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Processo nº 929/2009
Data do Acórdão: 30OUT2014


Assuntos:

Marca de forma
Capacidade distintiva
Secondary meaning


SUMÁRIO

1. As marcas de forma, também se denominam marcas tridimensionais, consistem na forma do próprio produto, não sendo todavia susceptíveis de protecção se forem constituídas exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto, pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico e pela forma que confira um valor substancial ao produto.

2. Por secondary meaning quer-se aludir ao particular fenómeno de conversão de um sinal originariamente privado de capacidade distintiva num sinal distintivo de produtos ou serviços, reconhecido como tal, no tráfico económico, através do seu significado secundário, por consequência do uso e de mutações semânticas ou simbólicas.

O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 929/2009


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos do recurso jurisdicional na matéria de propriedade industrial, registado sob o nº CV1-09-0006-CRJ, do 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:

  A, CO LTD, com sede em 10-1, …………, Japão, actualmente denominada A Playing Cards Co, Ltd veio, ao abrigo do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, aprovado pelo DL 97/99/M, de 13 de Dezembro, interpor recurso judicial do despacho de recusa de registo emitido pelo Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia, publicado no Boletim Oficial de 4 de Fevereiro de 2009.
  Alega a Requerente que pretendendo registar a marca tridimensional consistente em:
  
  
  
  
  
  
  para produtos incluídos na classe 28, nomeadamente para "caixa para cartas de jogar", o DPI após exame da marca, optou por recusar o registo da marca.
  A sua recusa em proceder ao registo da marca advém do facto desta não poder ser objecto de protecção porque não tem capacidade distintiva.
  Ora, alega a Requerente que o despacho fez incorrecta aplicação da legislação em vigor e como tal requer a sua anulação e se ordene que se proceda ao registo da marca o produto requerido, nos termos legais.
  
  Recebido o recurso, remeteu-se à DSE cópia da petição de fls. 3 e ss e respectivos documentos, para os efeitos da resposta ao recurso e remessa do processo atinente à recusa em causa, tudo nos termos do art° 278°, nºs 1,2 e 3 do RIP, aprovado pelo DL 97/99, de 13/12.
  
  Em tempo veio a Direcção dos Serviços de Economia da Região Administrativa Especial de Macau, responder ao recurso pugnando pela manutenção do despacho.
*
  O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e nacionalidade.
  O processo é o próprio e o requerimento inicial não é inepto.
  Não se verificam excepções, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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  FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
  Com relevo para a decisão ficaram apurados os seguintes factos:
  l.Em 23 de Junho de 2008 a Recorrente requereu o registo de marca:
  
  
  
  
  
  
  para produtos na classe 28°, "caixa para cartas de jogar", que tomou o nº N/XXXXX.
  2.O DIP recusou a marca, nos termos constantes do despacho junto aos autos a fls. 18 a 21 (do apenso), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
  3.Tal despacho foi publicado no Boletim Oficial do dia 4 de Fevereiro de 2009.
*
  DOS FACTOS E SUA SUBSUNÇÃO AO DIREITO:
  Estabelece o art° 197° do RJPI que "só podem ser objecto de protecção ao abrigo do presente diploma, mediante um título de marca, o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente palavras, incluíndo nomes de pessoas, desenhos, letras, números, sons, a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas".
  Resulta pois deste preceito que as marcas tem que ter aptidão para distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos produtos ou serviços de outra empresa, podem ser integradas por uma combinação de vários sinais, podendo ser marcas gráficas ou figurativas e marcas mistas.
  Ora, e no que ao caso sub judice diz respeito, analisemos duas situações que não merecem a tutela conferida às marcas.
  Conforme decorre da alínea a), do nº 1, do art° 199° do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, não satisfazem as condições referidas, entre outras, os sinais constituídos exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto, pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico.
  Analisemos pois estas duas situações.
  Conforme decorre do preceito atrás citado, não satisfazem as condições referidas, entre outras, os sinais constituídos exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto.
  Na verdade, constitui requisito imprescindível da marca o facto de o seu titular ou requerente poderem escolher o respectivo sinal com livre arbítrio.
  Ora se, como refere o Dr. B, in Direito de Marcas, pág. 247, a "marca é composta pela forma imposta pela natureza do produto, nem sequer se pode falar em existência de marca. O sinal cuja forma é imposta pela própria natureza do produto constitui uma contradição ao conceito de marca ou anti-marca".
  E pelos mesmos motivos, C, citado na obra atrás referida, refere que tal limite à protecção se estende à forma habitual do produto.
  Por outro lado, como resulta do preceito atrás enunciado, não satisfazem as condições referidas, os sinais constituídos exclusivamente pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico.
  Na verdade, como refere o Dr. B, na obra referida, se fosse possível registar como marca, a forma necessária para obter um resultado técnico, estariamos, não só a conferir um exclusivo inadmissível, ficando o seu titular numa situação nitidamente privilegiada, como haveria um choque insanável de patentes e de marcas, destruindo-se aquele.
  Esta limitação abrange tanto a própria forma do produto necessária para obter um resultado técnico, como a forma dos invólucros e recipientes que tenham uma finalidade técnica e não de mera ornamentação.
  Tanto num caso como no outro, a correspondente forma não poderá registar-se Como marca sempre que da mesma advenham vantagens praticamente apreciáveis para a fabricação ou uso do produto ou recipiente. Tal ocorrerá quando a forma confere ao produto ou invólucro uma maior resistência ou facilidade de uso ou ainda quando resulta menos oneroso fabricar o produto ou recipiente dotado com a forma que pretende registar-se como marca.
  
  Tendo em conta as considerações atrás referidas, importa agora apreciar o caso concreto.
  Pretende a requerente A Co, Ltd ver anulado o despacho que recusou o registo da marca N/XXXXX consistente em:
  
  
  
  
  
  Trata-se, segundo a Requerente de uma marca tridimensional para "caixa para cartas de jogar".
  Alega no entanto a Requerente que a marca que pretende ver registada pretende distinguir um distribuidor de cartas inteligente, produto distinto dos distribuidores de cartas.
Junta para comprovar a originalidade e distinção em relação às outras caixas existentes, os documentos juntos aos autos, a fls. 18 a 34, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
Ora, sem entrar na distinção técnica entre distribuidor de cartas inteligente e distribuidor de cartas, a verdade é que conforme resulta dos documentos juntos aos autos, estes destinam-se ambos a guardar as cartas, permitir que estas sejam retiradas pelo croupier, sem serem vistas e serem depois distribuídas.
Ora, atentos os objectivos, as funções do produto em causa, resulta que a forma adoptada é a que se mostra mais adequada para guardar as cartas, permitir que estas dali sejam retiradas sem serem vistas pelos jogadores.
Entendemos pois que a forma do produto se mostra necessária para obter aquele resultado técnico.
Por tais motivos, a forma atrás referida não poderá registar-se como marca.
*
DECISÃO:
Nestes termos, julgo totalmente improcedente o recurso deduzido por A CO, Ltd.
Custas a cargo da Recorrente.
  

Não se conformando com o decidido, vem A Co. Ltd., requerente da marca registanda recorrer da mesma para este TSI e motivar o seu recurso concluindo e pedindo que:

1. O pedido de registo em referência é uma marca constituída pela forma tridimensional de um distribuidor de cartas de jogar para casino inteligente (vulgarmente chamado «shoe» inteligente) cujo processo técnico também é uma criação original detida pela Recorrente (patentes I/yyy e J/zzz).
2. A Recorrente registou a mesma marca junto do IXXX - Instituto de ……… - que tomou o número XXX e foi concedida em 23 de Março de 2009 (estando protegida como marca tridimensional nos 27 países da comunidade europeia).
3. Também nos Estados Unidos da América a presente marca foi registada no registo suplementar de marcas sob o número 3,xxx,xxx tendo o registo sido concedido em 8 de Setembro de 2009, na mesma classe 28.
4. A referida marca não está abrangida na proibição do artigo 199º, nº 1, alínea a) do RJPI, porque mesmo a forma útil de um produto pode ser registada desde que tenha elementos distintivos que a permitam distinguir de outras aplicadas à mesma funcionalidade.
5. A lei não impede que a conjugação de vários sinais genéricos, combinados entre si, possam ser registados nessa forma específica desde que tenham eficácia distintiva.
6. O artigo 197º do RJPI delimita positivamente os diversos sinais que podem ser objecto de protecção, nos seguintes termos: «Só podem ser objecto de protecção ao abrigo do presente diploma, mediante um título de marca, o sinal ou conjunto de sinais susceptíveis de representação gráfica, nomeadamente (...) a forma do produto ou da respectiva embalagem, que sejam adequados a distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outras empresas».
7. A eficácia distintiva de uma marca existe logo que se destaque suficientemente do domínio comum para ser apropriada individualmente.
8. É notória a intenção do legislador de incluir na enumeração dos sinais ou símbolos objecto de protecção todos aqueles que, independentemente de serem, ou não, de uso comum ou genérico, confiram eficácia distintiva aos produtos do requerente, sem que isso signifique uma apropriação pelo requerente dos elementos individuais componentes da marca.
9. Em ambos os ordenamentos, espaço Europeu e EUA, a marca foi registada por se ter entendido que a forma deste produto não é necessária à obtenção de um resultado técnico - não é uma forma meramente funcional.
10. Quando o formato original do produto se torna um elemento essencial para a identificação deste a ponto do consumidor poder identificar a sua origem por meio da simples observação do seu design, isto significa que aquela forma passou a ganhar ares e conotação de marca, podendo ser requerido seu registo marcário na classe de produtos destinada a tal actividade - é o que está especialmente previsto no artigo 214°, nº 3 do RJPI.
11. O ponto crucial para a constitucionalidade da protecção que se pretende conferir à forma do produto (o chamado "trade dress") da Requerente é a satisfação completa do requisito da distintividade como secondary meaning.
12. A forma ornamental do produto D adquiriu carácter distintivo de marca por meio da consagração das suas formas perante o público consumidor.
13. A forma do D está notoriamente ligada à sua origem, ao seu fabricante - a A CO. LTD não havendo dúvidas para o público consumidor que a forma tridimensional do D permite distinguir e diferenciar este dos restantes distribuidores inteligentes no mercado.
14. Esta forma constitui assim uma marca capaz de assegurar a diferenciação das diversas empresas produtoras de distribuidores de cartas, pela sua qualidade e constitui uma fonte de segurança para o público consumidor.
15. Por outro lado, a forma pretendida como marca destaca-se em grau suficiente para se separar eficazmente daquilo que está e deve permanecer no domínio comum.
16. Não existem vantagens de natureza utilitária no design exterior do seu produto e esta configuração é apenas um de muitos designs possíveis, eficientes e competitivos.
17. A marca tridimensional que se pretende registar não é objecto de nenhum pedido ou registo de modelo ou desenho industrial.
18. A configuração exterior do produto não é objecto de nenhum pedido ou registo de patente de invenção ou patente de utilidade.
19. Mas, o D é objecto de duas patentes de invenção sob os números I/157 (para dispositivo de distribuição de cartas) e J/69 (para dispositivo para inspecção e distribuição de cartas) que incluem desenhos e ilustrações para descrever a sua funcionalidade no entanto, nenhum destas gravuras mostra o distribuidor de cartas com esta especifica configuração exterior.
20. Do mesmo modo, nenhuma das funcionalidades e particularidades descritas nas referidas patentes de invenção ditam ou impõem a configuração tridimensional do D.
21. Por isso a configuração tridimensional que se pretende registar não é funcional ao contrário do que pretende a Direcção dos Serviços de Economia e o Meritíssimo Juiz a quo.
22. É notória a existência de configurações exteriores alternativas ao design da recorrente para dispositivos para distribuição de cartas inteligentes e tais configurações têm eficiência equivalente e são igualmente competitivas.
23. O formato do produto da recorrente também não resulta de um método comparativamente simples ou barato de fabrico em comparação com possíveis configurações alternativas.
24. Em suma, os registos de patentes de invenção da recorrente não descrevem quaisquer vantagens utilitárias ou funcionais da configuração que se pretende registar como marca tridimensional. A publicidade ou brochuras existentes no mercado relativamente a distribuidores de cartas inteligentes também não referem qualquer vantagem funcional de tal configuração. Há configurações alternativas competitivas.
25. Pelo contrário o formato e características da marca tridimensional que se pretende registar, a localização dos botões, dos visores, a altura, o comprimento, tudo isso são características arbitrárias que em conjunto tornam esta configuração distinta de muitas outras possíveis. à Direcção dos Serviços de Economia que cabe o ónus d a prova da funcionalidade da marca, e não a recorrente que tem de demonstrar a sua falta de funcionalidade.
26. Não obstante o que ficou dito é claro pela comparação entre os desenhos, e gravuras presentes nos registos de patente correspondentes ao produto (I/yyy e J/zzz) que aquela forma não é necessária.
27. A sentença violou assim os princípios estabelecidos nos artigos 197° e 214° do Regime Jurídico da Propriedade Industrial.
REQUERIMENTO DE PROVA:
Requer-se nos termos do artigo 451°/2 do CPC seja admitida a junção de cópias dos registos das patentes 1/yyy e J/zzz, cuja necessidade de junção só surgiu após a prolação da sentença recorrida e ainda nos termos do artigo 451°/2 do CPC de cópia do registo da marca número 3,xxx,xxx nos EUA cujo registo apenas foi concedido em 8 de Setembro de 2009, na mesma classe 28, nos Estados Unidos da América, já na fase de alegações de recurso.
Nestes termos, e nos mais em Direito consentidos que Vós, Excelentíssimos Juízes, Mui Doutamente suprireis, se requer seja a Douta Sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue de mérito em favor da Recorrente, procedendo-se ao correspondente registo requerido,
e seguindo-se os demais termos até final para que, pela Vossa Douta Palavra se cumpra a
JUSTIÇA!


Notificadas da interposição do recurso e da motivação do recurso, vem a Direcção dos Serviços de Economia a responder pugnando pela improcedência do recurso – vide as fls. 142 a 147 dos p. autos.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do disposto no artº 282º do RJPI, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

De acordo com o alegado nas conclusões dos recursos, as questões levantadas que delimitam o thema decidendum na presente lide recursória podem ser reduzidas à questão de saber se a marca registanda tem capacidade distintiva e portanto pode servir como marca, e subsidiariamente se adquiriu a capacidade distintiva através do secondary meaning.

Com as alegações do presente recurso, a recorrente juntou cinco documentos ora constantes das fls. 86 a 135 dos p. autos e formulou o seguinte requerimento:

Requer-se nos termos do artigo 451º/2 do CPC seja admitida a junção de cópia dos registos das patentes I/yyy e J/zzz, cuja necessidade de junção só surgiu após a prolação da sentença recorrida e ainda nos termos do artigo 451º/2 do CPC de cópia do registo da marca número 3,xxx,xxx nos EUA cujo registo apenas foi concedido em 8 de Setembro de 2009, na mesma classe 28, nos Estados Unidos da América, já na fase de alegações de recurso.

Assim, antes de nos debruçarmos sobre a questão de mérito, colocadas na relação da subsidiariedade, há que resolver o incidente da junção tardia dos documentos pelo recorrente com a petição do recurso.

Para fundamentar a improcedência do recurso, a Exmª Juiz a quo entende que:

Ora, sem entrar na distinção técnica entre distribuidor de cartas inteligente e distribuidor de cartas, a verdade é que conforme resulta dos documentos juntos aos autos, estes destinam-se ambos a guardar as cartas, permitir que estas sejam retiradas pelo croupier, sem serem vistas e serem depois distribuídas.

Ora, atentos os objectivos, as funções do produto em causa, resulta que a forma adoptada é a que se mostra mais adequada para guardar as cartas, permitir que estas dali sejam retiradas sem serem vistas pelos jogadores.

Entendemos pois que a forma do produto se mostra necessária para obter aquele resultado técnico.

Por tais motivos, a forma atrás referida não poderá registar-se como marca.

Em face do assim decidido, a ora recorrente juntou cinco documentos ora constantes das fls. 86 a 135 dos p. autos, que são cópias dos títulos de patente de invenção nºs 1/yyy e J/zzz, dos documentos anexos explicativos dos pormenores dos respectivos objectos da protecção por via de patente de invenção, e do documento certificativo do registo da marca registanda nos EUA, tendo para o efeito invocado o artº 451º/2 do CPC, à luz do qual “os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.”.

Como já estamos na fase de recurso, a junção dos documentos nesta fase rege-se pelo artº 616º do CPC, que reza:

1. As partes podem juntar documentos às alegações nos casos a que se refere o artigo 451.º ou no caso de a junção apenas se tornar necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
2. Os documentos supervenientes podem ser juntos até se iniciarem os vistos aos juízes; até esse momento podem ser também juntos os pareceres de advogados, jurisconsultos ou técnicos.
3. É aplicável à junção de documentos e pareceres, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 467.º e 468.º

Todavia, ante os termos em que foi invocado na petição do recurso o fundamento legal para justificar a junção tardia, nós ficamos sem saber se foi ao abrigo da primeira parte ou da segunda parte do citado artº 616º/1 que a recorrente juntou os documentos, isto é, se se trata da junção nos termos permitidos no artº 451º ou da junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.

Ora, a apresentação da prova por documentos rege-se pelas regras gerais consagradas no artº 450º do CPC, que reza:
(Momento da apresentação)
1. Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
2. Se não forem apresentados com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até ao encerramento da discussão em primeira instância, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Em situações excepcionais, as partes são autorizadas a juntar documentos após os articulados ou mesmo após o encerramento da discussão em primeira instância.

São as situações previstas no artº 451º do CPC que preceitua:
(Apresentação em momento posterior)
1. Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
2. Os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária por virtude de ocorrência posterior, podem ser oferecidos em qualquer estado do processo.
Paralelamente às situações excepcionais previstas no artº 451º, a lei autoriza especificamente que se juntem às alegações de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados ou os documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º do CPC.

In casu, tendo em conta o alegado pela recorrente na minuta do recurso e o teor dos documentos que se juntaram com a mesma minuta, podemos indeferir logo a junção do documento certificativo do registo da marca registanda nos EUA em 08SET2009 por ser manifestamente inútil.

Reconhecendo embora a natureza superveniente da sua obtenção dada a data do registo que é posterior à data da prolação da sentença ora recorrida, o tal documento só tem a virtualidade de comprovar o simples facto de uma marca, eventualmente a marca registanda, ter sido registada como tal nos EUA.

E mais nada.

Pois a decisão de conceder o registo pelas autoridades norte-americanas nunca é vinculativa para as autoridades competentes da RAEM.

Em relação aos restantes documentos, cremos que também não é de admitir conforme demonstramos infra.

Importa aqui saber se se trata da junção que se torna necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artº 616º/1, in fine, do CPC.

Ao interpretar o artº 706º/1 do CPC Português, que corresponde o artº 616º/1 do nosso CPC, com vista a averiguar em que circunstância pode a sentença da primeira instância determinar a necessidade da junção de um documento ao processo, João Espírito Santo citou o Acórdão do STJ de 24ABR1936 defendendo que “tal, sucederá quando nela se rejeita o critério seguido pelas partes e se adoptam factos novos. A ideia da introdução pelo julgador, quando profere a decisão, de factos não alegados pelas partes é dificilmente conciliável com a trave-mestra do processo civil: o princípio dispositivo. Essa conciliação parece só poder fazer-se a partir do princípio inquisitório em matéria instrutória, que, apesar de ter perdido a formulação genérica antes contida no n.º 3 do art.º 264.º, continua a habilitar o juiz, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer, a realizar ou ordenar oficiosamente diligências probatórias. Com efeito, esse poder de que goza o julgador, habilita-o a introduzir no processo meios probatórios com que as partes podiam, justificadamente, não contar, e a fundar a sua decisão nesses meios, sem que tal signifique o conhecimento de factos de que lhe não é lícito conhecer. É precisamente este o pressuposto da admissibilidade da junção de documentos a que se reporta a segunda parte do n.º 1 do art. 706.º, ou seja, contraditar, mediante prova documental, meios probatórios introduzidos de surpresa no processo, que venham a pesar na decisão” – in O Documento Superveniente para Efeito de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina.

Compulsados os autos, não verificamos, quer ao longo de toda a tramitação no TJB, quer na fundamentação da sentença recorrida, que a Exmª Juiz chegou a introduzir no processo meios probatórios com que a recorrente podia não contar e a fundar a sentença recorrida nesses meios.

O que a Exmª Juiz a quo invocou para fundamentar a recusa do registo é a conclusão de que a marca registanda, que é a forma do produto, não tem capacidade distintiva, conforme as configurações representadas pelos documentos já juntos aos autos ab initio.

Assim, não se verificando qualquer das situações previstas no artº 616º/1 do CPC que permitem excepcionalmente a junção dos documentos às alegações do recurso, é de indeferir a pretendida junção dos documentos, ora constantes das fls. 86 a 134 dos p. autos, e consequentemente ordenar o seu desentranhamento.

Decidido o incidente da junção dos documentos, passemos então à apreciação do objecto do recurso.

Assim, passemos a debruçar-nos sobre essa única questão levantada, isto é, se a marca registanda tem capacidade distintiva.

A propósito de conceito de marcas, o Prof. Ferrer Correia ensina que se trata de um sinal destinado a individualizar produtos ou mercadorias e a permitir a diferenciação de outros da mesma espécie e que a marca é um sinal distintivo de mercadorias ou produtos – in Lições de Direito Comercial, Vol. I, 312 a 313.

Quanto à constituição de marcas, diz o mesmo Mestre que “Os interessados gozam de grande liberdade na escolha dos sinais distintivos que hão-de constituir a marca. Prevalece aqui em grande escala a imaginação e a fantasia. A marca pode ser constituída por um sinal ou conjunto de sinais nominativos (marca nominativa), figurativos ou emblemáticos (marca figurativa ou emblemática), ou por uma e outra coisa conjuntamente (marca mista ……)” – ibidem, 321 a 322.

Para além dessas marcas ditas tradicionais, o artº 197º do RJPI reconhece a susceptibilidade de ser objecto da protecção como marca a forma do produto, desde que seja adequada a distingui-lo dos de outras empresas.

São as chamadas marcas tridimensionais.

Essas marcas tridimensionais, consistentes na forma do próprio produto, não são todavia susceptíveis de protecção se forem constituídas exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto, pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico e pela forma que confira um valor substancial ao produto – artº 199º/1-a) do RJPI.

In casu, a marca registanda é uma marca de forma e consiste em:

Na óptica da Exmª Juiz a quo, a marca registanda que a requerente, ora recorrente, pretende ver registada para distinguir o seu produto que é um distribuidor de cartas de jogar dos outros distribuidores de cartas de jogar, tem precisamente a forma necessária para obter o resultado técnico, que é guardar as cartas e permitir que estas sejam retiradas pelo croupier, sem serem vistas e serem depois distribuídas, não sendo portanto susceptível de protecção face ao disposto no artº 199º/1-a) do RJPI.

Para a recorrente, sendo os dispositivos para a distribuição e inspecção de cartas, montados no interior do produto que a marca registanda visa assinalar, objecto das duas patentes de invenção concedidas pela DSE, e não havendo nenhuma das funcionalidades e particularidades destes dispositivos descritos nas referidas patentes de invenção que dita ou impõe a configuração tridimensional da marca registanda, a forma do produto não é funcional.

E pelo contrário, a recorrente entende que o formato e características da marca tridimensional que se pretende registar, tendo em conta a localização dos botões, dos visores, a altura, o comprimento, são características arbitrárias que em conjunto tornam esta configuração distinta de muitas outras possíveis. ´

Além disso, mesmo que não se entenda assim, a recorrente defende que a marca registanda já adquiriu, por via do chamado secondary meaning, carácter distintivo de marca por a forma ornamental do distribuidor das cartas de jogar estar de tal modo divulgada nos casinos de Macau que os consumidores que vêem este distribuidor de cartas conseguem imediatamente identificar o seu produtor.

Então comecemos primeiro pela análise do requisito negativo da protecção consagrado no artº 199º/1-a) do RJPI.

Diz o artº 199º/1-a) do RJPI que não são susceptíveis de protecção os sinais constituídos exclusivamente pela forma imposta pela própria natureza do produto, pela forma do produto necessária à obtenção de um resultado técnico ou pela forma que confira um valor substancial ao produto.

Como se vê na sentença ora recorrida, como a marca registanda tem a forma que, na óptica da Exmª Juiz a quo, é necessária à obtenção de um resultado técnico, que é guardar as cartas de jogar e permitir que estas sejam retiradas pelo croupier, sem serem vistas e serem depois distribuídas, a marca registanda não é susceptível de ser objecto de protecção face ao disposto do artº 199º/1-a) do RJPI.

A marca em causa encontra-se ilustrada a fls. 4 do processo administrativo, donde consta as seguintes configurações sob vários pontos de vista:













Ora, o produto em causa tem uma configuração de uma caixa, tendencialmente rectangular, e apesar de se não apresentar com os ângulos rectos em todas extremidades e com arestas ou lados paralelos dois a dois em todas as faces, nota-se que a forma exterior do produto foi concebida para criar no interior do produto um espaço tridimensional necessário ao armazenamento das cartas nele inseridas e o produto apresenta-se como uma forma capaz de proporcionar uma cavidade suficientemente longa e necessária ao deslizamento das cartas no seu interior por forma a permitir o funcionamento do mecanismo da inspecção das cartas e uma abertura chata e curvada que permite o croupier a desembocar manualmente as cartas.

Não são portanto para nós arbitrárias, fantasiosas ou meramente ornamentais as tais características aparentes.

Por outro lado, a mesma conclusão deve igualmente formular-se em relação à localização na parte exterior do produto dos botões, dos visores e das luzes, cuja existência na parte exterior do produto não tem a virtualidade de distinguir o produto, mas sim necessária à inserção de um conjunto das cartas para ser inspeccionado no interior do produto, à operação pelo croupier do processo da inspecção, à ilustração do processamento da inspecção e à desembocadura das cartas de jogar para serem retiradas após a tal operação no interior do produto a fim de serem distribuídas.

Para sustentar a sua tese, a recorrente defende que, sendo os dispositivos para a distribuição e inspecção de cartas comportados no produto que visa assinalar a marca registanda objecto das duas patentes de invenção concedidas pela DSE mediante os títulos nºs I/yyy e J/zzz, e não tendo estes dispositivos nenhuma das funcionalidades e particularidades que dita ou impõe a configuração tridimensional da marca registanda, a forma do produto é somente ornamental e não está associada com qualquer efeito técnico.

Conforme se vê supra, os tais documentos tardiamente juntos não foram admitidos.

Não são portanto tidos em conta.

No entanto, tratando-se de um distribuidor “inteligente”, naturalmente temos de reconhecer que o produto contém no seu interior dispositivos “inteligentes”.

Para a recorrente, se a funcionalidade dos dispositivos inteligentes, objecto das duas patentes de invenção concedidas pela DSE, não impõe nem dita aquela forma exterior do produto, a forma está dissociada de qualquer efeito técnico.

É-nos demasiado simples senão lacunoso o tal raciocínio.

Pois não podemos esquecer, como bem frisou a Exmª Juiz a quo, que estamos perante um distribuidor das cartas de jogar, inteligente ou não, tem necessariamente as funções mais elementares de guardar as cartas e de permitir que as cartas sejam retiradas pelo croupier.

São, para nós, precisamente essas funções, materiais e não inteligentes, que ditam ou impõem a configuração tridimensional da marca registanda.

E essa função consiste em operações meramente materiais que não requerem quaisquer dispositivos inteligentes nem susceptíveis de ser protegidas por via de patente de invenção.

Assim, a circunstância do design exterior do produto não ser objecto das duas patentes de invenção não quer dizer que o tal design esteja completamente dissociado de quaisquer efeitos técnico e funcional do produto.

Finalmente, debrucemo-nos sobre a invocação subsidiária da aquisição da capacidade distintiva por via do chamado secondary meaning, por a forma ornamental do distribuidor das cartas de jogar estar de tal modo divulgada nos casinos de Macau que os consumidores que vêem este distribuidor de cartas conseguem imediatamente identificar o seu produtor.

Por secondary meaning quer-se aludir ao particular fenómeno de conversão de um sinal originariamente privado de capacidade distintiva num sinal distintivo de produtos ou serviços, reconhecido como tal, no tráfico económico, através do seu significado secundário, por consequência do uso e de mutações semânticas ou simbólicas – Luís M. Couto Gonçalves, in Direito de Marcas, 2ª ed., Almedina, 2003, pág. 98.

É verdade que a recorrente alegou e tentou provar os factos demonstrativos do uso intensivo do seu produto no meio de várias concessionárias de jogo na RAEM e do conhecimento notório pelos interessados do sector da forma do produto para sustentar a pretendida aquisição da capacidade distintiva por via do chamado secondary meaning, nomeadamente através de um documento simples onde se especificam as concessionárias de jogo de fortuna e azar que alegadamente utilizam o produto em causa, assim como os casinos e o número das mesas de baccarat – vide a p.i. e o documento constante das fls. 17 dos p. autos.

É também verdade que estes factos não foram dados por provados na sentença recorrida e que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre esta questão.

Pois na sentença recorrida foi dado como factualidade assente e relevante à decisão da causa apenas o seguinte:

1. Em 23 de Junho de 2008 a Recorrente requereu o registo de marca:
  
  
  
  
  
  
para produtos na classe 28°, "caixa para cartas de jogar", que tomou o nº N/XXXXX.
2. O DIP recusou a marca, nos termos constantes do despacho junto aos autos a fls. 18 a 21 (do apenso), cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Tal despacho foi publicado no Boletim Oficial do dia 4 de Fevereiro de 2009.

Em vez de impugnar a matéria de facto provada ou arguir a nulidade de sentença por omissão de pronúncia, a recorrente vem limitar-se a repetir, nesta instância, grosso modo, aquilo que já foi alegado sobre a invocada aquisição da capacidade distintiva através do secondary meaning na petição do recurso para o TJB, não podemos senão julgar improcedente esta parte de recurso por inexistência de matéria de facto e por carácter não oficioso do conhecimento da questão de secondary meaning.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam indeferir a requerida junção tardia de documentos e ordenar o desentranhamento dos mesmos, e julgar improcedente o recurso, mantendo na íntegra a sentença recorrida e mantendo a decisão da DSE que não concedeu o registo à recorrente.

Custas pela recorrente, do incidente da junção tardia de documentos, com taxa de justiça em 2 UC, e do recurso.

Cumpre o disposto no artº 283º do RJPI.

Registe e notifique.

RAEM 30OUT2014

Lai Kin Hong
(Relator)

João A. G. Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz -Adjunto)

Ho Wai Neng
(Segundo Juíz -Adjunto)