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Processo nº 310/2014
(Revisão de Sentença do Exterior)

Data: 27/Novembro/2014

   
   Assuntos:
   
- Revisão de Sentença do exterior

    
    SUMÁRIO :
    
    É de confirmar uma sentença proferida pelos Tribunais de Hong Kong, relativa a um divórcio por mútuo consentimento, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna.
    
    
O Relator,

(João Gil de Oliveira)




Processo n.º 310/2014
(Recurso Civil)
Data : 27/Novembro/2014

Requerente : B

Requerida : C

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    B B, divorciado, de nacionalidade Chinesa, titular de Bilhete de Identidade de Residente Permanente número XXXXXXX(X), residente em Macau R.A.E., na Rua do ......, ... , Edf. ....... Taipa B1. ..., ... andar ..., vem requerer,
    Contra
    C, divorciada, de nacionalidade Chinesa, com domicílio profissional em Hong Kong, YYY Corporation Limited, Marketing Department, ......, ...... Hong Kong;

ACÇÃO DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO
DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
    O que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:

    Por sentença proferida pelo DISTRICT COURT OF THE HONG KONG SPECIAL ADMINISTRATIVE REGION MATRIMONIAL, em 10 de Janeiro de 2003, na Acção n.º XXXX de 2002, foi julgado dissolvido o casamento entre a Requerida e o Requerente celebrado em 2 de Outubro de 1993 (cfr. doc. 1 que se junta aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais).

    A sentença foi proferida em 10 de Janeiro de 2003 e já transitou em julgado, em 27 de Fevereiro de 2003, segunda a Lei de Hong Kong pois, não foi objecto de qualquer recurso. (cfr. doc. 1)

    O Requerente é residente permanente de Macau.

    A Requerida é residente permanente de Hong Kong.

    A Requerida foi a requerente na acção referida, o requerente foi citado, tendo, a mesma, transitado em julgado sendo registada em 27 de Fevereiro de 2003.

    A referida sentença não ofendeu disposições da ordem pública e decretou uma condenação em dissolução de casamento definitiva em tudo equivalente e produzindo os mesmos efeitos da lei de Macau.

    A mencionada sentença consta de documento cuja autenticidade e inteligência não deve haver dúvidas, provém de tribunal competente e não pode ser objecto de excepções.

    Está, assim em condições de ser revista e confirmada por esse Venerando Tribunal, atento o disposto no art. 1199º e seguintes do Código de Processo Civil.

    Deve, pois, ser revista e confirmada por esse Venerando Tribunal a referida decisão para produzir os seus efeitos em Macau.
    Nestes termos,
    Com o Mui Douto suprimento de V. Exªs, deve ser revista e confirmada a decisão proferida pelo DISTRICT COURT OF THE HONG KONG SPECIAL ADMINISTRATIVE REGION MATRIMONIAL, a fim de produzir efeitos em Macau.
    Para tanto,
    Requer que, se digne ordenar citar a requerida, através de carta registada para a morada acima indicada, para, no prazo de 15 dias se opor à confirmação, se assim o desejar, seguindo-se os demais termos da lei até final.
    
    Foi oportunamente citada a requerida que não deduziu qualquer oposição.
    
    O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.

Foram colhidos os vistos legais.

    
    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.

    
III - FACTOS
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
    Relativamente ao processo de divórcio que correu seus termos nos Tribunais de Hong Kong, foi proferida sentença certificada nos seguintes termos:
    
“Certidão da Sentença de Divórcio Absoluto (divórcio)
No Tribunal de Distrito da
Região Administrativa Especial de Hong Kong
Acção Matrimonial (Matrimonial Cause) n.º XXXX de 2002

C Requerente
e
B Contestante

  A decisão de 10 de Janeiro de 2003 indicou a dissolução do casamento celebrado em 2 de Outubro de 1993, na Igreja de ...... (St. ...... Church) (75) situada na rua ...... Road 2A, ……, Hong Kong, entre
C Requerente
e
B Contestante

Decorrido o prazo de 6 semanas desde a proferição da respectiva decisão de divórcio (decree nisi), não existem motivos justificados que a impeçam de se tornar absoluta, pelo que determino aqui que tal decisão que decretou o divórcio torne-se final e absoluta em 27 de Fevereiro de 2003 e que o casamento em apreço dissolva-se.

28 de Fevereiro de 2003
[Assinatura]
D
Juiz Chefe de Distrito”


IV - FUNDAMENTOS
    O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal de Hong Kong, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
    
     1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
     2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
    
    *
    1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
    
    “1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
    
    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
    
    A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
    
    Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
    
    Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
    
    Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
    Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida pelo Tribunal de Hong Kong, Região Administrativa Especial da República Popular da China, de 10 de Janeiro de 2003, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
    
    Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
    
    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
    
    Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
    
    É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
    
    Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
    
    2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
    b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
    
    Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio requerido apenas por um dos cônjuges e não contestado pela outra parte.
    3. Da ordem pública.
    Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6 E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
    
    No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre o ora Requerente e a sua mulher, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
    
    Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo também prevê a dissolução do casamento, seja por via litigiosa, seja por mútuo consenso, seja a pedido de um dos cônjuges, como foi o caso, seja de ambos.
    
    O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
    
    V - DECISÃO
    
    Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão, proferida na acção matrimonial (matrimonial cause) n.º XXXX, de 2002, pelo Tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China, de 10 de Janeiro de 2003, tornada final e absoluta em 27 de Fevereiro de 2003, nos seus precisos termos.
    
    Custas pelo requerente.
     Macau, 27 de Novembro de 2014,
    
Relator João A. G. Gil de Oliveira

Primeiro Juiz-Adjunto Ho Wai Neng

Segundo Juiz-Adjunto José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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