Processo nº 293/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 22/Janeiro/2015
Assunto: Despacho saneador-sentença
Absolvição do pedido
Convite ao aperfeiçoamento da petição inicial depois de ordenada a citação do Réu
SUMÁRIO
- No despacho saneador, deve ser elaborado o despacho saneador-sentença quando todos os factos estão assentes ou os factos não assentes são irrelevantes para a decisão, mas se o juiz entender que há falta de alegação de um facto essencial para a procedência da acção, deverá absolver o réu do pedido; e na dúvida, se houver factos controvertidos, deverá prosseguir com os autos e tomar uma posição definitiva na sentença final.
- Tendo alegado pelos Autores que a Ré teria efectuado a liquidação das transacções fora do horário de serviço que não lhe era permitido fazer conforme o acordado, bem como teria aplicado taxas de câmbio de liquidação compulsória que não correspondiam às taxas contratualmente acordadas com os Autores, e não obstante estes não lograrem satisfazer ao solicitado pelo Tribunal a quo, de forma a indicar as taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções realizadas, somos a entender que ainda não é momento oportuno para conhecer do mérito da causa em relação aos pedidos dos Autores ora recorrentes, uma vez que, para além daquele fundamento, foram também alegados outros factos, ainda controvertidos, que por si só talvez sejam suficientes para conduzir à procedência da acção.
- Nesta conformidade, o apuramento da eventual responsabilidade da Ré pode não resultar necessariamente do confronto das taxas em causa, e segundo o alegado pelos Autores, o valor da indemnização peticionada corresponderia a toda a liquidação e dedução de valores das suas contas fora do quadro contratual que acordaram, na medida em que os Autores terão que ser repostos na situação em que estariam se tal liquidação, por parte da Ré, não tivesse ocorrido.
- Embora a alínea b) do nº 1 do artigo 427º se refira apenas ao aperfeiçoamento dos articulados posteriores à petição inicial, o nº 3 do mesmo artigo refere-se aos articulados sem exceptuar a petição, pelo que se deve entender ser possível o convite ao aperfeiçoamento deste articulado, não parecendo razão válida para a exclusão o facto de o juiz poder convidar a aperfeiçoar a petição no despacho liminar.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 293/2014
(Autos de recurso civil)
Data: 22/Janeiro/2015
Recorrente (recurso interlocutório):
- Banco A, S.A. (Ré)
Recorrentes (recurso final):
- B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L (Autores)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
B e outros intentaram uma acção declarativa sob forma de processo comum ordinário contra o Banco A, S.A., junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM, pedindo, no fundo, a condenação da Ré a restituir aos Autores os valores que aquela indevidamente liquidou das suas contas por efeito da liquidação das transacções feita em incumprimento dos acordos celebrados com os vários Autores.
Citada, a Ré contestou a acção, pugnando pela absolvição do pedido.
Posteriormente, e antes de elaborar o despacho saneador e a selecção da matéria de facto, o juiz do processo convidou alguns Autores para procederem ao aperfeiçoamento da petição inicial, por se entender haver insuficiência na exposição da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 427º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil (cfr. despacho de fls. 147 a 149 dos presentes autos).
Inconformada com este despacho interlocutório, dele recorreu a Ré para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
a) Os AA. foram convidados a aperfeiçoarem a petição inicial, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 427º do Código de Processo Civil.
b) O despacho de aperfeiçoamento foi, porém, proferido depois de ordenada a citação do Réu e depois de este ter contestado.
c) Os AA. apenas poderiam ser convidados a aperfeiçoarem a petição inicial no despacho liminar, que antecede o despacho que ordena a citação, em cumprimento do disposto no artigo 397º do Código de Processo Civil.
d) Decorrida essa fase, não pode mais ser proferido despacho de aperfeiçoamento da petição inicial.
e) O despacho de aperfeiçoamento previsto no n.º 6 do artigo 427º do Código de Processo Civil apenas pode incidir sobre os articulados posteriores à petição inicial e não sobre esta.
f) A decisão recorrida violou o disposto no n.º 3 do artigo 397º e no n.º 6 do artigo 427º, ambos do Código de Processo Civil.
Conclui, pedindo que se revogue o despacho recorrido e anulando-se todos os actos que venham a ser praticados na sua dependência, designadamente o despacho de admissão de um requerimento de aperfeiçoamento e a inserção nos factos assentes ou na base instrutória de qualquer matéria de facto extraída desse mesmo requerimento de aperfeiçoamento.
*
Notificados do despacho de aperfeiçoamento, e em satisfação ao solicitado pelo juiz do processo, os Autores apresentaram novo articulado (cfr. fls. 154 a 173).
No saneador, o juiz do processo continuou a entender que não estavam incluídos factos pertinentes para a boa decisão da causa e integradores do direito de indemnização alegado por alguns Autores, razão pela qual julgou improcedentes os pedidos formulados pelos respectivos Autores, ora recorrentes, e em consequência, absolveu a Ré dos pedidos.
Inconformados com o despacho saneador-sentença, dele interpuseram os Autores recurso ordinário, alegando em sede de conclusões o seguinte:
a) Segundo o despacho recorrido, o direito de indemnização reclamado pelos recorrentes ancora-se na verificação de incumprimento contratual pela R., sendo qual tal verificação se mostra inviável na falta de indicação “das taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções realizadas”.
b) Os recorrentes fundam os seus pedidos no incumprimento pela R. das condições em que, nos termos contratualmente ajustados entre as partes, poderia proceder a liquidações de posições.
c) O incumprimento contratual que é imputado à R. baseia-se no facto de esta ter procedido à liquidação das posições dos recorrentes fora do horário durante o qual estava contratualmente autorizada a fazê-lo e sem que previamente tenha notificado os recorrentes para efectuarem depósitos marginais, caso assim o pretendessem.
d) Na alegação dos recorrentes, a liquidação compulsória de posições pela R. apenas poderia verificar-se (i) caso a cotação da moeda escolhida atingisse a taxa de liquidação compulsória, tal como indicada nas confirmações, e (ii) apenas durante o horário entre as 09:00 e as 03:30.
e) E precisamente porque a R. apenas estava autorizada a liquidar posições entre as 09:00 e as 03:30, a execução de operações dessa natureza fora de tal horário constitui por si só um incumprimento de condições contratuais, independentemente de qualquer análise sobre as concretas taxas aplicadas.
f) Assim, mesmo relativamente aos recorrentes, que não lograram indicar as taxas concretamente aplicadas pela R. na liquidação das suas posições, não deixaria de ser possível apurar o eventual incumprimento da R.
g) Deveria pois ter sido ordenado o prosseguimento dos autos relativamente aos recorrentes, com a selecção de matéria de facto relevante.
h) Ao decidir em sentido diverso, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 430º, n.º 1 do CPC.
i) Por outro lado,
j) O princípio geral, contido no art. 5º, n.º 1 do CPC, de que é às partes que cabe alegar os factos que integram a sua causa de pedir, é matizado pelas regras contidas nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo.
k) Dispõe o n.º 3 do referido artigo que o julgador deve considerar, na decisão da causa, os factos essenciais à procedência das pretensões formuladas que sejam complemento de outros que as partes tenham oportunamente alegado.
l) Para tanto, é necessário que tais factos não alegados resultem da instrução e discussão da causa, que à parte interessada seja dada a possibilidade de sobre eles se pronunciar que à parte contrária tenha sido facultado exercício do contraditório.
m) Factos essenciais são aqueles que “concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor (…), se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes” (Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª edição, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2004, pág. 252).
n) No quadro normativo traçado pelo n.º 3 do art. 5º do CPC, e na lógica do despacho recorrido, temos assim que as taxas de liquidação compulsória constantes das confirmações são, pela sua essencialidade, susceptíveis de aquisição e consideração ainda que não hajam sido alegadas pelos recorrentes.
o) Quanto ao nexo de complementaridade entre os factos a adquirir e os já anteriormente alegados, ele verifica-se “em situações em que a pretensão do autor assenta em causa de pedir complexa, relativamente à qual se tenham alegado determinados factos, omitindo-se outros que, de acordo com a norma aplicável ao caso, devam ser provados para que a acção seja procedente” (Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 1997, pág. 55).
p) Neste contexto, os factos alegados pelos recorrentes constituirão já uma parte do complexo factual essencial à procedência das suas pretensões, e nessa medida permitirão que outros factos, não alegados mas também essenciais a essa procedência, sejam adquiridos por complementaridade, através do mecanismo processual previsto no art. 5º, n.º 3 do CPC.
q) Decretada que fosse a diligência requerida pelos recorrentes para junção pela R. dos documentos dos quais constam as taxas de liquidação compulsória, de imediato a instrução da causa revelaria os factos em falta.
r) Ao decidir em sentido diverso, o Tribunal a quo violou o disposto no referido art. 5º, n.º 3 do CPC.
Concluem, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento dos autos para discussão e julgamento da causa relativamente aos pedidos formulados pelos recorrentes.
Notificada, contra-alegou a Ré, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTOS DE FACTO E DE DIREITO
Provada está a seguinte matéria de facto relevante para a decisão da causa:
Iao Sut Heng e os restantes 24 Autores intentaram em coligação uma acção declarativa sob forma de processo comum ordinário contra o Banco A, S.A., pedindo que se condene este último a restituir aos Autores os valores que aquele indevidamente liquidou das suas contas por efeito da liquidação das transacções feita em incumprimento dos acordos celebrados com os vários Autores.
Para tanto invocaram sumariamente os Autores, na petição inicial, a seguinte matéria de facto:
- No exercício da sua actividade bancária, a Ré celebrou respectivamente com os Autores contratos, nos termos dos quais os Autores ordenam a realização de compra e venda a descoberto (“short selling”) de moedas estrangeiras;
- Este “short selling” consiste na venda de bens, neste caso concreto, moeda estrangeira, que não são do vendedor, mas antes emprestados por um credor, comprometendo-se o devedor a comprar bens idênticos para os devolver ao credor em determinada data;
- Para o efeito, os Autores abriram contas bancárias junto da Ré, fazendo determinados depósitos;
- Com o montante disponível na conta, os Autores dão determinadas ordens de compra e venda de moeda estrangeira à Ré, apostando na subida ou descida da taxa de câmbio da mesma;
- Assim, se no momento da recompra o valor da moeda estrangeira for mais baixo, os clientes da Ré poderão adquirir a mesma quantia em JPY ou CHF por um valor inferior ao que pediram emprestado à Ré, percebendo assim os lucros da operação;
- Mas se a moeda em questão se valorizar, os clientes sofrerão perdas, na medida em que lhes custará mais dinheiro a comprar a mesma quantidade de moeda estrangeira para devolverem à Ré;
- As operações de compra e venda de moeda estrangeira não eram feitas directamente pelos Autores, antes estes davam ordens à Ré a qual as executava nos mercados cambiais internacionais;
- As ordens de transacção poderiam ser dadas à Ré directamente num dos balcões ou por via telefónica para o call center da mesma;
- Em termos sumários, quando a cotação cambial da moeda escolhida pelos Autores chega a determinado valor, os Autores terão que efectuar um depósito marginal, sendo depois a taxa de depósito marginal revista em conformidade para reflectir esse depósito;
- Mais ainda, nos termos dos contratos celebrados com os Autores, prevê-se a fixação de uma taxa de liquidação obrigatória ou liquidação compulsória;
- Assim, caso a cotação cambial da moeda escolhida pelos Autores chegue a determinado valor, mas não fizeram o depósito marginal, a Ré poderá liquidar as transacções dos Autores, durante o horário das 09:00 e as 03:30, comprando a moeda estrangeira em causa com o saldo de contra existente nas contas dos Autores;
- Os Autores foram informados pela Ré de que, fora desse horário, não se realizavam quaisquer operações, quer de depósito marginal quer de liquidação compulsória;
- A Ré, na madrugada de 17 de Março de 2011, procedeu, sem qualquer aviso, à liquidação das transacções dos Autores, trocando todos os dólares de Hong Kong existentes nas contas por JPY;
- Os Autores verificaram que a Ré havia liquidado as suas transacções sem lhes dar sequer oportunidade de efectuarem o depósito marginal contratualmente previsto;
- E em horário que se encontrava fora do horário acordado para a realização de quaisquer operações;
- Também o valor das moedas estrangeiras em causa não havia ainda subido ao ponto de permitir a liquidação das transacções conforme os termos acordados;
- Em suma, os Autores verificaram que a Ré, com a sua conduta, havia violado grosseiramente os seus deveres indicados nos contratos, tendo assim causado aos Autores sérios danos patrimoniais.
A Ré foi citada para contestar, pugnando pela improcedência da acção.
Antes de elaborar o despacho saneador e a selecção da matéria de facto, o juiz do processo proferiu o seguinte despacho:
“Da insuficiência da exposição de facto alegado pelos AA.
Os AA. vêm, em coligação, demandar a Ré para lhes indemnizar por perdas a eles causadas por encerramento forçado pela última das suas transacções na compra ou venda das moedas estrangeiras de JPY ou CHF no âmbito dos contratos titulados por Flexi-Investment.
Para fundamentar os seus pedidos, os AA. alegaram ter celebrado contratos titulados por “Flexi-Investment” com a Ré nos termos da qual lhes permite a realização as operações da compra e vendas das moedas estrangeiras (JPY ou CHF), apostando na subida ou descidas da taxa de câmbio das mesmas.
Segundo os termos dos contratos, os AA. podem realizar transacções até três vezes do montante depositado numa conta bancária aberta junta da Ré.
Ao abrigo desses contratos, os AA. realizaram várias transacções de compra e venda de JPY ou CHF.
Porém, no dia 17 de Março de 2011, a Ré procedeu à liquidação das transacções feitas pelos AA., trocando todos os dólares de Hong Kong por JPY, sem prévio aviso aos AA. e sem lhes dar oportunidade para reforçar a garantia (depósito de margem(.
Entendem os AA. que as liquidações da Ré foram realizadas fora do horário acordado e por uma taxa de câmbio arbitrariamente fixada pela Ré.
Na óptica dos AA., essas transacções feitas pela Ré foram efectuadas na violação dos contratos Flexi-Investment, pretendendo que a Ré seja condenado o ressarcimento das indemnizações dos danos que lhe causados por esse acto.
O acima descrito é o enquadramento genérico dos que foram invocados pelos AA., para sustentar as suas pretensões.
Contudo, na matéria fáctica, afigura-se que faltou aos AA. a concretizar uns factos essenciais, de que dependem para a resolução do litígios posto ao Tribunal.
Vejamos.
Independentemente dos termos concretos dos contratos celebrados entre os AA. e a Ré, afigura-se crucial a saber quais são as concretas transacções feitas pelos AA. para depois apreciar se as liquidações feitas pela Ré foram realizadas dentro ou fora dos limites acordados pelas partes.
Sobre a matéria fáctica das concretas operações de compra e venda das moedas estrangeiras, os AA. apenas alegaram, em conjunto, os factos descritos nos art.º 37º e 39º da petição inicial.
No art.º 37º, os AA. limitaram-se a descrever os números de confirmação das transacções, sem que indicassem os pormenores de cada uma das transacções.
Enquanto no articulado 39º da petição inicial, nela constam os factos da taxa de câmbio para liquidação compulsória para os AA., exceptos os AA. C, D, E, F, G, H, I, J, K e L e as taxas de câmbio aplicadas pela Ré.
Ora, para apurar se a Ré aplicasse uma taxa de câmbio arbitrária e não a acordada entre as partes nos termos do contrato de Flexi-Investment, carecem sempre de saber qual é a taxa de câmbio de liquidação compulsória fixada nas confirmações, competendo aos AA. alegar factos sobre essa matéria.
Para os AA. que não alegaram na petição inicial as taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções realizadas, é impossível apreciar se ocorrer violação do cumprimento dos contratos em causa pela Ré.
Do que se resulta da petição inicial, parece que esses AA. pretenderem justificar essa omissão por falta de documentos comprovativos das transacções, requerendo logo ao Tribunal a exigir à Ré a apresentação dos respectivos documentos. Os AA. confundem os documentos como meio de prova e a exposição dos factos concretos. A junção dos documentos é um dos meios de produção das provas com vista a corroborar os factos invocados pelas partes. Mesmo com a junção dos documentos, não dispensa às partes alegarem os factos que se pretendem comprovar com aqueles.
No que diz respeito aos danos causados aos AA., estes limitaram-se a narrar, por quadro, os valores resultantes da soma aritmética dos montantes liquidados em cada uma das confirmações, os quais constam dos extractos juntos aos autos.
Para já, os factos alegados no art.º 153º não deixam de ser conclusão tirada pelos próprios AA. Faltam aos mesmos a descrição dos factos concretos de cada uma das transacções. Como disse acima, a articulação dos factos concretos não pode ser substituída pela mera remissão aos documentos juntos aos autos, ainda por cima nem todos os documentos necessários foram já apresentados nos autos.
Ademais, ao abrigo do disposto do art.º 556º do C.C., a obrigação de indemnização consiste na reconstituição da situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à obrigação. Diz, por outro lado, o art.º 557º do CC que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
Segundo os factos alegados na petição inicial, no âmbito dos contratos de Flexi-Investment celebrados com a Ré, estes realizaram várias transacções de compra ou venda das moedas estrangeiras, os AA. tanto poderiam perceber lucros, como poderiam sofrer perda, tudo dependeria da subida ou descidas da taxa de câmbio da moeda estrangeira.
Se a Ré não tivesse procedido as liquidações das transacções, parece que a situação em que existiria na altura seria, naturalmente, a manutenção dessas transacções.
Seguindo esse raciocínio, poderia acontecer uma das duas situações, a saber: ou a taxa de câmbio continuasse a descer, ultrapassando em larga medida o limite de risco suportados pelos AA., causaria ainda maior perdas; ou a taxa de câmbio não só cessasse de descer, mas voltando a subir, assim, os AA. poderiam recuperar das perdas anteriormente sofridas ou mesmo poderia obter lucros da subida.
De facto, a Ré descontou nas suas contas bancárias os valores necessárias para a liquidação obrigatória feita pela mesma, mas isso não equivale a dizer que esses valores são mesmos danos para os AA. Como se mostra na 1ª hipótese, a intervenção da Ré poderia até evitar maiores danos que os AA. eventualmente sofresse com a continuada descida da taxa de câmbio. Com essa lógica, o encerramento das operações pela Ré não conduz, necessariamente, prejuízos aos AA. A existência ou não dos danos depende ainda da circunstância fáctica a acontecer posteriormente aos actos praticados da Ré.
Pelo que, cabe aos AA. invocar esses factos concretos, mesmo a título hipotético, sobre o que se aconteceria ou a situação em que ficaria, se não tivesse a intervenção da Ré. Apenas com esses factos é que permite ao Tribunal a formar conclusão se os AA. sofreram, efectivamente, prejuízos.
Assim sendo, por a petição inicial se apresentar com insuficiência na exposição da matéria de facto, tal como se menciona acima, ao abrigo do disposto do art.º 427º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., convido os AA. para, no prazo de 10 dias, aperfeiçoar a sua petição inicial no sentido de aditamento de factos sobre todas as transacções realizadas pelos AA., indicando as respectivas taxa de câmbio de compra ou venda, taxa de liquidação compulsória, os valores concretos de liquidação feita pela Ré sobre cada uma das transacções dos AA., bem como articular factos concretos sobre a situação hipotética que existiria sem os actos da Ré.
Notifique.”
Esta é a primeira decisão recorrida.
Com vista a satisfazer ao solicitado, os recorrentes apresentaram novo articulado constante de fls. 154 a 173 dos presentes autos, suprindo a insuficiência na exposição da matéria de facto alegada na petição inicial.
Sobre esse articulado complementar recaiu o seguinte despacho:
“Pedidos dos Autores B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L
Convidados os autores para aperfeiçoar a insuficiência dos factos alegados na petição inicial por despacho a fls. 667 e ss, os autores vêm apresentar o articulado a fls. 694 a 714.
Porém, nesse articulado, os AA. não aditaram os factos que o Tribunal entende necessário para o conhecimento do mérito de causa, limitando-se a justificar a suficiência dos factos alegados na p.i. e a possibilidade do prosseguimento para o saneamento.
Nos presentes autos, todos os autores vêm, em coligação, demandar a Ré para lhes indemnizar por perdas a eles causadas por encerramento forçado pela última das suas transacções na compra ou venda das moedas estrangeiras de JPY ou CHF no âmbito dos contratos titulados por Flexi-Investment.
Verifica-se que, em relação aos autores B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L, os factos alegados nos articulados são insuficientes para sustentar os seus pedidos, cumpra apreciar já esses pedidos.
Os AA. B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L alegaram os seguintes factos relevantes para sustentar os seus pedidos:
“Os autores celebraram com a Ré os contratos titulados por “Flexi-Investment Account Agreement” que tem por objecto a compra e vendas das moedas japonesas.
De acordo com os termos dos contratos celebrados com a Ré, os AA. ordenam a realização de compra e venda a descoberto (“Short Selling”) de moedas estrangeiras.
Este “short selling” ou criação de uma posição short, consiste na venda de bens moeda da estrangeira – que não são do vendedor, mas antes emprestados por um credor, comprometendo-se o devedor a comprar bens idênticos para os devolver ao credor em determinada data.
A R. estende uma linha de crédito em moeda estrangeira aos AA., permitindo-lhes realizar operações com até 3 vezes o montante depositado.
Com o montante disponível na conta, os AA. dão determinadas ordens de compra e venda de moeda estrangeira à R., apostando na subida ou descida da taxa de câmbio da mesma.
A R. executava as ordens dos AA. nos mercados cambiais internacionais.
Se no momento da recompra o valor da mesma moeda for mais baixo, os AA. poderão adquirir a mesma quantia em JPY ou CHF por uma valor inferior ao que pediram emprestado à R., percebendo os lucros da operação.
Se a moeda em questão se valorizar, os AA. compraram a mesma quantidade de moeda estrangeira para devolverem à R.
As ordens de transacção poderiam ser dadas às R. directamente num dos seus balcões ou por via telefónica para o call center da mesma.
Quando as ordens eram dadas ao balcão, a R. entregou às AA. um documento comprovativo do cumprimeto da execução da transacção, denominado “Confirmation of Flexi-Investment” (“靈活理財證明書”).
Quando as ordens eram dadas por telefone, não era fornecido pela R. aos AA. qualquer confirmações ou cópias das mesmas.
Na “Confirmação of Flexi-Investment” é indicada a taxa de Marginal Deposit (“補倉”) e a taxa de liquidação obrigatória “compulsory liquidation” (“強制平倉”) ou “liquidação compulsória”.
Aquando da celebração dos Contratos, os funcionários da R. informaram cada um dos AA. de que existia uma taxa de câmbio, indicada nas Confirmações que lhes permitia exigirem aos AA. realizarem o depósito marginal.
Quando a cotação cambial da moeda escolhida pelos AA. chega a determinado valor, os AA. terão que efectuar um depósito marginal.
Efectuado o depósito, a taxa de depósito marginal será revista em conformidade para reflectir esse depósito.
Caso os AA. não fizessem o depósito marginal, e a taxa de câmbio atingisse o valor indicado como liquidação compulsória, a R. teria o direito a liquidar as suas posições nos Contratos, entenda-se, comprar, com o saldo das contas dos AA., montante em JPY ou CHF bastante para repor o montante que haviam mutuado aos AA.
Os funcionários da R. informaram aos AA. que existia um horário para a realização das depósito marginal, que foi sendo sucessivamente alterado em função da evolução tecnológica até ao horário actual das 09:00 às 03:30.
Os Aa. foram informados pela R. de que, fora desse horário, não se realizavam quaisquer operações quer de depósito marginal, quer de liquidação compulsória.
A R. poderá liquidar as transacções dos AA., durante o horário das 09:00 e as 03:30, comprando a moeda estrangeira em causa com o saldo de conta existente nas contas doa AA.
Às 05:02 e 05:42 do dia 17 de Março de 2011, a Ré procedeu à liquidação das transacções desses autores, trocando todos os dólares de Hong Kong nas contas existentes por JPY com as taxas de liquidação indicadas no art.º 39º da p.i., sem prévio aviso aos autores para reforçar o depósito marginal.
Quando procedeu às liquidações, a Ré apurou apenas a proximidade das taxas cambiais com as constantes das confirmações.”
Ora, os pedidos de indemnização formulados pelos autores fundamentaram essencialmente no facto de em 17 de Março de 2011, a Ré procedeu à liquidação das transacções feitas pelos AA., trocando todos os dólares de Hong Kong por JPY, por uma taxa de câmbio que não era permitida à Ré para efectuar a liquidação obrigatória nos termos das confirmações e sem prévio aviso aos AA. e sem lhes dar oportunidade para reforçar a garantia (depósito de margem).
Entendem os AA. que as liquidações da Ré foram realizadas fora do horário acordado e por uma taxa de câmbio arbitrariamente fixada pela Ré.
Para apreciação do litígio posto por esses autores, isto é, se a Ré aplicasse uma taxa de câmbio arbitrária e não a acordada entre as partes nos termos do contrato de Flexi-Investment, é crucial saber quais eram as taxas de câmbio constantes das confirmações de cada uma das transacções para efeito da Liquidação Compulsória.
Porém, os autores em causa omitiram a descrever quais eram as taxas de câmbio indicadas nas confirmações dadas pela Ré, limitando-se a invocar as taxas de câmbio aplicadas pela Ré no dia 17 de Março de 2011.
Os autores imputaram à Ré a proceder à liquidação das transacções mesmo que a taxa de câmbio ainda não atingisse à indicada nas confirmações, violando, por isso, o acordado nos contratos celebrados entre ambos.
No entanto, sem a indicação das taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções realizadas, torna-se impossível saber as taxas de câmbio aplicadas pela Ré atingissem ou não o valor indicado nas conformações.
Portanto, esses factos são essenciais e fundamentais de que depende a verificação do incumprimento por parte da Ré, daí nascerá o direito da indemnização reclamado pelos autores ou seja, sem esses factos não permite apurar tal o direito existisse.
Aliás, a falta descrição desses factos nos articulados pelos autores e de os mesmos nem constar dos documentos juntos aos autos cuja remissão os autores pretendem fazer já não pode ser suprida na fase posterior.
Assim, por falta de alegação desses factos integradores do direito de indemnização, mesmo que comprovasse todos os factos alegados na p.i., os pedidos de indemnização formulados por estes autores também não podem deixar de naufragados.
Nestes termos e sem demais considerações, ao abrigo do disposto do art.º 429º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., julga-se improcedente os pedidos formulados pelos autores B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L, absolvendo a Ré desses pedidos.
Custas nessa parte pelos autores decaídos.”
Esta é segunda decisão recorrida.
*
São duas as questões suscitadas na nossa instância:
- Saber se o juiz pode proferir despacho de aperfeiçoamento da petição inicial já depois de ordenada a citação do Réu e depois de este ter contestado (recurso interlocutório); e
- Se está correcta a decisão que julgou improcedente o pedido dos recorrentes, por não se lograr suprir a insuficiência na exposição da matéria de facto alegada na petição inicial (recurso final).
Dispõe o artigo 628º do Código de Processo Civil:
“1. Os recursos que tenham subido conjuntamente são apreciados pela ordem da sua interposição.
2. Os recursos que não incidam sobre o mérito da causa e que tenham sido interpostos pelo recorrido em recurso de decisão sobre o mérito só são apreciados se a sentença não for confirmada.
3…”
De acordo com esta disposição legal, tenhamos que começar pela apreciação do segundo recurso, sendo o primeiro só apreciado se não for confirmada a sentença recorrida.
Recurso do despacho saneador-sentença
Decidiu a sentença recorrida que, não obstante os recorrentes terem apresentado novo articulado, mas nesse mesmo articulado não foram aditados os factos que o Tribunal entendia serem necessários para a procedência da acção, daí resulta que na falta de alegação de factos integradores do direito de indemnização, mesmo que se provassem os restantes factos constantes da petição inicial, os pedidos de indemnização formulados por aqueles Autores não deixariam de improceder.
A sentença recorrida entendeu que, para apreciação do litígio proposto por esses autores, era crucial saber quais eram as taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções, mas os recorrentes apenas se limitaram a descrever as taxas aplicadas pela Ré no dia 17 de Março de 2011, omitindo a descrição daquelas.
Ainda se referiu na sentença recorrida que a indicação das taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções é relevante, sob pena de não ser possível saber se as taxas de câmbio aplicadas pela Ré naquele dia teriam ou não atingido aos respectivos valores indicados nas confirmações de modo que permitisse a liquidação obrigatória das transacções conforme o acordado.
Vejamos.
Estatui-se na alínea b) do nº 1 do artigo 429º do Código de Processo Civil que o juiz conhece imediatamente no despacho saneador do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do pedido ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Entendeu o Tribunal a quo que mesmo que os factos alegados pelos recorrentes se encontrem integralmente provados, os pedidos formulados pelos Autores não deixariam de ser improcedentes.
Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar o decidido.
Em boa verdade, alegam os Autores que a Ré incorreu na violação dos termos contratuais acordados entre ambas as partes, mais precisamente, não assistia à Ré o direito de liquidar as transacções como e quando quisesse, pelo contrário, todas as operações apenas podiam ser realizadas entre as 09:00 e as 03:30, sendo assim, segundo entendem os Autores, quando a operação de liquidação se realizasse fora daquele horário, ela constituiria sempre um incumprimento contratual, qualquer que fosse a taxa em que tal operação se baseasse.
Além disso, alegam ainda que a Ré teria aplicado no dia 17 de Março de 2011 taxas de câmbio de liquidação compulsória que não correspondiam às taxas contratualmente acordadas com os Autores.
Observa Viriato Manuel Pinheiro de Lima, “deve ser elaborado despacho saneador-sentença quando todos os factos estão assentes ou os factos não assentes são irrelevantes para a decisão”.1
Diz ainda que “se, no despacho saneador o juiz entender que falta a alegação de um facto essencial para a procedência da acção, deverá absolver o réu do pedido. Na dúvida, se houver factos controvertidos, deverá prosseguir com o processo e tomar uma posição definitiva na sentença final”.2
Ora bem, no presente caso, por um lado, trata-se de saber se a Ré teria efectuado a liquidação das transacções fora do horário de serviço que não lhe era permitido fazer conforme os contratos, e por outro, se a Ré teria aplicado taxas de câmbio de liquidação compulsória que não correspondiam às taxas contratualmente acordadas com os Autores.
Sendo assim, não obstante os Autores não lograrem satisfazer ao solicitado pelo Tribunal a quo, de forma a indicar as taxas de câmbio de liquidação compulsória de cada uma das transacções realizadas, somos a entender que ainda não é momento oportuno para conhecer do mérito da causa em relação aos pedidos dos recorrentes, uma vez que, para além daquele fundamento, foram também alegados pelos Autores outros factos, ainda controvertidos, que por si só talvez sejam suficientes para conduzir à procedência da acção.
Sem pretender entrar na apreciação do mérito da causa, podemos verificar que, de acordo com a factualidade exposta pelos Autores, o valor da indemnização peticionada corresponderia a toda a liquidação e dedução de valores das contas dos Autores fora do quadro contratual que acordaram, na medida em que os Autores terão que ser repostos na situação em que estariam se tal liquidação não tivesse ocorrido.
Portanto, ao contrário do que se entendeu na sentença recorrida, o apuramento da eventual responsabilidade da Ré pode não resultar necessariamente do confronto das taxas em causa.
Nesta conformidade, por não se nos afigurar que estão reunidas condições para poder apreciar já no saneador o mérito da causa relativamente à situação dos recorrentes, revoga-se o despacho saneador-sentença, devendo a acção prosseguir os seus ulteriores termos processuais em relação aos mesmos, de modo que se proceda à selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa, nos termos previstos no artigo 430º, nº 1 do Código de Processo Civil.
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Iremos ainda deixar duas notas antes de fechar o tema.
A primeira diz respeito à interpretação e aplicação do artigo 5º, nº 3 do Código de Processo Civil.
Dispõe o artigo 5º, nº 1 do Código de Processo Civil que, como princípio geral, cabe às partes alegar os factos que integram a causa de pedir.
Embora seja verdade que, segundo se preceitua no nº 3 do mesmo artigo, o juiz deve considerar factos essenciais à procedência da acção ou das excepções, mesmo que não tenham sido alegados pelas partes, mas isto só acontece se no decurso da produção de prova surgirem factos que, embora não articulados, o Tribunal considere com interesse para a boa decisão da causa, ou seja, quando o processo já se encontra na fase de instrução e discussão da causa.
Observa Carlos Francisco de Oliveira Lopes de Rego:3
“A possibilidade de aquisição processual dos factos complementares ou concretizadores durante a instrução e discussão da causa carece de ser conexionada com os mecanismos de aperfeiçoamento dos articulados, estabelecidos nos artigos 508º, nº 1, alínea b), 3, 4 e 5, e 508º-A, nº 1, alínea c).
Consagram tais preceitos a possibilidade de o juiz, quer no despacho “pré-saneador”, quer no decurso da própria audiência preliminar, convidar qualquer das partes a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto relevante para a apreciação da causa. Assim, a consideração de factos não alegados e revelados apenas em audiência, configura-se como subsidiária e residual relativamente ao aperfeiçoamento dos articulados – só tendo sentido nos casos em que não foi detectada, no momento mais idóneo (o saneamento do processo e a sua preparação para julgamento) a omissão ou insuficiência da matéria de facto em causa.
Deste modo, o nº 4 do artigo 264º não outorga à parte interessada o direito de requerer a inclusão no processo dos factos complementares ou concretizadores – cuja omissão apenas intempestivamente venha a verificar – através de uma espécie de articulado “superveniente”, deduzido até ao termo da audiência final (reportado, porém, a factos que, em rigor, não são nem objectiva, nem subjectivamente “supervenientes”): ultrapassada a fase da audiência preliminar e a possibilidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento da matéria de facto articulada, não é possível provocar e obter tal “aperfeiçoamento” em sede de pura alegação dos factos, admitindo-se apenas que, quando os factos omitidos venha a ser revelados ou adquiridos através da prova produzida em julgamento, o tribunal os tome em consideração na sentença, com respeito integral pelos princípios dispositivo e do contraditório.” – sublinhado nosso
Nestes termos, salvo o devido respeito, conclui-se que a interpretação defendida pela Ré no tocante ao nº 3 do artigo 5º do Código de Processo Civil não seria a melhor solução.
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A outra nota refere-se à própria diligência de aperfeiçoamento.
Ora bem, os Autores sempre vêm dizendo ao longo do processo que não tinham acesso aos extractos por não se encontrarem na sua posse, tendo ao mesmo tempo requerido a notificação da Ré para entregar ao Tribunal os respectivos documentos para efeitos de prova.
Uma vez que os Autores alegam não terem na sua posse os documentos donde constavam eventualmente os elementos solicitados pelo Tribunal a quo, não fazia sentido ordenar o aperfeiçoamento da petição inicial pedindo o suprimento da insuficiência na exposição da matéria de facto sem antes ter ordenado a entrega pela parte contrária dos respectivos documentos, sob pena de o convite formulado pelo Tribunal a quo mais não seja do que uma “missão impossível” para os Autores.
Em nossa opinião, não obstante os Autores terem requerido ao Tribunal que seja notificada a parte contrária para apresentar determinados documentos só para os efeitos do disposto no artigo 455º do Código de Processo Civil, ou seja, para efeitos de prova, mas sem embargos de melhor opinião, entendemos que o juiz deveria ter avançado mais um passo, mais precisamente, em vez de convidar logo os Autores para suprir a insuficiência na exposição da matéria de facto, deveria mandar primeiramente notificar a Ré para apresentar os documentos requeridos pelos Autores, e só depois com base nesses documentos é que será viável para os Autores proceder ao suprimento das insuficiências ou imprecisões verificadas na exposição da matéria de facto alegada na petição inicial.
Traduz-se aqui do chamado princípio da cooperação, previsto nos termos do artigo 8º do Código de Processo Civil.
Dispõe o nº 4 do artigo 8º que “sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Escreve Carlos Lopes do Rego4, no que se refere à cooperação do Tribunal com as partes, ela comporta, entre outras, “a consagração do poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remoção ou ultrapassagem de obstáculos que razoavelmente as impeçam de actuar eficazmente no processo, comprometendo o êxito da acção ou da defesa, e que não se possam imputar à parte por eles afectada”.
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Recurso do despacho de convite ao aperfeiçoamento
Uma vez julgado provido o recurso final interposto pelos Autores, temos agora que apreciar o recurso interlocutório interposto pela Ré, nos termos do artigo 628º, nº 2 do Código de Processo Civil.
Defende a Ré que depois de ordenada a sua citação e de ela ter contestado, o juiz não pode proferir despacho de aperfeiçoamento da petição inicial, considerando que o despacho de aperfeiçoamento previsto no nº 6 do artigo 427º do Código de Processo Civil apenas pode incidir sobre os articulados posteriores à petição inicial e não sobre esta.
Vejamos.
Dispõe o artigo 427º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1. Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de excepções dilatórias, de acordo com o disposto no nº 2 do artigo 6º;
b) Convidar as partes ao aperfeiçoamento dos articulados posteriores à petição inicial, nos termos dos números seguintes.
2. Quando os articulados não preencham os requisitos legais ou não venha acompanhados de documentos essenciais, o juiz convida as partes a corrigí-los ou a apresentar os documentos em falta, marcando prazo para o efeito.
3. Quando os articulados apresentem insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada, o juiz convida as partes a completá-los ou corrigí-los, marcando prazo para o efeito.
4. Se a parte corresponder ao convite a que se refere o número anterior, os factos objecto de aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
5. As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 3 e 4, devem conformar-se com os limites estabelecidos nos artigos 217º, 409º e 410º.
6. Não cabe recurso do despacho previsto na alínea b) do nº 1.”
Nas palavras do Professor Castro Mendes, quando a causa de pedir, embora inteligível, não é suficientemente concretizada como facto, deve ser usado o despacho de aperfeiçoamento.5
Igual entendimento foi perfilhado por José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, referindo que “o aperfeiçoamento é o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco.”6
Embora a alínea b) do nº 1 do artigo 427º se refira apenas ao aperfeiçoamento dos articulados posteriores à petição inicial, o nº 3 do mesmo artigo refere-se aos articulados sem exceptuar a petição, pelo que se deve entender ser possível o convite ao aperfeiçoamento deste articulado, não parecendo razão válida para a exclusão o facto de o juiz poder convidar a aperfeiçoar a petição no despacho liminar.7
E a razão em que fundamentou a tal viabilidade do convite ao aperfeiçoamento da petição inicial reside no facto de que “bem pode acontecer, por um lado, que a necessidade de correcção da petição só se apresente mais clara após a produção de todos os articulados; e, por outro lado, é sabido que o exame que o juiz efectua das posições das partes, quando se trata de elaborar o despacho de selecção da matéria de facto assente e controvertida, é muito mais profundo que o exame feito à petição inicial”.8
Além do mais, também não podemos deixar de assinalar que o poder do juiz, neste caso, é meramente discricionário, e não vinculativo, daí que, se a parte não acatar o convite ao aperfeiçoamento, a acção prossegue, assumindo a mesma o risco de que a decisão de mérito lhe seja desfavorável.
Nesta conformidade, entendemos que o Tribunal a quo pode convidar os Autores a completar ou concretizar a matéria de facto alegada na petição inicial, se assim entender.
Destarte, nega-se provimento ao recurso interlocutório.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pela Ré, e concede-se provimento ao recurso interposto pelos Autores B, C, D, E, F, G, H, I, J, K e L, revogando-se o despacho saneador-sentença, e determinando-se que se proceda à selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa em relação aos recorrentes, nos termos do artigo 430º, nº 1 do Código de Processo Civil, se nenhum outro motivo obste à sua apreciação.
Custas dos dois recursos pela Ré.
Registe e notifique.
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Macau, 22 de Janeiro de 2015
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
1 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 391
2 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 344
3 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol I, 2004, pág. 255 e 256
4 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, Vol I, 2004, pág. 268
5 João de Castro Mendes, in Direito Processual Civil II Vol, 1987, pág. 516 e 517
6 José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 354
7 Viriato Manuel Pinheiro de Lima, in Manual de Direito Processual Civil, CFJJ, 2005, pág. 339 e 340
8 Mesma obra citada, rodapé da pág. 12
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Processo 293/2014 Página 37