Processo nº 779/2014 Data: 11.12.2014
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Suspensão da execução da pena.
Prorrogação do prazo de suspensão.
Internamento do condenado.
Consentimento.
SUMÁRIO
O “internamento” do condenado em pena de execução suspensa na sua execução pressupõe o seu prévio e expresso consentimento.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 779/2014
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. B (B), com os sinais dos autos, vem recorrer do despacho proferido pelo Mmo Juiz do T.J.B. que lhe “prorrogou o período de suspensão da execução da pena, determinando o seu internamento em centro de apoio para desintoxicação”.
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Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“a) Vem o presente recurso interposto da decisão do Tribunal "a quo" que, basicamente, prorrogou por um ano e seis meses o período de suspensão da pena que lhe havia concedido por acórdão de 02/12/2013, mediante a condição de o arguido cumprir o regime de prova e a sua desintoxicação, devendo, para isso, dar entrada voluntariamente, no prazo de um mês, num "centro de apoio" para aquele efeito; acrescido de uma doação de MOP$5,000.00 para a R.A.E.M..
b) Nos presentes autos e por acórdão, como se disse, datado de 02/12/2013, foi o arguido, B (B), ora recorrente, condenado pelos crimes de "consumo de estupefacientes" (2 meses de prisão) e de "condução sob a influência de estupefacientes" (6 meses de prisão). Efectuado o respectivo cúmulo jurídico, foi aplicada ao arguido a pena de 7 meses de prisão, suspendendo-se a execução da respectiva pena pelo período de 3 anos, com sujeição do arguido ao regime de prova.
c) No decurso do plano individual de readaptação social imposto ao arguido (v. doc. de fls. 352 a 356), este, entre 2 e 21 de Maio de 2014, acusou positivo, o consumo de estupefacientes nos testes feitos à urina.
d) Contudo, após aquele período, todos os testes à urina que lhe foram feitos "foram negativos, mostrando que o arguido deixou de ter contactos com estupefacientes".
O arguido mostrou-se também arrependido e ele próprio solicitou testes à urina.
e) O arguido aceitou a advertência solene que lhe foi feita; e aceita a prorrogação do período da suspensão da pena.
Recorre, apenas, da condição que lhe foi imposta - para aquela prorrogação da suspensão da pena - de internamento em "centro de apoio" vocacionado à desintoxicação de drogas
f) É que, entende o arguido recorrente, daí a sua não conformação com a decisão do Tribunal "a quo", que é possível (e até aconselhável ... ) a sua manutenção no seio familiar e sócio-profissional, evitando-se assim um "internamento compulsivo".
g) O arguido, como se disse, aceita tudo o que lhe foi imposto pelo Tribunal "a quo" à excepção do referido "internamento", porquanto entende que esta "exigência acrescida" colide frontalmente, por um lado, com os seus interesses familiares e sócio-profissionais e, por outro lado, com o "encarrilamento" que o arguido fez da sua vida, o que resulta, manifestamente, dos testes negativos que, desde Julho do corrente ano, têm resultado dos testes à urina que lhe têm sido feitos.
Com a periodicidade de dois testes em cada semana ...
h) Aliás, o arguido reafirmou perante o Tribunal "a quo" a sua enorme vontade e capacidade para deixar o consumo de droga - que, aliás, já deixou - em liberdade, a que não é estranho o facto de estar em vias de se casar.
i) O "internamento coactivo" que lhe é imposto para a prorrogação da suspensão da pena colide, pois, com a sua vontade, expressamente declarada, de manter o seu "plano de readaptação social" em regime ambulatório, isto é, em liberdade total.
j) E afigura-se ao recorrente que tal desiderato está a ser manifestamente cumprido, o que resulta, não só do supra citado documento de fls. 352 a 356, como também da informação que a final se requer.
k) Este "internamento coactivo" colide, pois, com a disposição expressa do art.° 50° n° 3 do C.P., segundo a qual, "a cura em instituição adequada" depende do "consentimento prévio e expresso" do arguido.
E é claramente disso que se trata: sujeitar a suspensão da pena a um internamento é o mesmo que coagir o arguido a uma conduta por si não desejada.
l) E, diremos nós, salvo o devido respeito, impôr aquele internamento é uma obrigação manifestamente desadequada às necessidades actuais de prevenção especial de socialização do arguido, logo, violadora dos princípios que norteiam a suspensão da pena de prisão com regime de prova, ínsitos no art. ° 51 ° do C.P..
m) O juízo de prognose, feito ao arguido, aquando da sua condenação, mantém-se favorável e inalterado e o Tribunal "a quo", com a prorrogação da suspensão da pena ora decidida, tem na "sua mão" a possibilidade temporal de verificar se o arguido, mantendo-se a sua total liberdade, assimilou ou não a advertência que lhe foi feita.
n) Entende, por isso, o arguido recorrente que o Tribunal "a quo", ao impôr "coactivamente" o seu internamento não cuidou, salvo o devido respeito, de ponderar se as finalidades preventivas que estiveram na base da suspensão da pena ainda podem ser alcançadas com a manutenção do mesmo "plano individual de readaptação social", agora, apenas prolongado no tempo.
o) A revogação da suspensão, que provavelmente, como refere o Tribunal "a quo", resultará do não internamento do arguido colide, assim, com o disposto no art.° 54° do C.P. (“Revogação da suspensão”), já que, excluído o disposto na al. b) do n° 1 do preceito, o arguido não infringiu "…grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostas ou o plano individual de readaptação social…"”.
A final, pede que se “revogue a decisão que impôs ao arguido recorrente o seu internamente em “centro de apoio” à desintoxicação de produtos estupefacientes, substituindo-a por outra que apenas prorroga o período de suspensão da pena, mantendo o mesmo “plano individual de readaptação social”; (cfr., 375 a 382 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 385 a 387).
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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I., em sede de vista emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Encontra-se, ao que apreendemos, em causa no presente recurso unicamente o inconformismo do recorrente com o facto de lhe ter sido imposta como condição para a prorrogação do período de suspensão de execução da pena, o internamento em centro de apoio vocacionado para a desintoxicação de drogas, entendendo que tal obrigação se apresenta como "manifestamente desadequada" às necessidades específicas de ressocialização, contendendo com os seus interesses familiares e sócio/profissionais e, até, com a prognose individual a empreender, dados os resultados negativos dos testes que tem empreendido desde Julho último, ao que acrescerá a colisão de tal obrigação com o disposto no n° 3 do art° 50°, C.P., segundo o qual a cura em instituição adequada dependerá de consentimento prévio e expresso do arguido.
Começando precisamente por este último ponto, dir-se-á, tão só, que, mesmo dando de barato que o internamento em centro de apoio haja, para estes efeitos, que coincidir com instituição destinada à cura a que se reporta o dispositivo em questão, o que se nos não afigura inteiramente líquido, não se vê que, em sede de falta de cumprimento das condições da suspensão, se não possa, aliada a prorrogação do período da mesma, nos precisos termos da al c) do art° 53°, C.P. impor como condição pata tal prorrogação aquele internamento, para desintoxicação, que, aliás, se preconiza como “voluntário”, logo, inteiramente dependente da vontade do visado, pelo que, à partida, perderá sentido tal segmento argumentativo.
Depois, sendo estimáveis e compreensíveis as razões de carácter pessoal, familiar e sócio-profissionais invocadas em abono das contrariedades e adversidades resultantes de tal internamento, o facto é que resultará até do senso comum que, face ao não cumprimento, por parte do recorrente do anteriormente estipulado quanto às condições de suspensão da execução da sua pena, a condição em questão se apresenta como perfeitamente adequada aos fins que se visam alcançar.
Donde, entender-se não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 412 a 413).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
2. Insurge-se o arguido B contra a atrás referida decisão do Mmo Juiz do TJB que lhe “prorrogou o período de suspensão da execução da pena”, pedindo que se “revogue a decisão que impôs o seu internamento em centro de apoio à desintoxicação de produtos estupefacientes”, substituindo-a por outra que “apenas prorroga o período de suspensão da pena, mantendo o mesmo plano individual de readaptação social”; (cfr., motivação de recurso, “in fine”).
Pois bem, nestes termos postas as coisas, afigura-se-nos que a única coisa que importa apreciar é se legal é o segmento decisório quanto ao “internamento do ora recorrente em centro de apoio para a sua desintoxicação”.
E, sendo apenas esta a questão a apreciar, (ou seja, concretizando, se pode o Tribunal, como condição da manutenção da suspensão da execução de uma pena, decidir – no sentido da prorrogação do período de suspensão e – pelo internamento do condenado em estabelecimento para desintoxicação), vejamos de lado está a razão.
Cabe assim dizer desde já que em causa não estão os “pressupostos legais” da decisão quanto à “prorrogação do período de suspensão”, nem tão pouco a decisão no que toca à própria “prorrogação”, (“prazo” desta), já que, em relação a esta parte, conformou-se o ora recorrente.
Esclarecido que assim ficam os contornos da questão, vejamos.
Nos termos do art. 48° do C.P.M.:
“1. O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão”; (sub. nosso).
Atento o estatuído no n.° 2 do transcrito comando, e com especial referência às “regras de conduta” aí referidas, importa ter presente que prescreve o art. 50° que:
“1. O tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta destinadas a facilitar a sua reintegração na sociedade.
2. Nomeadamente, pode o tribunal impor ao condenado que:
a) Não exerça determinadas profissões;
b) Não frequente certos meios ou lugares;
c) Não resida em certos locais;
d) Não acompanhe, aloje ou receba determinadas pessoas;
e) Não frequente certas associações ou não participe em determinadas reuniões;
f) Não tenha em seu poder objectos capazes de facilitar a prática de crimes;
g) Se apresente periodicamente perante o tribunal, o técnico de reinserção social ou entidades não policiais.
3. O tribunal pode ainda, obtido o consentimento prévio e expresso do condenado, determinar a sujeição deste a tratamento médico ou a cura em instituição adequada.
4. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2 e 3 do artigo anterior”; (sub. nosso).
E, constando do n.° 3 deste comando legal que a sujeição do condenado a tratamento médico ou cura em instituição adequada implica o “consentimento prévio e expresso do condenado”, à vista está a solução.
De facto, como nota L. Henriques, esta “injunção é diferente das demais essencialmente por 2 aspectos”, indicando, seguidamente como o primeiro, que aquele “pressupõe o consentimento prévio e expresso, do condenado”; (vd., “Anot. e Com. ao C.P.M.”, Vol. II, pág. 98).
Sobre a mesma questão e no mesmo sentido pronunciam-se também V. S. Pereira e A. Lafayette, considerando mesmo que sem o consentimento do condenado, o regime de tratamento ou cura coactivo implicaria “grave dano para o princípio da liberdade”; (vd., C.P. “Anot. e Com.”, pág. 183, e, partilhando deste ponto de vista, e mais recentemente, cfr., também M. Miguel Garcia e J. M. Castela Rio, in “C.P. com notas e comentários”, pág. 328°).
Por fim, vale também a pena aqui recordar o entendimento pelo Prof. F. Dias tido sobre a questão, que considera (igualmente) que “o delinquente não pode ser coagido ao cumprimento de quaisquer regras de conduta”; (in “Dto. Penal, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 404).
Assim, e tendo o ora recorrente, quando ouvido pelo Mmo Juiz a quo, manifestado a sua oposição ao seu “internamento”, correcta não é pois a decisão proferida, que por isso, não se pode manter, sendo de se julgar procedente o presente recurso, devendo assim os autos voltar ao T.J.B. para, outro motivo não obstando, e em nova decisão, se definir o estatuto processual do ora recorrente.
Decisão
3. Em face do que se deixou exposto, e em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.
Sem tributação.
Macau, aos 11 Dezembro de 2014
(Relator)
José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng
(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
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