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Processo nº 549/2014 Data: 16.10.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “burla (qualificada)” e “falsificação de documentos”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Pena.



SUMÁRIO

1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

2. Sendo os crimes de “burla qualificada” e de “falsificação de documentos de especial valor” punidos com as penas de 2 a 10 anos de prisão e de 1 a 5 anos de prisão, excessivas não são as penas de 2 anos e 9 meses de prisão (para o primeiro) e de 1 ano e 9 meses de prisão (para o segundo), já que tais penas estão tão só a 9 meses do mínimo legal.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 549/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, e 1 outro de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. c) e 245° do mesmo Código, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi a arguida condenada na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, assim como a pagar ao ofendido C (C), a quantia total de MOP$309.000,00 a título de indemnização; (cfr., fls. 209 a 218-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para, a final, em sede das conclusões de recurso e em síntese, afirmar que padece o Acórdão recorrido de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “excesso de pena”; (cfr., fls. 254 a 262).

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Em resposta, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 264 a 269-v).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Acompanham-se, no essencial e para o que aqui conta, as doutas considerações expendidas pelo Exmo colega junto do tribunal "a quo ", as quais demonstram, à saciedade, a falta de razão de ser do alegado pela recorrente em qualquer das sua vertentes, seja por pretenso erro de direito, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, ou por severidade excessiva relativamente a qualquer das penas aplicadas e respectivo cúmulo.
Na verdade, não se topa, através da factualidade dada como provada, a existência de matéria suficiente pela ocorrência, no caso, de eventual crime de usura para jogo por parte do ofendido, já que, além do mais, a versão apresentada pela recorrente relativamente ao "modus operandi", designadamente a exigência de juros ou "gorjeta'', não logrou ali consagração.
De todo o modo, ainda que assim sucedesse, ou venha a suceder (já que, pelos vistos, decorrerá inquérito autónomo contra os ofendidos por tal matéria), tal não invalidaria, por si, a não ocorrência do crime de burla imputado, mostrando-se, como se mostram, presentes e pertinentes os elementos típicos para o efeito.
Quanto ao mútuo, encontrar-nos-íamos de acordo com a recorrente quanto à sua não subsunção criminal: o problema é que, através dos factos dados como provados se evidencia não se ter tratado de qualquer empréstimo livre e voluntário, mas antes condicionado, determinado pela astúcia e artimanha da visada, a qual, através dos meios a que se alude nos pontos 2, 3, 8 a 10, 12 e 13 dos factos provados e com os mesmos provocando erro e engano no ofendido, o determinou à entrega dos valores em causa, pelo que mal se compreende, em tais parâmetros, a defesa de mútuo amigável, de cariz puramente civilista ...
Finalmente, atenta a moldura penal abstracta prevista para o crime de uso de documento falsificado de especial valor e os condicionalismos e circunstancialismos precisos em que tal ocorreu, afigura-se-nos sensata e adequada a medida concreta alcançada para tal ilícito, como sem reparo se apresenta o cúmulo empreendido, sendo que, a partir da medida do mesmo, desde logo fica arredada, sem mais, a possibilidade da suspensão da execução da pena almejada.
Donde, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, sermos a entender ser de manter o decidido”; (cfr., fls. 348 a 349).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 211 a 212-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem a arguida dos presentes autos recorrer do Acórdão do T.J.B. que a condenou como autora material da prática em concurso real de 1 crime de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, e 1 outro de “falsificação de documento de especial valor”, p. e p. pelos art°s 244°, n.° 1, al. c) e 245° do mesmo Código, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, assim como a pagar ao ofendido C (C), a quantia total de MOP$309.000,00.

É de opinião que padece o Acórdão recorrido de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e “excesso de pena”.

Cremos porém que não tem razão.

Vejamos, começando, como parece lógico, pelo assacado vício da “decisão da matéria de facto”.

–– Da alegada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Pois bem, como repetidamente temos entendido, o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e, mais recentemente de 23.01.2014, Proc. 756/2013).

E, como de uma mera leitura ao Acórdão recorrido se constata, evidente é que inexiste o vício em questão.

Com efeito, o Colectivo a quo não deixou de emitir pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, elencando a que resultou provada, identificando a que resultou não provada, e expondo, de forma adequada, estas suas decisões.

Dest’arte, razoável não é afirmar-se que incorreu no mencionado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, sendo de notar que outra “questão” – diversa – será a de saber se a matéria de facto provada foi bem enquadrada, (qualificada), como a prática dos crimes de “burla” e “falsificação de documentos” como decidido foi.

Aliás, a arguida considera existir o alegado vício de “insuficiência” em relação a um eventual crime de “usura” e “retenção de passaporte” que imputa ao ofendido dos autos.

Porém, certo sendo que nem sequer foi o mesmo ofendido acusado (da prática de qualquer crime), fácil é de ver que nenhum sentido tem tal “alegação”, mais não sendo necessário dizer sobre a questão.

E, seja como for, cremos nós que também em sede de enquadramento jurídico-penal censura não merece o decidido.

Com efeito, nos termos do art. 211° do C.P.P.M.:

“1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. Se o prejuízo patrimonial resultante da burla for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
4. A pena é a de prisão de 2 a 10 anos se:
a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado;
b) O agente fizer da burla modo de vida; ou
c) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica”.

E, preceitua também o art. 244° do mesmo Código:

“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo,
a) fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso,
b) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, ou
c) usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado, falsificado ou alterado por outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível”.

Provado estando, (em síntese) que a ora recorrente apresentou – “usou” – documentos de identificação e viagem (passaporte) e relativos a um veículo automóvel, (licença de circulação), contrafeitos, para se identificar e fazer crer que tinha posses para pagar um empréstimo (no montante de MOP$300.000,00) que lhe foi concedido pelo ofendido, e que, como tinha planeado, fez seu, claro é que verificados estão todos os elementos típicos dos crimes pelos quais foi condenada, nenhuma censura merecendo a decisão recorrida no que toca a este aspecto.

Com efeito, a mesma recorrente “usou” documento de especial valor falsificado, e obteve para si enriquecimento ilegítimo por meio de erro que criou no ofendido, causando a este prejuízo patrimonial, tendo agido voluntária e deliberadamente, e sabendo que a sua conduta era proibida e punida.

Dest’arte, e sendo que como temos vindo a entender, verifica-se “concurso real” entre os crimes de “burla” e “falsificação de documentos”, (cfr., v.g. Ac. de 23.01.2014, Proc. n.° 828/2013), bem andou pois o Colectivo a quo ao decidir como decidiu.

–– Quanto à “pena”, vejamos.

Ao crime de “burla” do art. 211°, n.° 1 e 4, al. a) do C.P.M. cabe a pena de 2 a 10 anos de prisão.

E, face a esta moldura penal, ao estatuído no art. 40° e 65° do C.P.M. sobre os “fins das penas” e “critérios para a sua determinação”, e atento também às necessidades de prevenção criminal, evidente é que excessiva não é a pena de 2 anos e 9 meses de prisão fixada para o crime de “burla”, apenas em 9 meses acima do limite mínimo, (e que até se mostra benevolente).

No que tange ao crime de “falsificação”, em causa estando “documentos de especial valor”, (passaporte), em causa está a pena de 1 a 5 anos de prisão; (cfr., art. 245° do C.P.M.).

Ora, tendo o Colectivo a quo fixado a pena em 1 ano e 9 meses de prisão, também aqui, apenas 9 meses acima do seu limite mínimo, mais não é preciso dizer.

Assim, e respeitado que foi o art. 71° do C.P.M., (no que toca aos limites da moldura penal e critérios para a fixação da pena única), e não nos parecendo existir qualquer motivo para alterar a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, resta pois confirmar – in totum – a decisão recorrida.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará a arguida (recorrente) a taxa de justiça de 6 UCs.

Macau, aos 16 de Outubro de 2014

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 549/2014 Pág. 14

Proc. 549/2014 Pág. 1