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Processo n.º 91/2014
(Recurso Cível)

Relator: João Gil de Oliveira
Data : 23/Outubro/2014


ASSUNTOS:
- Impugnação da matéria de facto
- Negócios indirectos
- Contrato-promessa de compra e venda de imóvel como garantia de empréstimo
    
    SUMÁRIO :
    Não vindo colocada a questão relativa ao enquadramento jurídico dado a um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, enquanto garantia de um mútuo, não se discutindo a possibilidade de relevar o “pacto fiduciário”, com base na ideia da neutralidade que lhe subjaz e de considerar que essa foi ainda a vontade das partes no caso de incumprimento, batendo-se o recorrente apenas por uma reanálise da matéria de facto, improcedendo esta, será de manter o decidido com o enquadramento jurídico que foi vertido na sentença recorrida.
              O Relator,

João A. G. Gil de Oliveira

Processo n.º 91/2014
(Recurso Civil)
Data : 23/Outubro/2014

Recorrente : B

Recorridos :
- C
- D (tb na qualidade de sucessor da ré falecida G)
- F (tb na qualidade de sucessor da ré falecida G)


    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    B, autor na acção e inconformado com a sentença proferida em 19 de Julho de 2013, que julgou improcedente a acção por si intentada, absolvendo os réus e os oponentes dos pedidos, dela vem interpor recurso, alegando em síntese conclusiva:
    1 - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida em 19 de Julho de 2013, que julgou improcedente a acção ordinária intentada pelo Autor, absolvendo os réus e os oponentes dos pedidos.
    2 - O próprio Tribunal "a quo" em sua sentença recorrida afastou a hipótese de estarmos perante um contrato simulado, por falta de verificação do pressuposto da "intenção de prejudicar terceiro".
    3 - O próprio Tribunal “a quo” em sua sentença recorrida afastou, igualmente, a hipótese de estarmos perante um negócio usurário, previsto no artigo 275° do Código Civil de Macau. Com efeito, o Tribunal "a quo" entendeu que, no caso "sub judice", não se vislumbra que aquando da celebração do aludido contrato-promessa de compra e venda, a 1ª R tinha dificuldades financeiras, nem ficou demonstrado que o Autor aproveitou dessa alegada situação de necessidade, inexperiência, dependência ou fraqueza da 1ª R para obter interesses manifestamente excessivos ou injustificados.
    4 - A sentença absolutória recorrida, construída como base na tese da existência de divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração, considerou como provados de que a 1ª R contraíra alguns empréstimos de dinheiro junto do Autor em data anterior.
    5 - Nomeadamente, deu por provado que:
    a) Em data indeterminada de 2004 a 1ª R pediu junto do Autor um empréstimo de 30 mil dolares de Hong Kong.
    b) Três meses depois, a 1ª R voltou a pedir junto do Autor mais um empréstimo de 50 mil dolares de Hong Kong.
    c) Decorridos mais 8 meses, a 1ª R pediu ao Autor mais um empréstimo de 60 mil dolares de Hong Kong, tendo-lhe sido exigido, desta vez, que assinasse os documentos referidos na resposta aos quesitos 17°.
    d) O Autor alegou que a assinatura dos documentos mencionados visam garantir o pagamento dos empréstimos.
    6 - É verdade que há empréstimos anteriores por saldar entre Autor e a 1ª R.
    7 - Mas daí não decorre, nem está provado, que foi em virtude da existência da dívida de dinheiro, e tendo em vista melhor garantir o reembolso de dinheiro mutuado, que o Autor pedira, solicitara ou exigira à 1ª R a assinatura dos documentos em causa, e que os mencionados documentos visavam apenas garantir o pagamento dos empréstimos sem verdadeira intenção de compra e venda, já que, pura e simplesmente, o Autor nunca alegou tal pretenso facto perante a 1ª R ou em Juízo.
    9 – Mesmo que, por recurso ao método de raciocínio pelo absurdo, se admitisse como possível tal divergência entre a vontade declarada e a real, sempre restaria à sentença recorrida a difícil tarefa de responder convincentemente à seguinte questão: se o contrato e a procuração fossem falsos, como explicar que, para além do texto do contrato, a 1ª RR tivesse ainda que acrescentar as seguintes declarações, provadas aliás :
    “Desde a outorga da presente procuração, sem qualquer autorização, nada mais posso, na qualidade de proprietária, vender nem dar de arrendamento a dita fracção nem sobre esta constituir hipoteca, nem, por qualquer forma, alienar a mesma a terceiros, sob pena de assumir todas as responsabilidades legais e indemnizar o procurador por todos os prejuízos daí resultantes”.
    “Certifico que o presente contrato de compra e venda do imóvel e a procuração são outorgardos hoje ao mesmo tempo, e declaro ter recebido do Sr. B a quantia em numerário de duzentos mil dólares de Hong Kong. Ass.) C. 1 de Julho de 2005”.
    10 – Segundo nos ensinam as regras da experiência, se a vontade fosse falsa por partes de ambos os contraentes, não haveria necessidade de reforçar os negócios falso com essas declarações ainda mais comprometedoras. Pelo contrário, o contrato falso deveria ser o mais lacónico possível.
    11 – Segundo nos ensinam as regras da experiência, é precisamente para acautelar os interesses da parte promitente-comprador (o Autor) é que se fez consignar em detalhe estas declarações complementares de esclarecimento pela 1ª R, para evitar disputas ou violações contratuais futuras. O que apenas vem reforçar ainda mais a conclusão da genuinidade de declaração negocial em causa.
    12 - Termosem que a sentença recorrida errou na apreciação da prova.
    Por outro lado,
    13 - O recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 599º do Código de Processo Civil, vem, ainda, impugnar expressamente o facto provado de que "O Autor alegou que a assinatura dos documentos mencionados visam garantir o pagamento dos empréstimos", que constitui a resposta dada pelo Tribunal "a quo" ao quesito n.º 30 da base de instrução.
    14 - Nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 599º do CPC, cabe ao Autor o ónus de indicar as passagens da gravação em que se funda tal impugnação fáctica. O Autor é incapaz de tal tarefa, já que o Autor nunca confessou tal facto e as testemunhas do Autor não depuseram sobre tal facto; a 1ª R prescindiu do depoimento das suas testemunhas em audiência; e os oponentes e as testemunhas dos oponentes nunca tiveram qualquer contacto pessoal com o Autor pois eles só negociaram com a 1ª R.
    15 - Razão pela qual o Tribunal "a quo" não podia ter elementos probatórios para chegar à conclusão da demonstração deste facto que se impugna.
    16 - A única conclusão plausível é a de que o Tribunal "a quo" chegara a essa conclusão, a de que estava provado que o Autor alegara que a assinatura dos documentos em causa visavam garantir o pagamento dos empréstimos, por inferição dos factos relativos a existência de dívida anterior de dinheiro, vindo assim a concluir que, já que a 1ª R devia dinheiro emprestado ao Autor, esses documentos foram feitos e assinados apenas para "garantir" os empréstimos.
    17 - Esta conclusão a que se chegou o Tribunal "a quo" em sua sentença recorrida não está alicerçada em factos, ou documentos ou depoimentos produzidos em Juízo. Na demonstração desse facto ou na conclusão da prova desse facto, a sentença recorrida errou notoriamente na apreciação da prova, prova essa que não existia para a sustentar.
    18 - Aliás, não está demonstrado que houvesse justificação ou interesse plausível para o Autor participar de forma voluntária e consciente na feitura e celebração de um contrato-promessa em que ele simultaneamente fosse parte interessada, mas que à priori soubesse que seria falso havendo divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração, contrato e vícios esses que, a final, apenas o auto-lesaria.
    19 - O Autor celebrou o contrato-promessa convencido da genuinidade de declaração de vontade das partes, e de que a declaração feita coincidia com a vontade real das partes, e não o contrário tal como pretende a sentença recorrida. Concluindo diversamente, a sentença recorrida ao absolver os RR dos pedidos errou na apreciação da prova, e em sua interpretação e aplicação do Direito, violou a lei, as normas constantes dos artigos 228º e 399º do Código Civil de Macau.
    NESTES TERMOS, deve o presente recurso ser admitido, e, a final, ser julgado procedente, por provado, revogando-se a sentença recorrida, vindo a condenar os réus e oponentes conforme peticionado na pi.

    
    H e I, oponentes nos autos supra referenciados, vieram apresentar as suas CONTRA-ALEGAÇÕES DE RECURSO, dizendo, em conclusão:
     1ª
    O ora recorrente vem impugnar a decisão de facto constante da douta decisão recorrida, designadamente a matéria que foi dada como assente respeitante ao quesito 30º.
     2ª
    A este respeito, o recorrente invoca que as testemunhas que prestaram o seu depoimento nos presentes autos não confirmaram a matéria em causa constante da resposta ao quesito 30º, acrescentando que existem determinados documentos juntos aos autos, designadamente o contrato promessa de compra e venda e a procuração (a que se referem as respostas aos quesitos 1º, 2º e 17º e a al. D) dos factos assentes), que infirmam e contradizem aquela mesma matéria.
     3ª
    O fundamento do alegado erro na apreciação da prova recai assim no (falso) pressuposto da matéria em causa não ter sido abordada por nenhuma das testemunhas, por um lado, e no facto do Tribunal não ter valorado aqueles documentos (contrato promessa de compra e venda e procuração), por outro lado.
     4ª
    A este respeito, estipula o artigo 599º, n.º 1, alínea b) do CPC que cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição de recurso, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre a matéria de facto em causa, decisão diversa da recorrida.
     5ª
    Quanto à questão das testemunhas, há que reconhecer que efectivamente nenhuma das testemunhas ouvidas em tribunal se referiram à matéria do quesito 30º, como resulta, aliás, da respectiva acta de audiência de discussão e julgamento de fls. 355 a 357 dos autos.
     6ª
    Mas o certo é que não foi com base no depoimento de qualquer testemunha que o Tribunal recorrido sustentou a sua convicção na formulação da resposta do quesito 30º, mas sim nas certidões judiciais das sentenças no âmbito dos processos CR4-09-0120-PCC e CR1-11-0206-PCC, cujo teor confirma, de forma inequívoca, que os documentos em causa (contrato promessa de compra e venda e procuração) se destinavam a garantir o pagamento dos empréstimos concedidos pelo Autor à 1ª Ré.
     7ª
    Com efeito, é o próprio Tribunal a quo, em sede de fundamentação da decisão de facto, que vem esclarecer, de forma clara, que ficou provado através das referidas certidões que "( ... ) pelo A. foram concedidos empréstimos à 1ª R, tendo sido acordado que os documentos (contrato-promessa e procuração) se destinavam a garantir o pagamento dos referidos empréstimos".
     8ª
    Conclui-se assim que, ao contrário do que o recorrente quer fazer crer nas suas alegações de recurso, as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas produzidas, designadamente nas referidas certidões judiciais, suporte mais que razoável e suficiente para a decisão de facto fixada por aquele Tribunal.
     9ª
    Esteve assim bem o Tribunal a quo ao decidir do modo como o fez relativamente não só ao quesito 30º, mas também relativamente a todos os restantes quesitos, dentro do princípio da livre apreciação das provas que lhe assiste e em estrito respeito do critério de objectividade e das regras da experiência comum.
     10ª
    Ao abrigo daquele princípio, o Tribunal recorrido respondeu aos quesitos formulados em conformidade com as provas produzidas e examinadas em audiência, facto reconhecido, aliás, pelo ora recorrente que apenas reclamou da respostas aos quesitos 1º e 2 da Base Instrutória, ao abrigo do artigo 556º, n.º 5 do CPC (cfr., acta de fls. 364 e 365), invocando uma questão sem qualquer significado.
     11ª
    O recorrente limita-se nas suas alegações de recurso apenas a discordar do julgamento da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido no que respeita ao quesito 30º, pretendendo, ao fim ao cabo, impor o seu juízo pessoal ao juízo do tribunal, colocando em causa o princípio da livre apreciação da prova regulado no artigo 558º do CPC.
     12ª
    A resposta ao quesito 30º está devidamente sustentada no teor das duas sentenças dos processos crime registados sob os n.ºs CR4-09-0120-PCC e CR1-11-0206-PCC cujas certidões foram admitidas pelo Tribunal recorrido.
     13ª
    Não nos podemos esquecer que a possibilidade conferida pela lei do Processo Civil de reapreciação da matéria de facto não deve ser erigida num regime-regra, antes configura um meio excepcional, circunscrito às hipóteses em que a renovação dos meios de prova se revele absolutamente indispensável ao apuramento da verdade material e ao esclarecimento cabal das dúvidas surgidas quanto aos pontos da matéria de facto impugnada, o que manifestamente não se verifica no caso sub judice.
     14ª
    Concluindo, nenhum dos documentos referenciados pelo Recorrente são minimamente claros e evidentes ao ponto de determinar uma resposta diferente da que foi dada ao quesito em causa, i.e., ao ponto de refutarem o teor das referidas sentenças judiciais.
     15ª
    Ou seja, nenhum dos elementos de prova referenciados pelo recorrente conduz à conclusão que a convicção do Tribunal de 1.ª instância relativamente ao quesito em questão assentou em qualquer erro flagrante e que a decisão de facto não pode subsistir.
     16ª
    Pelo contrário, os elementos probatórios juntos aos autos, designadamente as certidões judiciais daquelas sentenças, confirmam a atribuição daqueles empréstimos e que o Autor exigiu à 1ª Ré que assinasse os documentos em causa {contrato promessa de compra e venda e procuração), com vista a garantir o pagamento desses mesmos empréstimos (cfr. respostas aos quesitos 25º, 27º, 29º e 30º)
     17ª
    Nesta conformidade, o recurso não poderá deixar de improceder no tocante à impugnação da matéria de facto pretendida pelo ora recorrente.
     18ª
    Esteve assim bem o Tribunal recorrido em considerar que não foi validamente assumida pela 1º Ré a alegada promessa de venda por si declarada que, como se viu, visava apenas garantir a restituição da quantia mutuada a favor do recorrente.
     19ª
    Não podemos esquecer que, estando em causa um contrato bilateral, haveria que apurar o sentido real que a 1ª Ré quis dar à declaração expressa nesse acordo.
     20ª
    Estamos, pois, perante a situação prevista no artigo 228º, n.º 2 do CC, i.e., em que vale a interpretação da declaração segundo a vontade real do declarante, quando o declaratário tenha conhecido dessa vontade.
     21ª
    Oral a vontade real da 1ª Ré, como vimos, nunca foi prometer vender o imóvel em causa, mas sim que fosse garantido ao Autor, com a execução da promessa, que a quantia mutuada lhe fosse restituída.
     22ª
    Extraiu assim o Tribunal a quo uma qualificação jurídica totalmente acertada da factualidade apurada ao julgar que existe efectivamente uma divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração em causal por um lado, e que é patente que tal divergência era, desde o início, do pleno conhecimento do ora recorrente.
     23ª
    Não restando assim outra solução ao Tribunal recorrido que julgar totalmente improcedente tanto a execução específica como o pedido de condenação da 1ª Ré no pagamento do dobro do sinal.
     24ª
    Mesmo que, por hipótese absurda, a peregrina tese do recorrente vingasse no sentido de que o Autor e a 1ª Ré pretenderam efectivamente celebrar um contrato-promessa de compra e vendai prometendo o primeiro comprar e a segunda vender o imóvel em questão, o certo é que o pedido de execução específica daquele contrato teria, em qualquer caso, de improceder.
     25ª
    A execução específica só se encontra na esfera da disponibilidade do credor para evitar o incumprimento definitivo ou a falta definitiva de cumprimento, justamente porque ainda se mostra possível e útil o resultado prático do cumprimento, embora retardado.
     26ª
    Se a execução específica configura, antes de mais, o direito ao cumprimento, através dela se obtendo o mesmo resultado prático deste, haverá lugar ao seu recurso enquanto não houver falta definitiva do cumprimento do contrato-promessa (no caso, por exemplo, de alienação da coisa a terceiro em que há uma impossibilidade definitiva de celebrar o contrato prometido por o objecto deste ter sido transmitido definitivamente a favor daquele).
     27ª
    Refira-se, a propósito, que o artigo 866º do CC, conjugado com o artigo 94º, n.º 1 do Código de Notariado, determina que a forma para transmissão de propriedade sobre imóveis é a escritura pública, pelo que não existe outro modo idóneo, com eficácia translativa para um direito real de gozo sobre um imóvel, que não a celebração de escritura pública.
     28ª
    A qualidade de promitente-comprador, se verifica sem traditio, como sucedeu no caso do recorrente, integra tão somente um direito de crédito a concretizar pelo promitente vendedor, que fica por essa via obrigado a vender-lhe a coisa prometida.
     29ª
    Ora, a matéria que vem comprovada não suporta os requisitos indispensáveis à efectivação da execução específica pela razão simples de que a coisa a transmitir já não estava na posse e titularidade da promitente transmitente, i.e., da 1ª Ré, não sendo assim possível fazer substituir a declaração de venda prestada por esta já que a mesma, desde 16 de Janeiro de 2007, não é dona do imóvel em causa.
     30ª
    A doutrina é, aliás, unânime no sentido de não ser possível efectivar a execução específica quando o promitente vendedor entretanto já transmitiu a outrem a coisa prometida vender.
     31ª
    Vendida a terceiro um imóvel objecto promessa de compra e venda, sem eficácia real, torna-se impossível a sua execução específica, a não ser que o terceiro adquirente esteja de má-fé.
     32ª
    Pois bem, não foi atribuída eficácia real ao contrato promessa outorgado entre o recorrente e a 1ª Ré e, muito menos, ficou provado que os ora alegantes enquanto terceiros adquirentes estavam de má-fé.
     33ª
    Nestes termos, o próprio pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a citada fracção, ao abrigo do artigo 820.º do Código Civil, é totalmente incompatível com o direito de propriedade dos ora alegantes, na medida em que, no que concerne ao alegado acordo celebrado entre a 1.ª Ré e o recorrente: (i) as partes não atribuíram eficácia real a tal negócio; (ii) não foi outorgada a escritura pública que formalizasse essa aquisição supostamente pretendida; e (iii) a fracção autónoma foi validamente transmitida a terceiros, no caso, aos ora alegantes.
     34ª
    Conforme as disposições conjugadas dos artigos 820.º, n.ºs 1.º e 2.º, 404.º e 407.º, todos do CC, a Autora só poderia invocar a execução específica caso a referida fracção autónoma não tivesse sido vendida e registrada a favor de terceiros (in casu, dos oponentes, ora alegantes), ou, mesmo que não tivesse sido vendida, se existisse uma cláusula atributiva de eficácia real no respectivo contrato-promessa e se tal cláusula tivesse sido registrada na respectiva Conservatória.
     35ª
    Em conclusão, o pedido de execução específica afigura-se impossível porquanto atenta ainda, de forma frontal, contra o princípio da compatibilização ou da exclusão previsto no artigo 1229.º do CC, segundo o qual "sobre certa coisa não pode incidir uma pluralidade de direitos reais, a menos que sejam compatíveis entre si", que, no caso, não são definitivamente.
     36ª
    Não violou assim a decisão recorrida qualquer norma do CC, designadamente os artigos 228º e 399º, ao invés do alegado pelo recorrente.
    Termos em que, face ao acima exposto, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se assim a decisão recorrida que absolveu os ora recorridos dos pedidos, com custas a cargo do ora recorrente.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
Face aos documentos constantes dos autos e à prova produzida na audiência, resulta provada a seguinte matéria de facto com interesse para a decisão da causa:
Em 11 de Outubro de 2001, a 1ª R. C procedeu ao registo, em seu favor, da fracção ... do ...º andar do edf. ...... sito em Macau, na Rua de ......, n.º .... (A)
A dita fracção, designada por “…” do prédio sito em Macau, com os números ... a ... da Rua de ...... e números ... a ... da Rua de ......, encontrava-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 1XXXX. (B)
Em 11 de Outubro de 2001, a dita fracção autónoma foi inscrita a favor da 1ª R. pela inscrição n.º 3XXXXG. (C)
Em 1 de Julho de 2005, a 1ª R. outorgou uma procuração no 1º Cartório Notarial de Macau. (D)
Pela dita procuração, a 1ª R. delegou poderes ao A. (E)
Na parte de declaração específica de tal procuração consignou-se que: “Desde a outorga da presente procuração, sem qualquer autorização, nada mais posso, na qualidade da proprietária, vender nem dar de arrendamento a dita fracção nem sobre esta constituir hipoteca, nem, por qualquer forma, alienar a mesma a terceiros, sob pena de assumir todas as responsabilidades legais e indemnizar o procurador por todos os prejuízos daí resultantes.” (F)
Por contrato-promessa celebrado, em 22 de Setembro de 2005, a 1ª R. prometeu vender a mesma fracção autónoma aos 2ºs RR., D e mulher G, tendo estes, no dia 23 de Setembro de 2005, registado o referido contrato-promessa, na Conservatória do Registo Predial por inscrição (provisória por natureza) n.º 12XXXXG. (G)
Em 22 de Janeiro de 2007, a pedido dos 2ºs RR. foi cancelada a inscrição (provisória por natureza) n.º 12XXXXG, através do qual foi registado na Conservatória do Registo Predial o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a 1ª R. e os 2ºs RR. (H)
Por escritura pública outorgada em 16 de Janeiro de 2007, H e I compraram o identificado imóvel, tendo, em 22 de Janeiro de 2007, procedido ao registo em seu favor, na Conservatória do Registo Predial, conforme inscrição provisória por natureza n.º 14XXXXG. (I)
Em 1 de Julho de 2005, o A. e a 1ª R. celebraram um acordo constante de fls. 24 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (1º e 2º)
No dito acordo, a 1ª R. comprometeu-se a vender a fracção em causa ao A. (3º)
Ficou estipulado no tal acordo que a 1ª R. iria vender o dito imóvel pelo preço de duzentos mil dólares de Hong Kong (HKD$200.000,00). (4º)
E que o A. iria adquirir tal imóvel pelo dito preço. (5º)
No ponto (4) do dito acordo foi estipulado que a 1ª R. procederia, no mesmo dia, à entrega do imóvel ao A. (6º)
Na parte de observação do dito acordo consignou-se o seguinte: “Certifico que o presente contrato de compra e venda do imóvel e a procuração são outorgados hoje ao mesmo tempo, e declaro ter recebido do Sr. B a quantia em numerário de duzentos mil dólares de Hong Kong. C. 1 de Julho de 2005” (7º)
A 1ª R. também declarou, no dito acordo, ter recebido o preço global do imóvel pago pelo A., no montante de duzentos mil dólares de Hong Kong. (8º)
Foi J que interveio como testemunha na outorga do dito acordo. (9º)
O A. solicitou à 1ª R. para que com ele celebrasse a escritura pública de compra e venda. (10º)
A 1ª R. se recusou a celebrar a escritura pública de compra e venda com o A. (11º)
Provado apenas o teor da alínea G) dos factos assentes. (12º)
Em 16 de Janeiro de 2007, os ora oponentes receberam a posse da citada fracção autónoma e, posteriormente, deram-na de arrendamento a terceiros. (14º)
Na qualidade de compradores da identificada fracção autónoma, os ora oponentes, em 22 de Janeiro de 2007, efectuaram o pagamento do imposto de selo pela transmissão de propriedade. (15º)
E inscreveram-na, em seu favor, na matriz predial urbana da freguesia de Santo António. (16º)
A 1ª R. assinou o acordo referido na resposta aos quesitos 1º e 2º, e a procuração mencionada na alínea D) dos factos assentes. (17º)
Em data indeterminada de 2004 a 1ª R. pediu junto do A. um empréstimo de 30 mil dólares de Hong Kong. (25º)
Três meses depois, a 1ª R. voltou a pedir junto do A. mais um empréstimo de 50 mil dólares de Hong Kong. (27º)
Decorridos mais 8 meses, a 1ª R. pediu ao A. mais um empréstimo de 60 mil dólares de Hong Kong, tendo-lhe sido exigido, dessa vez, que assinasse os documentos referidos na resposta ao quesito 17º. (29º)
O A. alegou que a assinatura dos documentos mencionados visam garantir o pagamento dos empréstimos. (30º)
Provado apenas o teor da alínea G) dos factos assentes. (37º)
A 1ª R. decidiu e veio a vender efectivamente a fracção em causa a H H, pelo preço de 450 mil dólares de Hong Kong. (43º)
Para isto, H pagou à R. um sinal de 50 mil dólares de Hong Kong. (44º)
Em 6 de Novembro de 2006, e na presença e concordância do 2º R. D, a 1ª R. celebrou com H um contrato-promessa no escritório do Advogado e Notário Privado K. (45º)
No acto da celebração da escritura pública de compra e venda em 16/01/2007, H pagou à 1ª R., o preço global de 400 mil dólares de Hong Kong, mediante a entrega de dois cheques, um no valor de 160 mil dólares de Hong Kong a favor do 2º R. D e outro na quantia de 230 mil dólares de Hong Kong a favor da 1ª R., e ainda HKD$10.000,00 em numerário a favor do agente predial a título de comissão. (46º)
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. Atentemos na fundamentação vertida na douta sentença recorrida:
     “Em sede do enquadramento jurídico, cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
     De acordo com a matéria dada como provada, verifica-se que entre A. e R. foi celebrado um acordo designado por “contrato-promessa de compra e venda de imóvel”, e foi com base neste contrato que o A. vem pedir a execução específica.
     Na contestação, invocou a 1ª R. que assinou o referido contrato e procuração devidamente juntos aos autos a fls. 24 e 25 por que lhe foi exigido pelo A., para garantia do pagamento do empréstimo e dos juros.
     Embora tenha apontado o vício negocial de simulação/dissimulação, a verdade é que, por falta de verificação do pressuposto da “intenção de prejudicar terceiro”, fica desde já afastada a aplicabilidade da simulação ao referido contrato.
     Senão vejamos.
     Estipula-se nos termos do artigo 232º, nº 1 do Código Civil de Macau que há simulação quando “se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante”.
     Assim, para haver lugar a simulação, é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes pressupostos:
     - divergência entre a vontade real e a declaração;
     - acordo ou conluio entre as partes; e
     - intenção de enganar terceiros.
     No caso em apreço, embora se encontre provado que entre A. e 1ª R. foi celebrado um acordo denominado por “contrato-promessa de compra e venda de imóvel”, segundo o qual esta última prometeu transmitir ficticiamente a propriedade do imóvel ao A., para garantir o empréstimo concedido por este à 1ª R., mas bem se vê que não houve por parte de ambos qualquer intenção de enganar terceiros.
     Faltando a verificação desse último requisito, outra solução não resta senão considerar afastada a aplicabilidade da simulação ao aludido acordo celebrado entre A. e R.
     Por outro lado, foi colocada ainda a questão de saber se o contrato-promessa celebrado entre A. e R. constitui um negócio usurário previsto nos termos do artigo 275º do Código Civil.
     Diz o referido artigo que “1. É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inépcia, inexperiência, ligeireza, relação de dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios que, atendendo às circunstâncias do caso, sejam manifestamente excessivos ou injustificados.”
     Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Abril de 2010, Proc. 3309/07.9TVLSB.L1-8, in dgsi, citado em termos de direito comparado, decidiu-se que:
     “Para que o negócio jurídico seja anulável por usura é necessário que para além do elemento objectivo – grave desproporção entre as prestações dos contraentes – concorra o elemento subjectivo, ou seja, o aproveitamento consciente por uma das partes ou por terceiro, de uma situação de necessidade, da experiência, dependência ou deficiência psíquica ou ligeireza da outra parte”.
     Para Pires de Lima e Antunes Varela, “usurário é aquele que explora certas situações em que outra pessoa se encontra, para dela obter, em proveito próprio ou de terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados” – Código Civil Anotado, Vol. I., 4ª edição pág. 260.
    O negócio usurário só existe quando se verifiquem, cumulativamente, os respectivos requisitos, a saber, a exploração de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, com vista a obtenção de benefícios excessivos ou injustificados – neste sentido, vide Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/4/2010, Proc.3309/07.9TVLSB.L1-8 e de 25/1/1994, Proc. 0076721, JTRL00013813, ambos in dgsi.
    Segundo esse primeiro Acórdão, escreve-se que:
    “Por um lado, tem de haver benefícios manifestamente excessivos ou injustificado, isto é, tem de haver uma desproporção entre as prestações, que, segundo todas as circunstâncias, ultrapasse os limites do que pode ter alguma justificação. O critério do dobro do valor parece ser o limiar, a partir de cuja ultrapassagem se vai averiguar a existência das demais circunstâncias objectivas e dos requisitos subjectivos da usura. Por outro lado, devem igualmente verificar-se requisitos subjectivos, a saber: exploração e uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter. Esta situação de necessidade a satisfazer, constituindo sim “uma situação de forte temor ou proveniente de um facto humano, como, por exemplo, alguém ameaçado de perder a vida num naufrágio faz promessas a outrem para o salvar”.
    Salvo o devido respeito por melhor opinião, não se vislumbre no caso vertente que aquando da celebração do aludido contrato-promessa de compra e venda, a 1ª R. tinha dificuldades financeiras, nem ficou demonstrado que o A. quis aproveitar dessa alegada situação de necessidade, inexperiência, dependência ou fraqueza da 1ª R. para obter interesses manifestamente excessivos ou injustificados, apenas se logrou provar que o A. exigiu à 1ª R. que assinasse um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma e uma procuração identificados nos autos, para servir de garantia dos empréstimos que lhe foram concedidos.
Nestes termos, salvo o devido respeito por opinião contrária, verificados não estão os requisitos do negócio usurário, a saber, a situação de inferioridade da 1ª R. e a consciência ou conhecimento do A. de que estava a tirar proveito da inferioridade da referida R., conjugada com a apontada desproporção entre as prestações das partes do aludido contrato-promessa, cujo seu cumprimento constituía a concessão de um benefício manifestamente excessivo ou injustificado da 1ª R. para com o A., não podemos afirmar que o contrato-promessa celebrado entre A. e R. consiste num negócio usurário previsto nos termos do artigo 275º do Código Civil.
Mas uma coisa é certa.
Acontece que, de acordo com o que ficou provado, nem o A. nem a 1ª R. se pretendem vincular nos termos consignados no aludido contrato-promessa, isto porque provado está que o A. exigiu à 1ª R. que assinasse o contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma e a procuração identificados nos autos apenas para servir de garantia dos empréstimos que foram concedidos por si à 1ª R.
No fundo, o que está em causa é saber qual o verdadeiro conteúdo das obrigações assumidas pelos contraentes, face à demonstrada divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração.
Dispõe o artigo 228º do Código Civil de Macau que “1) A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. 2) Sempre que o declaratário conheça a vontade real de declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Trata-se aqui da chamada doutrina da impressão do destinatário.
Segundo Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, Coimbra Editora, p. 444, “Releva o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário, isto é, em face daquilo que o concreto destinatário da declaração conhecia e daquilo até onde ele podia conhecer”, “…para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele”, “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida. Neste caso, a vontade real, podendo não coincidir com o sentido objectivo normal, correspondeu à impressão real do destinatário concreto, seja qual for a causa da descoberta da real intenção do declarante”.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 4ª edição, Coimbra Editora, Vol. 1, pág. 224, refere-se que “Do disposto no nº 2 resulta que, conhecendo o declaratário o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram. É a condenação das doutrinas objectivistas puras e a confirmação da velha regra segundo a qual falsa demonstrativo non nocet.”
No caso em apreço, provado está que para servir de garantia dos empréstimos concedidos pelo A. à 1ª R., aquele exigiu a esta que assinasse o contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma e a procuração referidos nos autos.
No fundo, nem um nem outra se pretendem vincular nos termos consignados no aludido contrato-promessa, precisamente no que respeita à obrigação de venda por parte da 1ª R. da fracção autónoma em causa, uma vez que ficou demonstrada a divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração, por um lado, e o conhecimento pleno do A. dessa divergência, por outro.
Em termos de direito comparado, cita-se o Acórdão da Relação de Coimbra de 12 de Outubro de 1999, em que se refere o seguinte:
“I - Não é validamente assumida uma promessa de venda declarada apenas com a intenção, comum às partes, de garantir, com a execução da promessa, a restituição de quantia mutuada.
II - Nesse caso é manifesta, por um lado, a divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração e, por outro, é patente que tal divergência é, desde o início e em pleno, conhecida do declaratário.
III - Por conseguinte, não pode proceder pedido de execução específica de tal contrato-promessa.”
     Em prol do princípio da liberdade contratual e da autonomia privada, estipula-se nos termos do artigo 399º do Código Civil de Macau que, no âmbito do direito obrigacional, “dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”.
Conforme acima se explicitou, embora as partes contraentes tenham outorgado um contrato-promessa, mas nunca tiveram a pretensão de se vincular nos termos consignados nesse contrato, pelo que, deixando as partes outorgantes essa vontade real no sentido de celebrar um verdadeiro contrato-promessa, outra alternativa não resta, salvo o devido respeito, senão julgar improcedente tanto a execução específica como a condenação da 1ª R. no pagamento do dobro do sinal.
Quando muito, uma vez estabelecida entre A. e 1ª R. uma relação contratual de mútuo, poderá esta vir a ser responsabilizada pelo pagamento do valor emprestado, mas por ser causa de pedir diferente de que neste processo lançou mão, deverá ser conhecida a questão noutra sede.”
    2. O objecto do presente recurso passa pela análise da questão única que vem colocada e se concretiza na impugnação da matéria de facto.
    3. O ora recorrente vem impugnar a decisão de facto constante da douta decisão recorrida, designadamente a matéria que foi dada como assente respeitante ao quesito 30º, alegando aquele, a propósito, que não confessou aquela factualidade, que as testemunhas por si arroladas também não depuseram sobre aquela matéria, que a 1ª Ré prescindiu das suas testemunhas e, por fim, que os ora alegantes e as testemunhas por estes arroladas "nunca tiveram qualquer contacto com o Autor".
    Trata-se da resposta ao quesito 30: “O Autor alegou que a assinatura dos dois documentos mencionados visam garantir o pagamento do empréstimo e dos juros vencidos dos dois contratos de mútuo anteriores e do novo contrato de mútuo a celebrar?”, quesito que mereceu a seguinte resposta” O A. alegou que a assinatura dos documentos mencionados visam garantir o pagamento dos empréstimos”.
     O recorrente invoca assim que as testemunhas que prestaram o seu depoimento nos presentes autos não confirmaram a matéria em causa constante da resposta ao quesito 30º, acrescentando ainda que existem determinados documentos juntos aos autos, designadamente o contrato promessa de compra e venda e a procuração (a que se referem as respostas aos quesitos 1º, 2º e 17º e a alínea D) dos factos assentes), que infirmam e contradizem aquela mesma matéria.
    O fundamento do alegado erro na apreciação da prova recai no pressuposto da matéria em causa não ter sido abordada por nenhuma das testemunhas, por um lado, e no facto do Tribunal não ter valorado aqueles documentos (contrato promessa de compra e venda e procuração), por outro lado.
    Por seu turno, invocam os oponentes que, estipulando o artigo 599º, n.º 1, alínea b) do CPC que cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição de recurso, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre a matéria de facto em causa, decisão diversa da recorrida e o n.º 2 daquele artigo que "No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda", pelo que não teria sido dado cumprimento ao ali estipulado.
    4. Sobre esta questão não era possível observar aquelas formalidades, na medida em que nada há a transcrever, na exacta medida em que o recorrente alega que nada foi dito sobre a matéria.
    Na verdade há que reconhecer que efectivamente nenhuma das testemunhas ouvidas em tribunal se referiram à matéria do quesito 30º, como resulta, aliás, da respectiva acta de audiência de discussão e julgamento de fls. 355 a 357 dos autos.
    Mas o certo é que não foi com base no depoimento de qualquer testemunha que o Tribunal recorrido sustentou a sua convicção na formulação da resposta do quesito 30º, mas sim nas certidões judiciais das sentenças no âmbito dos processos CR4-09-0120-PCC e CR1-11-206-PCC, cujo teor confirma, de forma inequívoca, que os documentos em causa (contrato promessa de compra e venda e procuração) se destinavam a garantir o pagamento dos empréstimos concedidos pelo Autor à 1ª Ré.
    Com efeito, é o próprio Tribunal a quo, em sede de fundamentação da decisão de facto, que vem esclarecer, de forma clara, que “ficou provado através das referidas certidões de sentenças proferidas no âmbito de processos CR4-09-0120-PCC e CR1-11-0206-PCC, oportunamente juntas aos autos que pelo A. foram concedidos empréstimos à 1ª R, tendo sido acordado que os documentos (contrato-promessa e procuração) se destinavam a garantir o pagamento dos referidos empréstimos." Ou seja, o Tribunal a quo considerou provado, com base no teor daquelas certidões judiciais, que o autor concedeu à 1ª ré três empréstimos, o primeiro em data indeterminada no valor de HKD30.000,00, o segundo três meses depois no valor de HKD50.000,00 e o terceiro oito meses depois no valor de HKD60.000,00, tendo o Autor exigido à 1º Ré que assinasse os documentos em causa (contrato-promessa e procuração) que visavam garantir o pagamento daqueles empréstimos (cfr. respostas aos quesitos 25º, 27º, 29º e 30º e fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido quanto a estas respostas).
    Conclui-se assim, na esteira da posição que os oponentes manifestaram nas suas contra-alegações, posição que aqui se acompanha, que, ao contrário do que o recorrente quer fazer crer nas suas alegações de recurso, as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas produzidas, designadamente nas referidas certidões judiciais, suporte mais que razoável e suficiente para a decisão de facto fixada por aquele Tribunal.
    Observa-se ainda que o Tribunal Colectivo, respondeu aos quesitos formulados em conformidade com as provas produzidas e examinadas em audiência.
    5. A resposta ao quesito 30º está devidamente sustentada no teor das duas sentenças dos processos crime registados sob os n.ºs CR4-09-0120-PCC e CRI-11-0206-PCC cujas certidões foram admitidas pelo Tribunal recorrido.
    Como escrevemos já noutro passo1 “Uma alteração da matéria de facto, ainda que processualmente admissível e regulada na lei, implica um segundo julgamento com a perda de frescura e da imediação inerentes, por natureza, ao primeiro julgamento da matéria de facto. Ressalta assim que as razões que ditam uma reescrita dos factos terão de resultar como claras e evidentes, não podendo deixar a dúvidas ou interpretações alternativas", donde, não sendo nenhum dos documentos referenciados pelo recorrente decisivos de forma a determinar uma resposta diferente da que foi dada ao quesito em causa, improcede a pretensão do recorrente em ver diferentemente julgado tal segmento da matéria de facto.
    6. Suscita ainda o recorrente a reapreciação de facto a partir das frases apostas nos contratos e diz não poder aceitar por boa a forma como se chegou à demonstração de que o próprio autor tenha alegado que a assinatura dos documentos mencionados visam garantir o pagamento dos empréstimos, já que o Autor nunca alegou esse tal pretenso facto em Juízo.
    Ademais, mesmo que admitindo como possível tal divergência entre a vontade declarada e a real, por recurso ao raciocínio pelo absurdo, sempre seria de questionar o seguinte: se o contrato e a procuração fossem falsos, como explicar que, para além do texto do contrato, a 1ª R tivesse ainda que acrescentar as seguintes declarações, provadas aliás:
    "Desde a outorga da presente procuração, sem qualquer autorização, nada mais posso, na qualidade de proprietária, vender nem dar de arrendamento a dita fracção nem sobre esta constituir hipoteca, nem, por qualquer forma, alienar a mesma a terceiros, sob pena de assumir todas as responsabilidades legais e indemnizar o procurador por todos os prejuízos daí resultantes".
    "Certifico que o presente contrato de compra e venda do imóvel e a procuração são outorgados hoje ao mesmo tempo, e declaro ter recebido do Sr. B a quantia em numerário de duzentos mil dolares de Hong Kong. Ass.) C. 1 de Julho de 2005".
    
    Esta argumentação é reversível. Se por um lado, inculca na pretensão de um esclarecimento e reforço do sentido da vontade negocial de querer assumir a venda, por outro, não deixa de inculcar no sentido de um disfarce, isto é, se o sentido da vontade declarada fosse cristalino não haveria necessidade de vir esclarecer aquilo que as próprias palavras usadas na declaração negocial encerravam.
    Isto é, contrariamente ao que pretende a recorrente, também as regras da experiência nos ensinam que, se a vontade verdadeira por parte de ambos os contraentes, não haveria necessidade de reforçar o negócio verdadeiro com essas declarações ainda mais comprometedoras naquilo que não deixam de esconder.
    
7. Posto isto, o recurso não deixará de improceder, sendo que o recorrente centra-se nesta questão de facto que seria para si crucial, não pondo em crise a solução dada às outras questões, nomeadamente em relação à simulação e ao negócio usurário, dizendo sobre isso tão-somente o seguinte:
B)
Contrato simulado?
    - Perante a factualidade tida por provada e acima parcialmente transcrita, o próprio Tribunal "a quo" em sua sentença recorrida afastou a hipótese de estarmos perante um contrato simulado, por falta de verificação do pressuposto da "intenção de prejudicar terceiro".
    - Ora bem, daí decorre, necessariamente, pelo racionio "a contrario", que estando afastada a hipótese ou possibilidade do contrato em causa ter sido feito para enganar terceiros, resta-nos, pois, indagar se as partes contratuais - ou seja, o Autor e a 1ª R - celebraram esse contrato-promessa para se enganarem a si mesmo ou um ao outro?
    - A resposta a esta pertinente questão emergerá infra.
C)
Negócio usurário?
    - Mais uma vez, perante a factualidade tida por provada e acima parcialmente transcrita, foi o próprio Tribunal “a quo” quem em sua sentença recorrida afastou a hipótese de estarmos perante um negócio usurário, previsto no artigo 275º do Código Civil de Macau.
    - Com efeito, o Tribunal "a quo" entendeu que, no caso em apreço, não se vislumbra que aquando da celebração do aludido contrato-promessa de compra e venda, a 1ª R tinha dificuldades financeiras, nem ficou demonstrado que o Autor quis aproveitar dessa alegada situação de necessidade, inexperiência, dependência ou fraqueza da 1ª R para obter interesses manifestamente excessivos ou injustificados.
    - Pelo que, concluiu que não estavam reunidos os requisitos do negócio usurário, a saber, a situação de inferioridade da 1ª R e a consciência ou conhecimento do Autor de que estava a tirar proveito da inferioridade da referida R.
    - Excluída, inclusivamente, esta hipótese de negócio usurário, apenas restava a sentença recorrida enredar-se pela via de existência de vício resultante da existência de divergência entre a vontade real e o sentido objectivo da declaração, alegado vício esse construído com base na chamada "doutrina da impressão do destinatário".

8. Não vêm colocadas outras questões, pelo que, estabilizada que fica a matéria de facto dada como assente, não importa já apreciar da justeza do Direito aplicado e da solução dada ao litígio, na exacta medida em que mais nada se equaciona.
A este propósito, actualizamos aqui o entendimento vertido em sede de Jurisprudência Comparada:2 “ A análise dos factos provados aponta sem dúvida para a conclusão de que o contrato-promessa em análise configura um “negócio indirecto”. Em termos gerais poderá definir-se como tal o negócio cujos efeitos são queridos pelas partes sendo certo que foi todavia celebrado para desempenhar uma função que não corresponde em princípio àquela que a lei lhe atribuiu. Trata-se de uma figura contratual que radica no instituto do Direito Romano denominado “fiducia cum creditore”. No cerne do contrato estava a finalidade exclusiva de servir como garantia da obrigação comprometendo-se o beneficiário da mesma a só a executar em caso de incumprimento do negócio que a mesma visa assegurar.
     Não foi pacífica, desde logo a nível da Doutrina o acolhimento da figura em análise; a posição tradicional rejeitava esta garantia como fraude, à lei constituindo assim um pacto nulo. Progressivamente o “pacto fiduciário” veio a ter aceitação com base na ideia da respectiva neutralidade. O mesmo é em princípio axiologicamente neutro e à partida permitido, atento o princípio da liberdade contratual consignado no artigo 405º do Código Civil; o fim para que for conferido é que lhe confere carácter lícito ou ilícito, o que aliás encontra eco no artigo 280º nº 2 do Código Civil.”
Não se equaciona, como se disse, a solução jurídica dada ao litígio, razão por que nos abstemos de ir mais além, vista a delimitação do objecto do recurso face ao disposto no artigo 598º, n.º 1 do CPC.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pelo recorrente.
Macau, 23 de Outubro de 2014,

Relator João A. G. Gil de Oliveira

Primeiro Juiz-Adjunto Ho Wai Neng

Segundo Juiz-Adjunto José Cândido de Pinho
1 - Ac. deste TSI, Proc. n.º 522/2006, de 872/2007
2 - Ac. do STJ, Proc. n.º 1942/06.5TBMAI.P1.S1, de 23/2/2012
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91/2014 1/33