Proc. nº 447/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 4 de Dezembro de 2014
Descritores:
-Divórcio litigioso
-Morte do réu
-Art. 1640 º e 1643º do Código Civil
-Extinção da instância
SUMÁRIO:
I - A acção de divórcio tem como objectivo a dissolução do vínculo conjugal.
II - Se o divórcio extingue a relação matrimonial que une duas pessoas, e se igual efeito também a tem a morte de um deles (cfr. art. 1643º, CC)1, parece ficar clara a inutilidade da acção no que concerne ao seu efeito declarativo, visto que o fim que com a acção a autora visava alcançar com a sentença, foi já obtido por uma causa natural.
III - Nos termos do 1640º, nº3, do Código Civil, nada obsta a que a acção de divórcio prossiga pelos herdeiros do autor contra o réu, ou pela autora contra os herdeiros do réu, consoante o falecimento seja do autor ou do réu, respectivamente.
IV - Nesse sentido, mesmo que a causa do divórcio litigioso seja a separação de facto por dois anos consecutivos (art. 1637º, al. a), CC), os efeitos patrimoniais da sentença que o decretasse podiam retroagir à data da propositura da acção, nos termos do art. 1644º, nº1, ou ao momento fixado na sentença em que a coabitação entre os cônjuges tenha cessado (art. 1644º, nº2, CC).
V - Mas se o réu falecer antes de ser citado, não chegou a ser parte na acção e, por isso, a instância não teve qualquer eficácia em relação a ele. Razão pela qual, tem que extinguir-se, não suspender-se, a instância por impossibilidade da lide.
Proc. nº 447/2014
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, titular do B.I.R de Macau n.º XXX, natural de Fujian, China, de nacionalidade chinesa, residente na XXX, intentou contra:
B, titular do B.I.R de Macau n.º XXX, natural de Fujian, China, de nacionalidade chinesa, actualmente internado no XXX,
acção com processo especial de divórcio litigioso, com fundamento na separação de facto por dois anos consecutivos.
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A fls. 21 dos autos veio a autora requerer a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, em virtude do falecimento do réu.
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Por despacho do Ex.mo Juiz de 3/03/2014 (fls. 23) foi o requerimento indeferido por o falecimento do réu em acção de divórcio não produzir necessariamente a extinção da instância, havendo ainda utilidade no seu prosseguimento para efeitos patrimoniais dos herdeiros.
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Desse despacho foi interposto recurso jurisdicional pela autora, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A) A morte dos sujeitos da relação jurídica processual pode originar a suspensão da instância, como se prevê na alínea a), do n.º 1 do art. 220.º do Código de Processo Civil;
B) Porém, o mesmo artigo oferece uma salvaguarda às situações excepcionais, no seu número 3, em que a consequência da morte de uma das partes é a extinção da instância, quando a continuação da lide se torne impossível ou inútil;
C) Fazendo assim funcionar uma das aplicações possíveis do disposto na alínea e) do art. 229.º do mesmo Código: A instância extingue-se com a impossibilidade ou inutilidade supervenientes da lide;
D) No caso concreto, a morte do R. ocorreu após instauração da instância dum divórcio litigioso, não chegando a ter lugar a tentativa da conciliação;
E) A Recorrente e o seu filho não pretendem nenhum efeito patrimonial através desta acção judicial, facto que impede naturalmente o funcionamento do n.º 3 do art. 1640.º do Código Civil;
F) Assim, o simples facto da morte do R. faz com que seja atingido o objecto da interposição da acção que é a dissolução do casamento entre A. e R.;
G) O mesmo resulta da aplicação da lei substantiva, em particular o art. 1643.º do Código Civil [“O divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte (...) ”], que determina também que se o casamento foi dissolvido por morte de um dos conjugues já não poderá ser dissolvido por divórcio;
H) Pelo exposto, o despacho de fls. 23 na parte em que indeferiu a extinção da instância pela inutilidade superveniente da lide deduzida pela ora Recorrente é ilegal, porquanto viola a alínea e) do art. 229.º e o n.º 3 do art. 220.º, ambos do Código de Processo Civil, devendo, assim, ser revogado.
Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o despacho e ser declarada a extinção da instância pela inutilidade superveniente da lide com base na alínea e) do art. 229.º e o n.º 3 do art. 220.º, ambos do Código de Processo Civil».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 – A acção de divórcio intentada por A contra B foi interposta no TJB em 10/02/2014 e o fundamento foi a separação de facto por dois anos consecutivos.
2 – Em 25/02/2014 foi expedida carta registada com AR para a China com vista à citação do réu para a conferência a que respeita o art. 1631º do Código Civil (fl. 20).
3 – O réu, porém, já havia falecido em Zhuhai, na R.P.C., com 70 anos de idade, no dia 12/02/2014 (fls. 7).
4 – A autora requereu a extinção da instância com base no falecimento do réu (fls. 21).
5 – O Juiz titular do processo de divórcio lavrou no dia 3/03/2014 o seguinte despacho:
«Salvo o devido respeito e demais opiniões diversas, a morte da parte no proc. divórcio litigioso não se automaticamente levar ou implicar a inutilidade superveniente da lide.
Isto é, conforme a art. 220, nº 1, alínea a) e art. 221 do CPCM, a morte de alguma parte leva apenas a suspensão da instância.
Mais, conforme o art. 1640, nº 3 do CCM, uma vez o divórcio também tem efeitos patrimoniais e estes efeitos podem ser prosseguidos pelos herdeiros da parte falecido.
Pelo que, o Tribunal indefere o seu pedido, sem prejuízo de demais causas de extinção.
Notifique e D.N.»
6 – Interposto recurso jurisdicional pela autora, o Ex.mo Juiz proferiu o seguinte:
DESPACHO DE SUSTENTAÇÃO
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No uso de faculdade concedido pelo art.º 617, n.º 2 do CPCM, venho por este meio sustentar a decisão proferida recorrida (o despacho de indeferimento o pedido de extinção de instância por inutilidade superveniente de lide pelo facto de falecimento da parte Ré, cfr. fls. 23).
Cumpre sustentar:
Vem o A. requerer a extinção de instância por inutilidade superveniente da lide, com fundamento de que a R. ter falecido.
No caso em apreço, trata-se como acção de divórcio litigioso. Como é sabido, o divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da dissolução por morte, salvas as excepções consagradas na lei. (cfr. art.º 1643 do CCM)
As excepções dessa norma são, designadamente, as previstas nos art.º 1555, 1556 e 1540 do CCM, ora, as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pela dissolução ou anulação do casamento, sem prejuízo das disposições deste Código relativo a alimentos.
E os efeitos do divórcio produzem-se a partir da data em que a respectiva sentença transita em julgado ou a decisão se toma definitiva, mas retrotraem-se à data da proposição do processo quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges.
Ou seja, após de vier decretado o divórcio, os efeitos patrimoniais retrotraem-se à data de propositura do processo, por isso, podendo ter interesses os herdeiros do falecido a continuar prosseguir a acção de divórcio, por querer a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges produzir numa data antes da data de falecimento do falecido, in casu, a R. apenas faleceu depois da entrada da P.I.
Salientamos os efeitos patrimoniais aqui discutidos não são propriamente o pedido de natureza patrimonial deduzido pelas partes nos articulados, mas sim, por exemplos, os efeitos patrimoniais levados à consideração para efeito de partilha (para os efeitos previstos no art.º 1556 do CCM), bem como os efeitos patrimoniais levados à cessação de qualidade de sucessor. (art.º 1973, n.º 3 do CCM).
“A equiparação entre os efeitos da dissolução do casamento por divórcio e por morte não é total, como, aliás, é ressalvado pelo art.º 1788º: o cônjuge sobrevivo integra as duas primeiras classes de sucessíveis (art.º 2133, n.º 1, alínea b) e 2º) mas o ex-cônjuge divorciado não é chamado à herança (art.º 2133, n.º 3) e caducam as disposições testamentárias feitas a seu favor pelo outro ex-cônjuge (art.º 2137, alínea d); além disso, alguns dos efeitos patrimoniais do divórcio só se produzem nessa forma de dissolução do casamento, como sucede com a partilha de bens e a indemnização decorrentes da declaração de um dos cônjuges como único ou principal culpado (art.º 1790 a 1792) e com o destino da casa de moradia de família (art.º 84 RAU e art.1793).2”
Por isso, sem necessidade de delonga desenvolvimento, entendemos que o falecimento de parte não é a causa de extinção de instância por inutilidade superveniente de lide, sem prejuízo das demais causas de extinção de instância, v.g. desistência de instância.
Para nós, o falecimento de parte apenas dar lugar a substituição de parte pelos seus herdeiros e o qual deve determina-se a suspensão de instância nos termos do art.º 221 do CPCM.
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É essa minha sustentação acaba exposta no meu despacho de indeferimento do pedido de extinção de instância por inutilidade superveniente de lide pelo facto de falecimento da parte Ré, cfr. fls. 23 e verso.
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Após, remeta os autos ao Venerando Tribunal de Segunda Instância para fazer a habitual justiça.
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III – O Direito
1 - No presente recurso jurisdicional unicamente se discute se o falecimento do réu, na acção de divórcio litigioso, apenas permite a suspensão da instância (tese do despacho recorrido), ou se conduz à extinção da instância (tese da recorrente).
Vejamos.
O art. 220º do CPC, no que respeita aos efeitos da morte de uma das partes processuais, consagra uma regra e uma excepção.
A regra está prevista no nº1, al. a): a morte de uma das partes determina a suspensão da instância.
A excepção vem no nº2: A morte não dará lugar à suspensão, mas à extinção da instância, quando ela torne impossível ou inútil a continuação da lide. Esta excepção está relacionada com o art. 229º, al. e), do mesmo Código.
Pois bem. Um dos campos de aplicação da excepção é, por exemplo, aquele em que na acção se pretendem discutir obrigações pessoais e intransmissíveis. Outro é o da acção de divórcio, que tem naturalmente como objectivo a dissolução do vínculo conjugal. Ora, se o divórcio extingue a relação matrimonial que une duas pessoas, e se igual efeito também a tem a morte de um deles (cfr. art. 1643º, CC)3, parece ficar clara a inutilidade da presente acção, no que concerne ao seu efeito declarativo. Isto é, o efeito que com a acção a autora visava atingir com a sentença, foi já obtido por uma causa natural.
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2 - Falta, no entanto, atentar no disposto no art. 1640º, nº3: «O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a acção pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, nomeadamente os decorrentes da declaração prevista no artigo 1642.º, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a acção prosseguir contra os herdeiros do réu».
Nesse sentido, mesmo que a causa do divórcio litigioso seja a separação de facto por dois anos consecutivos (art. 1637º, al. a), CC), os efeitos patrimoniais da sentença que o decretasse podiam retroagir à data da propositura da acção, nos termos do art. 1644º, nº1, ou ao momento fixado na sentença em que a coabitação entre os cônjuges tenha cessado (art. 1644º, nº2, CC).
Em princípio, portanto, tudo se encaminharia para o accionamento no caso concreto da excepção e não da regra a que acima aludimos. Então, o prosseguimento da acção seria promovido pelos herdeiros do falecido.
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3 - Acontece, porém, que a acção não chegou a ter qualquer eficácia contra o réu. É verdade que a acção foi proposta e que se pode dizer ter o réu falecido na pendência da causa (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, I, 2004, pág.367).
Todavia, a relação jurídica processual, a instância, não chegou a envolver o réu de uma forma efectiva, em virtude de ter falecido antes da citação. Ou seja, o réu ainda não era parte (José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. I, pág. 477)4.
Portanto, a pessoa que foi demandada como réu faleceu no estado de casado e sem sequer ter tomado conhecimento (pela citação) de que contra si pendia uma acção de divórcio; a acção não chegou a ter qualquer repercussão na sua esfera jurídica.
São razões semelhantes a esta que levam a dizer que também não pode ser absolvido da instância quem nela não está no momento do indeferimento liminar5.
Procede, pois, o recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga o despacho recorrido e se determina a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos dos artigos. 220º, nº3 e 229º, al. e), do CPC.
Sem custas.
TSI, 4 de Dezembro de 2014
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Só a morte presumida não tem esse efeito: art. 101º, do CC.
2 M. Teixeira de Sousa, o Regime Jurídico do divórcio, 1991, pags. 103 e ss. *os artigos aí citados são de referência do Código Civil Português.
3 Só a morte presumida não tem esse efeito: art. 101º, do CC.
4 No sentido de que a instância não produz qualquer efeito em relação ao réu antes da citação, ver Ac. TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 477/2013.
5 No direito comparado, e apelando ao art. 267º, nº2, congénere do art. 211º, nº2, do CPC, ver Ac. RG, de 16/03/2010, Proc. nº 29/2010.
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447/2014 11