Proc. nº 185/2014
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 4 de Dezembro de 2014
Descritores:
-Procedimento disciplinar
-Prescrição do procedimento
-Pena disciplinar a agente não é funcionário
-Acto renovável
-Acto renovador
-Eficácia retractiva e futura
-“Non bis in idem”
-Desvio de poder
SUMÁRIO:
I - O prazo de prescrição do procedimento disciplinar contra funcionário é de 3 anos sobre a data em que a falta houver sido cometida (art. 289º, nº1, ETAPM).
II - Para efeito de suspender o prazo de prescrição (art. 289º, nº3, ETAPM), importa que a instauração do procedimento disciplinar tenha sido manifestada tempestivamente e por quem detinha competência para o fazer. Será essa a data a considerar para a contagem do prazo prescricional.
III - Tratando-se de uma infracção de execução prolongada no tempo, o prazo só começa a correr após o último dos factos integrados na conduta punida.
IV - Obsta ao decurso do prazo prescricional a pendência de recurso contencioso interposto do acto punitivo. Em tal caso, a suspensão, que já vem da instauração do procedimento, perdura até ao trânsito em julgado da decisão judicial que recair sobre o recurso contencioso dele interposto.
V - Nos termos do art. 280º, nº 2, do ETAPM, a cessação de funções (por exemplo, por aposentação) e a mudança de situação (por exemplo, licença sem vencimento, mudança de local de emprego em virtude de comissão de serviço, etc.) não impedem a punição por infracções cometidas durante o exercício dessas funções.
VI - Em tais hipóteses, continua a haver interesse e utilidade a aplicação da pena, nem que seja por uma razão de salvaguarda da eventual e futura reentrada num qualquer órgão da Administração Pública para o exercício de públicas funções.
VII - Se pelo seu comportamento o funcionário foi punido disciplinarmente com uma determinada pena disciplinar (por exemplo, a pena de suspensão por 180 dias), anulada judicialmente por erro num dos pressupostos de facto, está integralmente cumprida e executada a decisão judicial se a entidade administrativa competente, após o trânsito em julgado do acórdão anulatório, no mesmo procedimento e com base nos factos então apurados, renova o acto punitivo, aplicando desta vez uma pena inferior (por exemplo, suspensão por 120 dias).
VIII - O acto renovador na hipótese referida em VII não tem eficácia retroactiva.
IX - Isso porém não impede a compensação, isto é, não obsta a que a Administração no próprio acto considere já cumprida no que respeita ao seu afastamento do serviço. Isto não é conferir eficácia retroactiva a esse acto renovador, mas simplesmente operar com referência ao passado; é actuar com atraso por referência à situação que existia; é como se a Administração actuasse em momento anterior àquele em que efectivamente o faz.
X - Os actos administrativos punitivos que dêem execução a sentença anulatória de outros actos punitivos apenas produzem efeitos desde a data em que ele (acto renovador) tiver sido produzido.
XI - Não ofende o princípio “ne bis in idem” a aplicação de pena igual, ou inferior, reduzida à anteriormente anulada e, entretanto, efectivamente cumprida, se a sanção aplicada pelo acto renovador é mandado descontar na primitiva, impedindo-se assim uma duplicação de cumprimento de pena.
XII - O vício de desvio de poder dá-se quando a Administração, no exercício de poderes discricionários, se subjuga a um interesse principalmente determinante não consentâneo com o fim depositado na norma ao conceder-lhe aqueles poderes (v.g., quando actua com um fim persecutório; com um fim de interesse público diferente do legalmente previsto; com prossegue um fim de interesse privado em vez do interesse público, por razões de amizade, parentesco, corrupção, conluio, etc.).
Proc. nº 185/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário destes Serviço, com os demais sinais dos autos, recorre contenciosamente para este tribunal da decisão do Ex.mo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura de 29/01/2014 que, na sequência da anulação judicial do seu anterior despacho de 16/02/2012, de novo lhe aplicou uma pena disciplinar de 120 dias de suspensão do exercício de funções.
Na petição inicial, a recorrente formulou as seguintes conclusões:
«a) A responsabilidade disciplinar da recorrente deve declarar-se prescrita, pelo menos relativamente aos factos anteriores ao ano de 2011.
b) A sanção aplicada à recorrente é ilegal por impossibilidade material e jurídica do seu objecto, - o que a fere de nulidade por força do disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 122.º Código do Procedimento Administrativo, - pois a Recorrente já não é funcionária daqueles Serviços, pelo que não é susceptível de ser suspensa.
c) A decisão recorrida violou os limites do princípio da não retroactividade, aplicável no âmbito do direito sancionatório em geral, por decorrência da actuação dos princípios gerais do Direito Penal, e que significa ainda que a proibição da retroactividade se estende a outras agravações ulteriores da situação jurídica do arguido.
d) A decisão recorrida violou o princípio da proibição non bis in idem.
e) A decisão recorrida viola flagrantemente as injunções dos artºs. 113.º a 115.º do Código do Procedimento Administrativo.
f) Efectivamente, não contém todos os elementos enunciados no art.º 113.º do Código do Procedimento Administrativo (a que faz referência o n.º 2 do art.º 27.º do Código de Processo Administrativo Contencioso), nomeadamente, não faz qualquer enunciação dos factos imputados à Recorrente.
g) De igual modo, não esclarece de que forma foram os mesmos factos valorados e como produziu a subsunção dos mesmos às normas legais aplicáveis.
h) Em suma, a decisão recorrida apresenta-se completamente destituída de qualquer fundamentação.
i) O que equivale, in casu, a dizer que a decisão recorrida é ilegal por total ausência de libelo acusatório, de que possa a Recorrente vir a produzir adequada defesa. O que a torna absolutamente nula.
j) Pois, não é de admitir que a Recorrente seja sujeita a nova punição sem a possibilidade de produzir nova defesa. E este direito de defesa foi-lhe totalmente sonegado, porquanto não foi a mesma notificada de qualquer acto anterior àquele de que ora se recorre.
k) A decisão recorrida é abusiva e perpétua, contra a realidade dos factos, a condição de funcionária da Recorrente.
Termos em que, e nos melhores de Direito que Vxªs. doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso e, consequentemente, ser a decisão recorrida declarada nula, nomeadamente por violação do disposto no art.º 122.º, n.º 2, al. c) do Código do Procedimento Administrativo, ou anulada, por violação de lei, nomeadamente por violação do princípio da não retroactividade das sanções disciplinares, sendo por isso anulável, nos termos do disposto no art.º 124.º do Código do Procedimento Administrativo e artºs. 20.º e 21.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, e ou, bem assim, nos mesmos termos, por violação do disposto no artºs. 113.º a 115.º do Código do Procedimento Administrativo».
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A entidade administrativa apresentou contestação, na qual formulou as seguintes conclusões:
«i. A Recorrente alega, como fundamento do seu recurso, que a decisão recorrida enferma de diversos vícios que determinam a sua nulidade e/ou a anulabilidade, nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 122.º, do artigo 124.º, dos artigos 113.º a 115.º, todos do CPA, e ainda dos artigos 20.º e 21.º do CPAC.
ii. De acordo com os factos dados como provados no Processo Disciplinar em causa (PD-02/2011), factos estes devidamente confirmados e estabilizados nas decisões judiciais entretanto proferidas, o facto mais antigo praticado pela Recorrente ocorreu em 2 de Setembro de 2008, sendo que o referido Processo Disciplinar foi instaurado por Despacho do Ex.mo Senhor Director dos Serviços de Saúde de 4 de Março de 2011.
iii. O que significa que à data da instauração do Processo Disciplinar ainda não tinham decorrido os três anos sobre a data em que as faltas foram cometidas.
iv. O mencionado Processo Disciplinar culminou em 16 de Fevereiro de 2012 com o Despacho Punitivo proferido pela Entidade Recorrida, tendo sido o mesmo comunicado à ora Recorrente no dia 29 de Fevereiro de 2012.
v. Por Acórdão de 18 de Dezembro de 2013 do Tribunal de Última Instância, o Despacho de 16 de Fevereiro de 2012 da Entidade Recorrida, que havia aplicado à Recorrente a pena de suspensão graduada em 180 dias, foi anulado com fundamento na violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM.
vi. Em consequência, e ao abrigo do preceituado nos n.º 1 e 2 do artigo 174.º do CPAC, a Entidade Recorrida determinou a execução daquela decisão judicial e proferiu Despacho Punitivo em 29 de Janeiro de 2014, tudo em conformidade com a referida decisão judicial.
vii. O que está, portanto, em causa no presente processo é a nova decisão da Entidade Recorrida tomada em consequência da anulação pelo Tribunal de uma decisão anterior. Isto é, o Despacho Punitivo datado de 29 de Janeiro de 2014 surge em consequência da execução devida da sentença anulatória proferida pelo Tribunal de Última Instância em 18 de Dezembro de 2013.
viii. Estamos perante um único Processo Disciplinar (o PD-02/2011) instaurado contra a ora Recorrente por factos por ela praticados enquanto trabalhadora dos Serviços de Saúde, sendo certo que com a instauração do competente Processo Disciplinar o prazo prescricional ficou suspenso, por força do n.º 4 do artigo 289.º do ETAPM.
ix. O citado prazo prescricional não pode ser retomado pelo simples facto da Recorrente ter interposto recurso contencioso do acto administrativo, pois se assim fosse bastaria aos arguidos lançar mão do direito que lhes assiste de recorrer contenciosamente para desse modo fazerem com que os factos por eles praticados fossem declarados prescritos.
x. A própria Recorrente mostra-se totalmente confusa em relação a esta matéria, já que começa por dizer que o procedimento disciplinar deverá ser considerado extinto pelo menos relativamente aos factos ocorridos no ano de 2008 para depois, em sede de conclusões, afirmar que “a responsabilidade disciplinar da recorrente deve declarar-se extinta, pelo menos relativamente aos factos anteriores ao ano de 2011.”.
xi. Não há qualquer prescrição dos factos praticados pela ora Recorrente, pelo que a mesma deverá ser disciplinarmente responsabilizada pela prática dos mesmos.
xii. A Recorrente labora ainda em equívoco quando afirma que como já não é funcionária dos Serviços de Saúde a sanção que lhe foi aplicada é ilegal por impossibilidade material e jurídica do seu objecto.
xiii. O Processo Disciplinar n.º 02/2011, reitera-se, foi instaurado contra a ora Recorrente por factos por ela praticados enquanto trabalhadora dos Serviços de Saúde e à data da referida instauração a Recorrente era ainda funcionária dos Serviços de Saúde.
xiv. Apesar de à data do despacho proferido em 29 de Janeiro de 2014 a Recorrente já não ser funcionária dos Serviços de Saúde, tal não se afigura impeditivo da sua “punição”, uma vez que deve ter-se presente que a responsabilidade disciplinar diz respeito, no caso em apreço, a factos/infracções praticados no decurso da relação de trabalho - vide, a este propósito, o n.º 2 do artigo 280.º do ETAPM.
xv. A responsabilidade disciplinar da ora Recorrente não pode cessar no momento em que o vínculo jurídico-laboral se extinguiu, pois estão em causa factos/infracções ocorridos na vigência da relação de trabalho, o respectivo Processo Disciplinar foi instaurado em data bastante anterior à cessação do seu vínculo laboral com os Serviços de Saúde e, bem assim, o Despacho Punitivo datado de 16 de Fevereiro de 2012 foi proferido quando a mesma ainda era trabalhadora dos Serviços de Saúde.
xvi. Ademais, o Despacho Punitivo datado de 29 de Janeiro de 2014 surge em consequência da anulação pelo Tribunal de Última Instância de uma decisão anterior, o que significa que o presente Despacho Punitivo fundamenta-se nos factos praticados pela Recorrente e dados como provados no Processo Disciplinar n.º 02/2011.
xvii. Não estamos, pois, em face de um processo disciplinar novo, nem perante a imputação à Recorrente de novos factos.
xviii. E mesmo que se possa considerar num primeiro momento, o que só por mera hipótese académica se admite, que a pena de suspensão pela sua própria natureza é inútil em termos práticos, uma vez que pressupõe o exercício efectivo de funções por parte da ora Recorrente, o que à data do Despacho Punitivo de 29 de Janeiro de 2014 já não se verifica, tal não pode ser atendido quanto à circunstância futura e hipotética de uma nova candidatura ao exercício de funções públicas e até mesmo privadas por parte da Recorrente.
xix. É de todo o interesse da Administração Pública que fique expressamente a constar no registo disciplinar da ora Recorrente a decisão final da Entidade Recorrida, até para salvaguardar futuras contratações pela influência negativa na apreciação que esses factos possam ter no futuro.
xx. Assim, a aplicação à ora Recorrente da pena de suspensão não é impossível, inútil, nem inócua.
xxi. A Recorrente faz uma interpretação errada do princípio da não retroactividade e do princípio ne bis in idem.
xxii. Uma vez que estamos perante uma decisão proferida na sequência da anulação judicial de uma decisão anterior e que houve cumprimento por parte da arguida/aqui Recorrente da pena anteriormente aplicada, nomeadamente no que se refere aos dias de afastamento do serviço, a nova decisão teria de considerar já cumprida essa parte da pena.
xxiii. Considerando que não foi instaurado um novo processo disciplinar à Recorrente, que o Despacho Punitivo em apreço foi proferido em estrita obediência à douta decisão do Tribunal de Última Instância e teve por base os factos dados como provados no Processo Disciplinar n.º 02/2011 e confirmados judicialmente e, por fim, que a pena aplicada à Recorrente obedeceu às normas legais em vigor à data dos factos praticados pela mesma, não pode a Entidade Recorrida deixar de discordar dos argumentos aduzidos a este propósito pela Recorrente.
xxiv. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, não há nos presentes autos qualquer violação posterior da situação jurídica da arguida/ora Recorrente, até porque a pena de suspensão graduada em 120 dias agora aplicada à Recorrente é inferior à pena que lhe havia sido aplicada anteriormente.
xxv. Ao praticar os factos que praticou, a Recorrente bem sabia que estava a violar os deveres gerais de isenção, de zelo e de não exercício de actividades incompatíveis, deveres esses a que estava obrigada por força do contrato de trabalho que celebrou com os Serviços de Saúde.
xxvi. A decisão recorrida não violou o princípio da não retroactividade, nem o princípio ne bis in idem, nem qualquer outro princípio legalmente consagrado, não enfermando, por isso, de qualquer vício.
xxvii. O acto administrativo tem-se como dotado de fundamentação suficiente se, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo constante do acto em causa, permitir a um destinatário normal ficar em condições de saber o motivo que levou a Administração a decidir daquela forma e não de outra - o que foi integralmente respeitado no acto administrativo ora posto em crise.
xxviii. A Recorrente tem total conhecimento dos factos por si praticados e, por conseguinte, dos motivos que levaram a Entidade Recorrida a decidir do modo que decidiu.
xxix. A Recorrente bem sabe que os Venerandos Tribunais superiores da RAEM deram como provados os factos constantes no Relatório Final do Processo Disciplinar n.º 02/2011, razão pela qual a própria Recorrente no presente recurso nada refere acerca dos factos por si praticados, o que comprova que a Recorrente tem plena consciência de que tais factos já não podem ser contestados, estando, portanto, a matéria de facto assente e estabilizada judicialmente.
xxx. A Recorrente tem pleno conhecimento de que o Despacho Punitivo proferido em 16 de Fevereiro de 2012 foi judicialmente anulado com fundamento na violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM, o que quer dizer que a circunstância agravante relacionada com a publicidade por via das notícias publicadas nos jornais não foi considerada na decisão recorrida, daí a pena aplicada ter sido inferior à anterior.
xxxi. A decisão administrativa impugnada pela Recorrente foi tomada tendo em conta a matéria de facto descrita e provada no Processo Disciplinar n.º 02/2011 e confirmada e estabilizada nas decisões judiciais entretanto proferidas, factos estes, reitera-se, que são do total conhecimento da Recorrente, não podendo a mesma vir agora alegar que não conhece os motivos subjacentes à decisão proferida pela Entidade Recorrida.
xxxii. Os artigos 27.º a 29.º das alegações de recurso estão desprovidos de qualquer sentido, pois estando os factos provados e estabilizados legal e juridicamente e tendo sido o Despacho Punitivo anterior anulado pelo simples facto de ter sido valorada uma agravante, não seria coerente que o processo disciplinar “voltasse para trás” de forma a que fosse deduzida uma nova acusação, sob pena de violação do princípio da desburocratização e da eficiência consagrado no artigo 12.º do CPA.
xxxiii. O acto administrativo impugnado encontra-se devidamente fundamentado, uma vez que evidencia com clareza os factos e o entendimento jurídico que serviram de motivação ao acto punitivo, permitindo a um destinatário normal saber as razões de facto e de direito que conduziram à tomada de decisão.
xxxiv. A Recorrente confunde duas figuras distintas: o abuso de poder, que se trata de um crime previsto e tipificado no artigo 347.º do Código Penal de Macau, com o desvio de poder, que constitui um dos fundamentos do recurso contencioso, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 21.º do CPAC.
xxxv. A decisão recorrida nunca poderia padecer do vício de abuso de poder, tal como equivocamente é invocado pela Recorrente».
xxxvi. Porém, mesmo considerando que se tratou de um lapso de escrita da Recorrente, a decisão sancionatória posta em crise também não enferma do vício de desvio de poder.
xxxvii. O desvio de poder comporta duas modalidades principais: o desvio de poder por motivo de interesse público, quando a Administração visa alcançar um fim de interesse público, diverso daquele que a lei impõe; o desvio de poder por motivo de interesse privado, quando a Administração não prossegue um fim de interesse público, mas sim um fim de interesse privado.
xxxviii. Nos presentes autos não se está perante nenhum fim de interesse privado, nem na prática do acto posto em crise a Entidade Recorrida prosseguiu algum fim diferente daquele que a lei visa alcançar.
xxxix. Acresce que a Recorrente não fez nenhuma prova para demonstrar que a Entidade Recorrida actuou com desvio de poder, limitando-se a invocá-lo (in casu, a invocar o abuso de poder), quando é hoje pacífico que o ónus da prova dos factos cabe ao recorrente que alega o desvio de poder, por estar em causa a verificação de factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão administrativa consubstanciada no acto administrativo.
xl. A decisão recorrida não é, pois, abusiva, nem perpétua e foi proferida em estrita obediência a todos os normativos legais e princípios gerais de direito, não estando, portanto, ferida de qualquer ilegalidade.
Nestes termos e nos demais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso contencioso administrativo ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida com as legais consequências.
Assim, estarão Vossas Excelências,
Senhores Venerandos Juízes,
Fazendo, como sempre, a costumada
JUSTIÇA!»
*
A recorrente não apresentou alegações facultativas e a entidade recorrida limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.
*
O digno Magistrado do MP opinou o seguinte:
«Aparentando pretender fazer tábua rasa do primitivo acto punitivo datado de 6/4/11, que a puniu disciplinarmente com a pena de suspensão de 180 dias, acto esse alvo de recurso contencioso que correu termos neste Tribunal sob o nº 238/2012, onde foi mantido, sendo, posteriormente, objecto de anulação no âmbito do proc. 77/2013 do TUI, por violação da al b) do nº 1 do artº 183º, ETAPM, assaca a recorrente ao acto ora em crise, que, na sequência do entendimento assumido por tal aresto, lhe aplicou, desta feita, pena de 120 dias de suspensão, uma vasta panóplia de vícios que, na sua maioria, vemos sem nexo ou sentido, atenta a descrita “origem” do acto e o escrutínio já efectuado sobre grande parte do alegado que, se bem que reportado a diferente acto, não poderá deixar de se projectar sobre o presente, atento o “cordão umbilical” da substância entre os mesmos.
Telegraficamente:
Fundamentação
Conforme expressamente referido no corpo do acto, a decisão condenatória em causa foi tomada levando em linha de conta a matéria descrita e provada no âmbito do procedimento disciplinar que originou o primitivo acto, matéria essa mantida e estabilizada nas decisões judiciais entretanto proferidas, sendo que, no específico e após pormenorizada e aprofundada análise de tal matéria relativamente aos deveres cuja violação era e é imputada, não deixou este Tribunal de concluir encontrar-se “...o acto administrativo posto em causa devidamente fundamentado, já que permite a um destinatário normal saber as razões de facto e de direito que conduziram ao acto punitivo”.
Prescrição
Nos termos do nº 4 do artº 289º, ETAPM, “Suspendem o prazo prescricional a instauração de processos de sindicância e de averiguações e ainda a instauração de processos de inquérito e disciplinar...”.
Como é bom de ver, encontramo-nos face a um único processo disciplinar.
De acordo com os factos nele dados como provados e estabilizados, o facto mais antigo imputado à recorrente reporta-se a 2/9/08.
Sendo certo que o processo disciplinar foi instaurado por despacho do director dos S.S. de 4/3/11, culminado com a decisão final a 16/2/12, fácil é constar a não ocorrência da almejada prescrição, já que, como é óbvio, aquele prazo prescricional não pode ser retomado devido à interposição do recurso contencioso e respectiva tramitação, em qualquer uma das instâncias.
Impossibilidade e inutilidade
Entende a recorrente que a sanção que lhe foi aplicada é ilegal por impossibilidade material e jurídica do seu objecto, uma vez que já não é funcionária dos S.S., pelo que não pode ser suspensa dessa actividade.
É certo que, à data de prolação do acto em crise - 29/1/14 - a recorrente já não era funcionária dos S.S.
Sucede, porém, que o nº 2 do artº 280º, ETAPM é linear, ao afirmar que “A cessação de funções e a mudança de situação não impedem a punição por infracções cometidas no exercício dessas funções”.
Sendo, no caso, tal circunstância inequívoca, isto é, tratando-se de infracções efectivamente cometidas pela recorrente no exercício de funções, a punição registada não se revela inútil ou obsoleta, mesmo em termos práticos, já que o registo disciplinar não poderá deixar de ter o seu impacto em termos futuros, designadamente face a eventual nova candidatura, novo recrutamento, para efeitos públicos, ou mesmo privados.
Daí que, como bem sustenta a recorrida, a pena de suspensão se não apresente “...impossível, inútil, nem inócua”.
Não retroatividade
Entende a recorrente ter-se violado tal princípio, bem como, eventualmente, o “ne bis in idem”, uma vez que lhe foi aplicada uma pena de suspensão de 120 dias que se diz já cumprida e atento o seu afastamento do serviço.
Age, nesta sede, a visada, mais uma vez, como se de novo processo disciplinar se tratasse. Trata-se de um absurdo.
O efectivo cumprimento da pena, previamente à decisão final, decorre, como é bom de ver, da normal delonga dos trâmites judiciais da impugnação do acto, a que a própria recorrente deu causa, sendo que, a esse nível e pela mesma via, poderia ter obtido a suspensão da execução do acto, caso o lograsse através de decisão favorável no correspondente meio preventivo.
Assim não sucedendo e tendo a Administração, em função da diminuição da medida da pena disciplinar aplicada, ordenado a reposição das importâncias descontadas à interessada no que respeita ao diferencial devido, intocável se mostra, também a este nível, o decidido.
Abuso de poder
Ao consignar, neste segmento, que “a decisão recorrida implica uma certa perpetuação da condição de arguida e de funcionária”, parece a recorrente retomar um pouco a argumentação relativa à inutilidade da sanção, pelo facto de não ser já funcionária dos S.S.
Ora, como já se referiu, pese embora tal circunstância, a medida disciplinar em questão mantém a sua utilidade e virtualidades: pretender escapar a elas, mediante a mera saída ou abandono do exercício de funções, isso sim, poderia constituir “abuso da impugnação”.
Donde, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, sermos a pugnar pelo não provimento do presente recurso».
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
Consideramos assente a seguinte factualidade:
1 - Em 4 de Março de 2011, à recorrente foi instaurado um procedimento disciplinar.
2 - No âmbito de tal procedimento foi lavrada a seguinte acusação contra si:
«O Gabinete do Comissário contra a Corrupção da Região Administrativa Especial de Macau comunicou a estes Serviços que a senhora A, médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário destes Serviços era suspeita de acumulação de funções sem devida autorização num centro de beleza criado pelo seu parente, aproveitando-se das suas funções exercidas naquele Hospital para distribuir o cartão de visita do respectivo centro de beleza e nele recomendar aos seus pacientes o tratamento.
Quanto à referida comunicação, por despacho do Director destes Serviços de 4 de Março de 2011, foi nomeado o signatário como instrutor do Processo Disciplinar n.ºPD-02/2011 instaurado contra a mesma médica assistente A (arguida), a fim de apurar se existem as eventuais infracções e de exigir procedimento contra ela.
Após ter analisado as declarações prestadas pelos declarantes e recolhido os dados, o signatário considera concluída a fase instrutória do presente processo disciplinar, decidindo-se a deduzir acusação contra ela, com base nos factos seguintes:
1º
A arguida A, médica assistente contratada além do quadro por estes Serviços, nos termos do art.º 276º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), é aplicável o regime disciplinar aos agentes contratados além do quadro. (vd. fls. 19 dos autos)
2º
O Gabinete do Comissário contra a Corrupção comunicou a estes Serviços que a senhora A (arguida), médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário destes Serviços, portadora do BIRPM n.º XXXX era suspeita de acumulação de funções sem devida autorização num centro de beleza “B” criado pelo seu parente, aproveitando-se das suas funções exercidas naquele Hospital para distribuir o cartão de visita do respectivo centro de beleza e nele recomendar aos seus pacientes o tratamento. A arguida chegou a atender um funcionário do CCAC no referido centro de beleza e lhe cobrou a quantia de MOP500.00. (vd. fls.2 dos autos)
3º
Também foi divulgado na comunicação social local incluindo a Rádio de Macau e vários jornais locais, o presente caso de uma médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário ser suspeita de acumulação de funções sem devida autorização num centro de beleza de se ter aproveitado das suas funções exercidas naquele Hospital para distribuir o cartão de visita do respectivo centro de beleza e nele recomendar aos seus pacientes o tratamento e que durante a investigação feita pelo CCAC, a médica chegou a atender um funcionário público no referido centro de beleza e lhe cobrou a quantia de MOP500.00 como despesa. Com a revelação do caso, a reputação dos Serviços de Saúde ficou gravemente prejudicada. (vd. fls.114 a 116 dos autos)
4º
Após feita a investigação, foi apurado que o marido da arguida, senhor D é sócio do centro de beleza “B”. (vd. fls.46 dos autos)
5º
Segundo as informações fornecidas pelo CCAC, a arguida admitiu que durante a consulta feita no Centro Hospitalar de Conde S. Januário, chegou a entregar cartão de visitas do dito centro de beleza e indicar aos pacientes o endereço do mesmo centro. (fls. 29 dos autos)
6º
Além disso, de acordo com as informações fornecidas pelo CCAA, a arguida admitiu que após o serviço, chegou a prestar, aos clientes daquele centro de beleza, serviços de consulta sobre tratamento cosmético. (vd. fls.29 dos autos)
7º
A arguida participou na reunião de gerentes do referido centro de beleza. (vd. 29 e 30 dos autos)
8º
Além do mais, também ficou provado que a arguida, em 2008, chegou a distribuir aos dois pacientes que recebiam tratamento na Consulta Externa da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, o cartão de visita do centro de beleza “B”, recomendando-lhe o tratamento cosmético no referida centro de beleza. (vd. fls. 34, 35, 39, 78 e 90 dos autos)
9º
No dia 2 de Setembro de 2008, na Consulta Externa da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, a arguida entregou a um paciente um cartão de visitas do centro de beleza “B”, para este fizesse um tratamento a laser da rosácea. (vd. fls. 34, 35 e 90 dos autos)
10º
Após a recomendação feita pela arguida, o paciente deslocou-se ao centro de beleza “B”, mas acabou por não receber tratamento cosmético nesse centro de beleza por causa do valor elevado.
11º
Além disso, no dia 2 de Dezembro de 2008, na Consulta Externa da Dermatologia, a arguida entregou a uma paciente que acabou de terminar a terapia de medicamento, um cartão de visita do centro de beleza “B”, recomendando-lhe o tratamento cosmético no referida centro de beleza. (vd. fls. 35 dos autos)
12º
Depois de recomendação feita pela arguida, em finais de 2008 e princípio de 2009, a paciente foi ao centro de beleza “B” receber dois tipos de tratamento cosmético e cerca de dez vezes serviços cosméticos, tendo despendido vinte mil e tal. (vd. fls. 39 dos autos)
13º
Durante o recebimento dos dois tipos de tratamento cosmético no centro de beleza “B”, a referida paciente viu por várias vezes a arguida no centro em causa. (vd. fls. 39 dos autos)
14º
Em Julho de 2010, no centro de beleza “B” (sucursal Nan Van) a arguida prestou a uma cliente serviços de consulta sobre cuidados da pele e lhe recomendou o tratamento cosmético, uma vez que o preço era muito caro, a cliente não aceitou a sua recomendação. (vd. fls. 86 dos autos)
15º
No dia 20 de Janeiro de 2011, a arguida, no centro de beleza “B” prestou a um funcionário do CCAC serviço de consulta sobre tratamento cosmético e mais lhe recomendou o “tratamento de radiofrequência fraccionária” e o “tratamento de micro agulhas”, e depois, o centro de beleza cobrou-lhe MOP500 a título de despesa de consulta.
16º
A arguida não requereu junto do seu superior hierárquico o exercício de acumulação de funções, nem obteve a sua autorização dada pelos Serviços de Saúde.
17º
A arguida trabalhou nos Serviços de Saúde há mais de 17 anos altura em que não obtinha a classificação de serviço com menção inferior a “Bom”, e essa situação pode constituir a circunstância atenuante prevista no disposto no art.º 282º, al. a) do ETAPM. (vd. fls. 19 dos autos)
18º
Quanto ao procedimento de audiência instrutória no presente processo disciplinar, a arguida, através do advogado que a representa, referiu que tinha sido constituída arguida pelo CCAC e que, nos termos do art.º 50º, n.º1, al. c) do Código de Processo Penal, não responde a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe são imputados. (vd. fls. 110 e 111 dos autos)
19º
A arguida, agindo de forma voluntária, espontânea e consciente, aproveitava-se das suas funções profissionais, por várias vezes distribuiu aos pacientes o cartão de visita do centro de beleza “B” criado pelo seu marido, bem como recomendou aos seus pacientes o tratamento naquele centro de beleza. Além disso, perante a situação em que era proibida por lei, prestava serviço em nome do mesmo centro de beleza criado pelo seu marido. Após uma divulgação profunda na comunicação social local, o caso prejudicou gravemente a imagem e a reputação dos Serviços de Saúde, pelo que, as condutas da arguida violaram o princípio da exclusividade de funções e o dever de não exercer acumulação de funções previstos nos art.º 17º e 279º, n.º 1 e 2, al. i) e 11 do ETAPM que devem observar os trabalhadores da administração pública.
20º
As supracitadas condutas da arguida constituíram a infracção disciplinar prevista no art.º 281 do ETAPM, existindo a situação culposa de descuido das suas funções profissionais, sendo assim, pode-se aplicar à arguida a pena de suspensão prevista no art.º 314º do mesmo Estatuto.
*
A cópia da acusação será entregue à arguida ou ao advogado que a representa, mediante a sua notificação pessoal no prazo de 48 horas, bem como nos termos do art.º 333º, n.º1 do ETAPM, o instrutor vai conceder-lhe um prazo de 15 dias para apresentar a sua defesa. Pelo que, a arguida ou seu advogado, pode, para esta finalidade, dirigir-se nos dias úteis durante as horas de expediente, à sala n.º207 do 2º andar do Edifício Administrativo dos Serviços de Saúde, para consultar os autos, apresentar o rol de testemunhas e respectivos documentos ou tomar qualquer medida para a sua defesa.
Por fim, para todos os efeitos jurídicos, caso a arguida não conteste no prazo acima indicado, considera-se feita a audiência da arguida, não obstante a sanção a aplicar face à sua infracção disciplinar.
O Instrutor,
Ass.) vd. original
1 de Agosto de 2011”
3 - Foi então elaborado o relatório final com o seguinte teor:
“Assunto: Processo disciplinar n.º PD-02/2011 instaurado contra A, médica assistente do Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
Instrutor: XXX
Categoria: Técnico Superior, Assessor
Secretária: XXX
Categoria: Assistente técnica administrativa especialista
Parte 1 – Prefácio
1. O Gabinete do Comissário contra a Corrupção da Região Administrativa Especial de Macau comunicou a estes Serviços indicando que a senhora A (arguida), médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário destes Serviços, portadora do BIRPM n.ºXXX, era suspeita de acumulação de funções sem devida autorização num centro de beleza criado pelo seu parente, aproveitando-se das suas funções exercidas naquele Hospital para distribuir o cartão de visita do respectivo centro de beleza e nele recomendar aos seus pacientes o tratamento. No referido centro de beleza, a arguida chegou a atender um funcionário do CCAC e cobrou-lhe MOP500,00 como despesa de consulta (vd. fls. 2 dos autos).
2. Por despacho do Director dos Serviços de Saúde, de 4 de Março de 2011, foi nomeado o senhor XXX como instrutor do Processo Disciplinar n.ºPD-02/2011, no sentido de instaurar processo disciplinar contra a senhora A (arguida), médica assistente do Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
3. Foi deduzido em 1 de Agosto de 2011 pelo antigo instrutor a acusação contra a arguida (vd. fls. 117 a 122 dos autos)
4. O advogado da arguida apresentou contestação (vd. fls. 125 a 132 dos autos).
5. Após ouvido as testemunhas, o antigo instrutor emitiu, em 23 de Setembro de 2011, a segunda acusação (deduzida de novo) (vd. fls. 137 a 146 dos autos)
6. Tendo o antigo instrutor, através da carta n.º25/PD-2/2011, referido que iria deixar de trabalhar nos Serviços de Saúde e solicitado que fosse substituído o instrutor do processo (vd. fls.150 dos autos). Por despacho do Director dos Serviços de Saúde, de 7 de Outubro de 2011, foi nomeado o signatário como instrutor do mesmo processo disciplinar, a fim de dar continuidade ao respectivo processo disciplinar contra a senhora A, médica assistente contratada além do quadro do Centro Hospitalar Conde de S. Januário dos Serviços de Saúde (vd. fls. 150v dos autos).
7. Quanto à nova acusação deduzida pelo antigo instrutor, o advogado da arguida, em 12 de Outubro de 2011, apresentou contestação (vd. fls. 151 a 162 dos autos)
8. Em 20 de Outubro de 2011, o signatário iniciou o presente processo disciplinar (vd. fls. 165 dos autos)
Parte 2 – Investigação
9. No dia 8 e Março de 2011, o antigo instrutor, nos termos da parte final do n.º2 do art.º 329º do ETAPM, solicitou ao Departamento de Recursos Humanos, a emissão do certificado do registo disciplinar da médica A. No dia 9 de Março, recebeu a resposta dada pela Divisão de Pessoal (vd. fls. 18 a 19 dos autos).
10. No dia 9 de Março de 2011, a médica A, por via telefónica, referiu que por causa de doença, ficava em casa para descansar e recuperar-se e, pelo que, não conseguiu dirigir-se aos Serviços de Saúde para levantar a notificação sobre a abertura do processo disciplinar.
11. Quanto ao descanso em casa para recuperar-se alegado pela médica A, o antigo instrutor, nos dias 16 e 29 de Março, 12 de Abril, 3 e 13 de Maio e 2 de Junho, respectivamente solicitou à Divisão de Pessoal o fornecimento de atestado médico pela falta por doença da médica A.
12. Nos termos da parte final do art.º 329º, n.º2 do ETAPM, o antigo instrutor solicitou ao Gabinete do Comissário contra a Corrupção o fornecimento de respectivos dados sobre o caso. No dia 17 de Março de 2011, recebeu a resposta dada pelo referido gabinete (vd. fls. 28 a 31 dos autos).
13. No dia 18 de Março de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações prestadas pelo paciente da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, senhor E (vd. fls. 34 a 35 dos autos).
14. No dia 22 de Março de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações prestadas pela paciente da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, senhora F (vd. fls. 38 a 40 dos autos).
15. Nos termos da parte final do art.º 329º, n.º2 do ETAPM, o antigo instrutor solicitou à Unidade Técnica de Licenciamento das Actividades e Profissões Privadas de Prestação de Cuidados de Saúde, o fornecimento de dados sobre o presente caso. No dia 28 de Março de 2011, foi recebida a resposta. (vd. fls. 41 a 49 dos autos).
16. No dia 29 de Março de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações complementares prestadas pela paciente da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, senhora F (vd. fls. 55 dos autos).
17. No dia 8 de Abril de 2011, o antigo instrutor solicitou ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário o fornecimento dos dados de registo patológico existentes na Consulta Externa da Dermatologia relativos aos pacientes E e F. No dia 11 de Abril de 2011, foi recebida a resposta dado pelo hospital (vd. fls. 56 a 57 dos autos).
18. No dia 21 de Abril de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações complementares prestadas pela paciente da Dermatologia, senhora F (vd. fls. 78 a 79 dos autos).
19. No dia 4 de Maio de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações prestadas pela cliente do centro de beleza “B”, senhora G, de nacionalidade malaia (vd. fls. 86 a 87 dos autos).
20. No dia 5 de Maio de 2011, o antigo instrutor procedeu à audição de declarações complementares prestadas pelo paciente da Dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, senhor E (vd. fls. 90 a 91 dos autos).
21. No dia 2 de Julho de 2011, o antigo instrutor optou pela audiência escrita da médica A (vd. fls. 106 a 109 dos autos).
22. No dia 15 de Julho de 2011, a arguida médica A, através do seu advogado, respondeu que não prestaria alegações (vd. fls. 110 a 111 dos autos).
23. Devido ao descanso da médica A em casa para recuperar-se por causa de doença, não foi possível a realização de audiência, o procedimento de instrução sobre o processo disciplinar ficou afectado. O antigo instrutor, de acordo com os atestados médicos apresentados pela médica A para a justificação da sua falta, solicitou por várias vezes ao Director dos Serviços de Saúde a prorrogação de instrução do processo disciplinar, tendo, até ao dia 22 de Julho de 2011, concluído o procedimento instrutório sobre o processo disciplinar.
24. No dia 10 de Agosto de 2011, o antigo instrutor fez constar dos autos a divulgação do caso feita pelos meios de comunicação locais (vd. fls. 114 a 116 dos autos).
25. No dia 10 de Agosto, o antigo instrutor entregou pessoalmente a acusação à médica A (vd. fls. 117 a 122 dos autos)
26. Nos dias 17 e 22 de Agosto de 2011, o advogado da médica A consultou os autos (vd. fls. 123 e 124 dos autos)
27. No dia 31 de Agosto de 2011, foi apensada aos autos a contestação da médica A (vd. fls. 125 a 132 dos autos).
28. No dia 14 de Setembro de 2011, o antigo instrutor ouviu as declarações prestadas pela senhora H, na qualidade de testemunha da defesa (vd. fls. 135 a 136 dos autos)
29. Após feita a audição de declarações, no dia 23 de Setembro de 2011, o antigo instrutor emitiu a segunda acusação (deduzida de novo), tendo sido recebida pela médica A no dia 27 do mesmo mês (vd. fls. 137 a 146 dos autos).
30. No dia 24 de Novembro de 2011, o instrutor comunicou ao advogado da arguida para que esta prestasse declaração e respondesse expressamente se prescinde ou não o direito de contestação (vd. fls. 175 dos autos)
31. Respondeu o advogado, em nome da arguida, que nos termos do art.º 50º, n.º1, al. c) do Código de Processo Penal, a arguida não iria prestar qualquer declaração (vd. fls. 180 dos autos)
32. Quanto às declarações prestadas pelas testemunhas apresentadas pelo advogado, em 14 de Setembro de 2011, a testemunha H prestou declarações e segundo a prova feita pela testemunha I, o instrutor não tinha dúvida, pelo que achou que não precisar de ouvir declarações prestadas pela referida testemunha. Quanto aos depoimentos prestados pela testemunha J, em 4 de Novembro de 2011, o instrutor ouviu as declarações prestadas pela mesma (vd. fls. 178 dos autos)
33. O instrutor solicitou à Divisão de Pessoal o fornecimento de dados quanto ao requerimento de acumulação de funções feito pela arguida (vd. fls. 182 a 183 dos autos)
34. No dia 25 de Dezembro de 2011, por escrito, a Divisão de Pessoal respondeu que nunca a arguida chegou a requerer junto dos Serviços de Saúde a acumulação de funções (vd. fls. 184 dos autos)
Parte 3 – Acusação
35. Com base nos factos acima referidos e após ter ponderado os elementos subjectivos existentes nos autos incluindo a gravidade de ilicitude da parte, o seu grau de culpa, sua cognição, arrependimento e as influências negativas causadas aos Serviços de Saúde, bem como considerado as datas provadas nos autos, as leis aplicáveis, o instrutor revogou a acusação deduzida pelo antigo instrutor (vd. fls. 185 dos autos), tendo, em 27 de Dezembro, deduzido novamente a acusação contra a arguida (vd. fls. 185 a 195 dos autos)
36. No dia 27 de Dezembro de 2011, a arguida assinou e recebeu a acusação alterada (vd. fls. 185 a 195 dos autos)
Parte 4 – Contestação
37. Alterado o conteúdo da acusação, em particular, o uso correcto dos fundamentos de violação da lei, pelo que, é precisa a nova contestação da arguida. Nos termos do art.º 330º do ETAPM, alterado pelo D.L n.º 62/98/M, de 28 de Dezembro, aprovado pelo D.L n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, a arguida necessitou de contestar antes do dia 6 de Janeiro de 2012.
38. O advogado da arguida apresentou contestação em 4 de Janeiro de 2012 (vd. fls. 196 a 215 dos autos).
Parte 5 – Apreciação
I – Pressupostos
39. Nos termos do art.º 332º do ETAPM, foi elaborada pelo instrutor a acusação (vd. fls. 185 a 195 dos autos)
40. Nos termos do art.º 332º, n.º 2, al. b) do ETAPM, foram descritos os actos que são imputáveis à arguida (os factos provados ou seja, os actos indicados nos art.ºs 14º, 15º, 16º, 20º, 23º, 25º, 27º e 28º da acusação), bem como na acusação foram indicados respectivamente os actos constantes dos art.ºs 19º (ou seja o argumento indicado no art.º 15º da contestação, de fls. 153 dos autos), 24º (conjugado com os art.ºs 22º e 23º que impugnam o argumento indicado no art.º 15º da contestação, de fls. 153 dos autos), 26º e 30º que não foram considerados provados.
41. Nos termos do art.º 332º, n.º 2, al. e) do ETAPM, o instrutor indicou uma pena ou várias penas aplicáveis a cada infracção que à arguida é imputável (vd. fls. 193, art.º 43º da acusação), bem como nos termos da competência prevista no art.º 316º, foram apreciadas as sanções aplicáveis (vd. art.º 44º da acusação, de fls. 194)
42. Nos termos do art.º 332º, n.º 2, al. c) do ETAPM, foi indicada expressamente a entidade que lhe compete aplicar a sanção, ou seja o Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura indicado no art.º 45º da acusação, de fls. 194.
43. Pelo que a acusação não viola o princípio “ne bis in idem”.
II – Quanto à aceitabilidade de prova
44. Em primeiro lugar, é de salientar que, nos termos do art.º 277º do ETAPM, aplicam-se supletivamente ao regime disciplinar as normas de Direito Penal em vigor na RAEM, com as devidas adaptações.
45. Assim sendo, nos termos do art.º 287º, n.º 1 do ETAPM, o procedimento disciplinar instaurado pelo órgão administrativo é independente do procedimento criminal.
46. Além disso, o CCAC é um órgão público que se rege pela presente lei (vd. art.º 1 da Lei n.º 10/2000). Nos termos do art.º 290º, n.º 3 do ETAPM e do art.º 4º, al. 6) da Lei n.º10/2000, ao CCAC compete denunciar às entidades competentes para o exercício da acção disciplinar os indícios de infracções que apurar.
47. Pelo que, tem fundamento jurídico o que o CCAC, nos termos da competência, encaminhou os indícios de infracções que tinha apurado, aos Serviços de Saúde.
48. É de salientar que, segundo os dados fornecidos pelo CCAC, nele não se indica que o presente caso também se envolve em investigação criminal (vd. fls. 2 dos autos)
49. De acordo com os indícios de infracções da arguida fornecidos pelo CCAC, só têm a ver com infracções disciplinares dos trabalhadores da função pública, e no decurso de investigação do presente processo disciplinar, não existe indício que haja simultaneamente o concurso criminal.
50. Visto que a transferência do presente caso aos Serviços de Saúde tem fundamento jurídico e o caso nunca se envolve em natureza criminal, certamente não existe a situação de violação do regime de segredo de justiça tal como alegada na contestação.
51. Por fim, após admitida a contestação, a acusação só é deduzida com base nas razões provadas no procedimento disciplinar, pelo que, foi excluída a prova constante do art.º 25º da acusação, ou seja a arguida, em 20 de Agosto de 2010, na qualidade de médica “A”, participou na reunião de gerentes do “grupo cosmético “XXX” (o centro de beleza “B” é uma das actividades deste grupo) sito na zona do Conselheiro XXXX (sua loja de ship) (vd. fls. 30 dos autos).
52. Quanto aos restantes factos provados do presente procedimento disciplinar (ou seja os actos indicados nos art.ºs 14º, 15º, 16º, 20º, 23º, 25º, 27º e 28º da acusação), são resultantes da investigação independente do procedimento disciplinar, pelo que, os quais reúnem o disposto no art.º 329º do ETAPM.
53. Em suma, aceitamos parcialmente os argumentos alegados na contestação, mas não procede o que a arguida alega que a aquisição da prova violou a lei.
III – Das infracções disciplinares
54. Parece que o advogado da arguida não prestou muita atenção ao conteúdo das duas acusações elaboradas pelo antigo instrutor, nem tomou conhecimento do conteúdo da nova acusação elaborada pelo signatário, em particular, quais os factos foram considerados provados e quais não provados, bem como os fundamentos jurídicos por si invocados, pelo que, existe erro notório na apreciação da prova.
55. É de salientar outra vez que já se indicou expressamente no art.º 30º da acusação deduzida pelo signatário (vd. fls. 191 dos autos): Dado que não se consegue entrar em contacto com a testemunha que exerce funções no CCAC, não ficou provado que a arguida, em 20 de Janeiro de 2011, tenha prestado serviço de consulta sobre tratamento cosmético da pele na sala do centro de beleza “B”.
56. Pelo que, o instrutor considera que não se deve continuar a debater sobre uma prova que já tinha sido afastada.
57. Alegou o advogado da arguida no art.º 15º da contestação que a arguida, ao recomendar aos pacientes o centro de beleza “B”, mencionou igualmente que se pode comprovar o mesmo serviço prestado no Hospital Kiang Wu e no Hospital da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, pelo que, apresentou a testemunha J para provar tal situação (vd. fls. 156 dos autos).
58. Contudo, face à prova supracitada, a testemunha J referiu que não se tinha recordado (vd. fls. 178 dos autos).
59. Quanto à alegação indicada no art.º 23º da contestação, de fls. 154 dos autos, uma vez que a senhora G não domina chinês, razão pela qual a arguida serviu como tradutora entre H e a senhora G que é de nacionalidade malaia.
60. De acordo com as declarações prestadas pela testemunha H apresentada pela arguida (vd. fls. 156 dos autos), referiu que não tinha impressão sobre aquela cliente.
61. Por outro lado, a senhora G de nacionalidade malaia consegue entender e falar cantonês, tendo ainda prestado declarações em cantonês (vd. fls. 86 a 87 e 181 dos autos).
62. Referiu aquela senhora G de nacionalidade malaia que a arguida prestou-lhe serviço de consulta cosmética e recomendação (vd. fls. 87 dos autos).
63. Das provas acima indicadas, resultou que não procede o argumento indicado no art.º 23º da contestação, de fls. 154 dos autos.
VI – Circunstâncias atenuantes
64. O signatário aceita que as infracções em causa são feitas pela primeira vez pela arguida, pelo que existe a circunstância atenuante (vd. art.º 41º da acusação).
65. Confirmou-se que a arguida praticou as infracções deliberadamente (vd. art.º 31º e 38º da acusação), pelo que, não existe a circunstância atenuante prevista no art.º 282º, al. g) do ETAPM.
66. Deu-se por provado que as infracções praticadas pela arguida prejudicaram gravemente o prestígio e a reputação do governo da REAM, bem como prejudicaram a imagem dos Serviços de Saúde, causando influência negativa ao público (art.ºs 2 e 42º da acusação), pelo que, não existe a circunstância atenuante prevista no art.º 282º, al. h) do ETAPM.
67. Na contestação indicou-se a circunstância atenuante prevista no art.º 282º, al. j) do ETAPM, não tendo, contudo, sido apresentado fundamento de facto por isso, pelo que, tal argumento não procede.
VII – Circunstâncias agravantes
68. Quanto à circunstância agravante pela acumulação de infracções, as duas infracções constantes do presente procedimento disciplinar (vd. art.º 43º da acusação, de fls. 193 dos autos) são de acumulação de infracções, ao abrigo do art.º 283º, n.º 5, do ETAPM.
69. Quanto à circunstância agravante prevista no art.º 283º, n.º 1, al. b) do ETAPM, segundo constam expressamente dos vários jornais locais, de fls. 114 a 116 dos autos, uma médica dermatologista do Hospital Conde S. Januário foi investigada pelo Comissariado contra a Corrupção, pela suspeita de acumulação de funções num centro de beleza sem prévia autorização e de recomendação aos seus pacientes do tratamento no mesmo centro de beleza. Com a divulgação do caso, o que fez com que os cidadãos de Macau considerassem que os Serviços de Saúde tinham problema na administração e existia parcialidade nos serviços prestados pelo Centro Hospitalar Conde de S. Januário, daí podemos entender que a respectiva divulgação do caso prejudicou a imagem dos Serviços de Saúde, causando ao público uma influência negativa. A arguida deve prever que essa influência negativa era proveniente das infracções, pelo que, as respectivas circunstâncias agravantes procedem.
VIII – Factos de infracções e aplicação da lei
70. Ficou provado que a senhora F e o senhor E eram pacientes da médica A ora arguida nos autos (vd. fls. 59 a 67 dos autos).
71. Ficou provado que a arguida, em 2 de Setembro de 2008, recomendou ao senhor E, o tratamento no centro de beleza “B” e lhe distribuiu o cartão de visita daquele centro de beleza (vd. fls. 90 dos autos).
72. Ficou provado que a arguida, em 2 de Dezembro de 2008, recomendou à senhora F o tratamento cosmético no centro de beleza “B” (vd. fls. 78 dos autos).
73. Ficou provado que a arguida, em Julho de 2010, no sucursal Nam Van do centro de beleza “B”, prestou serviço de consulta sobre tratamento cosmético à senhora G de nacionalidade malaia (vd. fls. 86 a 87 dos autos).
74. Ficou provado que a senhora G, de nacionalidade malaia, apesar de não saber escrever chinês, pode falar e perceber chinês, tendo a mesma, em 4 de Maio de 2011, sido ouvida em declarações feitas em chinês (vd. fls. 86 a 87 dos autos), e a secretária do presente processo disciplinar também declarou que a senhora G pode falar e perceber chinês (vd. fls. 181 dos autos)
75. Ficou provado que o marido da arguida senhor D é sócio do referido centro de beleza “B” (vd. fls. 46 dos autos).
76. Ficou provado que a arguida nunca requereu junto do seu superior hierárquico o exercício de acumulação de funções, nem obteve a sua autorização dada pelos Serviços de Saúde (vd. fls. 184 dos autos).
77. Quanto aos actos da recomendação aos pacientes do centro de beleza “B” e da distribuição do cartão de visita do referido centro de beleza feitos pela da arguida, durante o exercício das suas funções profissionais, no caso da senhora F, embora a sua mãe referisse que foi por sua iniciativa, o acto da arguida reúne o dolo necessário (ou seja quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se como aquela realização); no caso do senhor E, o acto da arguida foi confirmado como dolo directo.
78. Na qualidade de médica assistente do serviço de dermatologia do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, a arguida, no exercício da sua função pública, recomendou aos pacientes o centro de beleza “B” do seu marido e distribuiu o cartão de visita do referido centro de beleza, tudo isso foi provado que violou o dever de isenção dos trabalhadores da Administração pública previsto no art.º 279º, n.º 2, al. a) do ETAPM.
79. Em relação ao procedimento de audiência instrutória no presente processo disciplinar, a arguida, através do advogado que a representa, referiu que tinha sido constituída arguida pelo CCAC e que, nos termos do art.º 50º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal, não responde a perguntas feitas por qualquer entidade sobre os factos que lhe são imputados. (vd. fls. 180 dos autos)
80. Nos termos dos requisitos previstos no art.º 17º do ETAPM, o exercício de funções públicas deve obedecer ao princípio da exclusividade (n.º 1), devendo ser autorizados pelo superior hierárquico o exercício da acumulação de cargos ou lugares públicos e o exercício de actividades privadas e independentemente de actividade onerosa ou gratuita, o seu exercício carece sempre de autorização prévia (vd. n.º 2 e 3 do mesmo artigo).
81. Dado que só ficou provado que a arguida, em Julho de 2010, prestou serviço de consulta no centro de beleza “B”, à arguida não é aplicável a Lei n.º10/2010 (Regime da Carreira Médica) vigente em 10 de Setembro de 2010, uma vez que aos médicos é vedado o exercício de actividade privada em regime de profissão liberal, nos termos do art.º 26º da mesma lei, mas sim o D.L n.º68/92/M, de 21 de Setembro (Regime Legal das Carreiras Médicas).
82. Nos termos do art.º 7º do D.L n.º68/92/M, é permitido aos médicos o exercício da medicina em regime de profissão liberal, contudo, uma vez que a arguida é médica assistente do regime de disponibilidade permanente (art.º 64º, n.º 1, al. b) do mesmo diploma), a autorização do exercício só é permitida mediante requerimento junto dos Serviços de Saúde e justificação que o exercício não colide as suas funções (art.º 7º).
83. Nos termos do antigo Regime da Carreira Médica, embora o exercício de actividade privada fosse permitido após ter obtido autorização prévia do superior hierárquico, na realidade, ficou provado que a arguida nunca requereu nem obteve autorização junto dos Serviços de Saúde (vd. fls. 184 dos autos).
84. Foi dado como provado que a arguida agiu de forma espontânea, voluntária e deliberada ao exercer respectiva actividade privada.
85. Foi dado como provado que a arguida violou o dever de zelo e o de não exercer actividades incompatíveis (art.ºs 279º, n.º 2, al. b) e i) do ETAPM).
86. Pelo acima exposto, ficou provado que a arguida, durante o exercício das funções profissionais, recomendou aos pacientes o centro de beleza criado pelo seu marido e distribuiu o cartão de visita do referido centro de beleza, assim violou os deveres gerais, ou seja o dever de isenção previsto no art.º 279º, n.º2, al. a) e n.º3 do mesmo artigo), bem como fora do horário de expediente, sem a devida autorização, prestou serviço de consulta e exerceu funções em acumulação no referido centro de beleza, pela prática das supracitadas condutas, também violou os deveres de zelo e de não exercer actividades incompatíveis previstos nos art.ºs 279º, n.º 2, al. b) e i), n.º 4 e 11 do ETAPM. Os dois actos constituíram infracções disciplinares.
87. Quanto às infracções disciplinares de ter recomendado aos pacientes o centro de beleza criado pelo seu marido e distribuído cartão de visita do referido centro de beleza durante o exercício das suas funções profissionais, pertencem à situação de culpa e de descuido das suas funções profissionais, sendo assim, é aplicável o disposto no art.º 314º, n.º 1 e 2, al. d) do ETAPM, podendo a arguida ser punida com a pena de suspensão de 10 até 120 dias. Quanto às infracções disciplinares de prestação de serviço médico e de exercício de funções em acumulação naquele centro de beleza fora do horário de expediente sem a devida autorização, igualmente pertencem à situação de culpa e de descuido das suas funções profissionais, é aplicável o disposto no art.º 314º, n.º 1 e 3 do ETAPM, podendo a arguida ser punida com a pena de suspensão de 120 até 240 dias.
Parte 6 – Conclusão
88. A determinação da sanção é feita consoante as circunstâncias atenuantes e agravantes existentes nos autos, em particular atentos ao grau da culpa da infractora, à sua personalidade, à prestação de mais de 10 anos de serviços e suas classificações e à não prática de infracção disciplinar no passado, bem como à gravidade das condutas por si praticadas e às influências negativas causadas ao público, tendo o instrutor também considerado o disposto no art.º 316º, n.º 1 do ETAPM. Após ponderados todos os aspectos, o instrutor deduz acusação contra a arguida aplicando-lhe a pena de suspensão de 30 dias pela pratica das infracções disciplinares por ter recomendado aos pacientes o centro de beleza “B” criado pelo seu marido e distribuído o cartão de visita do referido centro de beleza, bem como a pena de suspensão de 150 dias pela pratica das infracções disciplinares por ter prestado serviço médico e exercido funções em acumulação naquele centro de beleza fora do horário de expediente sem a devida autorização, totalizando assim a pena de suspensão por 180 dias.
Parte 7 – Sugestão
89. De acordo com os supracitados factos e análises, o instrutor propõe que seja aplicada à senhora A, médica assistente contratada além do quadro pelo Centro Hospitalar Conde de S. Januário, a pena de suspensão de 30 dias pela pratica das infracções disciplinares por ter recomendado aos pacientes o centro de beleza “B” criado pelo seu marido e distribuído o cartão de visita do referido centro de beleza, bem como a pena de suspensão de 150 dias pela pratica das infracções disciplinares por ter prestado serviço médico e exercido funções em acumulação naquele centro de beleza fora do horário de expediente sem a devida autorização, totalizando assim a pena de suspensão por 180 dias.
90. Nos termos do art.º 322º do ETAPM, compete ao Chefe do Executivo aplicar a pena de suspensão, e nos termos da Ordem Executiva n.º 123/2009, publicada no Boletim Oficial, I Série, de 20/12/2009, a supracitada competência já foi delegada ao Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.
Submete-se o presente relatório à consideração superior.
Em Macau, aos 16 de Janeiro de 2012
O Instrutor,
Ass.) Chiang Wa San, Barry,
Técnico Superior, Assessor”
4 – A entidade recorrida proferiu em 16/02/2012 o seguinte despacho:
“Já foram provados os factos que se encontram no relatório final dos autos (a fls. 216 a 229) do presente processo disciplinar (n.º PD-02/2011) intentado à médica assistente A, contratada além do quadro pelo Centro Hospitalar Conde de S. Januário dos Serviços de Saúde.
No relatório atrás mencionado, feita a qualificação jurídico-disciplinar dos factos apurados, chega-se à conclusão de que a Dra. A, médica assistente contratada além do quadro pelo Centro Hospitalar Conde de S. Januário, recomendou junto de pacientes o "B Beauty Center" estabelecido pelo marido e distribuiu cartões-de-visita da entidade aquando do desempenho das suas funções. Além disso, a médica prestou serviços médicos em acumulação fora do horário de atendimento, sem a devida autorização. Os dois actos em questão foram ambos voluntários e independentes, o que traduz numa violação grave de vários deveres estipulados no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21 de Dezembro e alterado pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M de 28 de Dezembro, nomeadamente, o dever de isenção, exposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 279º e no n.º 3 do mesmo artigo; o de zelo, prescrito na alínea b) do n.º 2 do artigo 279.º e no n.º 4 do mesmo artigo; e o de não exercer actividades incompatíveis, clausulado na alínea i) do n.º 2 do artigo 279.º e no n.º 11 do mesmo artigo. Tudo isso já se mostra suficiente para constituir infracções disciplinares que resultam forçosamente na aplicação de pena de suspensão, sendo que as duas violações em causa se encontram previstas e punidas pelo artigo 281.º, pelo n.º 2 do artigo 314.º, pela alínea d) do n.º 2 do artigo 314.º, pelo n.º 3 do artigo 314.º, pela alínea c) do n.º 1 do artigo 300.º e pelo artigo 303.º do mesmo diploma legal.
Tendo em conta os n.º 1 e 2 do artigo 316.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, levando simultaneamente em consideração outros valores particulares, tais como as circunstâncias atenuantes (o artigo 282.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, com destaque para a alínea a) - violação disciplinar pela primeira vez e a prestação de mais de 10 anos de serviço nos Serviços de Saúde classificados de "Bom") e agravantes (a alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º - o facto de o acontecimento ter sido publicado pela imprensa nos dias 3 e 4 de Março de 2011 tem como consequência necessária a produção efectiva de resultados prejudiciais significativos ao conceito e à fama do Governo da Região Administrativa Especial de Macau, bem como o desprestigiar dos Serviços de Saúde enquanto órgão imparcial, tendo alimentado impactos negativos por entre as massas populares; e a alínea h) - em acumulação com a infracção disciplinar).
De acordo com o artigo 322.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, fazendo uso das competências delegadas pelo artigo 1.º da Ordem Executiva n.º 12312009 constante da I Série do Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau de 20 de Dezembro de 2009, aplico a pena de suspensão de 180 dias a A, médica assistente contratada além do quadro pelo Centro Hospitalar Conde de S. Januário dos Serviços de Saúde.
Comunique oportuna e adequadamente à Arguida.
Aos 16 de Fevereiro de 2012».
5 – O recurso contencioso interposto para o TSI desse despacho foi julgado improcedente no Proc. nº 238/2012, por acórdão de 20/06/2013.
6 – Interposto recurso jurisdicional desse aresto, o TUI, por acórdão de 18/12/2013, anulou o despacho punitivo, por, ao contrário do que o entendera o TSI, não estar provada a circunstância agravante prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
7- Em 29/01/2014, o Ex.mo Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura decidiu o seguinte:
«Por acórdão de 18 de Dezembro de 2012, O tribunal de Última Instância anulou o meu despacho de 16 de Fevereiro de 2012, que havia aplicado a A, ex-assistente hospitalar do Centro Hospitalar Conde São Januário, a pena de suspensão graduada em 180 dias;
Cabe agora à Administração dar cumprimento à decisão daquele Tribunal, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado, nos termos do disposto no artigo 174º do Código de Procedimento Administrativo, repondo, na medida do possível, a situação actual hipotética;
Assim, devem os Serviços de Saúde proceder à reposição das importâncias descontadas à ex-trabalhadora e referentes ao período em que esta esteve afastada do serviço, em cumprimento daquela pena de suspensão, tudo em execução daquela decisão judicial.
Remeta-se o presente despacho ao Ex.mo Senhor Director dos Serviços de Saúde, para execução da presente decisão» (fls. 14).
7 – Na mesma data de 29/01/2014, em despacho autónomo, a mesma entidade, proferiu a seguinte decisão (a.a. objecto do presente recurso):
«Considerando que, por Acórdão de 18 de Dezembro de 2013 do Tribunal de Última Instância, o meu, despacho de 16 de Fevereiro de 2012, que havia aplicado a A, ex-Assistente Hospitalar do Centro Hospitalar Conde de São Januário, a pena de suspensão graduada em 180 dias, foi anulado com fundamento na violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 283,º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro (ETAPM);
Considerando que já foi determinada a execução daquela decisão judicial, nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 174.º do Código de Processo Administrativo Contencioso;
Mais considerando que, em face da matéria de facto descrita e provada no processo disciplinar, e confirmada e estabilizada nas decisões judiciais entretanto proferidas, se conclui que a conduta da arguida viola o dever de isenção previsto na alínea a) do nº 2 e no nº3, o dever de zelo estabelecido na alínea b) do nº 2 e no nº 4 e o dever de não exercício de actividades incompatíveis consagrado na alínea i) do n.º 2 e no n.º 11, todos do artigo 279.º do ETAPM, é culposa e revela grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais, preenchendo os elementos do n.º 1 do artigo 314.º do mesmo Estatuto:
Considerando, ainda, as circunstâncias atenuantes apuradas no processo disciplinar e a existência da circunstância agravante tipificada na 'alínea h) do n.º 1 do artigo 283.º do ETAPM;
Decido, nos termos das disposições conjugadas dos nºs e 3 do artigo 314.º, das alíneas a), b) e i) do n.º 2 e nºs 3, 4 e 11 do artigo 279.º, da alínea c) do n.º 1 do artigo 300,º e, ainda, do n.º 1 do artigo 316,º, todos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aplicar à arguida A a pena de suspensão, a qual graduo em 120 dias e considero já cumprida no que respeita ao seu afastamento do serviço.
Notifique-se A, e remeta-se o presente despacho ao Exmo. Senhor Director dos Serviços de Saúde, para execução da presente decisão».
***
IV – O Direito
1 - Primeiro vício: Da prescrição
A recorrente, suportada no art. 289º do ETAPM, defende no presente recurso contencioso estar já verificada a prescrição do procedimento disciplinar, por terem decorrido mais de quatro anos sobre os factos ocorridos em 2008.
Conhecendo.
A prescrição do procedimento disciplinar, como se sabe, é um mecanismo que visa conferir estabilidade e segurança às relações que se estabelecem entre superior e inferior hierárquico de modo a que o subalterno não fique indefinidamente “nas mãos” do chefe, sujeito aos caprichos deste, vergado perante a discricionariedade temporal da sua vontade punitiva, dependente do maior ou menor grau de disponibilidade de tempo que este dispuser para pôr em marcha os seus intentos disciplinares sancionatórios.
Se o tempo desvanece a inquietude provocada pela infracção e simultaneamente atenua, ou apaga mesmo, o desejo de punir e a necessidade de sanção, isso apenas se ficará a dever à inércia e inacção daqueles que possuem o direito de punição.
Ora, diferente de não querer punir, através das mais variadas manifestações de onde essa atitude se possa inferir, é a prática de actos que revelem o propósito contrário e claro de querer punir. E uma dessas manifestações é, justamente, a instauração do procedimento disciplinar.
Aplicando esta solução ao caso vertente, pode dizer-se que a Administração nesta situação concreta tudo fez para que a censura disciplinar se efectuasse tempestivamente e nos moldes adequados.
Nesta perspectiva, para efeito de suspensão do prazo prescricional (art. 289º, nº 3, ETAPM), o que importa é que a instauração do procedimento disciplinar tenha sido manifestada tempestivamente e por quem detinha competência para o fazer. Será essa a data a considerar para a contagem do prazo prescricional, sendo irrelevante qualquer despacho posterior que tivesse em vista, por exemplo, a superação de alguma dificuldade surgida quanto à instauração, regularização e formalização do processo disciplinar (neste sentido, o Ac. do STA de 27/03/90, in AD nº 358/1183).
É verdade que o prazo de prescrição do procedimento disciplinar é de 3 anos sobre a data em que a falta houver sido cometida (art. 289º, nº1, cit. dip.).
E tratando-se de uma infracção de execução prolongada no tempo, o prazo só começa a correr após o último dos factos integrados na conduta punida (Ac. do STA de 9/07/92, in Ap.. ao DR, de 30/11/94, pag. 609 e in BMJ nº 418/777; tb. Ac. do STA de 18/02/93, Proc. Nº 29 968, entre outros).
Nesse sentido, - e mesmo sem necessidade de se atender aos actos instrutórios de que trata o nº3, do citado art. 289º - considerando as datas a que se reportam os últimos factos apurados, de maneira nenhuma se pode dizer que a prescrição do procedimento teve aqui lugar. Nem mesmo, aliás, isso se poderia dizer relevando o mais antigo dos factos, pois que entre 2/09/2008 (o facto mais recuado no tempo) e 4/03/2011 (data da instauração do procedimento) ainda não tinham decorrido os 3 anos previstos na lei.
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1.1 - Sucede, por outro lado, que o nº4 do artigo referido também dispõe que «Suspendem o prazo prescricional a instauração dos processos de sindicância e de averiguações e ainda a instauração dos processos de inquérito e disciplinar, mesmo que não tenham sido dirigidos contra o funcionário ou agente a quem a prescrição aproveite, mas nos quais venham a apurar-se faltas de que seja responsável» (destaque nosso).
E não se pode esquecer que obsta ao decurso do prazo prescricional a pendência de recurso contencioso interposto do acto punitivo. Em tal caso, a suspensão que já vem da instauração do procedimento perdura até ao trânsito em julgado da decisão judicial que recair sobre o recurso contencioso dele interposto (Ac. do STA de 13/07/93, Proc. nº 029346; Pleno de 6/12/2005, P. nº 042203).
Só se verificará a prescrição se, depois da anulação contenciosa transitada em julgado, decorrerem mais de três anos sem que o seu decurso seja interrompido pela prática de actos com efectiva incidência na marcha do processo (Acs. do STA de 22/03/90, in Ap. ao DR, de 12/01/05, pag. 2311 e 13/07/93, Proc. Nº 29 346; também Ac. TCA de 20/06/2002, Proc. nº 4633/00).
Não deixamos mesmo de apontar que não falta quem entenda que, até mesmo após a anulação contenciosa, o procedimento, para efeito de prescrição, tem-se como instaurado no momento em que o mesmo se iniciou (Ac. do STA de 21/11/2000, Proc. Nº 044984).
Seja como for, isto é, quer se faça incidir um novo prazo de 3 anos sobre o trânsito em julgado da decisão judicial anulatória, quer se defenda que o procedimento se deve continuar a dar por instaurado no momento em que ele se iniciou, é seguro que in casu – (em que a entidade administrativa se limitou a renovar o acto em execução de sentença, nos termos do art. 174º, do CPAC) - o prazo de três anos se não pode ter por consumido em nenhuma das situações. Na verdade, até mesmo para a primeira das teses, o procedimento foi imediatamente retomado com a prolação de decisão datada de 29/01/2014, na sequência do acórdão anulatório do TUI datado de 18/12/2013.
Improcede, pois, este vício.
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2 – Segundo vício: Impossibilidade de objecto e inutilidade
Fazendo apelo ao art. 276º do ETAPM, pensa a recorrente que não podia ser alvo de uma pena disciplinar em virtude de já não estar ao serviço no momento da sua aplicação.
Não tem razão. Certo é que em 29/01/2014 a recorrente já não era funcionária dos Serviços de Saúde. Todavia, não esqueçamos que este acto administrativo se reporta a factos verificados num período em que ela era funcionária médica dos SS, concretamente no Hospital Conde S. Januário.
De resto, o próprio art. 280º, nº2 do ETAPM – ao estatuir que “A cessação de funções e a mudança de situação não impedem a punição por infracções cometidas no exercício dessas funções” – não deixa margem para dúvidas a respeito da possibilidade de sancionamento disciplinar a quem já cessou a relação funcional, inclusivamente por aposentação (art. 306º, do ETAPM) ou por mudança de situação (v.g., licença sem vencimento) e de local de emprego a título de comissão de serviço, por exemplo (Ac. TSI, de 3/04/2008, Proc. nº 246/2007).
E não se diga que esta sanção disciplinar é inútil. É que, mesmo para a hipótese de o agente se ter desvinculado do exercício de funções públicas, continua a haver interesse e utilidade na aplicação da pena, nem que seja por uma razão de salvaguarda da eventual e futura reentrada num qualquer órgão da Administração Pública para o exercício de públicas funções.
No caso em apreço a utilidade e possibilidade seriam, de resto, mais do que evidentes. Com efeito, a pena primeiramente aplicada (entretanto anulada) foi de 180 dias de suspensão, ao passo que a sanção aqui sindicada foi de apenas 120 dias de suspensão. Bastaria que, na mesma decisão administrativa a entidade competente, ao proferir o acto administrativo, determinasse a redução da medida de 180 para 120 dias de suspensão e, simultaneamente, ordenasse a reposição da importância de apenas 60 dias de vencimento. A utilidade seria então concreta, efectiva e actual. Não foi assim decidido, pois a estratégia foi mandar repor as importâncias salariais correspondentes a 180 dias (por despacho de 29/01/2014: fls. 14) e em despacho autónomo (da mesma data) aplicar nova sanção limitada a 120 dias de suspensão.
Não é, porém, pelo facto de assim ter sido decidido administrativamente que se pode dizer que a aplicação de uma pena de suspensão a quem já não é funcionário é impossível e inútil.
De qualquer maneira, e tendo em atenção o disposto no art. 280º, nº 2 do ETAPM, o problema equacionado pela recorrente não pode ser encarado sob o prisma de legalidade (é nisso que pensa quando pede a anulação do acto com esse fundamento), quando muito de exequibilidade prática do acto punitivo ou da sua executividade, isto é, de saber se, face à situação actual, a pena pode ser realmente posta em prática, se pode efectivamente, e desde já, afectar a esfera jurídica da sua destinatária. Isso, contudo, é um problema diferente que não constitui vício que o torne inválido. E isto basta para que se não possa dar razão à recorrente.
Improcede, pois, o referido vício.
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3 - Terceiro vício: Da não retroactividade
Insurge-se a recorrente contra o acto sindicado na parte em que este considerou a pena disciplinar de 120 dias nele aplicada “já cumprida no que respeita ao seu afastamento do serviço”.
Na sua tese, uma tal decisão atenta contra o princípio da não retroactividade no âmbito sancionatório, a não ser na parte em que ao interessado for favorável, conforme o disposto no art. 118º, nº2, al. a), do CPA.
Vejamos.
É preciso ter em atenção que a digna entidade administrativa recorrida, em 29/01/2014, proferiu dois despachos:
a) O primeiro foi lavrado expressamente em execução do acórdão anulatório do TUI atrás referido.
Ele compreende-se: desaparecido da ordem jurídica o acto punitivo em 180 dias de suspensão aplicado à recorrente, haveria que reconstituir-lhe na medida do possível a sua actual situação hipotética. Assim o determina o art. 174º, nº 3, do CPAC.
Portanto, se não era possível eliminar do mundo da realidade os factos ocorridos no passado – i.é., a efectiva suspensão do exercício de funções - haveria que accionar o seu sucedâneo mais próximo e natural. Uma vez que a suspensão tivera como consequência a perda da respectiva remuneração pelos dias por que tinha durado a pena (art. 309º, nº1, do ETAPM), a mais imediata forma de reconstituir a esfera jurídica da recorrente violada pelo acto anulado seria mandar repor os dias de vencimento perdido. Foi essa a preocupação ínsita no dito despacho (fls. 14), que teve em vista, por conseguinte, a reposição da ordem jurídica violada.
b) O segundo aplicou à recorrente com base nos mesmos factos, mas sem a agravante antes considerada no acto anulado pelo TUI (foi esse o motivo da anulação: a não verificação da dita agravante), uma pena mais reduzida: 120 dias de suspensão!
Em princípio não haveria nada a dizer, nem quanto ao sancionamento, nem quanto à sua medida. Mas, já há que alertar para um aspecto não negligenciável: é que no despacho aludido em a), a Administração, em execução do acórdão anulatório, reconstituiu a actual situação hipotética! A situação de ilegalidade do acto anulado foi por essa via refeita e aproximada da legalidade, tanto quanto era possível restaurar nesse momento.
Ao mandar repor o vencimento anteriormente perdido, esse despacho impôs a prática de actos materiais com vista a apagar os vestígios do acto anulado. Repetimos, mesmo que se não pudesse apagar a suspensão efectivamente cumprida pela recorrente, o certo é que a anulação do acto que a determinou e o despacho de 29/01/2014 referido em a) e os actos de reposição do vencimento perdido conduzem juridicamente a este resultado: dentro do possível, tudo foi reconduzido ao seu devido lugar, tudo foi recolocado na ordem jurídica.
Por essa via, a Administração cumpriu num primeiro momento o efeito repristinatório da anulação, apagando a definição jurídico-administrativa que estava contida no acto anulado.
Num segundo momento (em despacho à parte), a mesma Administração procedeu ao reexercício do seu poder e das suas competências próprias, introduzindo alterações no quadro jurídico restabelecido pela sentença e praticando um novo acto.
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3.1 - Evidentemente, a eficácia do caso julgado judicial limita-se aos vícios determinantes da anulação do acto administrativo e, portanto, não impede a substituição do acto recorrido por um outro que não os repita. Portanto, se pelo seu comportamento o funcionário foi punido disciplinarmente com uma determinada pena disciplinar (por exemplo, a pena de aposentação compulsiva), anulada, porém, por aplicação indevida de um determinado dispositivo legal, está integralmente cumprida e executada a decisão judicial se a entidade administrativa competente, após o trânsito em julgado do acórdão anulatório, no mesmo procedimento renova o acto punitivo, aplicando desta vez uma pena inferior (por exemplo, suspensão/inactividade por 15 meses). Assim se pode ler na jurisprudência comparada, por exemplo, no Ac. do STA/Pleno, de 5/05/2005, Proc. nº 0297261 (tb. Ac. STA/Pleno, de 1/06/2006, Proc. nº 030655A).
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3.2 - O problema é agora dos efeitos a atribuir aos actos administrativos que dêem execução às decisões anulatórias, se efeitos “ex tunc”, portanto, com eficácia retroactiva, ou se somente efeitos “ex nunc”, com eficácia apenas para futuro.
Pergunta-se: A prática do acto aludido em 3.b), tem eficácia retroactiva?
Entramos, agora, na apreciação do problema no âmbito do art. 118º, nº1, al. b), do CPA.
A questão está em apurar da possibilidade do conteúdo do acto novo e da sua capacidade para interferir na relação jurídica substantiva. É que o art. 118º, nº1, al. b) preceitua que “Têm eficácia retroactiva os actos administrativos…que dêem execução a decisões dos tribunais, anulatórias de actos administrativos, salvo tratando-se de actos renováveis” (destaque nosso).
Parece decorrer da norma a afirmação do princípio se que se os actos anulados pelos tribunais forem renováveis, a eficácia do actos renovadores já só se poderá projectar para futuro (a lógica aponta nesse sentido, embora Mário Aroso de Almeida defende que em situações excepcionais o acto renovador também possa ter eficácia retroactiva (Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Almedina, 2002, pág. 680)
Este tema, que tem merecido a atenção da doutrina e da jurisprudência, só surge porque o artigo em apreço tem uma previsão que parece não corresponder à sua intenção normativa ou porque não dá resposta a todas as situações em que a retroactividade se justifica. Por isso é que ele tem sido alvo de diversas críticas e há já quem proponha a sua eliminação ou substituição por outro (v.g., Mário Esteves de Oliveira e outros, in Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., pág. 621-622; Mário Aroso de Almeida, in Anulação de Actos Administrativos e Relações…, pág. 674 e sgs.).
E, tanto quanto avaliamos, a solução está em saber o que é um acto renovável.
Parece que se pode dizer que o acto renovável é aquele que, após uma anulação judicial, pode voltar a ser praticado pela Administração, pode ser reintroduzido na ordem jurídica, pode ser reeditado, expurgado, porém, das maleitas que o caracterizavam anteriormente e que foram a razão da anulação.
Avultam nesse domínio os actos anulados por vício de forma por falta de observância de uma formalidade essencial (v.g., audiência prévia) ou por falta ou insuficiência de fundamentação.
Todavia, também se tem defendido que a renovação também é possível nos casos de anulação por outro tipo de vícios, como o de erro sobre os pressupostos de facto ou de direito, de desvio de poder, etc., conquanto o novo acto se encontra isento do vício que determinou a anulação do anterior (v.g., Ac. STA/Pleno, de 07/09/1997, Proc. nº 033894).
Mais difícil é responder a esta pergunta: a renovação só tem lugar no quadro de um acto-clone? É preciso que o novo acto tenha o mesmo conteúdo do anulado?
Repare-se que não estamos a falar da possibilidade de ter o mesmo conteúdo, mas da necessidade de ter um conteúdo igual.
Pode dar-se o caso de a Administração não praticar mais nenhum acto; tudo depende do feixe de poderes e deveres envolvidos que no caso estejam cometidos à Administração. A Administração pode deixar de actuar após a anulação judicial.
E o exemplo do direito do exercício de punir é paradigmático. Ela pode, após a anulação, deixar cair o procedimento e não exercer aquele direito. Nesse sentido, é discricionário o seu poder de punir, segundo alguma doutrina e jurisprudência comparadas o sublinham (v.g., Vieira de Andrade, A justiça Administrativa, 3ªed., pág. 2395; Ac. STA de 4/11/2009, Proc. nº 0661/09), tal como é discricionário o poder de o usar (Ac. do STA, de 25/02/86, Proc. nº 10684-A, in AD nº 293, pág. 625).
Na verdade, por uma decisão anulatória não fica a Administração obrigada a retomar a relação procedimental e nele substituir o acto anulado por outro, embora noutras situações isso possa acontecer, tudo dependendo dos ditames da lei que regular a situação concreta. Pode fazê-lo neste caso, porém, cabendo-lhe contudo a sua última e decisiva palavra (Mário Aroso de Almeida, Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Almedina 2002, pág. 578).
Mas, se vier a praticar um acto administrativo na sequência da anulação contenciosa, a questão volta a colocar-se.
Bem. Nos actos anulados por vício de forma, isso sem dúvida é frequente: retoma-se o procedimento no ponto onde a falha ocorreu, suprime-se o vício realizando agora o que anteriormente faltou, e, na oportunidade, volta-se (se for o caso; i.é., não necessariamente) a praticar o mesmo acto.
Mas, por exemplo, ante a anulação de um acto por erro num dos pressupostos de facto, já o acto substitutivo pode vir a ter - ou não poder ter - o mesmo conteúdo. Por exemplo, se o funcionário foi punido numa pena de demissão pela prática de dez infracções graves, a anulação judicial do acto punitivo com fundamento em erro nos pressupostos em cinco dos factos (que se apurou não terem sido cometidos), irá seguramente fazer baixar a medida concreta da sanção disciplinar (v.g, Ac. TUI, de 17/12/2003, Proc. nº 29/2003; 10/05/2006, Proc. nº 7/2006; na jurisprudência comparada, por exemplo, Acs. do TCA, de 20/06/2002, Proc. nº 4633/00; STA, de 1/03/2007, Proc. nº 0821/06).
Por outro lado, também é bom não esquecer que a Administração pode vir a praticar um acto igual ao anterior, mas agora tendo em atenção novos factos ou um quadro jurídico novo. Aí, seguramente não estamos a falar de um acto renovador. É um acto totalmente novo, independente e autónomo. Não é nesses que pensamos ao equacionar a questão acima.
Então, insistimos: o acto renovador tem que apresentar o mesmo conteúdo definitório?
Um acórdão do STA português, há relativamente pouco tempo, deu uma resposta afirmativa: a renovação implica um acto (renovador) com um conteúdo igual ao anulado (renovado). Quando se estivesse perante um acto em substituição do anterior, isso seria um acto novo, logo não renovador (Ac. STA/Pleno, de 23/01/2013, Proc. nº 0772/10; no mesmo sentido, Ac STA/Pleno, de 7/09/97, Proc. nº 033894). Trata-se, de resto, de uma posição extraída de Mário Aroso de Almeida, que procura fazer a distinção entre acto puramente substitutivo e acto renovador (Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, entre outras, ver págs. 565, 567, 601, por exemplo).
A partir dessa tese pode concluir-se que um acto não é renovador, sempre que o anterior anulado não é renovável. Deixa de ser renovador, para passar a ser acto inovador, algo completamente novo, autónomo e independente do primeiro. E nesse caso, a sua eficácia haveria de ser sempre e só para futuro.
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3.3 - Há ainda uma tese um pouco diferente, segundo a qual a norma citada (art. 118º, nº1, al. b), do CPA) apenas consente a retroactividade do acto renovador, desde que favorável ao interessado e que o inciso “salvo tratando-se de actos renováveis” se deve aplicar somente aos casos de actos desfavoráveis (Ac. do TCA/SUL, de 21/10/2004, Proc. nº 12436/03).
O próprio Vieira de Andrade se inclina para ela ao afirmar que «Nos termos do artigo 128º, n.º 1, b), do CPA, têm eficácia retroactiva os actos que executem sentenças anulatórias de actos, salvo se estes actos forem “renováveis”, parecendo que assim se pretende conferir eficácia retroactiva, ou não, conforme se trate de execução favorável ou desfavorável ao recorrente». E chega mesmo a alvitrar que «Só que esta indicação normativa não é suficiente e nem sempre corresponderá à melhor solução no caso concreto – não se pode excluir a possibilidade de o acto renovador ter efeitos retroactivos, designadamente se favoráveis a terceiros...» (A Justiça Administrativa, 3ª ed., pág. 296 e seguintes).
Mário Aroso de Almeida não se afasta dela também (ob. cit., pág. 652).
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3.4 – O que dizer?
Tem que ser o mesmo conteúdo? E o que é isso de acto igual ou acto com mesmo conteúdo?
Terá que ser um acto exactamente com os mesmos recortes dispositivos? A decisão ablativa tem que ser exactamente a mesma? Na interdição de entrada na RAEM, por exemplo, tem que ter a mesma duração da primeira anulada? A pena disciplinar tem que ser igual dentro da tipologia das penas legalmente previstas e dentro de cada uma tem que apresentar precisamente a mesma dosimetria concreta?
A proposta de solução é: O acto renovador não tem que ter exactamente o mesmo conteúdo do renovado.
Nesse caso, à densificação desta expressão, importa é que o acto tenha um conteúdo substantivamente equivalente, mas não obrigatoriamente igual na sua exacta dispositividade quantitativa. Por exemplo, uma pena de demissão pode vir a ser substituída por uma pena de suspensão; uma pena de suspensão por 150 dias pode ser substituída por outra de 100 dias. Embora inferior à primeira (e, portanto, aparentemente favorável), a verdade é que continua a ser lesiva para a esfera jurídica do interessado, continua a ser gravosa do ponto de vista da posição jurídica do funcionário, continua, enfim, a ser pena disciplinar.
Nesta óptica, tem o mesmo conteúdo agressivo e ablativo.
Quanto à segunda questão (necessidade de ao acto renovador ser favorável), não cremos que a posição dos autores que defendem a tese da necessidade de acto renovador favorável, estejam a pensar em todas as hipóteses de favorabilidade. Se assim fosse, bastaria que a pena aplicada em sede de acto renovador fosse inferior à primitiva (por exemplo, 100 dias, em vez dos 101 dias de suspensão primitivamente aplicados) para já se dar efeito retroactivo ao 2º acto punitivo.
Portanto, cremos que em casos desses em que esteja em causa uma questão de dimensão se deve olhar para o acto concreto e dele retirar os efeitos que for possível extrair. Precisaremos ver se se trata de uma dimensão diferente qualitativa ou quantitativa.
Por exemplo, se a pena anulada era de demissão, o novo acto que aplique a pena de aposentação compulsiva não se pode considerar renovadora, porque, apesar de se fundar nos mesmos factos, representa já uma definição completamente diferente da situação jurídica do interessado. Embora se possa dizer que, na comparação é mais benéfica que a pena de demissão, a verdade é que continua a ser pena disciplinar e concomitantemente expulsiva. Para os efeitos da tese não se deve tomar este acto administrativo como “favorável”. Logo, não será renovador, nem terá eficácia retroactiva.
Mas, por outro lado, se estivermos perante uma menor dimensão quantitativa (no exemplo, a pena de suspensão de funções por 90 dias, em vez da pena anulada de 150), apesar de no seu todo a pena recente é inferior à primitiva, ela continua a ser punitiva e isso é o que o funcionário não quer. O acto continua a ser agressivo e nessa medida, para o efeito da tese, não se verifica um acto favorável tout court. Parece-nos, portanto, que o que conta verdadeiramente, para esta tese, é a eliminação do gravame, da sanção, é o desaparecimento definitivo do acto sancionatório ou do acto ablativo. O que releva não é a mera redução, mas a própria eliminação da pena.
E nesta perspectiva, então, o acto que aqui aplicou a pena de 120 dias (em vez de 180) já não seria favorável para efeitos do art. 118º, nº1, al. b). O que significaria que não seria retroactivo.
Admitimos, contudo, que se possa fazer uma segmentação desse acto: a parte reduzida (60 dias) é favorável: nessa parte, porque favorece a esfera jurídica do funcionário, tem efeitos retroactivos. Daí que ele tenha direito à reposição de vencimentos e à restauração da carreira em termos de antiguidade e em outros aspectos correlativos que estiverem presentes. Na parte restante (120 dias), será agressivo e mantém o acto anterior. Nesse segmento, poderemos dizer que será renovável e, logo, não terá eficácia retroactiva, mas simplesmente ad futurum.
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3.5 – Mário Aroso de Almeida, no laborioso estudo que empreendeu sobre o tema, considera que todo o acto que, na sequência de anulação contenciosa, continue a ser agressivo, ablativo, sancionatório, deve ser tido por irretroactivo, embora que necessariamente por referência ao passado. Ou seja, a pena nova só se justifica por causa de factos passados, mas não pode ter projecção directa nesse passado (ob. cit., pág. 666-673); No mesmo sentido Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., pág. 980 e sgs; tb. Ac. STA/Pleno, de 2/07/2008, Proc. nº 01328A/03).
O que há é uma actuação com atraso por referência à situação que existia; é como se a Administração actuasse em momento anterior àquele em que efectivamente o faz (Mário Aroso de Almeida, Anulação de actos…. cit., pág. 615).
Não anda longe dessa posição uma outra linha de jurisprudência comparada, que considera que os actos administrativos punitivos que dêem execução a sentença anulatória de outros actos punitivos apenas produzem efeitos desde a data em que ele (acto renovador) tiver sido produzido (Neste sentido, ver, por exemplo, os Acs. do STA, de 14/02/95, Proc. nº 36265; - 22/04/99, Proc. nº 28957A; de 13/04/2000, Proc. nº 31616; 17/06/2003, Proc. nº 0750/03).
E não deixamos mesmo de dar conta de um outro aresto que – apenas pela circunstância de a Administração dispor do poder discricionário de não punir - afirma que o acto que, na sequência de uma sentença anulatória, faz prosseguir o processo disciplinar e impõe uma nova sanção (tendo a Administração o poder discricionário de não a aplicar, repetimos) é acto totalmente novo, que já não é um acto de execução da sentença anulatória e que, em consequência do art. 117º do CPA, só pode ter eficácia a partir da data em que é praticado (Ac. STA, de 14/11/2009, Proc. nº 0661/009).
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3.6 – Aplicando a doutrina de qualquer uma das teses expostas ao caso vertente, a solução não pode deixar de ser uma só. Então, e em resumo, achamos poder concluir que:
a) Ou se considera que a aplicação da pena de 120 dias de suspensão tem o mesmo conteúdo dispositivo, variando apenas no seu segmento quantitativo. E, portanto, nessa perspectiva é renovador; logo, não retroactivo;
b) Ou o acto (no seu todo) que aplica 120 dias, em vez do primitivo de 180 dias de suspensão, é não favorável, porque mantém o mesmo objectivo sancionatório; logo, não retroactivo;
c) Ou se considera que só é favorável e retroactivo em 60 dias; mas na parte restante (120 dias) continua com o mesmo conteúdo agressivo e desfavorável do anterior; logo, não retroactivo.
Eis então a razão por que, em qualquer dos prismas, a recorrente não tem razão no vício invocado.
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3.7 – Não podemos, por último, deixar de referir um aspecto que de algum modo a recorrente equaciona e que pode ser encarado a uma outra luz.
Tem ele que ver com a fórmula utilizada pela Administração ao fazer repercutir a nova pena de suspensão naquela que a recorrente já tinha sofrido. Na realidade, o autor do acto punitivo de 19/01/2014 disse expressamente em relação à pena de 120 dias que acabava de aplicar que “considero já cumprida no que respeita ao seu afastamento do serviço”.
Ora bem. Como acima dissemos, não se pode fazer desaparecer dos factos a pena de suspensão de 180 dias de suspensão cumprida pela recorrente. A sanção foi realmente consumada ou executada, como se quiser dizer.
É por isso que a eliminação da ordem jurídica desse primitivo acto sancionatório através da sentença não pode apagar todos os efeitos negativos que ele gerou na esfera da interessada; ou seja, não pode ter os efeitos repristinatórios totais que outra anulação judicial pode ter em casos diferentes. Assim, neste caso pode repristinar-se a antiguidade perdida de 180 dias e pode recuperar-se a remuneração equivalente a esse período (art. 309º, nº1, do ETAPM). Mas, não há maneira de repristinar a situação de facto sofrida efectivamente pela suspensão de funções.
Ora, esse problema é resolvido frequentemente pelo fenómeno da compensação (Mário Aroso de Almeida, ob. cit., págs. 587 e 637-638). A Administração, para efeito da aplicação da nova pena em renovação da anterior, determina que seja tomada em conta a pena anteriormente aplicada, efectivamente cumprida e posteriormente anulada. Só que isso já, porém, não é dar efeito retroactivo à nova pena.
Trata-se, simplesmente, de compensar o funcionário, beneficiando-o com a dispensa de execução da nova pena por indevidamente ter cumprido a anterior anulada. Como a nova sanção teria eficácia futura, seria cumprida daí em diante logo que se firmasse na ordem jurídica (se houvesse recurso contencioso dela, após o trânsito da respectiva sentença), desde que o funcionário ainda estivesse em funções. No caso de não estar em funções, por se ter desvinculado, por exemplo, (como parece ter sido o caso), então a sua eficácia seria também futura, mas condicionada a um eventual regresso da mesma ao exercício de funções públicas.
Ora, para evitar sofrer no futuro uma tal pena, o problema é resolvido pelo dito fenómeno de compensação, que acaba por ter efeitos favoráveis ao interessado. O interessado fica a saber que não mais se lhe vai exigir o cumprimento desses 120 dias de suspensão, porque se têm por executados já no cumprimento indevido da pena anterior.
Isso não é conferir eficácia retroactiva ao novo acto, repetimos, nem tampouco atentar contra o princípio non bis in idem; é simplesmente praticar o acto por referência ao passado. Na verdade, com a anulação judicial a pena anterior desapareceu da ordem jurídica. Ora, o princípio non bis in idem pressupõe que sobre os mesmos factos passados recaia mais do que uma pena ou sanção em conjunção. E tal não acontece no caso em apreço; eliminada da ordem jurídica a pena anterior por efeito da anulação, a nova não se acumula à anterior.
Aliás, sobre o fenómeno da compensação admissível, já se expressou o Ac. do STA de 14/12/2005, Proc. nº 01127/04 em termos que aqui adoptamos, quando referiu: “…não ofende o mesmo princípio “ne bis in idem” a aplicação de pena igual à anteriormente anulada e, entretanto, executada, se o acto renovador é mandado descontar na que fora já cumprida, impedindo-se assim uma duplicação de cumprimento de pena”.
Dito isto, e sem mais delongas, improcede o vício.
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4º vício – Da falta de fundamentação
A recorrente entende que o vício em epígrafe se verifica por o acto se ter limitado a apelar “à matéria de facto descrita e provada no processo disciplinar e confirmada e estabilizada nas decisões judiciais entretanto proferidas”.
Quer dizer, em sua opinião, por o acto não a enunciar nem descrever, fica sem saber qual a matéria verdadeiramente levada em conta para a punição, designadamente se teve em conta a circunstância que foi fundamento da anulação do acto anterior. Estaria, assim, violado o dever constante do arts. 113º a 155º do CPA.
Ora bem. Como se pode constatar pela leitura do conteúdo do acto (ponto 7 dos Factos), a necessidade do reexercício do poder disciplinar ficou a dever-se à anulação da pena anterior de 180 dias de suspensão com fundamento na violação do disposto na alínea b) do nº1 do art. 283º do ETAPM. Ora, essa anulação deveu-se, precisamente, por se ter considerado que a publicação da notícia nos jornais não era circunstância agravante que pudesse ser imputada à recorrente.
Daí que, desconsiderada a agravante, a pena haveria de ser menor. Mas, como bem se compreende, se o reexercício do poder disciplinar se efectuou no âmbito do mesmo procedimento e no quadro da mesma factualidade que conduziu à pena anulada, os factos a reconsiderar seriam necessariamente aqueles que foram apurados no decurso daquele (se outros novos concorressem, então, a recorrente deveria ter o direito de sobre eles se pronunciar e isso dificilmente se compadeceria com o mesmo procedimento).
Não tendo havido alteração da matéria de facto nos pressupostos da punição, a entidade recorrida podia fazer o que fez: remeter para os factos já apurados no procedimento e confirmados no processo judicial. Trata-se de uma fundamentação por remissão, que, numa perspectiva ampla do dever, e sem quebra do direito que neste domínio é reconhecido ao particular, se pode enquadrar no disposto no art. 115º do CPA. Importa é que o destinatário do acto tenha ficado a conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo do acto. Ora, a recorrente, em consciência e boa fé, não pode dizer que ignora as razões fácticas pelas quais de novo foi punida, quando para o efeito a própria Administração reitera os factos já consolidados (e da recorrente já conhecidos) no procedimento e do processo judicial. Aliás, a recorrente não mostrou ter qualquer dificuldade em acometer judicialmente o acto punitivo.
Improcede, pois, o vício.
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5º Vício – Abuso de poder
Este vício vem suscitado como uma espécie de corolário: a decisão sancionatória ilegal aqui sindicada nos termos expostos, traduziria uma “…perpetuação da condição de arguida e de funcionária…contra a actual situação de facto; a Recorrente já não é funcionária dos Serviços de Saúde”. Nisso, afinal de contas, residiria a densificação do vício.
Não tem razão, salvo o devido respeito, e isto por duas razões.
Antes de mais nada, o abuso de poder não faz parte da tipologia legal habitual dos vícios dos actos administrativos (cfr. art. 21º, nºs1 e 2 do CPAC). O abuso de poder é, antes, um tipo legal de crime (cfr. art. 347º do Código Penal de Macau).
Em segundo lugar, e agora no pressuposto de que a recorrente incorreu em lapso de escrita, também nos parece que o desvio de poder não está minimamente configurado para que pudesse ser procedente.
Este vício dá-se quando a Administração se subjuga a um interesse principalmente determinante não consentâneo com o fim depositado na norma ao conceder-lhe poderes discricionários (Ac. TSI, de 14/06/2012, Proc. nº 569/2011; 5/12/2013, Proc. nº 268/2009). Trata-se, pois de um exercício de poderes discricionários com um fim diferente daquele para o qual a lei os conferiu ao órgão administrativo (v.g., fim persecutório; fim de interesse público diferente do legalmente previsto; fim de interesse privado em vez do interesse público, por razões de amizade, parentesco, corrupção, conluio, etc.).
Ora, nada disso se pode inferir, sequer, da factualidade provada, nem a recorrente foi capaz de descrever e provar um quadro que apontasse minimamente nesse sentido.
Aliás, sobre a possibilidade de reiterar aquele poder disciplinar na sequência da actuação judicial da pena anterior já nos pronunciámos acima. A Administração limitou-se a exercer o seu poder disciplinar contra uma funcionária que, no tempo em que o era, agiu em contrário dos deveres que lhe cumpria respeitar. Nada disso configura o vício de desvio de poder.
Claudica, pois, a recorrente no seu recurso.
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V – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso, mantendo o acto administrativo recorrido.
Custas pela recorrente, com taxa de justiça em 7 UC.
TSI, 4 de Dezembro de 2014
José Cândido de Pinho
Presente Tong Hio Fong
Victor Manuel Carvalho Coelho Lai Kin Hong
185/2014 5