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Processo nº 443/2014
Data do Acórdão: 22JAN2015


Assuntos:

Princípio dispositivo
Ilação judicial
Alimentos


SUMÁRIO

Por força do princípio dispositivo consagrado no artº 5º do CPC, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.

E nos termos do disposto no artº 562º/3 do CPC, na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados.

Todavia, isso não quer dizer que a aplicação de direito é sempre apenas pegar nos factos e encaixá-los no direito.

Como se sabe o direito não é uma ciência exacta, tal como a matemática, mas sim uma ciência social.

Em não em poucas vezes, senão sempre, para a boa aplicação de direito, aos aplicadores de direito exige-se um esforço lógico de análise e de interpretação dos factos provados, recorrendo às regras da boa hermenêutica.

Para o efeito, é preciso que o aplicador de direito valore e interprete devidamente os factos, no contexto em que estão inseridos, com vista a procurar retirar o verdadeiro sentido que os factos realmente comportam.

É a operação a que a doutrina chama “retirar ilações judiciais”.

Quando proceder à ilação judicial dos factos constantes da matéria de facto assente, o Tribunal está a fazer incluir nela factos não alegados pelas partes e portanto não está a violar o princípio do dispositivo.

Na matéria de fixação de alimentos, o simples facto de a Autora ser proprietária de uma fracção autónoma onde vive não afasta de per si a sua necessidade de alimentos.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 443/2014


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

No âmbito dos autos da acção especial de divórcio litigioso, registada sob o nº FM1-12-0018-CAO, do Juízo de Família e de Menores, foi proferida a seguinte sentença:

I) RELATÓRIO
  A ou A(A), divorciada, residente na Rua X, nºX, X° andar "A", titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 5XXXXXX(2), veio intentar a presente
  ACÇÃO ORDINÁRIA contra
  B, divorciado, residente na Estrada X, Lote X, Edf. XX, XX, Bloco X, X° andar B, Coloane, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º 5XXXXXX(8)
  com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 6.
  Concluiu pedindo que o pedido ser julgado provado e procedente e, por isso, ser o R. condenado a pagar à A. uma pensão de alimentos no montante mínimo de 8.000,00 (oito mil patacas).
***
  A Ré contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 44 a 51 dos autos.
  Concluiu pedindo que sejam julgados improcedentes os pedidos da Autora.
***
  Saneado o processo, foi seleccionada a matéria de factos.
***
  Procede-se o julgamento com a intervenção do Tribunal Colectivo de acordo com observância do devido formalismo.
*
  O Tribunal é competente em razão da matéria, de hierarquia e internacionalmente e o processo é próprio.
  As partes gozam de personalidade e capacidade jurídicas e são legítimas.
  Não existem excepções, nulidades ou outras questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
***
II) FACTOS
  Dos autos resulta assente a seguinte factual idade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora e o Réu contraíram casamento em Macau a 24 de Maço de 1973, sem eonvenção antenupcial. (alínea a) dos factos assentes)
- O casamento referido no item anterior foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 24 de Dezembro de 2009 deste Tribunal no processo que correu termos sob o n° CV1-09-0003-CDL. (alínea b) dos factos assentes)
- Em 10 de Julho de 1996, a A. recebeu a pensão pecuniária correspondente ao seu trabalho como enfermeira durante 24 anos, ao abrigo do art° 4° do Decreto-Lei nº 14/94/M que lhe foi fixada no montante de MOP923.788,80 (novecentas e vinte e três mil, setecentas e oitenta e oito patacas e oitenta avos). (alínea c) dos factos assentes)
- Nos autos de inventário instaurados na sequência do divórcio referido em b) os quais correram termos sob o nº CV1-09-0003-CDL-A a fracção autónoma designada por A4 do X° andar "G" do prédio sito em Macau, na Rua X, X, descrito na Conservatória do Registo Predial n° 2XXXX a fls, X do Livro X, foi adjudicado à Autora e o prédio sito em Portugal, constituído por um lote de 920 m2 de terreno para construção urbana foi adjudicado ao Réu. (alinea d) dos factos assentes)
Da Base Instrutória:
- Pelo menos desde 2012 a A. não trabalhou nem auferiu rendimento a título de trabalho. (resposta ao quesito 4 da base instrutória)
- A Autora gasta em alimentação mensalmente cerca de MOP$3.000,00. (resposta ao quesito 5° da base instrutória)
- No pagamento de água, electricidade e gás, a Autora gasta mensalmente cerca de MOP$500.00. (resposta ao quesito 6° da base instrutória)
- O R. recebe uma pensão mensal cerca de 2.000,00 Euros. (resposta ao quesito 8° da base instrutória)
***
III) FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
  Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
  A Autora veio interpor a presente acção, dizendo que o casamento entre ela e o Réu foi dissolvido em 2007, e no inventário da partilha dos bens comuns, à Autora foi atribuído um imóvel situado em Macau e ao Réu um imóvel sido em Portugal, entendendo que avaliou mal a situação na altura de partilha e que agora só sobrevive de trabalhos ocasionais, sente-se de direito a receber a pensão de alimentos do ex-marido, ora Réu, pretendendo que o Réu seja condenado a pagar uma pensão de alimentos no montante mínimo de MOP$8.000,00.
  O Réu apresentou contestação, dizendo que não tem capacidade económica para suportar os alimentos, e que a Autora é proprietário de vários imóveis na China.
  O litígio das partes cinge-se unicamente à questão de saber se assiste à Autora o direito de alimentos contra o Réu.
  Na fundamentação, a Autora pretende dizer que a pensão pecuniária recebida pela mesma no ano 1996, no montante de MOP$923.788,80, tinha sido utilizada, por decisão comum do casal, para adquirir a casa situada em Portugal, a qual foi posteriormente, no inventário de separação de bem, atribuída ao Réu.
  Não se percebe bem a lógica invocada pela Autora. Pois, se bem que tivesse utilizado toda a pensão pecuniária na adquisição do imóvel em Portugal por disposição comum do casal, o bem adquirido era bem comum do casal e já foi partilhado no processo de inventário. Não é por entender que tinha recebido menos do que contribuía para o património comum da sociedade casal é que agora atribui ao cônjuge ou ex-cônjuge o direito a alimento. Pelo que, para além de não ficar provado o destino da pensão pecuniária, esse facto também não é relevante para a pretensão de pedido de alimentos.
*
  Vamos analisar se a Autora tem direito a alimentos e o Réu tem obrigação de os prestar, à luz dos preceitos legais.
  Dispõe-se o nº 1 e 2 do art°1857° do C.C., quanto à obrigação de alimentos no caso de divórcio, o seguinte:
  “1. Têm direito a alimentos, em caso de divórcio:
  a) O cônjuge não considerado culpado ou, quando haja culpa de ambos, não considerado principal culpado na sentença de divórcio, se este tiver sido decretado com fundamento no artigo 1635. ° ou nas alíneas a) ou b) do artigo 1637.°;
  b) O cônjuge réu, se o divórcio tiver sido decretado com fundamento na alínea c) do artigo 1637.°;
  c) Qualquer dos cônjuges, se o divórcio tiver sido decretado por mútuo consentimento ou se, tratando-se de divórcio litigioso, ambos foram considerados igualmente culpados.
  2. Excepcionalmente, pode o tribunal, por motivos de equidade, conceder alimentos ao cônjuge que a eles não teria direito, nos termos do número anterior, considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração prestada por esse cônjuge à economia do casal.”
  No caso em apreço, o casamento celebrado entre a Autora e o Réu foi dissolvido por sentença de 24 de Dezembro de 2009, transitado em julgado no processo sob o n° CV1-09-0003-CDL.
  Segundo o teor da sentença junta aos autos a fls. 157 a 159, não foi fixada a culpa a qualquer dos cônjuges pelo divórcio.
  Assim, de acordo com o preceito acima transcrito, assiste à Autora o direito a alimentos. Por outro lado, segundo o disposto da alínea a) do nº1 do art°1850° do C.C., o ex-cônjuge é da 1ª classe entre as pessoas que estão vinculados à prestação de alimentos.
  Ademais, conforme o regime estabelecido para a obrigação alimentar aos cônjuges, não constitua obstáculo o direito a alimentos, o decurso do lapso de tempo sobre a data de divórcio.
  Pelo que, apesar de a Autora e o Réu divorciaram há cerca de 4 anos, nada impede que a Autora venha pedir ao Réu a pagar alimentos, desde que se mostre a sua real necessidade de alimentos.
*
  Por alimentos entende-se tudo o que é indispensável à satisfação das necessitadas da vida do alimentado, nomeadamente ao seu sustento, habitação, vestuário, saúde e lazer. ( art°1844° do C.C.)
  Por outro lado, prevê o art°1845° do C.C., quanto ao critério de fixação dos alimentos, que “1. Os alimentos devem ser proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los. 2. Na fixação dos alimentos deve atender-se, igualmente, à possibilidade de o alimentado prover à sua subsistência.”
  Como se vê, os alimentos abrangem tudo o que for necessário ao sustento, habitação e vestuário (alimentos naturais). A palavra sustento abrange também as despesas próprias da vida social corrente, os encargos próprios do trem normal de vida da nossa época. (Cfr. Pire de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado, Vol V., Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 578)
  Na fixação de alimentos relativamente ao cônjuge, deve ainda atender ao critério especial fixado no nº3 do art°1857° do C.C., segundo esse preceito, deve considerar-se, a idade e o estado de saúde dos cônjuges, as suas qualificações profissionais e possibilidades de emprego, o tempo que têm de dedicar, eventualmente, à criação de filhos comuns, os seus rendimentos e proventos, e do modo geral, todas as circunstâncias que influam sobre as necessidades do cônjuge que recebe os alimentos e sobre as possibilidades do que os presta.
  Conforme se escreve no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Outubro de 2009, a propósito do fundamento da obrigação de alimentos entre ex-cônjuges, “Pode fundar-se essa obrigação excepcional invocando o estado de carência dos cônjuges, considerando que impõe que se lhe garanta, em função da vida em comum ocorrida no passado, um dever de solidariedade e entreajuda que imporá que os alimentos tenham por medida o indispensável ao seu sustento o que comtempla despesas de saúde, habitação e vestuário ... ponderando que a obrigação alimentícia não deve ser fixada no mínimo indispensável à sobrevivência, nem repor o padrão de vida que vigorava na vigência do casamento, mas antes tem insita o apelar à solidariedade pessoa., em nome da vivência em comum imposta pelo casamento, a postular, então, uma prestação quantitativa que não se quede pelo indispensável, mas que proporcione uma vida decente, uma situação pós-conjugal razoável...”(in CJ, STJ, Ano XVI, Tomo III, pág. 87 e ss)
  No caso vertente, decorre dos factos provados que a Autora era enfermeira da função pública, mas em 1996 optou pela cessação da relação com o governo, recebendo uma pensão pecuniária no montante de MOP$923.788,80.
  Provado está que a Autora recebeu, efectivamente, em 1996, a pensão pecuniária no montante de MOP$923.788,80, a que se corresponde ao seu trabalho como enfermeira durante 24 anos, fixada ao abrigo do art°4° do D.L. nº14/94/M e mas não vem provado que essa quantia foi totalmente utilizada para a aquisição do imóvel em Portugal pelo casal.
  Também não ficou provado que tal montante está actualmente na posse da Autora. De facto, esse montante foi recebido pela Autora há 13 anos antes da dissolução da sociedade conjugal, sendo a comunhão geral o regime de bens aplicável ao casamento entre a Autora e o Réu, essa quantia recebida pela Autora poderia ter sido contribuído para o encargo do casamento na sua vigência. Aliás, no momento do inventário, não foi alegada por nenhum dos cônjuges a sua existência para a eventual partilha, assim, essa pensão pecuniária recebida pela Autora há 13 anos atrás não pode ser tomada em conta para afirmar que a Autora com meios para grangear a sua vida.
  O Réu colocou a questão de que a Autora possuía vários imóveis na China, o que a ser provado, poderia ser levado para ponderar se a necessidade da Autora para receber os alimentos. Porém, o Réu não se logrou a provar a existências de tais imóveis alegados, pelo que não pode concluir, que a Autora disponha de fundos que lhe concedam fazer face às suas despesas.
  Está assente que desde 2012, a Autora não tinha trabalho nem auferiu qualquer rendimento, vive numa casa obtida da partilha dos bens comuns, tem actualmente despesas mensais em alimentação, água, electricidade e gás, no valor de cerca de MOP$3.500.00.
  Assim, face ao facto de não ter trabalho nem rendimentos, para além da casa em que vive, a necessidade de pagar as despesas indispensáveis, tais como alimentação, electricidade e água, etc., há de concluir que a Autora carece de ser alimentada.
  O quantum de alimentos
  Segundo os dados fácticos, a Autora vive numa fracção autónoma própria, não precisa de pagar rendas ou empréstimo bancária para a sua aquisição, precisa de cerca de MOP$3.500,00 para as despesas de alimentação, electricidade, água e gás, despesas indispensáveis para a sobrevivência, também não pode deixar de considerar a existência de outras despesas complementares, tais como roupa, calçado e ainda outras despesas extraordinários, tomando em conta ainda o período de tempo de vida em comum enquanto casal, mais de 36 anos, bem com a pouca possibilidade de arranjar outro emprego para sustentar a sua vida, face à sua idade.
  No vertente de possibilidade económica do Réu, ficou provado que ele recebeu uma pensão mensal cerca de 2.000,00 Euros, o que se corresponde de cerca de MOP$20.000,00. Quanto às custas próprias do Réu, não foram alegadas as suas despesas e necessidades concretas, mesmo assim, existe sempre despesas primárias para a sobrevivência numa cidade como nossa, conforme a experiência comum e a normalidade da vida.
  De qualquer modo, mesmo que se considere as necessidades atinentes à vida social, atento a capacidade económica do Réu, afigura-se equilibrada a fixação de uma pensão alimentar no valor de MOP$4.500,00 à Autora.
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  Quanto ao momento do início de alimento, diz o art°1847° do C.C., “Os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixadas pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo do disposto no artº2103º”.
  Portanto, o Réu ficou com a obrigação de pagamento de pensão alimentar a a partir de 19 de Julho de 2012.
  Assim, no que diz ao período de 19/07/2012 ao mês de Janeiro de 2014, o Réu já é devedor da Autora a quantia de MOP$87.387,1 (MOP$4.500,00 x 19 + MOP$4.500,00/31 x 13).
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IV) DECISÃO
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga procedente a acção e, em consequência, decide:
  i) Condeno o Réu B a pagar à Autora A ou A (A), a quantia de MOP$87.387.1 a título de alimentos, relativo ao período de 19 de Julho de 2012 a Fevereiro de 2014;
  ii) Condeno o Réu a pagar à Autora, a título de alimentos, a quantia mensal de MOP$4.500,00, a satisfazer até dia 8 de cada mês, a partir de Março de 2014.
  Custas pelas partes na proporção dos decaimentos.
*
  Registe e Notifique.


Não se conformando com o decidido, veio o Réu recorrer da mesma concluindo que:

A) Salvo o respeito devido, a matéria de fato provada é manifestamente insuficiente para a decisão proferida.
B) Com relevância para a decisão de mérito e eventual procedência do pedido de prestação de alimentos, apenas consta na matéria dada por provada que «Pelo menos desde 2012 a Autora não trabalhou nem auferiu rendimento a titulo de trabalho». Mas,
C) Em lado algum da decisão a quo se demonstrou que a Autora, recorrida, não aufere rendimentos: pois dar por provado que não trabalhou desde 2012 e que «não auferiu rendimento a título de trabalho», não é o mesmo que provar que a Autora não aufere rendimentos.
D) Mas chegou a douta decisão à conclusão de que desde 2012, a Autora não tinha trabalho nem auferiu qualquer rendimento. A discrepância é notória.
E) Não é lícito ao Tribunal substituir-se à parte e colmatar a falta de alegação e prova de factos essenciais para a procedência do pedido. Aliás, já em sede de contestação o ora Recorrente veio alegar ser insuficiente a causa de pedir para os efeitos peticionados pela Autora (cfr. artigo 14.º da contestação).
F) Tal excesso de pronúncia configura nulidade que ora se invoca, designadamente por violação do disposto no art.º 5.º do Código de Processo Civil.
G) Igualmente, não se demonstrou que a Autora necessita efectivamente de alimentos, não sendo juridicamente admissível dar um salto lógico, a partir da matéria de facto provada, para, assim, concluir que a Autora deles necessita.
H) Pois o que se conclui, da matéria de facto provada, é que a Autora não logrou provar «a sua real necessidade» de alimentos. Registe-se que a Autora não logrou provar os quesitos da base instrutória que se reportavam à sua situação profissional, decorrentes de alegações suas que o Recorrente pôs em crise na contestação, sendo lícito colocar em hipótese se a Autora, recorrida, não trabalha por opção sua, se procurou ou não exercer qualquer actividade fonte de rendimentos, não sendo possível concluir - como aliás não consta da matéria dada por provada, - que se encontra numa situação de necessidade.
I) Sendo provadamente titular de valioso património imobiliário, não pode admitir-se que a Autora resguarde esse rico património e, em vez de dele retirar o seu sustento, venha exigir ao Recorrente, três anos após o divórcio e após inventário e partilha do património comum, que custeie o seu dia-a-dia, o que configura manifesto abuso de direito.
  Termos em que, e nos melhores de Direito que Vxas. doutamente suprirão, deve proceder o presente recurso e, por conseguinte, ser revogada a decisão recorrida, com as legais consequências,
  assim fazendo Vxas. a costumada
JUSTIÇA!

Ao recurso respondeu a Autora pugnando pelo não provimento do recurso – cf. fls. 189 a 196 dos p. autos.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 1º do CPAC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Pela forma como foram redigidas as conclusões, é de notar que o recorrente vem, por um lado, imputar ao Tribunal a quo a inobservância do princípio dispositivo, consagrado no artº 5º/2 do CPC, à luz do que “o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes”, o que, na óptica do recorrente, configura a nulidade da sentença por excesso de pronúncia e, por outro, questionar a situação de carência, a que o Tribunal a quo recorreu, para fundamentar a atribuição dos alimentos à Autora.

Assim, constituem o objecto da nossa apreciação em sede do presente recurso apenas estas duas questões:

1. Do excesso de pronúncia; e

2. Da situação de carência.

Apreciemos.

1. Do excesso de pronúncia

Começou o recorrente por apontar a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito.

Para o recorrente, ficou apenas provado nos autos que “pelo menos desde 2012, a Autora não trabalhou nem auferiu rendimentos a título de trabalho”.

O recorrente assim entende que ao tecer as conclusões na fundamentação de direito de que “a Autora não tinha trabalho nem auferiu qualquer rendimento”, o Tribunal a quo está a substituir-se à Autora e colmatar a falta de alegação e prova de factos essenciais para a procedência do pedido, o que, na óptica do recorrente, constitui excesso de pronúncia gerador da nulidade da sentença recorrida.

Ora, é verdade que, por força do princípio dispositivo consagrado no artº 5º do CPC, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.

E que nos termos do disposto no artº 562º/3 do CPC, na fundamentação da sentença, o juiz toma em consideração os factos admitidos por acordo ou não impugnados, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito e os que o tribunal deu como provados.

Todavia, isso não quer dizer que a aplicação de direito é sempre apenas pegar nos factos e encaixá-los no direito.

Como se sabe o direito não é uma ciência exacta, tal como a matemática, mas sim uma ciência social.

Em não em poucas vezes, senão sempre, para a boa aplicação de direito, aos aplicadores de direito exige-se um esforço lógico de análise e de interpretação dos factos provados, recorrendo às regras da boa hermenêutica.

Para o efeito, é preciso que o aplicador de direito valore e interprete devidamente os factos, no contexto em que estão inseridos, com vista a procurar retirar o verdadeiro sentido que os factos realmente comportam.

É a operação a que a doutrina chama “retirar ilações judiciais”.

Ora, in casu, não nos parece que foram feitos incluir na matéria de facto assente factos para além dos alegados pelas partes, antes, pelo contrário, só foram tidos em conta pelo Tribunal a quo os factos constantes da matéria de facto assente e a realidade fáctica que daqueles factos se puderam retirar por ilação judicial.

Ora, in casu, tendo em conta o facto provado de que “pelo menos desde 2012 a Autora não trabalhou nem auferiu rendimento a título de trabalho” e conjugando o facto, também provado, de que “em 10 de Julho de 1996, a Autora recebeu uma pensão pecuniária correspondente ao seu trabalho como enfermeira durante 24 anos”, é-nos legítimo retirar a conclusão de que “desde 2012 a Autora não tinha trabalho nem auferiu qualquer rendimento”, sendo certo que se em 1996 a Autora já tiver acumulado 24 anos de serviço como funcionária pública, teremos de concluir que em 2012 ela já estava muito próxima do limite de 65 anos de idade activa, ou até para além dessa idade e que na falta dos factos que apontam o contrário, o trabalho é normalmente a principal, senão a única, fonte de rendimento das pessoas em geral.

Portanto, o que foi feito pelo Tribunal a quo é apenas a ilação feita com suporte lógico nos factos provados e não, como disse o recorrente, substituir-se à Autora e colmatar a falta da alegação de factos essenciais alegados por ela para a procedência do pedido.

Assim, não padecendo a sentença recorrida do imputado excesso de pronúncia, improcede o recurso nessa parte.

2. Da situação de carência e do abuso de direito

Para nos tentar convencer de que a Autora não se encontra numa situação de carência, o recorrente alegou nas conclusões H) e I) que:

……sendo lícito colocar em hipótese se a Autora, recorrida, não trabalha por opção sua, se procurou ou não exercer qualquer actividade fonte de rendimentos, não sendo possível concluir - como aliás não consta da matéria dada por provada, - que se encontra numa situação de necessidade;

Sendo provadamente titular de valioso património imobiliário, não pode admitir-se que a Autora resguarde esse rico património e, em vez de dele retirar o seu sustento, venha exigir ao Recorrente, três anos após o divórcio e após inventário e partilha do património comum, que custeie o seu dia-a-dia, o que configura manifesto abuso de direito.

Bom, em relação à hipótese de que a Autora não trabalhou por opção sua, não trabalhou porque não quis, é de notar que é uma mera imaginação na mente do recorrente sem qualquer suporte fáctico.

E além disso, como vimos supra, tendo em conta que em 2012 a idade da Autora já estava muito próxima ou ficava para além do limite máximo da idade activa, não é inimaginável o motivo legítimo de parar de trabalhar.

De qualquer maneira, não foram demonstrados quaisquer elementos fácticos apurados nos autos que nos permitem extrair a ilação de que a Autora não trabalhou porque não quis.

Já mesmo ante o facto de que, na partilha dos bens do casal no inventário instaurado após o divórcio com o Réu, à Autora foi adjudicada uma fracção autónoma que, na óptica do recorrente, é um rico património, não cremos que a Autora não mereça de alimentos pura e simplesmente por poder ser titular da fracção autónoma.

É verdade que a Autora ora recorrida é proprietária da fracção onde vive, mas daí não lhe resulta qualquer rendimento para o seu sustento, antes implica que suporte encargos decorrentes do condomínio.

Ora, por alimentos entende-se tudo o que é indispensável ao sustento, habitação, vestuário, saúde e lazer – artº 1844º/1 do CC.

São estes as chamadas necessidades primárias da vida de qualquer pessoa.

Se é verdade que, tal como alega o recorrente, se tem registado uma rápida valoração dos imóveis na última década em Macau, o que torna a fracção autónoma da Autora mais valiosa, não é menos certo que é inexigível à Autora vender ou dar de arrendamento a fracção com vista a obter o suficiente rendimento disponível para o seu sustento, pois a proceder assim, estaremos a obrigar a Autora a sacrificar uma das necessidades primárias para salvaguardar outra necessidade também primária, colocando a Autora de novo em situação de carência por falta da casa para alojar.

Assim sendo, cai por terra a tese avançada pelo recorrente de que a Autora não está na situação de carência que justifica a atribuição dos alimentos nos termos fixados.

Vimos que a Autora está efectivamente desprovida de meios económicos para o seu sustento, é logo de afastar, sem necessidade de tecer quaisquer considerações, a possibilidade de censurar a Autora por abuso de direito.

Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar improcedente o recurso interposto pelo Réu B, mantendo na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelo Réu recorrente.

Registe e notifique.

RAEM, 22JAN2015
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng