Processo nº 475/2014
(Revisão de Sentença do Exterior)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 11/Dezembro/2014
Assuntos:
- Revisão de Sentença do Exterior
SUMÁRIO :
É de confirmar uma sentença proferida pelos Tribunais do Interior da China, relativa a um divórcio litigioso, que veio a ser aceite por ambos os cônjuges, desde que se mostre a autenticidade e inteligibilidade da decisão revidenda, desde que transitada, não se tratando de matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau e não se vendo em que tal confirmação possa ofender os princípios de ordem pública interna.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 475/2014
(Recurso Civil)
Data : 11/Dezembro/2014
Requerente : A -
(na modalidade de dispensa do pagamento de preparos, custas e dos honorários)
Requerida : B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, mais bem identificado nos autos, vem, ao abrigo do preceituado nos arts. 1199° e segs. do Código de Processo Civil, instaurar contra:
B, também ela aí mais bem identificada, ACÇÃO DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA DE DIVÓRCIO, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1°
Requerente e Requerida contrairam matrimónio em 4 de Janeiro de 2006, em Zhuhai, República Popular da China (Doc. n.º 1, cujo original se encontra junto ao processo de concessão de apoio judiciário).
2°
Por sentença proferida em 20 de Novembro de 2012 e transitada em julgado em 7 de Janeiro de 2013, registada sob o n.º XXXX, do Tribunal Popular da Zona de Heong Chao, Cidade de Zhuhai, Província de Guangdong, República Popular da China, e por mútuo consentimento, foi decretado o respectivo divórcio (Docs. n.º 2 e 3).
3°
O douto aresto proveio de Tribunal competente segundo as regras de competência e conflitos de competência da lei da R.A.E.M., não briga com os princípios de ordem pública da R.A.E.M. e não é passível de excepções, não havendo ainda dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligibilidade da decisão.
APOIO JUDICIÁRIO
4°
A insuficiência económica do Requerente para suportar os encargos e despesas deste processo está comprovada pelos documentos que se encontram juntos ao processo de concessão de apoio judiciário n.º 2014-A0201.
5°
Por deliberação do Comissão de Apoio Judiciário foi deferido o pedido do Requerente de isenção de preparos e das custas, bem como de nomeação de patrono (Doc. n.º 4).
Pelo exposto e pelo mais que não deixará de ser doutamente suprido por Vossa Excelência,
DEVE a sentença revidenda ser confirmada para todos os efeitos de Direito, decretando-se assim a validade do divórcio em Macau.
PARA TANTO, requer que a Requerida seja citada para, querendo, deduzir oposição, seguindo-se os ulteriores termos até final.
Este pedido não sofreu oposição por parte da requerida, que foi citada para o efeito.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
1. Vêm certificados os seguintes actos e sentença proferida na acção de divórcio de divórcio que correu seus termos em Tribunal de Zhuhai, República Popular da China:
“Proc.º n.º475/2014
1ª pag.
Carimbo (Ministério dos Assuntos Civis da RPC, vide original)
Elaborado pelo Ministério dos Assuntos Civis da RPC
2ª pag.
O pedido de casamento preenche o disposto na Lei Matrimonial da RPC, pelo que autoriza-se o casamento e emite-se certidão.
A entidade de registo
Carimbo (Departamento de Registo Civil de Zhuhai, China, vide original)
O funcionário do registo de casamento (ass. vide original)
3ª pag.
A detentora B
Data do registo: 04/01/2006
Registo de casamento nº 010600001 da série Yue Zhu Jie
Observações
4ª pag.
Nome: B, do sexo feminino, de nacionalidade chinesa, nascida em 02/11/1965, doc. de ident. nº XXXX
Nome A, do sexo masculino, de nacionalidade chinesa, nascido em 03/01/1969, doc. de ident. nº XXXX
5ª pag.
Nos termos da Lei Matrimonial, os cônjuges que pretendem contrair casamento, têm de comparecer pessoalmente na entidade de registo de casamento para tratar do registo de casamento. No preenchimento do disposto na presente lei, autoriza-se o registo e emite-se certidão. Obtida a certidão de casamento, fica de imediato, estabelecida a relação marital.
6ª pag.
Nº XXXX
TRIBUNAL POPULAR DA REGIÃO DE XIANG ZHOU DA CIDADE DE ZHUHAI DA PROVÍNCIA DE GUANGDONG
SENTENÇA CIVIL
Reg. nº XXX do Tribunal Civil de Base de Zhu Xiang da série (2012)
Autor: A, do sexo masculino, nascido em 03/01/1969, residente no XXXXXX da Região de Xiangzhou, da Cidade de Zhuhai da RPC, é portador do BIRM não permanente: XXXX.
Ré: B, de etnia Han, nascida em 02/01/1965, residente na XXXXXX, Macau, portadora do BIRM nº XXXX.
O autor A intentou acção de divórcio litigioso contra a ré B, o presente Tribunal depois de receber a presente acção, nos termos da lei o(a) julgador(a) C, com intervenção do tribunal singular, procedeu o julgamento fechado ao público. O autor A e a ré B compareceram na audiência de julgamento. O julgamento da presente acção terminou.
O autor A, declara que conheceu a ré em Zhuhai, RPC, em Setembro de 2005; em 04/01/2006 contraíram casamento no Departamento de Registo Civil de Zhuhai da RPC. Não têm filhos, nem bens comuns. Dado que o autor e a ré conheceram só por alguns meses e registaram o casamento, ambas as partes não tiveram tempo suficiente para se conhecerem as próprias personalidades, hábitos, valores e pretensão da vida. O autor munido de documento de via única veio para Macau, trabalhando como guarda de segurança, por trabalhar com frequência nos turnos da noite, causou descoordenação da função neurological, insónias, depilação dos cabelos e sobrancelhas, ao mesmo tempo, por ter que ficar muito tempo de pé, com o decorrer do tempo começou a sentir dores crónicas nos pés. A sobrecarga e stress do autor não obteve compreensão por parte da ré, além disso, os dois são teimosos, carecem de compreensão mútua, por isso, era frequente entrar em conflito. Dado que ambas as partes sentem repugnância e não conseguem aceitar um ao outro, por isso já se encontram separados há mais de 2 anos. Pelo exposto, o autor e a ré carecem de entendimento mútuo, não tiveram base na relação amorosa, quanto aos valores da vida, temperamento e hábitos são muito diferentes um do outro, causando a impossibilidade de manter a vida em comum. Depois do casamento não conseguiram estabelecer uma relação marital, os conflitos eram cada vez mais fortes. Devido ao Facto o autor A intentou a presente acção, apresentou o seguinte pedido: que seja decretada o presente divórcio litigioso, entre o autor e a ré.
O autor A apresentou as seguintes provas: 1. Formulário sobre informação pessoal de cidadão residente; 2. Certidão de cancelamento do registo domiciliário (do autor A); 3. Cópias dos documentos de identificação do autor e da ré), salvo-conduto da RPC e certidão de casamento.
A ré B, concorda divorciar com o autor, requeira ao Tribunal que seja decretada o divórcio entre o autor e a ré.
A ré B não apresentou quaisquer provas.
Após julgamento, foi apurado que o autor A conheceu a ré em Zhuhai, RPC, em Setembro de 2005; em 04/01/2006, os dois contraíram casamento no Departamento de Registo Civil de Zhuhai da RPC. Não têm filhos, nem bens comuns. Durante a convivência, por possuírem feitios diferentes causou desarmonia na relação amorosa do casal, os quais já se encontravam separados há mais de 2 anos.
Entende o Tribunal que o autor e a ré pretendem divorciar, pelo que decreta o divórcio entre ambos. Nestes termos, o presente tribunal autoriza o divórcio litigioso entre o autor e a ré.
Pelo exposto, nos termos do artº 32º da Lei Matrimonial da RPC o tribunal decreta o seguinte:
Autoriza o divórcio entre o autor A e a ré B, que a partir da data em que produzir efeito legal a presente sentença, fica extinta a relação marital.
Reduz-se as custas para metade, na quantia de 150 reminbis, a suportar pelo autor e pela ré, no montante de 75 reminbis a cada um.
Inconformados com a sentença, podem, no prazo de 30 dias, a partir da data da do recebimento da presente sentença, interpor recurso ao presente Tribunal, entregando as cópias conforme o número de pessoas da outra parte, sendo o recurso apresentado ao Tribunal Civil de 2ª Instância da Cidade de Zhuhai da Província de Guangdong.
(sem docs. nesta pag.)
Está conforme o original
Carimbo (TRIBUNAL POPULAR DA REGIÃO DE XIANG ZHOU DA CIDADE DE
ZHUHAI DA PROVÍNCIA DE GUANGDONG) o(a) julgador(a) C vide original
20/11/2012, o escriturário D”
2. O Tribunal Popular da Região de Xiang Zhou da cidade de Zhuhai da Província de Guangdong mais certifica o trânsito nos seguintes termos:
“Certidão vigente
Reg. nº 460 do Tribunal Civil de Base de Zhu Xiang, série (2012)
Acção de divórcio entre o autor A e a ré B, foi proferida sentença com registo nº 460 do Tribunal Civil de Base de Zhu Xiang da série (2012), que passa a produzir efeito a partir do dia 01/07/2013.
Emite-se a presente certidão para servir de prova.
Carimbo, vide original
Aos 14/01/2013”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal Popular da Região de Xiang Zhou da cidade de Zhuhai da Província de Guangdong - Reg. nº 460 do Tribunal Civil de Base de Zhu Xiang, série (2012) -, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
- Requisitos formais necessários para a confirmação;
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
- Compatibilidade com a ordem pública;
2. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
3. Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida em acção de divórcio intentada pela esposa do ora requerente no Tribunal respectivo da cidade de Zhuhai, da Província de Guangdong, proferida em 20 de Novembro de 2011, cujo conteúdo facilmente se alcança, por ruptura conjugal e impossibilidade de recuperação do convívio e falta de harmonia entre o casal, divórcio esse pretendido por ambos os cônjuges, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
4. Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
De qualquer modo não se deixa de comprovar que aquela decisão produziu efeitos a partir de 1/7/2013.
5. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Macau
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio requerido apenas por um dos cônjuges e contestado pela outra parte.
6. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6
E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar o acórdão que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre ambos os requerentes, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, até por vontade de ambos os cônjuges, tal como acabou por se verificar neste caso, constando do processo que o casamento chegou a um ponto em que já não era possível continuar, por desarmonia sentimental e ruptura dos laços conjugais, situação essa que a sentença não deixa de reflectir.
O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão proferida no processo de divórcio entre o requerentes A e a requerida B, decisão judicial essa, proferida pelo Tribunal Popular da Região de Xiang Zhou, da cidade de Zhuhai, da Província de Guangdong, República Popular da China - na acção sob o Reg. nº 460 do Tribunal Civil de Base de Zhu Xiang da série (2012) - com decisão proferida no dia 20 de Novembro de 2012 que passou a produzir efeito a partir do dia 1 de Julho de 2013, que decretou o divórcio dos cônjuges, tudo como consta do certificado de fls. 5 a 10.
Custas pelo requerente.
Macau, 11 de Dezembro de 2014,
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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475/2014 1/3