualmente registado com a chapa de matrícula M-XX-XX e destinado a ser utilizado como táxi, é o veículo de automóvel ligeiro da marca Toyota, Corolla, 2.0 Diesel Taxi M/T, com o VIN nº JTDBJ43E709005163, o qual tem o primeiro registo feito na Direcção dos Serviços de Assuntos de Tráfego em 10 de Dezembro de 2009 e o registo inicial na Conservatória dos Registos Comercial de Bens Móveis em 8 de Janeiro de 2010. Portanto, o veículo automóvel adquirido em 2001 deixou de ter a matrícula M-XX-XX.
Tendo em conta o acima exposto, a posse que releva para os efeitos pretendidos pelos Autores é a que incide sobre o veículo automóvel ligeiro da marca Toyota, Corolla 2.0 Diesel Taxi M/T, com o VIN nº JTDBJ43E709005163, actualmente utilizado como táxi com a chapa de matrícula M-XX-XX.
…
Deste modo, o pedido de usucapião em questão não pode deixar de improceder.”
Alegam agora os recorrentes, em sede de recurso, que a pretensão da 1ª Autora, ora 1ª recorrente, não se cingia, nem se cinge ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo automóvel, enquanto coisa autónoma e independente, mas pretendia e pretende incluir toda a universalidade de poderes que se referem a esse bem, razão pela qual defende que deveria ser apreciado o pedido de aquisição, por usucapião, da chapa de matrícula M-XX-XX, como um bem autónomo e independente.
Quanto a esta questão, julgamos sem razão os recorrentes.
De facto, pela forma como vem formulado o pedido (usucapião do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a chapa de matrícula M-XX-XX), o que se pretende pelos Autores é a usucapião do veículo automóvel que tem a chapa de matrícula M-XX-XX.
Uma vez que o pedido formulado pelos Autores na petição inicial respeita unicamente ao veículo automóvel registado com a chapa de matrícula M-XX-XX, e não à própria chapa de matrícula M-XX-XX, sendo tal, como dizem os recorrentes e bem, um bem autónomo e independente, pelo que ao abrigo do princípio dispositivo ou do pedido aplicável no processo civil, o Tribunal está impedido de apreciar e condenar em objecto diverso do que se pede, nos termos previstos no artigo 564º, nº 1 do Código de Processo Civil.
Nesta conformidade, improcede o recurso quanto a esta parte.
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2) Usucapião do alvará de táxi
Outra questão é a de saber se a 1ª recorrente teria adquirido o direito de propriedade do alvará de táxi por usucapião.
Decidiu o Tribunal a quo que, apesar de a 1ª recorrente ter vindo a praticar os aludidos actos durante cerca de 20 anos, a situação não pode ser qualificada como possessória visto que o alvará de táxi em questão não tem natureza real.
Diz o artigo 1212º do Código Civil que apenas os direitos reais, mais precisamente, o direito de propriedade ou outros direitos reais de gozo podem ser adquiridos por usucapião.
Não obstante que provado está que depois da aquisição em 1992 do alvará e registo do mesmo em nome de III aliás IIi, a 1ª recorrente passou a dar de aluguer o táxi, receber os respectivos alugueres, aplicar as quantias correspondentes no pagamento das suas despesas ordinárias, tratar das formalidades inerentes quer à renovação do alvará quer a substituição do veículo automóvel destinado a ser utilizado como táxi com a matrícula M-XX-XX e suportar todas as despesas necessárias para o efeito, realmente entendemos que a situação não pode ser qualificada como possessória por que o alvará de táxi não tem natureza real, senão vejamos.
Alvará é um documento que titula os direitos conferidos aos particulares, já concedidos dentro do procedimento administrativo, ou por outras palavras, um documento que confere a atribuição de eficácia ao acto de que aquele depende.
Daí que é inócuo afirmar que a 1ª recorrente é “proprietária” do alvará, uma vez que os direitos concedidos pela Administração resultam, em rigor, do próprio acto administrativo, mais precisamente do acto de concessão, e não do alvará, sendo este um mero documento que titula os direitos conferidos ou que externa a eficácia do reconhecimento do direito aos particulares.
Diz-se concessão “o acto pelo qual um órgão da Administração transfere para uma entidade privada o exercício de uma actividade pública, que o concessionário desempenhará por sua conta e risco, mas no interesse geral”.1
Para já, sem grande margens para dúvidas, trata-se aqui de um caso de concessão, na medida em que a Administração logrou, por meio de hasta pública, transferir para o particular o direito de exercer uma actividade pública referente ao transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer ou táxis, concessão essa titulada por alvará.
Daí que, não se pode dizer que a 1ª recorrente é “proprietária” do alvará, mas apenas o seu mero titular, mediante o qual se evidencia o direito de exploração da actividade de transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer ou táxis, isto significa que, ao fim e ao cabo, não está em causa qualquer tipo de direitos reais.
E não se diga, tal como se sustenta na decisão recorrida, que o Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis prevê expressamente a transmissibilidade do alvará que se impõe um enquadramento diferente.
De um modo geral, o proprietário é caracterizado como aquele que “detém os poderes correspondentes ao seu direito de um modo pleno e exclusivo, gozando de plenos poderes, apenas com os limites da lei”.2
Segundo os mesmos autores, “há uma indeterminação na delimitação dos poderes” ― os direitos de uso, fruição e disposição da coisa; os quais são dotados de certa elasticidade e qualificados como direitos perpétuos.3
E para realçar essa plenitude e exclusividade dos direitos do proprietário, dispõe o artigo 1232º do Código Civil que “Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei.”
Mais se preceitua no artigo 1234º do Código Civil que “Havendo expropriação por utilidade pública ou particular ou requisição de bens, é sempre devida a indemnização adequada ao proprietário e aos titulares dos outros direitos reais afectados”.
Ora bem, pelo contrário, não se descortina, para o caso de cancelamento do alvará previsto nos termos do artigo 17º do Regulamento do Transporte de Passageiros em Automóveis Ligeiros de Aluguer ou Táxis, qualquer tipo de indemnização a favor do titular do alvará.
Por outro lado, sendo uma das características do direito de propriedade a sua perpetuidade, o que implica não poder este direito extinguir-se pelo não uso, porquanto “não usar a propriedade, é ainda uma forma de a usar”4, mas nada disso acontece com os titulares dos alvarás, visto que ao abrigo do tal artigo 17º do Regulamento, prevê-se a possibilidade de cancelamento do alvará em determinadas situações, entre outras, o alvará é cancelado sempre que, ultrapassado o período previsto na lei para a utilização do veículo, o titular do alvará não promover oportunamente a sua substituição por veículo novo.
Ademais, não podemos deixar de frisar que, não sendo permitida a existência de direitos reais fora dos casos previstos na lei – princípio da tipicidade ou do “numerus clausus” consagrado no disposto no artigo 1230º do Código Civil – a realidade aqui em discussão não pode ser qualificada como figuras de direitos reais.
Convém ainda deixar aqui uma pequena nota: muito embora se preveja a livre transmissibilidade do alvará para terceiros, no fundo, o que está em causa, em nossa modesta opinião, é a própria transmissão do direito de exploração da actividade de transporte de passageiros em automóveis ligeiros de aluguer ou táxi, cuja concessão é titulada por esse alvará.
Nesta conformidade, considerando que não está em causa um direito real, mormente direito de propriedade ou outros direitos reais de gozo, o que implica necessariamente a inaplicabilidade, para o caso concreto, do regime de usucapião.
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3) Pedido de declaração do falecido III aliás IIi não ser dono e proprietário do alvará de táxi nº 24/I/2004 e da chapa de matrícula M-XX-XX
Pedem ainda os Autores ora recorrentes que seja declarado que III, aliás IIi não era dono e proprietário do alvará nº 24/I/2004 e da correspondente chapa de matrícula M-XX-XX.
De acordo com a matéria de facto dada como provada, o alvará de táxi nº 24/I/2004 e o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a chapa de matrícula M-XX-XX foram registados em nome do referido LIi, aliás IIi, por causa da prática habitual da 1ª recorrente, sendo na verdade, esta quem efectivamente tinha adquirido os bens, isto significa que o tal indivíduo L nunca era, de facto, o titular dos respectivos direitos porque nunca os adquiriu.
Consignou-se na decisão recorrida o seguinte:
“Relativamente ao alvará, por esta ser uma licença administrativa e o respectivo direito não consubstanciar qualquer direito de propriedade, conforme o que se disse mais acima, só se pode declarar que IIi, aliás IIi não era o sujeito que, em 1992, adquiriu o alvará actualmente com o nº 24/I/2004.
No que concerne ao veículo automóvel ligeiro de passageiros com a chapa de matrícula M-XX-XX, é de lembrar o que se disse quando foi analisado o pedido de usucapião deste bem. Por o veículo automóvel com a chapa de matrícula M-XX-XX ser actualmente o veículo automóvel ligeiro da marca Toyota, Corolla 2.0 Diesel Taxi M/T, com o VIN nº JTDBJ43E709005163, que não é o mesmo veículo automóvel com a mesma chapa adquirido em 1992 nem o que veio substituir este último em 2001, o pedido não pode deixar de improceder, visto que os factos alegados e provados têm a ver com estes dois últimos veículos automóveis e não o da marca Toyota, Corolla 2.0 Diesel Taxi M/T, com o VIN nº JTDBJ43E709005163.”
Em nossa opinião, atentas as considerações tecidas nesta instância sobre as questões suscitadas em relação à usucapião do veículo automóvel/chapa de matrícula e à do alvará de táxi, respectivamente, sem mais delongas, é de improceder o recurso quanto a esta parte.
Pelo que se disse, e sem deixando de louvar a perspicácia do Tribunal a quo na análise do caso, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos recorrentes Associação dos ...... de Macau, BBB, CCC, DDD, EEE e FFF, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
***
Macau, 23 de Outubro de 2014
Relator
Tong Hio Fong
Primeiro Juiz-Adjunto Lai Kin Hong
Segundo Juiz-Adjunto
João A. G. Gil de Oliveira
1 Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo Volume III, 1989, página 130
2 Álvaro Moreia e Carlos Frage, in Direitos Reais, página 234
3 Idem, páginas 234 e 235
4 Obra citada, página 235
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Processo 730/2013 Página 25