Processo nº 521/2014 Data: 04.12.2014
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”.
Erro notório.
Ilações da matéria de facto.
Garantia do empréstimo.
SUMÁRIO
1. “Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova.
2. É lícito ao T.S.I. tirar ilações da matéria de facto dada como provada.
3. Se o arguido depois de negociar as condições do empréstimo (para jogo) com a ofendida, (no que toca ao montante, juros e forma de pagamento), exige que esta lhe entregue o passaporte, que depois entrega a outro co-arguido que o mantém em sua posse, lícito é concluir que o “passaporte” servia de “garantia patrimonial”.
O relator,
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Processo nº 521/2014
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, (1°) arguido com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado como co-autor de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13° e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, e na pena acessória, de proibição de entrada nas salas de jogos por 2 anos e 6 meses; (cfr., fls. 286 a 291 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu para, em síntese imputar ao Acórdão recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “errada qualificação jurídica da matéria de facto dada como provada”; (cfr., fls. 298 a 308).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 311 a 315).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Da análise do conteúdo do argumentado pelo recorrente, facilmente se alcança pretender o mesmo, através de uma leitura e análise pessoalíssimas do que pretende ter sido a prova produzida nos autos, pôr em causa a livre apreciação da mesma por parte do tribunal, sem sustentabilidade fáctica relevante e atendível, nada indicando ou sugerindo, em termos de sendo comum, de normalidade apreciativa, que, perante a factualidade apurada, se impusesse, ou houvesse que impor, ao espírito do julgador qualquer dúvida legítima ou razoável acerca da prática, por parte do visado, do ilícito imputado, nos seus precisos termos.
Pretende o recorrente não ser ele o "patrão" que concedeu o empréstimo para o jogo, o que, a seu ver, se alcançará pela mera leitura do depoimento e reconhecimento efectuados pelo ofendido, ao que acrescenta a circunstância de os 2° e 3° arguidos terem declarado não saberem quem concedera tal empréstimo.
Porém, o tribunal "a quo", após devida comparação global e crítica de todas as provas (declarações do ofendido e respectivo reconhecimento, declarações dos co-arguidos, depoimento do agente policial, imagens da videocassete e restantes provas documentais) adquiriu diferente convicção, não se vendo que com a mesma se tenha atropelado o senso comum, regras da experiência ou sobre o valor da prova tarifada ou vinculada, divisando-se, ao invés, (revelando-se, neste específico, particularmente assertiva e esclarecedora a análise empreendida pelo Exmo Colega nos pontos 1 a 15 das conclusões da sua "Resposta", sobre a valoração da prova produzida, bem como das incongruências e contradições da versão apresentada pelo recorrente) que tal convicção se funda solidamente em prova que, pelo senso comum, não poderia deixar de conduzir à mesma, ou seja, à efectiva participação do recorrente nos factos imputados, pelo que se não alcança onde a ocorrência de pretenso erro notório na apreciação da prova.
Conexionado ainda, por alguma forma, com tal vício, pretende ainda o interessado que, acerca da entrega do passaporte por parte do ofendido, a mesma se destinou exclusivamente à reserva de quarto de hotel, nada tendo a ver com garantia para pagamento do montante do empréstimo.
Mas, mais uma vez, não é tal o que resultou da prova produzida, relevando, a esse propósito, o facto de, após a elaboração da declaração de dívida, o dito passaporte não ter sido devolvido ao legítimo proprietário, tendo, antes, sido entregue a outro arguido, na posse de quem o mesmo foi detectado, pelo que, o mero facto de, após o jogo, o mesmo ter sido efectivamente utilizado para o fim de registo em quarto de hotel não detém a virtualidade de "apagar" aquela real intenção de apropriação/retenção do dito documento.
Donde, o evidente preenchimento do ilícito imputado, o que, em última análise, deverá conduzir à improcedência do presente recurso”; (cfr., fls. 396 a 397).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 287-v a 287, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido A recorrer do Acórdão que o condenou como co-autor de 1 crime de “usura para jogo com exigência ou aceitação de documento”, p. e p. pelos art°s 13° e 14° da Lei n.° 8/96/M e art. 219°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e 6 meses, e na pena acessória de proibição de entrada nas salas de jogos por 2 anos e 6 meses.
É de opinião que o Acórdão recorrido padece de “erro notório na apreciação da prova” e “errada qualificação da matéria de facto dada como provada”.
Decididamente, cremos que carece de razão, sendo de se subscrever, na íntegra, o douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto que dá cabal e cristalina resposta às “questões” pelo ora recorrente colocadas, pouco havendo a acrescentar.
Todavia, e seja como for, não se deixa de consignar o que segue.
–– Vejamos, começando pelo assacado “erro”.
O imputado vício, como vício próprio da decisão da matéria de facto, tem sido entendido como aquele que “existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014 do ora relator).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 23.10.2014, Proc. n.° 531/2014).
No caso, diz o recorrente que incorre o Colectivo a quo em “erro”, alegando, no fundo, que não teve envolvimento e que não cometeu o crime dos autos e pelo qual foi condenado.
Ora, vale a pena ver (relembrar) a fundamentação pelo T.J.B. exposta quanto à sua convicção. Tem o teor seguinte (na parte que agora releva):
“A convicção do Colectivo baseou-se principalmente na análise e comparação global e crítica de todas as provas produzidas na audiência de julgamento, nomeadamente as declarações prestadas pelo 1º arguido e as prestadas pelos 2º e 3º arguidos no interrogatório realizado no Ministério Público, declarações essas foram lidas na audiência de julgamento nos termos do art.º 338.º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, e os depoimentos prestados pelo ofendido B nos termos do art.º 253.º do Código de Processo Penal (Declarações para Memória Futura) que foram também lidas na audiência de julgamento nos termos do art.º 337.º, n.º2, al. a) do mesmo código, os depoimentos prestados pelas testemunhas C e D (ambos investigadores da Polícia Judiciária) que foram lidos na audiência de julgamento, bem como examinados todas as provas documentais e objectos apreendidos existentes dos autos.
Na realidade, após ouvidas as declarações prestadas pelo arguido e pelas testemunhas na audiência, em conjugação com outras provas documentais, em particular, as imagens da videocassete divulgadas na audiência, indubitavelmente, pode-se dar por provado o facto de todos arguidos terem praticado um crime de usura para jogo com exigência ou aceitação de documento. Contudo, segundo a situação do local onde foi encontrado o ofendido, o presente Colectivo entende que ainda não existe prova suficiente para dar por provada a prática efectiva pelos 2º e 3º arguidos de um crime de sequestro”; (cfr., fls. 289).
Atento o assim exposto, e certo sendo que a prova foi pelo Colectivo a quo apreciada na sua globalidade e de forma cruzada, (como cremos, só pode ser), e não se vislumbrando qualquer desrespeito a regras sobre o valor das provas legais, regras de experiência ou legis artis, evidente se mostra que escusado é estar o arguido ora recorrente a tentar sindicar a convicção do mesmo Colectivo, invocando “pormenores soltos” que, como é óbvio, não tem a virtude de anular a decisão proferida.
Aliás, não se pode esquecer que o mesmo recorrente foi “reconhecido” pela ofendida dos autos, a qual relatou que foi a pessoa que concedeu o “empréstimo ilícito” e negociou as suas “condições” assim como a que lhe exigiu a entrega do passaporte.
Perante isto, ociosas são mais alongadas considerações sobre a questão.
–– Quanto ao alegado “erro de direito”.
Aqui, diz o recorrente que provada não está a “exigência do documento da ofendida” para efeitos de se integrar a sua conduta no art. 14° da Lei n.° 8/96/M.
Ora, atenta a factualidade dada como provada, outra é a nossa opinião.
Desta, (e de forma clara), consta que após se acertar as condições do empréstimo quanto ao seu “montante”, “juros” e “forma do seu pagamento”, e, perante a “exigência” do recorrente, a ofendida entregou(-lhe) o seu passaporte (…). Aliás, prescrevendo o art. 14° que basta a “aceitação de documento”, sempre se teria de considerar que o recorrente “aceitou o passaporte da ofendida”.
E, nesta conformidade, evidente sendo que tal “entrega” não foi para que o arguido apreciasse ou ajudasse a guardar tal documento, óbvio é, (assim resultando do contexto de tal “transferência”), que o mesmo era para “garantir o empréstimo concedido”, pois que a ofendida permaneceu sem o seu passaporte que foi encontrado na posse de um outro arguido dos autos, co-autor do mesmo crime de “empréstimo ilícito agravado”, e a quem o ora recorrente o entregou depois de receber da ofendida.
Nesta conformidade, e ainda que expressamente consignado não esteja tal circunstância, há que ter em conta que pode este T.S.I. “tirar ilações da matéria de facto dada como provada”, (cfr., v.g., o recente Ac. do TUI de 30.07.2014, Proc. n.° 12/2014), sendo esta a solução que no caso se nos mostra de adoptar.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Macau, aos 04 Dezembro de 2014
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Proc. 521/2014 Pág. 16
Proc. 521/2014 Pág. 15