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Processo nº 571/2014 Data: 06.11.2014
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “acolhimento” (art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004).
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Reenvio.



SUMÁRIO

1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.

2. Estando o arguido acusado da prática de 2 crimes de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, e não estando o texto da acusação clara no sentido de ter o arguido recebido (efectivamente) “rendas” pelo “alojamento” que proporcionou a 2 imigrantes com permanência ilegal em Macau, deve o Tribunal clarificar tal obscuridade da matéria da acusação de forma a se saber se aquele cometeu os crimes pelos quais estava acusado na forma “tentada” ou “consumada”.

3. Não o fazendo, incorre no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.


O relator,

______________________


Processo nº 571/2014
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, arguido com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado como autor material da prática de 2 crimes de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos; (cfr., fls. 109 a 112, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para, a final, e em sede das suas conclusões afirmar que o acórdão recorrido padece de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação da lei”; (cfr., fls. 115 a 127-v).

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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento, sendo de se confirmar, na íntegra, a decisão recorrida; (cfr., fls. 129 a 132).

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Admitindo o recurso com efeito e modo de subida adequadamente fixados, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Esgrimindo, essencialmente, com o que considera ter sido a prova produzida, resultante, essencialmente, das declarações do próprio no seu interrogatório inicial na PJ. e M.P. e nas declarações para memória futura das testemunhas envolvidas, topa o recorrente, no douto acórdão sob análise, a ocorrência de vício de erro notório na apreciação da prova, erro de direito na integração e subsunção jurídicas operadas e prescrição do procedimento criminal.
Cremos que lhe poderá assistir alguma razão, se bem que em termos e com fundamentos algo diversos dos invocados.
Dispõe-se no douto aresto que "Com vista a obter vantagens ilegítimas, o arguido, durante o período compreendido entre 23/10/2008 e 09/02/2009, deu de arrendamento, uma das camas da aludida fracção à B, de nacionalidade das Filipinas, pela renda mensal de 500 patacas ... ", o mesmo sucedendo relativamente à testemunha C, também de nacionalidade filipina, sendo que ambas se encontraram em situação de permanência ilegal em Macau entre 23/12/2008 e 9/2/09.
Sustenta o recorrente que resultará da prova produzida, máxime do seu próprio interrogatório e das declarações para memória futura prestadas por aquelas testemunhas, que estas apenas terão pago a renda do 1 ° mês em que se alojaram – Outubro de 2008 – altura em que se encontravam ainda em situação regular na Região, não mais tendo pago qualquer outra quantia, razão por que entende o visado a integração da sua conduta delituosa à luz do preceituado no n° 1 do art° 15° da Lei 6/2004, cujo procedimento se encontraria já extinto, por prescrição.
Ora bem: ao contrário do que parece transparecer das considerações expendidas pelo Exmo Colega junto do tribunal ("a quo", não se nos afigura que a integração no n° 2 do preceito referido se baste com a "intenção" de obtenção de vantagem patrimonial. Conforme consta expressamente da norma, é necessário que se obtenha efectivamente, por via directa ou por interposta pessoa, tal vantagem.
E, por outro lado, indesmentível que o tipo de prova adiantada pelo visado – convergência dos intervenientes nos factos (arguido e testemunhas) no sentido de ter existido por parte destas apenas um pagamento de uma renda mensal, quando ainda se não encontravam em situação de permanência ilegal na Região – se mostra evidenciada e documentalmente reportada nos autos.
Mas, o facto é que, nem a acusação, nem o douto acórdão em crise abordam tal questão, sendo que o escrutínio da mesma se revelava fundamental para a subsunção na norma incriminadora identificada pelo tribunal "a quo" para fundamentar a sua decisão de condenação pelo previsto no n° 2 do normativo em causa, impondo-se, pois, investigação sobre a matéria suscitada nos autos, já que, a partir dos dados existentes e mesmo nos termos expressos pelo acórdão, a conduta submetida a julgamento tanto poderá vir a integrar o ilícito por que o recorrente foi condenado, como a tentativa desse ilícito, como a prática do crime que o visado almeja.
Donde, detectar-se vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, não tendo, a esse propósito, sido requerida renovação da prova, entendermos haver que proceder, pela via apontada, o presente recurso, procedendo-se a reenvio para novo Julgamento, sobre o específico, sendo certo não deter a alegação de eventual extinção do procedimento criminal por prescrição qualquer consistência (no caso da previsão do n° 1 do art° 15°), desde logo por (p.ex.) a aplicação da medida de coacção aplicada pelo M.P. não determinar a suspensão, mas a interrupção do prazo para aquele efeito (art° 113°, n° 1/b) com as consequências inerentes, pelo que se revelará inócuo tal segmento do argumentado.
Este, o nosso entendimento”; (cfr., fls. 191 a 193-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 110 a 110-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem o arguido recorrer do Acórdão que o condenou como autor material da prática de 2 crimes de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da Lei n.° 6/2004, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos.

Afirma que o mencionado veredicto padece de “erro notório na apreciação da prova” e “errada aplicação da lei”, por violação do art. 15°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004, devendo também ser considerado que prescrito já está o seu procedimento.

Cremos porém que a razão está do lado do Ilustre Procurador Adjunto que, no seu Parecer, pugna pelo “reenvio dos autos para novo julgamento por insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” e que, nesta parte, se dá aqui por reproduzido.

Porém, não se deixa de aditar o seguinte.

Repetidamente tem este T.S.I. afirmado que incorre-se em insuficiência da matéria de facto provada para a decisão “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 23.01.2014, Proc. 756/2013, e mais recentemente, de 24.07.2014, Proc n.° 311/2014).

Nos termos do art. 15° da Lei n.° 6/2004:

“1. Quem dolosamente acolher, abrigar, alojar ou instalar aquele que se encontre em situação de imigração ilegal, ainda que temporariamente, é punido com pena de prisão até 2 anos.
2. Se o agente obtiver, directamente ou por interposta pessoa, vantagem patrimonial ou benefício material, para si ou para terceiro, como recompensa ou pagamento pela prática do crime referido no número anterior, é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos”.

No caso dos autos, e em conformidade com a acusação pública deduzida, ao arguido dos autos era imputada a prática de 2 crimes de “acolhimento”, p. e p. pelo art. 15°, n.° 2 da dita Lei n.° 6/2004.

Todavia, afigura-se-nos que o texto da acusação era pouco claro e (algo) “dúbio” quanto ao “efectivo pagamento da renda” ao arguido, que, como sabido é, constitui elemento cuja verificação é necessária para a consumação do crime de “acolhimento” nos termos previstos no n.° 2 do transcrito art. 15°.

De facto, dizer-se que o arguido “deu de arrendamento pela renda mensal de ……. ”, não implica, (necessariamente), que se tenha (efectivamente) “efectuado e o arguido recebido o seu pagamento”.

E, dest’arte, nesta parte, somos de opinião que podia e devia o Mmo Juiz a quo clarificar tal “obscuridade”, (não se limitando a reproduzir tal factualidade para a sua sentença), pois que, desta “diferença” entre o (mero) “acordo de pagamento” e o seu “efectivo pagamento” depende a qualificação jurídico-penal a operar nos termos do transcrito art. 15°, e, assim, da procedência parcial ou total da acusação deduzida, em consequência também de uma decisão de condenação do arguido pelos imputados crimes na forma “tentada” ou “consumada”.

Nesta conformidade, esclarecida não estando tal matéria, e certo sendo também que na mesma sentença se dá como provado que os terceiros que o arguido “acolheu” apenas passaram a “clandestinos” em 23.12.2008 – data que expirou o seu prazo de permanência legal em Macau – cerca de dois meses depois do “acordo de alojamento” com aquele, claro cremos que está que é tal matéria essencial para uma boa aplicação de direito, assim se constatando o assinalado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” que, sendo de conhecimento oficioso, e insanável, impõe, em conformidade com o estatuído no art. 418° do C.P.P.M., o reenvio dos autos para novo julgamento, (no qual se deverá, como se referiu, clarificar se houve efectivo pagamento das rendas acordadas, e, em caso positivo, em que datas), prejudicadas fixando as restantes questões colocadas.

Decisão

4. Em face do exposto, decide-se reenviar os autos para novo julgamento nos exactos termos consignados.

Sem tributação.

Honorários ao Exmo. Defensor no montante de MOP$1.800,00.

Macau, aos 06 de Novembro de 2014
José Maria Dias Azedo
Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (subscrevo a decisão de determinação do reenvio do processo para novo julgamento, apenas porque entendo que deve proceder o vício de erro notório na apreciação da prova invocado na motivação do recurso, dado que o facto então julgado como provado no sentido de que o arguido recebeu mensalmente as rendas não corresponde ao teor das declarações das duas pessoas arrendatárias em memória futura).

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