Processo nº 687/2014 Data: 20.11.2014
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Erro notório na apreciação da prova.
Crime continuado.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 687/2014
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar:
- A, B e C, 1°, 2° e 3° arguidos com os sinais do autos, como co-autores materiais da prática, na forma consumada em concurso real de, respectivamente, 14, 10 e 4 crimes de “peculato”, p. e p. pelo art. 340°, n.° 1 e art. 336°, n.° 2, al. c) do C.P.M., nas penas parcelares de 1 ano e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, nas penas únicas de 6, 5 e 3 anos e 3 meses de prisão; (cfr., fls. 332 a 346-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformados, os arguidos recorreram para, em sede das suas motivações e conclusões aí produzidas imputar à decisão recorrida os (mesmos) vícios de “erro notório na apreciação da prova” e de “errada aplicação do direito”, concretamente, na aplicação do art. 340° e 29°, n.° 2 do C.P.M.; (cfr., fls. 364 a 452).
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Respondeu o Ministério Público e a assistente “D”, pugnando pela improcedência dos recursos; (cfr., fls. 449 a 452 e 454 a 462).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Do douto Acórdão de fls.332 a 346 verso dos autos, surgiram três recursos interpostos respectivamente pelos arguidos C, A e B (cfr. Motivações de fls.364 a 387, de fls.389 a 418 e 419 a 446 dos autos).
Ora bem, as 3 Motivações e, nomeadamente, as conclusões aí formuladas revelam, com clareza e certeza, que tais 3 recorrentes/arguidos suscitaram questões de idêntica natureza, precisamente sintetizadas pela ilustre Colega na Resposta de fls.449 a 452 dos autos, quais são: 1)- erro notório na apreciação de prova; 2)- errada aplicação do preceituado no art.340° do Código Penal; 3)- a errada não aplicação do instituto de crime continuado previsto no n.°2 do art.29° do Código Penal.
Antes de mais, subscrevemos inteiramente as criteriosas explanações da ilustre Colega naquela Resposta, no sentido de não provimento desses três recursos na sua totalidade. E, com efeito, nada temos, de relevante, a acrescentar-lhes.
Em sede de erro notório na apreciação de prova, alegaram todos os recorrentes (vide. conclusões 5) a 7) das Motivações): 根本不可能核實兌碼價值;不應該被定性爲「以少換多」或被認定該行為引致的損失爲「數個一萬元」的情節;被上訴判決的事實認定部份也清楚闡述有關的認定乃基於證人的「經驗」而非是「己證明之事實」。
Consistindo em questionar a suficiência das provas - não existindo in casu suficientes provas para sustentarem a conclusão, estes três argumentos não se integram em nenhuma das modalidades, definidas pelos Venerandos TUI e TSI, do erro notório da apreciação de prova, e são vedados por colidirem directamente com o princípio da livre convicção de prova consagrada no art.114° do CPP.
No que diz respeito à errada aplicação do preceituado no art.340° do CP, basta-nos acrescentar aqui que as fichas de apostas promotoras obtidas pelos recorrentes são, com efeito, bens móveis que se pertencem ao casino ofendido, e o valor total das fichas obtidas por qualquer um dos recorrentes excede, sem dúvida, «valor diminuto» de 500 patacas previstas na c) do art.196° do CP.
Daí que não pode deixar de cair na terra o argumento em apreço.
Ponderando os factos provados relativamente às condutas desses recorrentes, afigura-se-nos concludente que não existia situação exterior que poderiam diminuir consideravelmente a culpa.
Nestes termos, entendemos que a conduta de qualquer um deles não constitui crime continuado consignado no n.° 2 do art. 29° do Código Penal, mas concurso efectivo de crimes de peculato p.p. pelo disposto no n.° 1 do art. 340° do mesmo diploma legal.
Por todo o exposto acima, propendemos pelo não provimento dos três recursos em apreço”; (cfr., fls. 479 a 480).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 337 a 342, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem os (1°, 2° e 3°) arguidos A, B e C recorrer do Acórdão do T.J.B. que os condenou nos termos atrás relatados.
São de opinião que o referido veredicto padece de “erro notório na apreciação da prova” e de “errada aplicação do direito”, concretamente na aplicação do art. 340° e 29°, n.° 2 do C.P.M..
Vejamos se tem razão, começando, como é lógico, pelo alegado “erro”.
Pois bem, sobre o sentido e alcance de tal vício (típico) da decisão de matéria de facto, repetidamente tem este T.S.I. considerado que:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014 do ora relator).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014).
Dito isto, vejamos.
Em síntese, dizem os arguidos que o Colectivo a quo não devia ter como provado que “fichas de jogo” em questão no processo eram de valor correspondente a H.K.D.$10.000,00, sem (também) concretizar quantas.
Pois bem, em sede da fundamentação quanto à sua “convicção” consignou o Colectivo a quo o que segue:
“Na audiência de julgamento, o arguido A prestou declarações sobre a sua situação pessoal e familiar, tendo, contudo, mantido silêncio quanto aos factos criminosos que lhe foram imputados.
Os arguidos B, C e E, na audiência de julgamento, prestaram declarações sobre as suas situações pessoais e familiares, tendo, contudo, negado os factos criminosos que lhes foram imputados e o conhecimento do arguido A-
A testemunha XXX, na audiência de julgamento, prestou claramente explicação quanto ao sucedido do caso por si presenciado através das câmaras de supervisão e do visionamento de gravações.
A testemunha XXX, na audiência de julgamento, contou o sucedido sobre a investigação do caso.
A testemunha XXX, prima da 2a arguida B), na audiência de julgamento, prestou declarações quanto ao seu conhecimento sobre a 2a arguida B e 3° arguido C.
Na audiência, foi feito o visionamento da parte de gravações.
Na audiência, foi consultada a lista telefónica constante do telemóvel do arguido E, não tendo nela sido encontrados o nome do arguido A nem o registo de chamada telefónica através de XXX e XXX.
Após ter feito sintetizada e objectivamente uma análise das declarações prestadas pelos quatro arguidos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas, em conjugação com as provas documentais e as materiais ora apreendidas examinadas na audiência, embora os arguidos B e C tenham negado os factos criminosos que lhes foram imputados, segundo o visionamento da parte das gravações feito na audiência, podemos verificar claramente que, todas as vezes os arguidos A, B e C aproveitaram-se da distracção de outras pessoas para procederem imediatamente ao chamado "acto de troca de fichas", circunstância essa tal como descrita no auto de visionamento de gravação, que pode qualquer pessoa normal verificar claramente: os três arguidos não estavam a trocar as fichas mas sim furtar as fichas. Só que o Tribunal não consegue confirmar, nos respectivos furtos, qual a quantidade concreta das fichas do valor facial de dez mil cada que tinham sido levadas; quanto ao arguido E, se o mesmo interveio ou não na actividade criminal nos autos, o presente Colectivo entende que a prova objectiva é fraca e que resta ainda dúvida quanto a isso; assim, pelo assim exposto e segundo a análise feita de acordo com a experiência das pessoas em geral, o presente Colectivo deu por provados os supracitados factos”; (cfr., fls. 342 a 342-v).
Perante isto, cabe dizer que ainda que seja verdade que o Tribunal não tenha conseguido provar “quantas” fichas de H.K.D.$10.000,00 foram alvo da “actuação dos arguidos”, dúvidas não teve que eram “várias”.
Ora, sendo exactamente isso que consignou em sede da “matéria de facto dada com provada”, não vemos como considerar que incorreu em “erro notório na apreciação da prova”.
Com efeito, nenhuma censura merece o decidido nesta parte, pois que afigura-se-nos perfeitamente normal e (natural) que não tenha conseguido contar o “número de fichas” uma vez que a “jogada” era rápida, e as fichas eram colocadas em “pilha”, umas em cima das outras, e “cobertas com a mão”, o que, não obstante poderem vir a ser identificadas quanto ao seu valor (individual) pelo seu formato, características e cor, pode tornar difícil apurar “quantas” eram efectivamente, sabendo-se, até pela altura da pilha que eram “várias”, (para efeitos de excluir que o seu valor fosse “diminuto”, ou seja, inferior a MOP$500,00, cfr, art. 196°, al. c) do C.P.M.).
Daí, e constatando-se que apenas pretendem os recorrentes impor a sua versão dos factos, afrontando o “princípio da livre apreciação da prova”, (cfr., art. 114° do C.P.P.M.), mais não é preciso dizer sobre a questão.
O mesmo sucede com o “envolvimento” dos arguidos nos crimes em questão, pois que está claramente explicitada a razão que levou o Colectivo a quo a decidir da forma que decidiu, ou seja, pela “co-autoria” e nos termos atrás descritos.
–– Quanto ao “erro de direito”, dizem os arguidos que provado não ficou o “elemento subjectivo” do(s) crime(s) pelo(s) qual(is) foram condenado(s), e ainda que sempre se devia qualificar a sua conduta como a prática de 1 “crime continuado”.
Ora, quanto ao alegado “elemento subjectivo”, evidente nos parece que não tem razão.
Com efeito, expressamente consignado está no Acórdão recorrido que os 3 arguidos “agiram com dolo, de forma livre e consciente”, que “o arguido A, como funcionário (croupier) do Casino XXX da D, pertencente ao trabalhador da sociedade que explora actividades em regime de exclusivo, e os arguidos B, C, bem sabendo a qualidade do arguido A, a fim de obter para si os interesses ilegítimos, agiram, em conjunto e em conluio, dividindo tarefas entre si, mediante a forma de troca do muito pelo pouco, para usurpar as fichas do casino acima indicado, nomeadamente, A e B, em conjunto e em conluio, dividindo tarefas entre si, realizaram dez vezes a usurpação ilícita das fichas do supracitado casino, além disso, A ainda, em conjunto e em conluio com C, dividindo tarefas entre si, realizaram quatro vezes a usurpação ilícita das fichas do supracitado casino”, e que “tinham perfeito conhecimento de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”.
Atenta a fundamentação pelo Colectivo a quo apresentada, inexistindo “erro” – muito menos – “notório na apreciação da prova”, visto está que também na parte em questão não podem obter provimento os recursos em apreciação.
Por fim, vejamos agora da pretendida qualificação de conduta dos arguidos como “crime continuado”.
Sobre a matéria, e ainda recentemente, teve este T.S.I. oportunidade de considerar que:
“O conceito de crime continuado é definido como a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”, e que, a não verificação de um dos pressupostos da figura do crime continuado impõe o seu afastamento, fazendo reverter a figura da acumulação real ou material”; (cfr., v.g., o Acórdão de 21.07.2005, Proc. n.°135/2005, e recentemente, o Acórdão de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014).
Também recentemente, por douto Acórdão de 24.09.2014, Proc. n.° 81/2014, (e com abundante doutrina sobre a questão), voltou o Vdo T.U.I. a afirmar que:
“O pressuposto fundamental da continuação criminosa é a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”, e que,
“Os tribunais devem ser particularmente exigentes no preenchimento dos requisitos do crime continuado, em especial na diminuição considerável da culpa do agente, por força da solicitação de uma mesma situação exterior”.
Motivos não havendo para se alterar o que se deixou exposto, e percorrendo a factualidade provada, cabe dizer que não se vislumbra a dita “situação exterior que diminua – consideravelmente – a culpa” dos arguidos, o que, inevitavelmente, e como supra também se deixou consignado, implica estar-se perante a figura da “acumulação real ou material de crimes”.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face de todo o exposto, e em conferência, acordam negar provimento aos recursos.
Pagarão os recorrentes a taxa individual de justiça que se fixa em 6 UCs.
Macau, aos 20 de Novembro de 2014
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tan Hio Wa (com declaração de voto)
Processo nº 687/2014 (Autos de recurso penal)
Recorrente: A
B
C
Data: 20 de Novembro de 2014
Declaração de voto
Vencida por seguintes razões:
Concordo com a decisão do douto acórdão de negar provimento aos recursos.
No entanto, conforme o disposto no art.336º nº2 al.c) do Código Penal, ao funcionário são equiparados os trabalhadores de empresas concessionárias de serviços ou bens públicos ou de sociedades que explorem actividades em regime de exclusivo.
Exploração de actividades em regime de exclusivo deve ser entendida como só a uma sociedade podia ser atribuída a concessão.
No entanto, segundo a Lei nº16/2001, no seu art.7º nº2, conjugado com o despacho do Chefe Executivo nº 26/2002, são atribuídas três concessões às diferentes sociedades para a exploração de jogos de fortuna ou azar.
Assim sendo, as sociedades que exploram os jogos de fortuna ou azar deixam de ser em regime de exclusivo, e em consequência, os seu funcionários não podem ser equiparados como funcionários.
Nesta conformidade, a conduta dos arguidos devem ser qualificadas para crimes de abuso de confiança, previstos e punidos no art.199º do Código Penal.
A Segunda Juiz Adjunta
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Tam Hio Wa
Proc. 687/2014 Pág. 20
Proc. 687/2014 Pág. 19