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Processo nº 210/2014
(Autos de recurso laboral)

Data: 9/Outubro/2014

Assunto: STDM
Declaração de remissão/quitação

SUMÁRIO
- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
- A quitação ou recibo é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.
- É válida a remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho após extinção das relações laborais.


O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 210/2014
(Autos de recurso laboral)

Data: 9/Outubro/2014

Recursos interlocutório e final
Recorrente:
- Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (Ré)

Recorrida
- B (Autora)


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B, titular do BIRM de Macau, melhor identificada nos autos, intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM acção declarativa de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da Ré no pagamento do montante de MOP$490.331,00.
No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção peremptória de pagamento e renúncia invocada pela Ré na contestação.
Inconformada com a decisão, dela vem interpor recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
A. Seja qual for a qualificação jurídica atribuída à Declaração junta como Documento n.º 1 à Contestação, a verdade é que, a mesma não se encontra ferida de nulidade por falta de formalismo negocial ou de formalidade do contrato em causa, pois o mesmo não tinha de ser celebrado sob a forma de escritura pública.
B. A parte final do artigo 1174º do CC e a alínea n) do número 2 do artigo 94º do CN prevêem que: “A transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida (…)”.
C. Nada na Declaração de fls. 60 dos autos justifica, implica ou exige a sua celebração através de escritura pública, para salvaguardar algum efeito para o qual a escritura seja exigida.
D. Na parte final do já mencionado artigo 1174º do CC e na alínea n) do número 2 do artigo 94º do CN consta, ainda, que a transacção preventiva ou extrajudicial “(…) deve constar de documento escrito nos casos restantes.”
E. A Declaração (junta aos autos como Documento n.º 1 da Contestação e confirmada ou, reiterada ou, sublinhada, ainda, pelo Documento n.º 3 da mesma) demonstra que a A. e ora Recorrida foi compensada, paga, ressarcida e indemnizada pela Ré, aqui Recorrente, pelos descansos semanais, descansos anuais e pelos feriados obrigatórios, sendo pois a mesma remissiva e extintiva das obrigações da ora Recorrente.
F. Ademais, demonstra que tendo a A. recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a Recorrente subsiste e, portanto, nenhuma outra quantia é exigível à Recorrente, na medida em que nenhuma das partes deve mais nenhuma compensação relativa ao vínculo laboral.
G. Como consta do mesmo douto Despacho Saneador recorrido, foi considerado provado que a A. recebeu da Ré, STDM, S.A., duas quantias, tendo assinado em 21 de Julho de 2003 o documento junto a fls. 60.
H. Foi confessado pela A. o recebimento, por parte da Recorrente, da quantia e o negócio obrigacional extintivo entre os ora litigantes, após o termo da relação contratual e laboral, que impedia e proíbe a A. de demandar a Ré/Recorrente, produzindo os seus efeitos e devendo, em sua consequência, absolver integralmente a segunda, de todos os pedidos e da lide aqui em discussão, pela procedência do Documento n.º 1 junto com a Contestação.
I. Com esse acordo obrigacional, extintivo e excepção material ou peremptória, nenhum outro montante e nenhum pedido extra ou superveniente pode vir a ser solicitado ou exigido de qualquer das partes, após a conclusão e perfeição da Declaração negocial contida a fls. 60 destes autos.
J. Como – e muito bem, refira-se – também consta do douto Despacho Saneador ora posto em crise pelo presente Recurso, conclui-se que houve mesmo um acordo entre as partes, Recorrida e Recorrente, no sentido de, mediante o pagamento da referida quantia, porem termo ao litígio.
K. Pelo que, tal acordo ou negócio jurídico extintivo é válido, eficaz, e apto a produzir os efeitos jurídicos pretendidos pelas partes (i.e. então um ex-colaborador e uma ex-entidade empregadora), extinguindo-se toda e qualquer quantia, bem como litígio ou pedido, a nome da certeza e da segurança jurídicas, valores essenciais do Direito e da Ordem Jurídica, como pretenderam os aqui litigantes, nesse momento temporal.
L. A aqui Recorrida ainda recebeu outra quantia, também pela compensação e ressarcimento e indemnização dos descansos semanais, anuais e feriados obrigatórios, desta Recorrente, em outro momento do ano de 2003, por mor do processo de contravenção laboral n.º 1476/2002 que fora patrocinado pela na altura DSTE, agora denominada DSAL.
M. Contudo, há que sublinhar o seguinte: não existe nem existiu sequer, um alegado acordo tácito ou expresso do recebimento das quantias aludidas, como se a Declaração de Remissão ínsita a fls. 60 dos autos tivesse a ver com o litígio que correu termos em 2002 e 2003 enquanto uma contravenção laboral com o processo n.º 1476/2002 e com o recebimento, a final, da outra quantia paga pela Recorrente à Recorrida, pois este último montante foi pago no âmbito de um litígio judicial e decorrente desse litígio.
N. Assim, a Declaração junta na Contestação como Documento n.º 1 não é, de todo, uma transacção extrajudicial, nem existe uma necessária articulação entre as duas quantias, ao contrário do que consta no Despacho recorrido.
O. Tendo já recebido duas quantias da aqui Recorrente, pelos mesmos motivos, é evidente a aqui Recorrida não podia ter instaurado a presente acção judicial laboral.
P. Nem podia, igualmente, demandar, reclamar, exigir, peticionar, pedir, qualquer outra quantia monetária por conta dos termos do acordo contido a fls. 60 dos autos.
Q. Deste modo, pela procedência da excepção peremptória ou material ou substantiva de remissão ou de transacção preventiva ou extrajudicial ou quitação ou quitação com reconhecimento negativo de dívida ou pagamento ou, “Da excepção peremptória do pagamento e da renúncia expressa do A. ao pagamento de quaisquer outras quantias” como foi deduzida a excepção material na Contestação.
R. A Declaração de fls. 60 é válida, eficaz, produtora de efeitos, e deverá absolver a Recorrente do pedido, sem prejuízo do prosseguimento destes autos a final, improcedendo, assim, as razões enunciadas de fls. 94 e 94v dos autos, isto é, na parte em que o doutro Tribunal recorrido decidiu, na fase do Saneamento, que a mesma Declaração não foi celebrada segundo a forma legalmente exigida e como tal deve ser considerada nula nos termos legais.
S. Caso a Declaração de fls. 60 dos autos venha a ser considerada formalmente válida, produzirá os seus efeitos e absolverá a Recorrente do pedido, pela procedência do alegado nos artigos 25º a 41º da Contestação, revogando-se, pois, o douto Despacho Saneador aqui recorrido, e seguindo-se os demais termos subsequentes do processo.
*
Notificada, a este recurso não respondeu a Autora.
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Realizado o julgamento, a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo a Ré sido condenada a pagar à Autora a quantia de MOP$395.503,61, acrescida de juros à taxa legal a contar da data de sentença até efectivo e integral pagamento.
Inconformada com a sentença, dela vem a Ré ora recorrente interpor novo recurso, pugnando pela revogação da decisão final.
Não foram oferecidas contra alegações.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Provado está a seguinte matéria de facto pertinente para a decisão:
Entre a Autora e a Ré foi estabelecida uma relação laboral em 21 de Junho de 1993, a qual cessou em 15 de Julho de 2002.
No dia 21 de Julho de 2003, a Autora subscreveu a declaração cujo teor consta de fls. 60, com o seguinte teor: “Eu, B, titular do BIRM nº X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$20.913,66 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.”
*
Começamos pelo recurso interlocutório interposto pela Ré.
Insurge-se a Ré ora recorrente contra o despacho proferido pelo Juiz a quo, no saneador, que julgou improcedente a excepção peremptória de pagamento e renúncia suscitada na contestação.
Vejamos.
Designa-se por excepção peremptória aquele meio de defesa que, uma vez julgada procedente, importa a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor.
No caso vertente, provado está que no dia 21 de Julho de 2003, ou seja, já depois de cessada a relação contratual com a Ré, a Autora assinou a declaração constante de fls. 60 dos autos, nela se consignou que a Autora recebeu, voluntariamente da STDM, ora Ré e recorrente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$20.913,66 relativa ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho decorrentes do vínculo laboral com a STDM, tendo sido ainda declarado pela Autora que com o montante então recebido nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsistiria e, por consequência, nenhuma outra quantia seria pela Autora exigível por qualquer forma.
Qual será a natureza e o efeito jurídico dessa declaração?
Antes disso, temos a questão de saber se é válida a tal declaração, e a solução que vem na linha dos Acórdãos dominantes deste TSI, e também do TUI, é no sentido afirmativo, se for prestada depois de cessada a relação laboral.
Veja-se, por exemplo, o Acórdão deste TSI, de 16.01.2014, no Processo 368/2009 e mais recentemente, o Acórdão de 11.09.2014, no Processo 72/2014:
“Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.”
E em relação à natureza e efeito jurídico da referida declaração, também não é questão nova, aliás já foi objecto de apreciação pelo Venerando TUI, nomeadamente no seu Acórdão de 30.07.2008, no Processo 27/2008, com o qual concordamos e que aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.”
No mesmo sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos nos Processos 317/2010, 867/2009, 794/2010, 469/2009, 368/2009, 72/2014, deste TSI.
Nesta conformidade, tal como se decidiu em outros Acórdãos deste mesmo Tribunal, continuamos a entender que a obrigação da Ré ora recorrente já se extinguiu pelo pagamento de que a Autora ora recorrida deu total quitação.
Para já, seja a que título for, de quitação, remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, como diz o citado Acórdão do Venerando TUI, já que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a Ré.
E para se concluir, somos a entender que, ainda a considerar estar perante uma transacção como pretende o Tribunal a quo, enquadrável no artigo 1174º do Código Civil, não se vê razão para que a mesma houvesse que ser celebrada por escritura pública já que a produção de efeitos dali decorrente não obriga a que se exija escritura pública, contentando-se essa declaração negocial com a forma escrita, tal como ocorreu e sendo que nem sequer o contrato principal tem de revestir tal forma.
Isto é o que se diz também no Acórdão deste TSI, de 11.9.2014, no Processo 72/2014.
Uma vez julgada procedente a excepção peremptória, assim se conclui pela absolvição total da Ré do pedido.
Assim sendo, prejudicado fica o conhecimento do recurso final.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interlocutório interposto pela recorrente Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., julgando procedente a excepção peremptória invocada pela Ré ora recorrente, e, em consequência, absolvendo a Ré do pedido.
Nesta instância, as custas do recurso interlocutório são da responsabilidade da recorrida, não havendo custas para o recurso final por dele se não conhecer.
Custas pela recorrida na primeira instância.
Registe e notifique.
***
Macau, 9 de Outubro de 2014


(Relator)
Tong Hio Fong


(Segundo Juiz-Adjunto)
João Gil de Oliveira


(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
Vencido nos termos da declaração de voto que se segue.






















Processo nº 210/2014
Declaração de voto de vencido

Vencido quanto à questão da remissão das dívidas pois não vejo razão para alterar a minha posição já assumida na declaração de voto que juntei aos vários Acórdão do TSI, nomeadamente os Acórdãos tirados nos processos nºs 210/2010, 216/2011, 223/2010 e 252/2008, isto é, dada a natureza imperativa da norma do artº 6º do Decreto-Lei nº 24/89/M, um contrato mediante o qual se convencionaram as condições de trabalho aquém do mínimo da protecção dos trabalhadores não pode deixar de ser julgado nulo, por força do disposto no artº 287º do Código Civil, nos termos do qual, salvo excepção expressa em contrário resultante da lei, são nulos os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo.

RAEM, 09OUT2014

Lai Kin Hong





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