Processo n.º 591/2014
(Reclamação para a Conferência)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 4/Dezembro/2014
ASSUNTOS:
- Efeitos do recurso da decisão proferida em sede de oposição a providência cautelar
SUMÁRIO :
Se num primeiro momento a requerida foi proibida de vender um dado prédio em sede de providência cautelar e se, depois, em sede de oposição, foi revogada a primeira decisão, o efeito do recurso interposto desta decisão deve subir nos próprios autos e com efeito suspensivo, devendo manter-se a proibição enquanto o recurso não vier a ser julgado, sob pena de se frustrar o efeito útil do recurso e a natureza cautelar do procedimento, correspondendo tal revogação a um não decretamento da providência e já não a um levantamento da mesma.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 591/2014
(Reclamação para a Conferência)
Data : 4/Dezembro/2014
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
1. A SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO B, S.A., recorrida nos autos à margem identificados, em que é recorrente C (C), notificada do despacho de fls. 598v e ss., vem, ao abrigo do artigo 620.°, ex vi o artigo 1203.°, ambos do CPC, do mesmo Reclamar para a Conferência.
2. É do seguinte teor o despacho reclamado:
“O recurso é o próprio.
Foi-lhe atribuído o efeito correcto, tal como o modo de subir.
(… foi suscitada uma questão pela Sociedade B, SARL, que pretende que o efeito atribuído ao recurso na decisão de oposição à providência cautelar seja o efeito meramente devolutivo.
Esta questão foi apreciada pelo Mm.º Juiz “a quo” no seu despacho de fls. 342 e segs. e somos a sufragar esse entendimento, no sentido de que o efeito deve ser o suspensivo, não sendo caso de aplicação do disposto no artigo 615.º, e) do C. Proc. Civil.
Na verdade, não estamos perante uma situação de levantamento da providência cautelar que, no primeiro momento foi decretada e, depois, face à oposição, veio a ser revogada.
É dessa decisão que vem interposto recurso, recurso este que veio paralisar essa segunda decisão.
O que é que isto significa? Que se mantém erecta a primeira decisão. Esta proibiu a venda; posteriormente esta decisão é revogada, mas como não transitou, face ao recurso, isso significa que aquela proibição se mantém.
Só assim as coisas fazem sentido. O assunto ainda não está encerrado, isto é o procedimento cautelar ainda mantém o seu curso.
O levantamento da providência só ocorreu nas situações previstas no art.º 334.º do C. Proc. Civil, devendo ser essencialmente por esses casos que o art.º 605.º, e) do C.P. Civil é perspectivado.
É certo que a lei não prevê um regime próprio para os casos de revogação de providência, após dedução e sua oposição. Mas não custa integrar essa situação no regime do estabelecido ma al. a) do art.º 605.º daquele diploma, estando-se perante um caso muito próximo daquele que, no fundo, se reconduziu a um recurso de concessão de providência.
Nesta conformidade, temos para nós que o recurso deve subir imediatamente, nos próprios autos e, consequentemente, face ao disposto no art,º 607.º do C.P. Civil, com efeito suspensivo.
A questão que se coloca de o requerente ficar garantido com o registo não condicionou o regime dos recursos.
Temos também presente que esta questão foi colocada por via do recurso. Só que se trata de uma questão que deve ser tratada em sede de recebimento do 1.º recurso (o relativo à decisão proferida em sede de oposição), dele dependendo os efeitos desse recurso, que é o que está em causa. Se assim é, não deve ganhar autonomia, enquanto recurso autónomo a ser apreciado, aquando do despacho liminar, pelo Juiz Relator, como está a acontecer neste momento.
Por estas razões se afirma que foi atribuído ao recurso o efeito correcto, tal como o modo de subida.
Nada mais parece obstar ao conhecimento do recurso interposto da decisão de fls. 304 e segs..
Aos vistos.
3. A reclamante sustenta a sua reclamação com base na seguinte argumentação:
“Por sentença de fls. 304 a 324 proferida nos autos de procedimento cautelar que, sob o n.º CV2-14-0026-CAO-A, correram termos no 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi considerada procedente a oposição apresentada pela Recorrida no âmbito do procedimento cautelar comum e, consequentemente, revogada a providência cautelar anteriormente decretada sem a sua audiência prévia.
Dessa sentença interpôs recurso o Recorrente, tendo indicado a sua espécie como ordinário, com subida imediata e nos próprios autos, nos termos da alínea a) do artigo 605.° do CPC e com efeito suspensivo, nos termos do n.º 1 do artigo 607.º, também do CPC.
O requerimento de interposição de recurso do Recorrente, de fls. 330 e 331, foi admitido, por despacho de fls. 342 a 344, no qual se fixou efeito suspensivo ao mesmo, não por via da alínea a) do artigo 605.º do CPC, como por aquele indicado, mas por via da alínea d) desse mesmo preceito.
A Recorrida impugnou, nas suas contra-alegações, o despacho de fls. 342 a 344, quanto ao efeito suspensivo fixado ao recurso, pugnando pela aplicação, não da alínea a), como defendeu o Recorrente, ou alínea d) como decidiu o Tribunal a quo, mas sim da alínea e) do artigo 605.° do CPC, devendo, em consequência, ter sido fixado efeito meramente devolutivo ao recurso da sentença de fls. 304 a 324.
Por despacho de fls. 598v e ss. veio o Exmo. Juiz Relator, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 619.° do CPC, fixar efeito suspensivo ao recurso interposto, nos termos, não da alínea d) ou e), mas sim da alínea a) do artigo 605.º daquele Código.
A decisão reclamada entende que "não estamos perante uma situação de levantamento da providência cautelar que, no primeiro momento foi decretada e, depois, face à oposição, veio a ser revogada". Daí que exclua a possibilidade da aplicação da alínea e) do artigo 605.° do CPC, o qual entende estar apenas perspectivado para os casos de caducidade da providência cautelar, nos termos do artigo 334.° do CPC.
No entanto, entende a Recorrida que, salvo o devido respeito por opinião diversa, andou mal a decisão reclamada ao afastar a aplicação da alínea e) do artigo 605.º do CPC, na medida em que uma decisão que revoga uma anterior providência cautelar decretada mais não é do que uma decisão que ordena o levantamento da providência cautelar, sendo, nos termos da alínea e) do artigo 605.º do CPC conjugado com o artigo 607.° do CPC, de atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso interposto de decisão que ordene o levantamento de uma providência.
Com efeito, uma decisão judicial que determina a revogação de uma anterior decisão de decretamento de providência cautelar (sem audiência prévia do requerido) levanta os efeitos do decretamento da providência em causa.
O legislador quis, com o artigo 605.º do CPC, proteger os interesses que, sumariamente, foram protegidos pelo Tribunal de primeira instância, mantendo os efeitos da decisão proferida durante a pendência do recurso. Ou seja, se o Tribunal de primeira instância decidiu ordenar a providência, tal ordem manter-se-á até trânsito em julgado. Se o Tribunal a quo decidiu levantar (ou revogar) a providência, tal ordem mantém-se até ao trânsito em julgado. Os efeitos de tal decisão devem fazer-se sentir de imediato, até que haja ordem em contrário.
Se, ainda que a título provisório e sumário, houve uma decisão judicial que entendeu que o Requerente de uma providência cautelar não reúne os requisitos para que a mesma seja decretada (seja por indeferimento liminar ou por recusa da concessão, como melhor se dirá abaixo, ou por revogação de providência anteriormente decretada), não há motivos para se proteger quem, ainda que numa perspectiva sumária, não aparenta titular nenhum direito que mereça ser protegido.
Quanto ao efeito meramente devolutivo do recurso de uma decisão que revogue uma providência cautelar anteriormente decretada, leia-se, a título de direito comparado, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8 de Julho de 2004, proferido no processo n.º 0432206: "E neste aspecto estamos de acordo com o entendimento agora defendido quanto ao efeito do recurso a atribuir relativamente à decisão de revogação de providência anteriormente decretada. 3 - De facto, o que se dispõe no n.º 2 do art. 388° do CPC ao determinar que a decisão revogatória constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida parece implicar uma certa autonomização dessa decisão, pelo menos até ao seu trânsito em julgado. Na verdade cabendo recurso da decisão que no âmbito do incidente de oposição, procede à reapreciação dos fundamentos da providência cautelar, afigura-se ajustado aplicar o regime do recurso previsto no n.º 2 do art. 738° do CPC [equivalente à alínea e) do artigo 605.º do CPC de Macau] e não o do n.º l - a) do mesmo artigo. Esta disposição é de facto a que melhor se harmoniza com o que consta do citado art. 388º n.º 2 do mesmo CPC, pois que estamos a falar de levantamento da providência e não de decisão de indeferimento liminar como pressupõe o n.º l - a) do art. 738º. Daí que o efeito devolutivo fixado ao recurso no despacho do relator, é o que se apresenta conforme aos aludidos dispositivos legais e esta interpretação, como defende Abrantes Geraldes na obra citada a pág. 266, não deixa de possibilitar em cada caso concreto a eventual atribuição de efeito suspensivo, em face das situações que são previstas no n.º 2 do art. 740º do CPC".
Também José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 3.°, 2.ª edição, pág. 47., consideram que o efeito adequado é o meramente devolutivo, "... sem prejuízo de, quando a decisão, revogando, total ou parcialmente, a inicial, ordenar o levantamento da providência ou a redução do seu objecto, o recorrente, que a tenha requerido, poder obter a atribuição de efeito suspensivo, alegando e provando o prejuízo considerável que o levantamento lhe causa e prestando caução (art. 692-4) [equivalente, com as devidas adaptações, ao n.º 3 do artigo 607.° do CPC de Macau]."
Nesse mesmo sentido vai o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21 de Maio de 2013, proferido no processo n.º 1242/12.1TVLSB-A.1.1-7: "É objecto deste recurso a decisão que, depois de decretado o procedimento cautelar sem audição da parte contrária, apreciou a pretensão da requerente, agora dispondo já da posição da requerida que, depois de notificada daquela decisão inicial, veio, deduzir oposição art. 388°, nºs 1, alínea b) e 2 do CPC (diploma a que respeitam as normas doravante referidas sem menção de diferente proveniência). Deste modo, não está em causa uma decisão que haja indeferido liminarmente ou não tenha ordenado a providência cautelar - espécies a que alude o art. 692°, n.º 3, al. d) [equivalente, com as devidas adaptações, à alínea a) do artigo 605.° do CPC de Macau] -, mas antes decisão que determinou a revogação da providência ordenada antes do estabelecimento do contraditório. Não é, pois, aplicável ao caso o regime do art. 692º, n.º 3, alínea d) como sustenta Abrantes Geraldes Em Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 203 -, pelo que o efeito suspensivo só poderia ter lugar ao abrigo do disposto no n.º 4 do mesmo preceito. Também Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil, anotado, volume 2º, 2ª edição, pág. 47. consideram que o efeito adequado é o meramente devolutivo, «sem prejuízo de, quando a decisão, revogando, total ou parcialmente, a inicial, ordenar o levantamento da providência ou a redução do seu objecto, o recorrente, que a tenha requerido, poder obter a atribuição de efeito suspensivo, alegando e provando o prejuízo considerável que o levantamento lhe causa e prestando caução (art. 692-4)»".
Ainda que se entendesse que seria aplicável a alínea a) do artigo 605.º do CPC, como entendeu a decisão reclamada, por ser "um caso muito próximo daquele que, no fundo, se reconduz a uma recusa da concessão da providência", sempre se diria que os efeitos práticos do efeito suspensivo desse recurso em nada afectariam a decisão de revogação, nem tão pouco repristinariam a proibição da venda ordenada na "primeira decisão", como defende o aresto reclamado.
Nos termos do n.º 2 artigo 333 do CPC, a decisão que mantenha, reduza ou revogue providência cautelar anteriormente decretada constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida.
Isto significa que as duas decisões (a proferida antes da audiência e a proferida depois da audiência da Requerida) passam a formar uma única decisão - neste caso decisão equiparável ao indeferimento da providência cautelar.
Neste sentido, discorda-se da posição defendida na decisão reclamada, quando ali se afirma que: "É dessa decisão [de revogação de decisão de decretamento da providência sem audiência prévia] que vem interposto recurso, recurso esse que vai paralisar essa segunda decisão. O que é que isso significa? Que se mantém erecta a primeira decisão. Esta proíbe a venda; posteriormente essa decisão é revogada, mas como não transita, face ao recurso, isso significa que aquela proibição se mantém".
Ao autonomizar a "primeira decisão" da "segunda decisão" entende a Recorrida que a decisão reclamada viola o n.º 2 do artigo 333.º do CPC, pois que ambas as decisões passam, por via desse preceito, a constituir uma só - no caso, uma única de revogação, ou levantamento, da providência cautelar - não podendo ser vistas como duas decisões independentes.
Neste sentido, ainda que a alínea a) do artigo 605.º consagre a regra do efeito suspensivo do recurso de decisões que indefiram liminarmente ou recusem a concessão de providência cautelar, a verdade é que um recurso com tal efeito mantém, na prática, os efeitos da não concessão da providência cautelar. Com efeito, a situação de facto, independentemente do efeito suspensivo, mantém-se inalterada, ou seja, durante a pendência do recurso, a providência cautelar mantém-se indeferida, como se não houvesse recurso pendente.
De outro modo, estaria o Tribunal de Segunda Instância, na prática, por via do efeito atribuído ao recurso, a decretar providência cautelar proferida sem o contraditório, decisão essa que, depois de ouvida a parte contrária, foi entretanto integrada e faz parte de uma decisão final de não decretamento da providência - sendo esta a única decisão ora em causa.
Como bem salienta LEBRE DE FREITAS "a apelação só não tem efeito meramente devolutivo (…) quando indefira um incidente processado por apenso ou uma providência cautelar ou não ordene esta (art. 692-3 [equivalente à alínea a) do artigo 605.° do CPC de Macau], embora nestes últimos casos não se vislumbre que efeitos se suspendem, uma vez que a decisão de que se recorre é negativa": Sobre a Reforma dos Recursos, disponível no sítio electrónico do Tribunal da Relação do Porto, Portugal http://www.trp.pt/ficheiros/estudos/lebrefreitas reformarecursos.pdf.
[sublinhado nosso]
Face ao exposto, entende a Recorrida que andou mal a decisão reclamada ao não aplicar a alínea e) do artigo 605.° do CPC ao presente recurso, motivo pelo qual deverá ser revogada e substituída por outra que corrija o efeito atribuído ao presente recurso, passando o mesmo a ter efeito meramente devolutivo ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 605.° e 607.°, ambos do CPC.
Ainda que assim não se entenda, e se defenda a aplicação da alínea a) daquele preceito, então sempre se dirá que andou mal a decisão reclamada ao autonomizar a "primeira decisão" da "segunda decisão", repristinando aquela, em violação do n.º 2 do artigo 333.º do CPC.
Assim, ainda que se defenda a aplicação da alínea a) do artigo 605.° do CPC, então sempre terá que a decisão recorrida ser vista como uma só, no caso, de indeferimento da providência cautelar, cujo recurso tem efeito suspensivo, embora sem que isso se traduza na suspensão de quaisquer efeitos, na medida em que a decisão unitária de que o Recorrente interpôs recurso é uma decisão de carácter negativo.
Neste sentido, a título subsidiário, deverá a decisão reclamada ser substituída por outra, na qual, não obstante com efeito suspensivo nos termos da citada alínea a), não se mantenha, assim, a proibição de venda inicialmente determinada com base apenas na versão dos factos apresentados pelo Recorrente, sem audiência da parte contrária, por tal entendimento corresponder à violação do n.º 2 do artigo 333.º do CPC.
Por último, e nos termos do n.º 2 do artigo 620.º do CPC, mais se requer que a presente Reclamação seja apreciada imediatamente, dada a natureza da questão suscitada, pois que se não for apreciada de imediato, a mesma perde todo o seu efeito útil.
Muito respeitosamente,
Espera deferimento.”
4. C (C), recorrente nos autos em epígrafe e neles mais bem identificado, notificado da reclamação apresentada pela Sociedade de Investimento mobiliário B, SA, responde:
“1. A Sociedade de Investimento Imobiliário B, SA, vem reclamar do douto despacho do Mm.º Juiz Relator, alegando, em suma, que “(…) uma decisão que revoga uma anterior providência cautelar decretada mais não é do que uma decisão que ordena o levantamento da providência cautelar, sendo, nos termos da alínea e) do artigo 605º conjugado com o artigo 607º, de atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso interposto de decisão que ordene o levantamento de uma providência. (...)".
2. Salvo o devido respeito por opinião contrária, a Reclamante insiste numa premissa incorrecta, segundo a qual uma decisão que revogue uma anterior providência cautelar equivale a uma decisão que ordena o levantamento da providência cautelar.
3. Sobre esta questão, e em termos que se reputam de irrepreensíveis e aos quais se aderem na totalidade, já se pronunciou o Mm.º Juiz Relator.
4. Não havendo dúvidas que a lei reservou o uso da expressão "levantamento da providêncía" para as situações de extinção e caducidade da providência cautelar, conforme estabelecido no artigo 334.º do Código de Processo Civil, situação essa que é distinta da descrita no artigo 333.º, n.º 2, do mesmo Código, para o qual a lei reservou o sermo "revogação" da providência cautelar.
5. Perante esta evidência, a Reclamante limita-se a justificar o seu entendimento com recurso a jogos de palavras, afirmando que "(…) uma decisão judicial que determina a revogação de uma anterior decisão de decretamento de providência cautelar (sem audiência prévia do requerido) levanta os efeitos do decretamento da providência em causa. (…)", ou que "(...) uma decisão que revoga uma anterior providência cautelar mais não é do que uma decisão que ordena o levantamento da providência cautelar (…)".
6. Ora, segundo as regras de hermenêutica jurídica estabelecidas no artigo 8.º do Código Civil, não pode o intérprete deixar de distinguir realidades diferentes quando o legislador claramente as distinguiu.
7. Assim sendo, é falso que o despacho que ordene o "levantamento da providência" equivalha ao despacho que determine a "revogação da providência cautelar", previsto no artigo 333.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
8. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no âmbito do processo n.º 692/07-2, no qual se afirmou que: "(…) Tendo para nós, porém, e com Amâncio Ferreira, (2) que o normativo do art. 738º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se reporta apenas às situações contempladas no art. 389º, do mesmo Código, a saber, os casos em que a medida cautelar caduca ou é julgado extinto o procedimento cautelar, e que, na letra da lei implicam o levantamento da providência. Enquanto o art. 388º, n.º 2, do Código de Processo Civil, se reporta à decisão de "revogação da providência", que, recorda-se, “constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida" (Nota: o artigo 738.º, n.º 2 , do Código de Processo Civil Português equivale ao artigo 605.º, alínea e), do CPC de Macau, e os artigos 389.º e 388.º, n.º 2, do Código Português equivalem, respectivamente, aos artigos 334.º e 333.º, n.º 2, do CPC de Macau).
9. Sendo descabido sujeitar a suspensão da decisão ao disposto no n.º 2 do artigo 607.º do CPC, por razões óbvias, já que a própria natureza da providência cautelar pressupõe um prejuízo irreparável para o respectivo Requerente se a mesma não vier a ser decretada (na sentença recorrida, aliás, é dito que a Requerida "(...) admite que ela própria pretende vender a , terceiros atracção autónoma em questão (…)", facto dado como indiciariamente provado sob o n.º 31).
10. Sobretudo nos casos em que, antes do decretamento da providência, não há lugar ao contraditório do Requerido por se entender que a audiência colocaria em "risco sério" a eficácia ou o fim da providência requerida!
11. Pelo que se conclui pela aplicação da alínea a) do artigo 605.º ao presente recurso, tendo por isso o devido efeito suspensivo, tal como fora requerido pelo Recorrente e foi doutamente decidido pelo Mm.º Juiz Relator.
12. Subsidiariamente, vem ainda a Reclamante defender que, não obstante a eventual aplicabilidade da alínea a) do artigo 605.º do CPC ao presente recurso, não haveria que suspender quaisquer efeitos porquanto "(…) terá que a decisão recorrida ser vista como uma só, no caso de indeferimento da providência cautelar, cujo recurso tem efeito suspensivo, embora sem que isso se traduza na suspensão de quaisquer efeitos, na medida em que a decisão unitária de que o Recorrente interpôs recurso é uma decisão de carácter negativo. (…)"
13. Afirmando ainda que a decisão reclamada, ao autonomizar para efeitos de recurso a “primeira decisão” da "segunda decisão", violou o disposto no n.º 2 do artigo 333.º do CPC.
14. Só que a leitura que a Reclamante faz da norma do artigo 333.º, n.º 2, do CPC, omite um trecho essencial, precisamente onde se diz que "(…) o juiz decide da manutenção, redução ou revogação da providência anteriormente decretada, cabendo recurso desta decisão (...)" [cfr. artigo 333º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
15. Refira-se que a expressão "desta decisão" implica um certo grau de autonomia, para efeitos de recurso, do último despacho, não obstante o facto da decisão de revogação da providência cautelar decretada constituir complemento e parte integrante da decisão inicialmente proferida.
16. Daí que o Mm.º Juiz Relator tenha afirmado, no seu douto despacho, que "(...) É dessa decisão que vem interposto recurso, recurso esse que vai paralisar essa segunda decisão. O que é que isso significa? Que se mantém erecta a primeira decisão. Esta proíbe a venda; posteriormente essa decisão é revogada, mas como não transita, face ao recurso, isso significa que aquela proibição se mantém. (…)".
17. Ressalvado o devido respeito por entendimento diferente, seria um contra-senso que a lei viesse a determinar o efeito suspensivo de uma decisão, de acordo com a alínea a) do artigo 605º do CPC, "(…) sem que isso se traduza na suspensão de quaisquer efeitos (…)”!
18. Seria presumir que o legislador não consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, criando uma norma legal sem qualquer efeito prático!
19. Esquecendo ainda a Reclamante que, na verdade, a decisão tem um conteúdo positivo, que se prende com a sua execução e que, por acaso, até foi referido na própria sentença do Mm.º Tribunal a quo (“(…) após o trânsito, oficie à Direcção dos Assuntos de justiça da RAEM solicitando a comunicação aos notários públicos e privados que cessou a determinação anteriormente decretada de se absterem de intervir em quaisquer contratos que tenham por objecto a fracção “YY” do prédio urbano sito em Macau, no Fecho da Baía da ......, Zona ..., Lote ..., descrito na CR Predial sob o n.º XXXXX, a fls. ... do Livro B-8K. (…)”).
20. Assim, como bem decidiu o Mm.º Juiz Relator, considerando a referida autonomia, para efeitos de recurso, daquela decisão revogatória, a que acresce a ausência de norma legal que regule, directamente, o regime de subida dos recursos interpostos das decisões que revoguem as providências cautelares, anteriormente decretadas, terá de se aplicar o regime estabelecido na alínea a) do artigo 605º do CPC, devendo, por isso, o recurso daquela decisão (isto é. da que vem prevista no artigo 333.º, n.º 2, do CPC) subir imediatamente e nos próprios autos do procedimento cautelar [cfr., no mesmo sentido, o citado Acórdão da Relação de Lisboa).
21. Pelo exposto, bem andou a decisão reclamada ao considerar que foi atribuído ao recurso o efeito correcto, tal como o modo de subida.
Nestes termos e no mais de Direito, deve a Reclamação apresentada ser indeferida na sua totalidade.”
5. Cumpre decidir.
5.1. Temos em confronto duas posições bem documentadas em cada uma das exposições avançadas pelas partes interessadas, tal como acima se documenta.
Basicamente, de um lado, a posição da requerida B, que pretende, por via da procedência da oposição à providência cautelar, num primeiro momento decretada, o seu levantamento, ou melhor, a sua não efectivação, ou melhor ainda que não se concretize a proibição de venda desde já.
Por outro lado, a posição do recorrente e requerente, que, tendo tido ganho de causa, num primeiro momento, tendo visto decretada a proibição de venda do imóvel em causa, em face da reversão decisória ocorrida na oposição à providência, nos termos do artigo 333º, n,º 1, b) do Código de Processo Civil, viu denegada a sua pretensão, visando, por via do recurso, por si interposto, manter a actualidade cautelar do procedimento, pugnando pelo efeito suspensivo do recurso.
5.2. Para além das posições jurisprudenciais do Direito Comparado acima alinhadas1 - e outras existem -, que vão em sentidos diferentes, também a Doutrina se mostra dividida.
No sentido do efeito devolutivo Abrantes Geraldes justifica o efeito meramente devolutivo da seguinte forma, transcrevendo-se, com a devida vénia, todo o excerto, para melhor compreensão do pensamento do Autor: “Tendo sido decretada e executada uma providência sem exercício do contraditório, o facto de o tribunal, perante a oposição deduzida, inverter o sentido da decisão é significativo quanto à perda do grau de verosimilhança que sustentava a decisão primitiva. Daí ser inteiramente adequado que a segunda decisão produza, em regra, efeitos imediatos …”2
Mas esta posição não se configura como muito firme, haja em vista as explicações e próprias dúvidas avançada noutro local pelo Autor:
“ Confrontadas as partes com a nova decisão, podem elas exercer sobre a mesma o direito de impugnação, nos termos gerais.
Terá legitimidade para recorrer a parte que ficar vencida, desde que o valor do procedimento ou do decaimento o permita. O agravo será interposto no prazo de 10 dias a contar da notificação, cabendo ao juiz, como é norma, averiguar dos requisitos de admissibilidade no que concerne à recorribilidade da decisão, atento o valor do procedimento, o prazo ou a legitimidade.
Sendo o agravo interposto de decisão que tenha mantido a providência cautelar, subirá imediatamente, em separado e, em princípio, com efeito meramente devolutivo (art. 738°, n° 1, al. b)).
Maiores dificuldades se suscitam a respeito do regime do recurso através do qual se pretenda impugnar a decisão revogatória da providência anteriormente ordenada.
Na 1” edição (pág. 240) pronunciámo-nos no sentido de que, impugnada a decisão revogatória, o agravo deveria subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, ao abrigo do disposto nos arts. 738°, n° 1, al. a), e 740°, n° 1. Afirmámos então que, embora a solução legal parecesse duvidosa, o facto de a segunda decisão complementar e integrar a primeira levaria a que o efeito suspensivo do recurso não obstasse à reconstituição imediata da situação de facto afectada pela medida cautelar executada.
E exemplificando com uma situação de arresto que tivesse sido decretado e executado, afirmámos que, convencendo-se o juiz da não verificação dos pressupostos dessa providência, apesar de ser interposto recurso admitido com efeito suspensivo, tudo se passaria, afinal, como se o arresto tivesse sido indeferido logo na primeira fase. Ou seja, nada impediria que, na pendência do recurso de agravo, o arrestado viesse requer e obtivesse o levantamento efectivo da apreensão executada.
Embora nos pareça que o resultado prático acaba por ser semelhante, revemos a posição então subscrita, reafirmando a pouca clareza do regime processual em sede de recurso de decisões proferidas em matéria de procedimentos cautelares.
Pese embora o facto de no n° 2 do art. 388° se determinar que a decisão revogatória "constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida", a mesma disposição refere ainda que cabe recurso da decisão revogatória, o que parece implicar uma certa autonomização dessa decisão, pelo menos até à fase em que se estabilize, ou seja, até ao seu trânsito em julgado. Até então, cabendo recurso da decisão que, no âmbito do incidente de oposição, proceda à reapreciação dos fundamentos da medida cautelar, parecerá mais apropriado integrar o regime do recurso no disposto no n° 2 do art. 738°, conjugado com o art. 740°.
Dir-se-á que o referido normativo, que já advinha da anterior redacção, por ter sido introduzido em 1961, deveria reservar-se para as situações do art. 389°, ou seja, para os casos em que a medida cautelar é julgada caduca ou é julgado extinto o procedimento cautelar.
Sem embargo de termos de concluir ter sido esse o objectivo situado no horizonte do legislador (até porque, na altura, ainda o sistema não previa o incidente de oposição, sendo esta veiculada através do mecanismo dos embargos), não tendo a matéria sido especificamente regulada na recente revisão da lei adjectiva, nada obsta a que a solução para novos problemas se encontre em norma anterior, até porque a revogação da decisão que tenha decretado anterior providência implica necessariamente o levantamento dessa medida.
Considerando que no normativo do art. 738° o segmento que mais se aproxima da realidade constante do art. 388°, n° 2, é o que regula os recursos de decisões determinativas do levantamento de medidas cautelares, será aí que se deve enquadrar o regime do recurso interposto pela requerente. Por isso, um tal recurso deva subir em separado e, em regra, com efeito meramente devolutivo.
Esta solução não deixa, ainda assim, de possibilitar a atribuição ao agravo de efeito suspensivo, embora essa consequência não seja, como antes defendemos, consequência directa da lei, mas sim o resultado de uma avaliação casuística da situação, face ao disposto no art. 740°, n° 2.
Atento o paralelismo que pode ser estabelecido, obedecerá ao mesmo regime o agravo da decisão que tenha reduzido a providência, situação que, na prática, equivale ao levantamento parcial da anterior medida”.3
5.3. Encontramos, depois, outro Autor, claramente nos diz, que o recurso nestes casos tem efeito suspensivo, subindo nos próprios autos. Trata-se de Amâncio Ferreira4, dizendo terem efeito suspensivo da marcha do processo e do cumprimento da decisão que indefira liminarmente o procedimento cautelar ou que não decrete a providencia ou revogue a anteriormente decretada [ arts. 738, n.º 1, alíneas a] e c), 2ª parte, e 388º, n.º 2, correspondentemente aplicáveis às normas do CPC de Macau, 605º, n.º 1, alíneas a] e c), 2ª parte 333º, n.º 2 ].
5.4. Deparamo-nos ainda com uma outra posição, algo híbrida, de Lebre de Freitas, que, não obstante defender o efeito devolutivo, face à redacção do n.º 2 do artigo 333º - mutatis mutandis -, diz que, porque a segunda decisão é parte integrante da primeira, o efeito devia ser o suspensivo e só não é porque não há nada a suspender.5
5.5. Vamos então formular a nossa síntese, recolhendo os argumentos válidos que se evidenciam nas diferentes teses.
Partimos do princípio de que há que distinguir efeito suspensivo da marcha do processo e efeito da decisão proferida.
O que está aqui em causa é o efeito que o recorrente pretende extrair do recurso, ou seja, que até decisão transitada a proibição de venda se mantenha, até que definitivamente essa providência seja julgada improcedente. Ao invés a recorrente pretende destruir os efeitos cautelares à providência, ficando livre para vender desde já.
Temos para nós que cada caso é um caso – aqui considerando o particular interesse a prevenir - e importa averiguar se a solução plasmada na lei é a mais adequada, ou melhor, perscrutar o alcance da lei no sentido de se ter por consagrada a solução mais adequada.
Pensemos um pouco, sem o texto da norma. É legítimo que o requerente da providência se pretenda acautelar de um mal por que receia, neste caso, a proibição de venda de um dado imóvel, visando prevenir a garantia do seu crédito. Se for justificada a sua pretensão, digamos que há razões para tutelar a sua expectativa, até que seja proferida uma decisão final. Foi-lhe concedida num primeiro momento, denegada após a oposição, mas ainda não há uma decisão final sobre o assunto. É legítimo tutelar a sua expectativa até à prolação da decisão final, sob pena de se frustrar o efeito do recurso.
Para que serviria recorrer, se proferida uma decisão revogatória da primeira, que implicasse o levantamento da providência, logo em primeira instância, a questão ficasse definitivamente arrumada?
Onde restaria a tutela efectiva do direito a acautelar?
Esta interpretação, aquela que se encaixa melhor na previsão das normas, seja a da alínea a) do art. 605º do CPC, seja na do n.º 2 do artigo 333º do mesmo diploma.
Este entendimento articula-se bem com a natureza assumida pela segunda decisão, enquanto “constitui complemento e parte integrante da inicialmente proferida”. O que significa que a decisão, após a oposição, se assume como una e, assim sendo, as coisas passam-se como se a pretensão do requerente não fosse acolhida, havendo que sujeitar essa decisão a uma reponderação posterior e superior, não sendo passível de produção de efeitos antes de estar definitivamente julgado, isto é, transitada. Neste passo, somos a esclarecer o que afirmado foi no despacho reclamado, ao dizer-se que se “mantém erecta a primeira decisão”, reconhecendo-se ter havido aí alguma imprecisão.
Esta a interpretação que entronca naquele entendimento de Abrantes Geraldes, conquanto enuncie uma solução divergente, ao dizer que na resolução do dilema entre a aplicação integral das normas sobre recursos ou a adopção de uma interpretação que pondere a globalidade do regime jurídico dos procedimentos cautelares, importa não descurar os valores e interesses que através deles se perseguem.6
Acresce que a interpretação pretendida pela reclamante não tem correspondência na letra da lei, na medida em que a revogação da providência não se reconduz ao seu levantamento.
Nestes termos, sem necessidade de outros desenvolvimentos, com os argumentos então expendidos, ora complementados, somos a sufragar a decisão ora reclamada.
6. Decisão
Nos termos e fundamentos expostos improcede a reclamação deduzida.
Custas pela reclamante.
Macau, 4 de Dezembro de 2014,
Relator João A. G. Gil de Oliveira
Primeiro Juiz-Adjunto Ho Wai Neng
Segundo Juiz-Adjunto José Cândido de Pinho
1 - Vd. referências nas obras adiante citadas.
2 - Recursos em Processo Civil” “Novo Regime”, 3ª. edição, 2010, pág. 279, nota 371, explicação que, no entanto, não é avançada na 2ª ed., limitando-se aí a distinguir entre não decretamento e revogação.
3 - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Almedina, III,2ª ed., 2000, 264 a 266
4 - Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 5ª ed., 301
5 - CPC Anot, Coimbra Editora, 2001, 45
6 - Ob. cit., Temas…,248
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