Processo nº 240/2014
Data do Acórdão: 11DEZ2014
Assuntos:
Causa prejudicial
Causa dependente
Suspensão da instância
Acção de despejo
Acção de usucapião
SUMÁRIO
1. Uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda.
2. A decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar a situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 240/2014
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
B, C e D – Sociedade Limitada, intentaram contra F uma acção especial de despejo, registada sob o nº CV1-12-0197-CPE e que corre os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, com fundamento na falta de pagamento de rendas, pedindo, inter alia, a resolução do contrato de arrendamento, o decretamento do despejo imediato e a condenação no pagamento das rendas vencidas e vincendas ao momento da restituição do imóvel.
Citada a Ré, suscitou a questão da existência de uma causa prejudicial e pediu que fosse ordenada a suspensão da instância, para além de ter deduzido a defesa por excepção e por impugnação.
Na réplica, os Autores opuseram à pretendida suspensão da instância e propugnaram a improcedência dos fundamentos da defesa.
À réplica treplicou a Ré.
Face da questão prejudicial suscitada pela Ré, a Exmª Juiz titular do processo, proferiu a fls. 854 a 856 dos autos, o seguinte despacho determinando a suspensão da instância:
Nos presentes autos de despejo, estão a discutir a relação da existência de contrato de arrendamento entre os AA. e a R, bem como por causa do facto de não pagamento das rendas do R., levando os AA. a pedir despejar à R..
Vem a R. contradizer, por um lado, não tem existência de contrato de arrendamento entre ela e os AA., pois nunca foi celebrado em qualquer momento qualquer contrato nem, por qualquer outra forma ou título, existiu qualquer relação jurídica de arrendamento entre a R e os AA. Pelo contrário, ela própria ser proprietário e tem intentado numa acção neste sentido. E pedindo a R. a suspensão da presente instância.
Quanto ao incidente de suspensão de instância, foi ouvido dos AA. e os AA. vêm expor a sua posição na Réplica, em síntese, por um lado, ao longo de tempo, a R. pagava aos AA. as rendas mensalmente, e os AA. na qualidade de proprietários e locadores, efectuavam muitas vezes para a HOTEL YYYY. as obras de reparação estrutural, de substituição de canos e de reparação de telhado, portanto, existe a relação de locação de facto entre os AA. e a R. Por outro lado, as questões discutidas nos CV3-12-0087-CAO não têm nada a ver com a validade do contrato de arrendamento nem a existência ou não da relação de locação, não se surge a relação prejudicial entre os dois processos. Pelo que opõe-se a suspensão de instância dos presentes autos.
Cumpre decidir:
Face aos factos alegados pelas partes, em síntese, como seguintes:
Os AA vêm intentar uma acção de despejo contra R, alegando eles são co-proprietários dos prédios descritos na C.R.P. sob n.ºXXXX, XXXX, XXXX, XXXX e XXXX do Livro B, e possuem 1/120 avos (lº A) e 1/60 avos (2ºA). Ainda, já na década anteriores, o pai do 1° A. e a avó materna do 2° A. geravam e davam de arrendamento os imóveis acima referido, em nome de todos os proprietários, tendo estabelecido a Associação "D", e em nome desta Associação, cobravam as rendas junto de todos os locatários dos referidos imóveis e dos imóveis ali perto. Todos os locatários (incluindo a R.) pagavam todos os meses as rendas aos 1° e 2° AA. e à Associação "D". Ora, tendo a R. deixado pagar as rendas, levando assim os AA. pedir o despejo contra a R.
Por seu turno, a R. alega-se ela própria ser proprietária do pretenso locado, e tinha intentada uma acção de usucapião corre termos no 3° Juízo sob n.º CV3-12-0087-CAO, contra 42 réus, na qual os aqui três AA. são aí, como 7º, 8° e 41°RR. e a R., pedindo aí, a aquisição do direito de propriedade por usucapião sobre 85.276% do domínio útil referente ao prédio onde se encontrado o seu estabelecimento HOTEL YYYY. Mais, citando a R a doutrina de que, "o pedido de despejo pressupõe um arrendamento válido, portanto este pedido perde a sua razão de ser, desde que o arrendamento seja anulado. A procedência da acção de anulação do arrendamento prejudica o conhecimento da acção de despejo."
*
Bom, ao analisar esta incidente, vamos apreciar se aquela acção de usucapião se
mostra prejudicial ao normal andamento da presente acção de despejo, motivo porque deve esta ser suspensa.
Do art.°223, n.ºl do CPCM, "O Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado."
Face ao referido, vejamos, se no caso sub judice, se verifica entre a acção de usucapião e a acção de despejo uma situação de prejudicialidade.
Sobre este tema se tem pronunciado a doutrina, procurando afinar os critérios que permitam concluir pela existência do mesmo1.
Assim, para o prof. José Alberto dos Reis - Comentário ao Código de Processo Civil, Vol 3º, pag. 206 - "Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda», precisando, depois, que «sempre que numa acção se ataca um acto ou facto jurídico que é pressuposto necessário de outra acção, aquela é prejudicial em relação a esta».
Noutro passo da mesma obra – pag. 269 - e afirmando concordar com o prof. Manuel de Andrade, refere que, para este, a «verdadeira prejudiciolidade e dependência só existirá quando na primeira causa se discuta, em via principal, uma questão que é essencial para a decisão da segunda e que não pode resolver-se nesta em via incidental, como teria de o ser, desde que a segunda causa não é reprodução, pura e simples, da primeira. Mas nada impede que se alargue a noção de prejudicialidade, de maneira a abranger outros casos. Assim pode considerar-se como prejudicial, em relação a outro em que se discute a título incidental uma dada questão, o processo em que a mesma questão é discutida a título principal», concluindo. depois, o prof. Alberto dos Reis que «na primeira há uma dependência necessária, na segunda, uma dependência meramente facultativa ou de pura conveniência».
Por seu lado, Jacinto Rodrigues Basto em Notas ao Código de Processo Civil, 2a edição, Vol 2, pág 42, ao precisar quando se deve entender que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra, entende que tal sucede «quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para decisão de outro pleito» dando como exemplo clássico, entre outros, de prejudicialidade de uma acção em relação a outra o da acção de preferência em relação à acção de despejo «quando a decisão a proferir naquela possa afectar o julgamento desta, de forma a fazer desaparecer o pressuposto essencial em que ela assenta».
*
No caso em apreço, os AA. alegam que, sendo eles os proprietários, exercendo sempre o poder de proprietário, do senhorio, desde a década dos seus antecedentes, tem existindo ao longo do tempo a relação da locação entre eles e a R.
Mas, a R. defende o contrário, que ela própria ser proprietária do pretenso locado e nunca existir nenhum contrato de arrendamento com os AA.
Ora, face as versões das partes, não é difícil de perceber, a questão nuclear é saber, se os AA. são efectivamente os proprietários e senhorios dos referidos prédios, só com este questão resolvida, podendo continuar discutir se os AA. têm ou não direito de despejar contra a R.. Ou seja, quando na primeira causa se discuta (quem é o proprietário? Se são os AA. ou a R.? Se a R. adquiriu o direito da propriedade através de usucapião?), cujo resultado é tão essencial para a decisão da segunda (que só o senhorio tem direito de despejar quando o locatário não pague as rendas.). Ou seja, quando na causa prejudicial (saberia quem é o proprietário do prédio e quem pode ser senhorio do prédio) ser uma questão cuja resolução possa modificar uma situação jurídica que tem de ser considerada para decisão de outro pleito (que se efectivamente os AA. têm direito de despejar porque a R. enquanto a arrendatária, não pague as rendas).
Pois, se por acaso a R. ter ganho da causa naqueles autos de usucapião, obstará e barrará liminarmente à eventualidade de ser considerada a R. como arrendatária, pois um proprietário, por definição, não se auto arrenda aquilo de que é dono).
Dados que as questões aí discutidas nos CV3-12-0087 -CAO têm directamente influência da existência do contrato de arrendamento, surge-se, evidentemente, a relação prejudicial entre os dois processos.
Assim, porquanto se entende ser a acção de usucapião que corre os seus termos no 3° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, sob o n° CV3-12-0087-CAO, prejudicial em relação à presente e nossa, ordena-se, nos termos do artº 223°, n° 1 do Código de Processo Civil, a suspensão da presente instância.
Notifique e D.N..
Inconformados, recorreram os Autores concluindo e pedindo que:
A. Não se verifica, entre os presentes autos de despejo e a acção judicial de usucapião intentada pela Recorrida, que corre termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base de Macau com o n.º de processo CV3-12-0087-CAO, a relação de prejudicialidade ou dependência relevante para os efeitos do n.º 1 do artigo 223.º do CPC, pelo que esta norma é violada pelo douto despacho recorrido, o qual deve, assim, ser revogado e substituído por outro que indefira a suspensão dos autos nos termos requeridos pela Recorrida e ordene o prosseguimento dos autos.
B. De facto, considerando que na acção de usucapião não é formulado nenhum pedido que possa afectar a eficácia e validade e eficácia do contrato de arrendamento, a presente causa não pode estar dependente daquela, pois que o fundamento desta é a existência de um contrato de arrendamento e não a propriedade dos imóveis dos autos. Para que a acção de usucapião pudesse ser uma causa prejudicial face aos presentes autos de despejo, teria que se discutir naquela uma questão com influência no próprio mérito da acção de despejo, o que não sucede no caso dos autos.
C. A presente acção de despejo mantém a sua utilidade, independentemente da pendência daquela acção de usucapião, porquanto nesta data a Recorrida não é, certamente, proprietária (do domínio útil) dos imóveis dos autos. Até que a acção de usucapião seja julgada procedente, hipótese que se equaciona por mera cautela de patrocínio, sem conceder, tudo se passa (e tem que passar) na ordem jurídica como sendo os Recorrentes comproprietários destes imóveis.
D. Caso a Recorrida seja condenada a entregar o locado aos Recorrentes, livre e desocupado de pessoas e bens, aquela acção de usucapião pode prosseguir e, caso seja julgada procedente, o que não se concede, então a Recorrida acabará por receber os imóveis, a título de proprietária (do respectivo domínio útil). A decisão final da presente acção de despejo não impedirá, portanto, que a acção de usucapião siga os seus termos e produza os seus efeitos úteis normais, pois os pressupostos e fundamentos das duas acções são distintos.
E. Ainda que se entendesse que existe uma relação de prejudicialidade entre as causas em apreço, o que não se concede e apenas se equaciona por mera cautela de patrocínio, a regra do n.º 2 do artigo 223.º do CPC não permite que os presentes autos sejam considerados dependentes da acção de usucapião, pelo que, salvo o respeito devido por opinião diversa, esta norma também é violada pelo douto despacho recorrido, o qual deve, assim, ser revogado e substituído por outro que indefira a suspensão dos autos nos termos requeridos pela Recorrida e ordene o prosseguimento dos autos.
F. A Recorrida intentou a aludida acção de usucapião já na pendência dos presentes autos, como o único propósito de obter a suspensão dos mesmos, bem sabendo que a decisão final dessa acção de usucapião não será proferida com brevidade, face à quantidade de Réus (superior a quarenta), a indisponibilidade de dados de identificação de alguns deles e a necessidade de habilitar outros entretanto falecidos.
G. Acresce que, a pretensão da Recorrida nessa acção de usucapião é manifestamente infundada e insere-se numa lamentável estratégia dilatória.
H. Está demonstrado documentalmente nos autos que, neste momento, a Recorrida é meramente arrendatária relapsa do n.º 67 da Rua da ......, não ocupando nenhum dos restantes imóveis dos autos e nunca tendo detido nenhum deles a qualquer título que não fosse um contrato de arrendamento.
I. Estão juntos aos autos documentos que demonstram que existe um contrato de arrendamento referente aos imóveis dos autos e que a Recorrida sempre o cumpriu até Maio de 2007, altura em que deixou de pagar as rendas devidas.
J. Está também provado documentalmente que, em 9 de Abril de 2007, a Recorrida recebeu uma carta de advogado, exigindo-lhe o pagamento de rendas referentes aos imóveis dos autos. A Recorrida acabou por pagar as rendas ali exigidas, as quais não são, assim, peticionadas nos presentes autos.
K. O Doc. n.º 1, ora junto nos termos do artigo 616.º do CPC, em face do teor do douto despacho recorrido, com o qual os ora Recorrentes não podiam contar, vem ainda demonstrar que a própria Recorrida, em 2007, se considerou arrendatária dos imóveis dos autos perante a Recorrente D - Sociedade Limitada.
L. Pelo exposto, e considerando o teor do artigo 1215.º do Código Civil, a Recorrida, como mera detentora que é, não pode adquirir para si, por usucapião, qualquer direito de propriedade sobre qualquer dos imóveis dos autos. A acção de usucapião foi intentada apenas na expectativa de que a citação dos respectivos Réus demore vários anos e retarde a decisão final dos presentes autos de despejo. A verdadeira intenção da Recorrida é continuar a exercer a empresa comercial no n.º 67 da Rua da ......, que não é seu, durante o máximo tempo possível, a título gratuito (sem pagar as rendas devidas). Segundo o Professor Alberto dos Reis, ''[...] se o juiz se convencer de que a causa prejudicial não tem possibilidades algumas de êxito e foi atirada para o tribunal unicamente para fazer suspender a instância na causa dependente, deve indeferir o requerimento em que se peça a suspensão." (ob. Cit. loc. cit.).
M. Ademais, é de notar que nos presentes autos já se encontra concluída a fase dos articulados; no entanto, aquela acção de usucapião encontra-se, mais de um ano depois de ter sido instaurada, ainda em fase de citação. A discrepância entre o ritmo do desenvolvimento processual das causas em análise também desaconselha a suspensão dos presentes autos, a qual traria, para os mesmos, mais desvantagens do que vantagens (cfr. 2.a parte do n.º 2 do artigo 223.° do CPC).
N. Salvo o devido respeito, andou maio Tribunal a quo quando conclui, no douto despacho ora em crise, que "[...] Ora, face as versões das partes, não é difícil de perceber, a questão nuclear é saber, se os AA. são efectivamente os proprietários e senhorios dos referidos prédios, só com este questão resolvida, podendo continuar discutir se os AA. têm ou não direito de despejar contra a R. [...]. ", porquanto desatendeu o disposto no artigo 7.° do Código de Registo Predial, o qual determina que: "O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. ".
O. Ao considerar que a propriedade dos imóveis dos autos é uma questão em aberto e que os presentes autos não devem prosseguir até que esteja definitivamente demonstrada essa propriedade, quando estão juntas aos autos as respectivas certidões do registo predial, a presunção constante do artigo 7.° do Código de Registo Predial é violada pelo douto despacho ora recorrido.
P. Por tudo o supra exposto, o douto despacho recorrido viola, salvo o respeito devido por opinião diversa, os números 1 e 2 do artigo 223.º do Código de Processo Civil e, bem assim, o artigo 7.° do Código de Registo Predial, bem como os princípios da economia e celeridade processuais, devendo ser revogado e substituído por outro que indefira a suspensão dos autos requerida pela Recorrida e ordene o prosseguimento dos autos.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogado o douto despacho de fls. 854 a 856 ora recorrido, por violação do n.º 1 do artigo 223.° do CPC ou, caso assim não se entenda, do n.º 2 do mesmo preceito e, ainda, do artigo 7.° do Código de Registo Predial, e substituído por outro que indefira a suspensão dos presentes autos, requerida pela Recorrida, alegando existência de uma causa prejudicial, prosseguindo os autos os ulteriores termos, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
Ao recurso respondeu a Ré pugnando pela improcedência do recurso.
A Exmª Juiz titular sustentou o despacho proferido pela Colega autora do mesmo despacho.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
São as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Do nexo da prejudicialidade;
2. Da junção dos documentos com a motivação de recurso;
3. Dos intuitos meramente dilatórios; e
4. Da discrepância entre os ritmos do desenvolvimento das causas.
De acordo com elementos emergentes dos autos, é por nós tida assente a seguinte factualidade com relevância à boa decisão do presente recurso, para além da matéria já exposta supra na parte do relatório:
* Os autores intentaram a presente acção de despejo mediante a petição inicial que deu entrada na secretária do TJB em 28SET2012;
* A Ré intentou uma acção declarativa constitutiva com processo comum ordinário mediante a petição inicial que deu entrada na secretária do TJB em 05NOV2012, contra, entre outros, os Autores da presente acção de despejo;
* Acção essa que foi autuada e registada sob o nº CV3-12-0087-CAO, que corre os seus termos no 3º Juízo Cível do TJB;
* Nessa acção declarativa, foi invocada como fundamento da acção a posse por parte da Autora, que alegadamente tem durado por mais de 21 anos, sobre uma certa quota-parte, conforme melhor especificada na certidão que ora se junta a fls. 187 e s.s. dos presentes autos, dos imóveis nos prédios sitos na Rua da ......, nºs 65, 65A e 67 e formulado o pedido da declaração da aquisição pela Autora, por usucapião, do direito de propriedade sobre a mesma quota-parte desses prédios; e
* A presente acção de despejo tem por objecto os prédios urbanos sitos na Rua da ......, nºs 65 a 67;
Inteirados dos elementos fácticos, vejamos.
1. Do nexo da prejudicialidade
O CPC prevê no seu artº 220º várias hipóteses em que a instância se suspende.
Dentre as tais hipóteses, encontramos a suspensão por determinação do Tribunal – artº 220º/1-d) do CPC.
Por sua vez, o artº 223º concretiza mais os pressupostos, positivos e negativos, e a forma como se determina a suspensão pelo Tribunal, rezando que:
1. O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as suas vantagens.
3. Quando a suspensão não tenha por fundamento a pendência de causa prejudicial, fixa-se no despacho o prazo durante o qual estará suspensa a instância.
4. As partes podem acordar na suspensão da instância por prazo não superior a 6 meses.
Tal como vimos no despacho recorrido, o fundamento que levou o Tribunal a quo a determinar a suspensão da instância é o facto de a acção de usucapião nº CV3-12-0087-CAO, proposta pela ora Ré contra os ora Autores e outros, ser prejudicial à presente acção de despejo.
Ou seja, para o Tribunal a quo, a presente acção, onde é discutida a questão de saber se existe uma relação de arrendamento entre os Autores e a Ré, e em caso afirmativo, se se verifica a falta de pagamento de rendas por parte da ora Ré, é considerada pelo Tribunal a quo como causa dependente daquela acção de usucapião que, na óptica do Tribunal a quo, tem por objectivo solucionar uma questão de cuja solução depende a decisão da presente acção de despejo.
A propósito da causa prejudicial, podemos citar aqui ensinamentos pertinentes de alguns doutrinadores.
Para Alberto dos Réis, uma causa é prejudicial a outra quando a decisão da primeira pode destruir o fundamento ou a razão de ser da segunda – in Comentário ao CPC, III, pág. 268.
Rodrigues Basto ensina que a decisão de uma causa depende do julgamento de outra quando na causa prejudicial esteja a apreciar-se uma questão cuja resolução possa modificar a situação jurídica que tem de ser considerada para a decisão de outro pleito – in Notas ao Código de Processo Civil, II, pág. 43.
Na óptica do Tribunal a quo, a presente acção de despejo é uma acção dependente e a acção de usucapião uma acção prejudicial.
Todavia, conforme iremos demonstrar infra, não é de manter esse entendimento.
Senão vejamos.
In casu, estamos perante uma acção de despejo e uma acção de usucapião.
A propósito da noção da usucapião, o artº 1212º do CC reza que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.”.
Assim, para a procedência de uma acção de usucapião, é preciso que o Autor alegue e prove o exercício por ele da posse sobre o bem por um determinado lapso de tempo.
Por sua vez, na acção de despejo, que visa ao desalojamento forçado dos prédios que ocupam os arrendatários, ao Autor cabe demonstrar, antes de mais, a existência de um contrato de arrendamento.
E além disso, a lei elenca uma série das situações que podem ser invocadas pelo senhorio para, por via judicial, obter a declaração da resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo.
Nos termos previstos no artº 1034º/-a) do CC, o senhorio pode resolver o contrato se o arrendatário não pagar a renda no tempo e lugar próprios nem fizer depósito liberatório.
In casu, decorre da leitura dos factos alegados na petição inicial da presente acção de despejo, verificamos que é justamente com fundamento na falta de pagamento de rendas por parte da Ré, enquanto arrendatária, que os Autores pretendem ver declarada a resolução do contrato de arrendamento, alegadamente celebrado entre eles e a Ré, e ser ordenado o desalojamento da Ré.
E na acção de usucapião, observamos que a Autora, Ré da presente acção, faz apoiar a sua pretensão de adquirir a propriedade dos bens na invocada posse, por ela exercida ao longo do período de tempo que cronológica e parcialmente coincide com o tempo em que alegadamente vigorava a relação de arrendamento invocada na presente acção de despejo, sobre os bens imóveis em causa, e com fundamento na invocada posse que tem exercido, pede ao Tribunal que a declare como proprietária de uma determinada quota-parte da propriedade dos mesmos imóveis por aquisição por usucapião.
Como se sabe, no nosso sistema, a posse se distingue da mera detenção, que é o exercício de poderes de facto sem animus possidendi, isto é, agir sobre o bem com simples animus detinendi ou, sem intenção de agir como beneficiário de um direito real sobre o bem.
É o que sucede com o arrendatário de um imóvel, que não pode ser considerado como possuidor por não ter animus possidendi, quanto muito é um mero detentor.
Na esteira desse entendimento e tendo em conta que no caso sub judice, a Ré, configurada pelos Autores como arrendatária, é Autora naqueloutra acção de usucapião e nessa acção os aqui Autores (da presente acção de despejo) são Co-Réus e que ambas as acções incidem sobre os mesmos bens, podemos concluir que só se poderá discutir a existência da posse por parte da ora Ré dos imóveis em causa se a acção de despejo vier a ser julgada improcedente por inverificação daquele pressuposto da acção de despejo, consistente na existência de um contrato de arrendamento entre os aqui Autores e a aqui Ré.
Pois havendo entre eles a relação de arrendamento, a actuação da ora Ré sobre os bens, na veste de arrendatária, nunca pode ser considerada posse sobre os bens, à excepção da hipótese de inversão do título da posse a que se refere o artº 1190º do CC.
E portanto a procedência da acção de despejo conduzirá necessariamente à improcedência da acção de usucapião por inexistência da posse.
É assim mesmo na referida hipótese de aquisição da posse por usurpação consistente na inversão do título da posse, a que se refere o artº 1190º do CC, ou seja, por oposição da Ré, enquanto mera detentora do direito, contra os Autores, para passar a agir como se fosse verdadeira proprietária.
Pois nesta hipótese, a eventual procedência da acção de despejo destruirá também necessariamente os fundamentos da acção de usucapião, dado que no caso da procedência da acção de despejo, a falta de pagamento de rendas é necessariamente tida pelo Tribunal como incumprimento do contrato de arrendamento para fundamentar a resolução do contrato de arrendamento e a condenação da Ré na desocupação e na restituição dos imóveis, o que afasta logo a possibilidade de a falta do pagamento de ser acolhida na acção de usucapião pelo Tribunal como actos pelos quais a Ré, enquanto detentora, converteu a sua detenção em posse, passando a agir como se fosse uma verdadeira proprietária dos imóveis, com vista à aquisição da propriedade por usucapião.
Dai decorre necessariamente que a presente acção de despejo, em vez de ser causa dependente, tal como assim entende o Tribunal a quo, deve ser qualificada causa prejudicial à acção de usucapião cuja solução, como vimos supra, depende efectivamente da solução a ser dada naquela acção de despejo.
Uma vez que, aplicando ao caso sub judice os doutos ensinamentos que citámos supra, é de concluir que in casu a decisão na presente acção de despejo, que é para nós causa prejudicial, pode destruir o fundamento ou razão de ser da acção de usucapião, que na nossa óptica é causa dependente.
Mais concretamente falando, das duas uma, ou a eventual procedência da acção de despejo, apoiada na existência de um contrato de arrendamento, conduzirá à improcedência da acção de usucapião, ou a eventual improcedência da acção de despejo, por não comprovada a existência de um contrato de arrendamento, tornará viável a acção de usucapião, por não ficar logo afastada a situação jurídica (a alegada posse), fundamento da acção de usucapião.
O que nos leva a concluir seguramente que, existindo embora o nexo de prejudicialidade entre a presente acção de despejo e a acção de usucapião, a acção de despejo não é uma acção dependente, mas sim uma acção prejudicial à acção de usucapião.
Sendo acção prejudicial que é, a presente a acção de despejo não é susceptível de ser suspensa.
Por isso deve ser revogaado o despacho recorrido e determinar o prosseguimento dos autos da presente acção de despejo.
O que prejudica o conhecimento das restantes questões levantadas pelos Autores recorrentes.
Sem mais delongas, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar procedente o recurso interposto pelos Autores, revogando o despacho recorrido e determinando o prosseguimento dos autos da presente acção de despejo, caso nenhum outro motivo o impeça.
Custas pela Ré.
Notifique.
RAEM, 11DEZ2014
Relator Lai Kin Hong
Primeiro Juiz-Adjunto João A. G. Gil de Oliveira
Segundo Juiz-Adjunto Ho Wai Neng
1 As doutrinas aqui citadas são vindo do Acórdão do TSI, sob Processo n.º531/2009, de 08.10.1999
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Ac. 240/2014-1