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Proc. nº 423/2014
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 15 de Janeiro de 2015
Descritores:
-Acção de reivindicação
-Pedidos da acção

SUMÁRIO:

I – Na acção de reivindicação, o autor deve formular dois pedidos: o primeiro, declarativo, de reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada coisa; o segundo, de condenação do réu a restituí-la.

II – Mesmo que não proceda o segundo pedido, nada obsta à procedência do primeiro.







Proc. nº 423/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, solteira, maior, de nacionalidade chinesa, portadora do BIRPM n.º 51XXXXX(7), emitido pelo SIM em 13 de Janeiro de 2004 (anexo 1), residente em Macau, na Rua do XX, XX, Bloco XX, XX.º andar XX, intentou no Tribunal Judicial de Base (Proc. nº CV1-12-0036-CAO) acção de reivindicação com processo ordinário contra B, solteiro, maior, de nacionalidade chinesa, portador do BIRM n.º 73XXXXX(8), emitido pelo SIM em 30 de Março de 2004, com residência no XX, n.º XX, Edf. “XX”, XX.º andar XX.
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Na oportunidade foi proferida sentença, que julgou a acção improcedente.
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Irresignada, a autora recorreu para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. A autora intentou acção junto do Tribunal Judicial de Base pedindo:
1) Que ela fosse julgada e confirmada como proprietária da fracção “J19” descrita sob o n.º 20XXX;
2) Que fosse julgada a ocupação ilegal da fracção da autora pelo réu B e fosse ordenada a restituição da fracção;
3) Que fosse o réu condenado no pagamento de indemnização no valor de MOP4.416 por mês, contado desde 18/2/2012 até 17/5/2012;
4) Que fosse o réu condenado no pagamento de indemnização no valor de MOP4.416 por mês, até a restituição do bem imóvel; e
5) Pagamento de juros legais contados desde a citação até o seu pagamento.
2. Em 24/9/2012, a autora exigiu na sua réplica o aumento da causa de pedir e do novo pedido, bem como a intervenção de C na acção, mas esse pedido foi rejeitado pelo juiz a quo, a fls. 74. Tal decisão já transitou em julgado.
3. Na decisão final, o Tribunal a quo considerou que não havia dados que o réu fosse possuidor, julgando assim improcedente a acção intentada pela autora.
4. Em primeiro lugar, embora não se conseguisse provar a quem pertence a posse, o primeiro pedido da autora não podia ser julgado improcedente.
5. Conforme o registo predial constante dos autos, pode-se provar que a autora é proprietária da fracção. E quanto a esse facto, o réu não o impugnou. Assim, o facto de a autora ser proprietária da fracção deve ser dado por provado pela existência da prova documental.
6. Além disso, segundo as alegações feitas pelo réu na audiência de julgamento (vd. translator 2, file 19.11.2013, a partir de 15.51.06, com início de 7:00), tendo o réu referido que recebia mensalmente a renda e se apropriava dessa, desde 2005 até ao momento.
7. Segundo os dados: Translator 2, file 19.11.2013, a partir de 15.51.06, com início de 14:00), tendo o réu referido expressamente que tinha vontade de restituir a fracção à autora A.
8. Segundo os dados: Translator 2, file 19.11.2013, a partir de 16.07.09, com início de 00:00), tendo o réu referido que nunca entregava as rendas à autora.
9. Segundo os dados: Translator 2, file 19.11.2013, a partir de 16.26.19, com início de 02:40), tendo a inquilina C referido que sempre pagava ao réu as rendas em numerário.
10. Todas essas declarações prestadas pelo réu constam expressamente nas gravações da audiência de julgamento, pelo que o Tribunal de Segunda Instância pode dar por provados os respectivos factos, ao abrigo do art.º 629.º do CPC.
11. Quer dizer, através do facto de o réu ter recebido ininterruptamente as rendas desde 2005 até à audiência de julgamento realizada em 19/11/2013, bem como do facto de o réu ter vontade de restituir a posse à autora, deve o tribunal julgar o réu como possuidor da fracção em causa.
12. Sabemos que a modificação da posse e a do direito das coisas previstas no Código Civil têm os seus regimes diferentes.
13. Quer dizer, a aquisição e a parda da posse são diferentes da aquisição e da perda do direito das coisas.
14. Pode ocorrer a aquisição da posse sem obter o direito das coisas e vice-versa.
15. Justamente tal como o presente caso, a autora obteve o direito real mas não a posse, uma vez que a posse do réu é ininterrupta.
16. De acordo com as declarações prestadas pelo réu, em 2005, o réu já deu de arrendamento a fracção à inquilina C, pelo que, neste momento, o réu possui a posse exercendo-a através de C.
17. C é pura e simplesmente a detentora e o réu é verdadeiramente o possuidor.
18. Após a venda da fracção através de procuração, o direito de propriedade foi transferido, mas o réu nunca perdeu a sua posse, porque o réu sempre recebia as rendas e se apropriava dessas, e isso pode servir de uma boa prova.
19. Independentemente de ser válido ou não o contrato de arrendamento, tudo isso não prejudica a posição do réu como possuidor, uma vez que a sua posse foi adquirida com base na apreensão material, mas não na existência do contrato de arrendamento.
20. Pelo que, de acordo com os dados existentes nos autos, em particular, as supracitadas declarações prestadas pelo réu na audiência de julgamento, são suficientemente para dar por provado o facto de o réu ser possuidor da fracção em causa.
21. O Tribunal a quo não considerou tal facto no julgamento de facto, tendo dado como provado que o réu não possui a posse, Mas isso é errado.
22. A recorrente considera que, nos termos dos art.ºs 599.º e 629.º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal de Segunda Instância apreciar todos os factos revelados nas gravações baseando-se nisso para dar como provada a posse do réu, revogando a decisão do Tribunal a quo, julgando procedentes a acção de restituição da propriedade e a acção de indemnização intentadas pela autora, bem como os 4 pedidos por si formulados.
Se assim não for entendido pelo tribunal de hierarquia superior, a recorrente vem expor os seguintes:
23. Segundo os factos provados nos autos, em 2005, o réu adquiriu junto de C a fracção em causa, e mais tarde, através da testemunha D, na qualidade de constituinte, vendeu a dita fracção à autora.
24. De acordo com os dados constantes dos autos e os factos provados D), na altura quando a autora adquiriu a fracção, essa fracção encontrava-se penhorada e a testemunha senhor E como depositário.
25. Segundo a testemunha senhor E, embora fosse depositário naquele momento, não procedeu efectivamente à apreensão dessa fracção, e pelo que não tinha certeza quem estava a ocupar a dita fracção.
26. Se fosse a situação tal como referida e declarada pelo réu na audiência de julgamento, que desde 2005 o réu já tinha dado de arrendamento a fracção à inquilina C, nos termos da lei, devia a fracção ser entregue a ela como depositária, mas não à testemunha senhor E.
27. Não tendo o réu, contudo, indicado isso no processo de execução.
28. O pior é que, segundo os contratos de promessa de compra e venda assinado pelo réu (fls. 6 a 9 dos autos), neles também não foi indicado isso. Segundo os dois contratos, neles foi indicado expressamente que na entrega da fracção, a fracção deve ser “desocupada”.
29. Se fosse celebrado o contrato de arrendamento com prazo de 25 anos, de nenhuma maneira já não era possível a entrega da fracção desocupada.
30. Além do mais, segundo o ponto 4 dos factos provados na audiência de julgamento, a renda mensal daquela fracção era de MOP4.416, valor superior ao dobro da renda de MüP2.200 fixada pelo réu.
31. O que mais nos impressionou é, segundo a gravação da audiência de julgamento: Translator 2, file 19.11.2013, a partir de 16.22.42, com início de 00:00, tendo C declarado que antes de 2005, ela tinha uma relação amorosa com o réu e coabitava com ele.
32. Segundo a gravação da audiência: Translator 2, file 19.11.2013, a partir de 16.26.19, com início de 00:40, tendo C declarado que adquiriu a fracção em 1993 e, em 2005, quando vendeu a fracção ao réu, já tinha combinado com ele que tinha que dar de arrendamento a ela imediatamente a fracção em causa, com prazo de 25 anos e renda mensal de 2.200.
33. E isso, sem dúvida, é um abuso do poder.
34. Sem dúvida, pode o réu, após ter adquirido a fracção em 2005, dar de arrendamento a fracção a qualquer pessoa ou celebrar o contrato de arrendamento com prazo inferior a 30 anos tendo-o considerado como conduta de gestão. O réu tem direito a fazê-lo, mas não quer dizer que isso é legal.
35. A pessoa a quem o réu deu de arrendamento a fracção era a proprietária da fracção, como amante que chegou a coabitar com o réu, através do pagamento de uma renda mensal de MOP2.200, valor muito inferior ao do mercado, e do prazo de arrendamento de 25 anos.
36. Vem o réu, com base nisso, replicar a pretensão da autora, alegando que nunca concordou com qualquer transacção, uma vez que a fracção já tinha sido arrendada, não deve a autora intentar acção contra ele.
37. De facto, mesmo que não se consiga provar que tal contrato de arrendamento seja falsificado tal como alegado pela autora, tal contrato também é nulo pela violação do disposto no art.º 326.º do CC, dado que foi feito um acordo prévio, antes da transacção de compra e venda e depois da transacção foi arrendada a fracção à sua proprietária original, pessoa como amante do réu que chegou a coabitar com ele, sob condição da renda no valor de MOP2.200, muito inferior ao do mercado e do prazo de 25 anos, tudo isso excede os limites do direito detido pelo réu.
38. Além do mais, o réu, mais tarde, celebrou procuração para vender a fracção. Segundo consta de todos os contratos de promessa de compra e venda, a fracção em causa deve ser entregue de forma desocupada. Mas vem agora o réu, através de um contrato de arrendamento com prazo de 25 anos, tentar permitir à sua ex-amante até a ele próprio ocupar ilicitamente a fracção a um preço baixo.
39. Mas isso é uma conduta contra os bons costumes.
40. A relação de arrendamento invocada pelo réu violou o disposto no art.º 326.º do CC, e no círculo académico entende-se unanimemente que a sua consequência pode causar a obrigação de indemnização e nulidade.
41. E pode o Tribunal declarar oficiosamente a nulidade do negócio jurídico.
42 Tendo a autora indicado a respectiva nulidade, antes de prolação da decisão, mas o Tribunal a quo não fez caso disso.
43. A recorrente considera que, em conjugação das supracitadas gravações da audiência de julgamento e dos documentos constantes dos autos respeitantes ao contrato de arrendamento, nos termos dos art.ºs 599.º e 629.º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal de Segunda Instância oficiosamente dar por provada a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre o réu e C, devido ao abuso do poder, e ao mesmo tempo, dar por provado que o réu é possuidor da fracção, revogando a decisão a quo, julgando procedentes a acção de restituição da propriedade e a acção de indemnização intentadas pela autora, bem como os 4 pedidos por si formulados.
Se assim não for entendido pelo tribunal de hierarquia superior, a recorrente vem expor os seguintes:
44. Mesmo que não se consiga dar por provada a posse do réu,
45. Com base nas declarações prestadas pelo réu na audiência de julgamento, nas quais, o réu confessou que sempre recebia as rendas e se apropriava dessas e que agora soube bem que o direito de propriedade pertence à autora mostrando assim a vontade de restituir a propriedade à autora, pelo que, tudo isso satisfaz o pedido de indemnização formulado pela autora.
46. Por outro lado, de acordo com a resposta dada pelo Colectivo ao quesito 40, ficou provado que a renda mensal da fracção em causa é, pelos menos, de MOP4.416.
47. Pelo que, a perda efectiva sofrida pela autora por não poder directamente utilizar a referida fracção é, pelos menos, de MOP4.416 por mês.
48. A impossibilidade de utilização daquela fracção por parte da autora foi devido a que, o réu, através de abuso do poder, deu de arrendamento tal fracção a C.
49. Até à presente data, nunca a autora recebe junto do réu ou da inquilina C, qualquer renda da fracção em causa.
50. A recorrente considera que, em conjugação das supracitadas gravações da audiência de julgamento e da resposta dada pelo Colectivo ao quesito 4º, nos termos dos art.ºs 599.º e 629.º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal de Segunda Instância revogar a decisão a quo e oficiosamente dar por provado o prejuízo sofrido pela autora resultante da impossibilidade de utilização da fracção, devido a que o réu deu de arrendamento a fracção a C, através de abuso do poder, assim julgando procedente a acção de indemnização intentada pela autora, bem como os 3º,4º e 5º pedidos dela.
Se o Tribunal de hierarquia superior assim não entender, a recorrente vem expor os seguintes:
51. Após a tomada da propriedade, a autora obtém a posição de locadora, pelo que, o réu não tem qualquer fundamento jurídico a receber ou reservar as rendas.
52. Com base nas declarações prestadas pelo réu na audiência de julgamento, nas quais, o réu confessou que sempre recebia as rendas e se apropriava dessas e que agora soube bem que o direito de propriedade pertence à autora mostrando assim a vontade de restituir a propriedade à autora, pelo que, tudo isso satisfaz o pedido de indemnização formulado pela autora.
53. A recorrente considera que, em conjugação das supracitadas gravações da audiência de julgamento e da resposta dada pelo Colectivo ao quesito 4º, nos termos dos art.ºs 599.º e 629.º do Código de Processo Civil, deve o Tribunal de Segunda Instância revogar a decisão a quo e dar por provado que o réu não tem direito a receber ou reservar as rendas, após a tomada do direito de propriedade da fracção pela autora, julgando procedente a acção de indemnização intentada pela autora, condenando o réu na restituição das rendas por si já recebidas incluindo os juros legais das rendas contados desde a obtenção do direito de propriedade da fracção.
Só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».
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O recorrido respondeu ao recurso, nos seguintes termos conclusivos:
«1) Salvo o devido respeito, o recorrido não se conforma com os factos indicados nas alegações da recorrente e vem impugná-los.
2) Segundo consta do certificado do registo predial, embora a recorrente seja a titular do direito de propriedade da fracção autónoma designada por moradia “J19” situada em Macau, na Estrada dos XX n.ºs XX, no XX, n.ºs XX e na Rua da XX, n.º XX, descrita na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20XXX.
3) Nos autos não se consegue provar a posse da referida fracção autónoma pelo recorrido; além disso, na petição inicial e na sua réplica apresentada em 24/9/2012, para além do recorrido, a recorrente não indicou que o direito de propriedade da referida fracção autónoma por si detido foi lesado por terceiros.
4) Nos termos do art.º 72.º do Código de Processo Civil, “Há interesse processual sempre que a situação de carência do autor justifica o recurso às vias judiciais”.
5) “Se ninguém contestou o direito do dono do terreno, nem violou as suas faculdades de uso e fruição da coisa, é evidente a sua falta de interesse na acção proposta para fazer reconhecer o seu direito de propriedade pelos proprietários vizinhos”. (Manual de Direito Processual Civil, de Viriato Manuel Pinheiro de Lima, traduzido por Ip Song Sang e Lou Ieng Ha)
6) Tal como a situação dos autos, uma vez que não se consegue provar a posse da referida fracção autónoma pelo recorrido, nem que o direito de propriedade da referida fracção autónoma por si detido fosse lesado por terceiros, a recorrente não tinha interesses de agir, quanto ao referido pedido. Pelo que, o recorrido vem impugnar os pontos 3 a 5 das alegações da recorrente.
7) Salvo o devido respeito, o recorrido não está de acordo com a impugnação da decisão de facto pela recorrente através das gravações feitas na audiência de julgamento e a solicitação junto do Tribunal de Segunda Instância da apreciação dos factos constantes das gravações, ao abrigo dos art.ºs 599.º e 629.º do Código de Processo Civil.
8) Em primeiro lugar, a recorrente indicou no ponto 6 das alegações que “tendo o réu referido que recebia mensalmente a renda e se apropriava dessa, desde 2005 até ao momento”, contudo, a recorrente não indicou qual o dia a que se refere tal “momento”.
9) Além disso, a recorrente sempre indica que não recebe as rendas, contudo, nunca ela apresentou ou provou que exigiu a inquilino que lhe pagasse renda e qual a forma de pagamento de renda.
10) A recorrente alega que o recorrido era possuidor da referida fracção autónoma, mas isso é uma conclusão deduzida pela recorrente sem qualquer facto para servir de fundamento.
11) Além do mais, quanto aos factos invocados pela recorrente nos pontos 6, 7, 8 e 9 das alegações, através das gravações feitas na audiência de julgamento, o recorrido considera que os quais não podem ser invocados no presente recurso.
12) Nos termos do art.º 5.º e 567.º, segunda parte do Código de Processo Civil, o que pode o juiz adoptar só quando se trate de facto necessário e seja invocado pela parte. (vd. acórdão n.º 577/2013 do TSI, pago 11)
13) Os factos constantes dos pontos 6, 7, 8 e 9 das alegações são factos necessários considerados pela recorrente para provar a posse da fracção em causa pelo recorrido e pedir a investigação e apreciação junto do Tribunal.
14) Contudo, na petição inicial ou na sua réplica apresentada em 24/9/2012, a recorrente nunca indicou os supracitados factos. Pelo que, segundo a disposição legal indicada, o pedido da recorrente não deve ser admitido.
15) Salvo o devido respeito, o recorrido não está de acordo com a nulidade alegada pela recorrente, quanto ao contrato de arrendamento apresentado pelo recorrido.
16) A lei não dispõe qualquer restrição sobre a identidade de inquilino, e quanto à celebração do contrato de arrendamento com C pelo recorrido, na qualidade de titular de propriedade, é uma disposição da respectiva fracção feita pelo recorrido, no âmbito que a lei permite e na observação da lei, a fim de dar de arrendamento a fracção à inquilina.
17) O recorrido considera que não deve a recorrente, consoante o seu ponto de vista subjectivo, dar por provados alguns factos não apreciados, além disso, segundo os factos invocados pela recorrente na sua réplica apresentada em 24/9/2012, nunca a recorrente formulou qualquer pedido que tem a ver com a declaração de nulidade.
18) Além do mais, a presente acção é uma acção de restituição, o que a recorrente deve fazer é provar que o recorrido reside na respectiva fracção autónoma, ou seja, os factos a provar constantes dos art.ºs 1 a 3 do despacho saneador.
19) Assim sendo, o pedido de declaração de nulidade do contrato de arrendamento formulado pela recorrente não tem qualquer ligação com a presente acção.
20) Por fim, o recorrido também não está de acordo com o pedido de indemnização formulado pela recorrente contra ele.
21) Tal como foi indicado pelo recorrido nas alegações jurídicas, segundo a audiência de julgamento e os factos provados, não se conseguiu provar que o recorrido sempre culposamente ocupasse a fracção.
22) Nos termos do art.º 335.º, n.º1 do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
23) Perante a situação em que não se consegue provar a ocupação culposa da referida fracção pelo recorrido, a recorrente não tem direito a exigir ao recorrido que pague indemnização pela ocupação da referida fracção.
24) Quanto à restituição das rendas, tal como foi indicado nos pontos 9 e 10 da presente resposta, “tendo o réu referido que recebia mensalmente a renda e se apropriava dessa, desde 2005 até ao momento”, contudo, a recorrente não indicou qual o dia a que se refere tal “momento”.
25) A recorrente sempre indica que não recebe as rendas, contudo, nunca e qual a forma de pagamento de renda.
26) Por fim, quanto à exigência de restituição das rendas, a recorrente, na petição inicial e na réplica apresentada em 24/9/2012, nunca indicou tal pedido.
27) Segundo a regra de disposição e as razões acima indicadas, devem ser julgados improcedentes todos os pedidos da recorrente, rejeitando-se o recurso da recorrente».
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«a) Pela Apresentação n.º 141 de 24.03.2005 foi inscrita, em nome do Réu B, a aquisição, por compra, à anterior proprietária C, a fracção J19, para fim habitacional, do edifício sito na Estrada dos XX n.ºs XX, XX n.ºs XX e Rua de XX n.º XX, Edf. “XX” XX.º andar XX, descrição predial n.º 20XXX, designação “J19”, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 9 a 26, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
b) Em 29 de Maio de 2009, o Réu, representado por F, outorgou escritura pública de compra e venda, no Cartório Notarial das Ilhas, onde declarou vender o referido imóvel pelo preço de Mop$ 250.000,00, à Autora A, em conformidade com o teor do documento junto aos autos a fls. 27 a 30, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
c) A aquisição a favor da Autora encontra-se registada sob a Ap. n.º 18XXXXG, de 02.06.2009, na Conservatória do Registo Predial, em conformidade com o teor da certidão junta a fls. 9 a 26, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
d) Sob o aludido imóvel encontrou-se registada uma penhora, ordenada no âmbito do Processo n.º CV2-07-0037-CEO, a favor de G, com data de apresentação n.º 24/01/2008, cancelada em 17/02/2012, Ap. N.º 47
e) O Imóvel pode ser arrendado pelo menos por Mop$4.416,00 mensais».
***
III – O Direito
1 – Revisitando a factualidade essencial que podemos entrever nos documentos juntos aos autos, ela é a seguinte:
a) A fracção habitacional J19, na Estrada dos XX, nº XX, XX, nºs XX e Rua da XX, nºXX, Edif. “XX” pertencia a C (fls. 19);
b) Em 17/03/2005, o réu B comprou-a, registando-a em seu nome no dia 24/03/2005 (fls. 21).
c) Essa fracção foi penhorada em 18/01/2008 (fls. 25);
d) E em 29/05/2009 o réu vendeu a referida fracção à ora autora A (fls. 26).
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2 – A autora propôs a acção contra o réu, alegando que este, nela vivendo, se recusa a entregar-lhe a fracção.
Pediu, por isso, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a coisa, a sua devolução e o pagamento de uma indemnização equivalente ao período entre 18/02/2012 (data em que se deslocou à fracção para a reaver, após o cancelamento do registo da penhora que sobre ela incidia) e a instauração da acção (17/05/2012), de acordo com o seu valor locativo.
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3 – Na contestação, o réu alegou que, depois de ter comprado a casa a C (17/3/2005), a deu de arrendamento a esta mesma pessoa (28/03/2005), cobrando-lhe renda no valor de HK$ 2.200,00, sendo que desde essa data ela ali habita.
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4 – Claramente resulta dos autos que a autora não tem a posse da coisa (art. 1251º do CC), nem a acção proposta no TJB visa a defesa da posse. Ou seja, não se trata de uma acção possessória.
A autora dizia que o réu, que lhe vendeu a fracção, estava a viver nela e que não a abandonava. Estamos, portanto, confrontados com uma acção real para defesa da propriedade, concretamente de reivindicação (art. 1235º, do CC).
Este artigo dispõe no seu nº1 que “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence”.
Todavia, a autora não demonstrou que o réu a habitasse. O que significa que a causa de pedir não se confirmou. E foi por isso que a acção foi julgada improcedente.
Certo é que na réplica, perante a matéria alegada pelo réu na sua contestação – de um contrato de arrendamento feito pelo réu à pessoa que tinha sido vendedora da fracção - a autora quis ampliar o pedido e causa de pedir, pretendendo mesmo fazer intervir a pessoa que ocupa a casa a título do alegado contrato de arrendamento. Essa pretensão processual, porém, não vingou por não ter sido permitida a ampliação (fls. 73-74 dos autos).
Face ao indeferimento do pedido de ampliação do pedido e da causa de pedir, de que não foi interposto qualquer recurso, ficaram as extremas do petitório inicial logo definidas, sem hipótese de alteração.
Na realidade, não sabemos se o réu tem sido o possuidor da coisa através de uma posição de locador, ou sequer, se alguém habita o prédio na qualidade de locatário. É matéria de facto não adquirida.
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5 - Olhemos, agora, para as alegações da recorrente.
A recorrente clama pelo art. 629º do CPC para dizer que o tribunal deveria ter atendido à matéria provada em sede de audiência, na parte em que o réu reconheceu ter recebido as rendas da pessoa que habita na fracção, o que se tivesse sido feito, demonstraria que o réu é o possuidor da coisa.
Mas não. Quando muito o que se poderia provar, talvez, era que o contrato de arrendamento teria sido feito àquela pessoa depois que o réu comprou a fracção e muito tempo antes de ele mesmo a ter vendido à autora.
Ora, sendo certo que o proprietário-locador é considerado possuidor da coisa por intermédio do locatário, a verdade é que a locação em apreço terá sido feita antes da venda da coisa à ora recorrente. Naquela altura, isto é, enquanto ele não transmitiu a propriedade da fracção à autora, o réu era possuidor da coisa. Só que, nessa situação, deixou de sê-lo após a referida venda.
Por conseguinte, se for verdade que ele continua a receber as rendas estará, então, a fazê-lo sem título e a non domino. Simplesmente, isso não significa que seja possuidor. Se isso for verdade, portanto, a locatária será detentora, mas seguramente o réu não é senhorio, desde o momento em que vendeu a fracção à autora. Tal pessoa será detentora, mas seguramente o réu não é o seu possuidor.
É por esta razão, também, que não vê este TSI necessidade alguma de alterar a matéria de facto.
.
6 – A autora continua a sua alegação de recurso achando que o alegado contrato de arrendamento celebrado por 25 anos e pela renda mensal de Mop$ 2.200,00 entre o réu e C, pretensamente ex-amante dele, é falso.
Pois bem. Essa matéria não faz parte do pedido, sabendo nós que a sua ampliação também não foi permitida, assim como não foi, como já dissemos, deferida a intervenção principal da alegada locatária.
Sendo assim, não estando em apreciação no recurso, não lhe poderemos dedicar atenção alguma. Será matéria, eventualmente, para acção de despejo ou para anulação do negócio.
Apesar de podermos estar perante um aparente abuso de direito, se tudo isso for verdade, não será nesta acção que isso poderá ser decidido.
Dito isto, também não podemos oficiosamente decretar a pretendida nulidade do negócio, tal como vem sugerido pela recorrente nas suas alegações.
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7 – A autora, entende ainda que o tribunal “a quo” deveria ter procedido à condenação do réu no pagamento da indemnização que peticionou.
Não pode proceder este pedido. Efectivamente, tal pedido inicial decorreria do facto de o réu não proceder à restituição do prédio no pressuposto de que o ocupava ilegalmente. E então a indemnização corresponderia ao valor locativo da fracção.
Vem agora a autora alegar que esse valor deve corresponder ao valor das rendas pagas efectivamente pela pessoa que nela vive.
Todavia, esse pedido também não pode proceder, visto que o tribunal tem que fazer a sua relacionação com a causa de pedir correspondente. Aquele pedido poderia proceder, eventualmente, mas enquanto decorrência do principal, desde que este procedesse. Mas, já não sobrevive sem a procedência do pedido reivindicativo.
Se o réu tiver recebido tais rendas, haverá que as restituir à autora, acrescidas de juros e até de eventual indemnização por danos causados à autora, mas não ao abrigo dos presentes autos.
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8 – Mas a autora também se insurge no presente recurso jurisdicional contra a decisão da 1ª instância de não lhe reconhecer o direito de propriedade.
Vejamos.
Como tivemos ocasião de ver, esta é uma acção de reivindicação. Nela o autor tem que provar a propriedade sobre a coisa (aquisição originária), podendo obter esse desiderato através de uma presunção legal de propriedade resultante do registo1.
Não se põe esse problema nos autos, visto que a autora efectuou o registo da fracção.
Mas, neste tipo de acções, é necessário efectuarem-se dois pedidos: 1º - de reconhecimento de propriedade; 2º - de entrega da coisa2.
Consequentemente, improcedendo o primeiro, improcede o segundo.
A questão é: pode improceder o segundo e proceder o primeiro?
Há duas posições, efectivamente, sobre o assunto:
Segundo uma, ambos os pedidos devem proceder para que se obtenha o triunfo da acção. De tal modo é assim que, se o autor não conseguir provar que o R ocupa o prédio reivindicado, toda a acção improcede. E isto com o argumento de não existir uma efectiva, mas, simplesmente, aparente acumulação de pedidos3.
Segundo outra, porém, a procedência do 1º pedido de reconhecimento de propriedade pode suceder sem a procedência do segundo4. E isso, realmente, até parece estar de acordo com o nº2, do art. 1235º, nº2, do CC, segundo o qual ”Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”5. Neste sentido, alias, já alguma doutrina se pronunciou, como foi o caso expressamente de Luis Manuel Teles de Menezes Leitão.
Há, inclusive, quem opine que o primeiro pedido de reconhecimento do direito de propriedade é o principal, e que o 2º, de restituição, é secundário. É o caso de Luis Carvalho Fernandes6.
Faz sentido que assim seja, também no caso em apreço.
Na verdade, reconhecida à autora a qualidade de proprietária, a utilidade da sentença resulta desde logo manifesta da eventualidade de a autora/recorrente poder intentar contra o Réu e contra a “arrendatária” a anulação do contrato, invocando a sua qualidade de proprietária já reconhecida na presente acção e pedir a restituição consequente da coisa. Nessa circunstância, pensamos que o aqui réu não poderá opor nessa altura a falta de propriedade da autora. Ou então, a de mover contra a alegada “arrendatária” uma eventual acção de despejo. Por isso alguma jurisprudência, regressando ao assunto, reconhece que a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade é independente do da restituição7 e que, se provado apenas o primeiro, a acção apenas procederá quanto a ele8.
É a posição que aqui também sufragamos.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, em consequência do que:
a) Se revoga a sentença na parte respectiva e se julga a acção parcialmente procedente, reconhecendo-se à autora o direito de propriedade sobre a fracção identificada nos autos; e
b) Se confirma a sentença na parte restante.
Custas pelas partes em ambas as instâncias em função do decaimento.
TSI, 15 / 01 / 2015

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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong


1 Ac. STJ, de 6/01/1988, in BMJ nº 373, pág. 532; 18/02/1988, BMJ nº 374/414; 17/04/2007, Proc. nº 07B745; 4/02/1993, in CJ/STJ, 1993, I, pág. 137.
2 Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1979, pág. 846. Sobre a necessidade dos dois pedidos, ver na jurisprudência comparada, Ac. RL, de 17/12/99, Proc. nº 009396, in BMJ nº 492, pág. 475; Ac. STJ, de 5/07/2007, Proc. nº 07A1746.
3 Ac. STJ, de 9/07/91, Proc. nº 080646; Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, Vol. I, pág. 208; Manuel Salvador, Elementos de Reivindicação, 1958, pág. 26, citado no acórdão referido do Ac do STJ nº 080646.
4 Ac. RC, de 30/05/90, BMJ nº 397, pág. 572.
5 Direitos Reais, Almedina, pág. 257.
6 Lições de Direitos Reais, 2ª ed., “Quid Juris”, pág. 252.
7 Ac. STJ, de 30/09/2004, Proc. nº 04B2545
8 Citado Ac. RC, de 30/05/90, BMJ nº 397, pág. 572.
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423/2014 20