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Processo nº 514/2009
Data do Acórdão: 22JAN2015


Assuntos:

Arguição de nulidade
Omissão de pronúncia
Depósito de cheque na conta bancária
Cheque sacado sobre um banco encerrado
Cláusula contratual geral
Cláusula de salvo boa cobrança
Compensação


SUMÁRIO

1. Por força dos artº 5º e 6º da Lei nº 17/92/M de 28SET, a utilização válida das cláusulas contratuais gerais no contrato singular deve ser sempre precedida do cumprimento por parte de quem as pretende utilizar, de certos deveres específicos, que consistem na comunicação e na prestação de informação à parte aderente, sobre o seu alcance, o seu significado e as suas implicações, e de todos os esclarecimentos razoáveis solicitados, tendo em conta as particularidades do caso concreto.

2. Na execução de um mandato celebrado entre o banco e o cliente e consistente na cobrança de um cheque sacado sobre um banco estrangeiro e na creditação do valor do cheque na conta de depósito à ordem, aberta no banco mandatário, se no mesmo contrato estiver validamente estipulada a cláusula de salvo boa cobrança no contrato, enquanto não tiver êxito na cobrança do cheque, a creditação do valor do cheque na conta do cliente não poderá deixar de ser provisória e o cliente deverá contar que, se a condição de boa cobrança não se verificar, a creditação será anulada.

3. Com a celebração do contrato de depósito à ordem entre o banco e o seu cliente, o banco adquire a titularidade do dinheiro que lhe é entregue e torna-se devedor do valor do dinheiro, ao passo que o cliente passa a ser credor do mesmo valor que é exigível a todo o tempo ao banco.

4. Na falta de renúncia expressa no contrato do depósito, a compensação prevista no artº 838º do CC funciona sempre, dependendo somente da verificação dos seus requisitos.


O relator


Lai Kin Hong


Processo nº 514/2009


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

A, Limitada, veio propor contra Banco B, ambos devidamente identificados nos autos, a acção ordinária, que foi registada com o nº CV3-00-0007-CAO e correu os seus termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, pedindo que fosse condenado o banco Réu a pagar-lhe o somatório do montante de MOP$2.020.751,00, com o acréscimo dos respectivos juros bancários e juros moratórios, e do montante indemnizatório, a título de lucros cessantes, de MOP$1.000.000,00, e que fosse condenado o Réu a pagar-lhe a quantia diária de MOP$5.000,00 ou outra julgada conveniente, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso até efectivo e integral cumprimento, e subsidiariamente na improcedência desses pedidos, que fosse condenado o Réu a devolver-lhe o cheque em causa.

Citado, veio o Réu contestar pugnando pela improcedência total da acção, formular o pedido reconvencional pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de USD298.249,37, acrescida de juros legais contados desde 30DEZ1999 até ao efectivo e integral pagamento, ou a quantia de USD300.298,25, igualmente acrescida desses juros, a título de restituição da parte do valor do cheque que foi levantada pela Autora, e requerer a intervenção acessória de C Bank.

Deferida a requerida intervenção acessória e ordenada a citação do chamado C Bank, não veio este a contestar.

Devidamente tramitada a acção, veio afinal a ser proferida a seguinte sentença julgando improcedentes os pedidos da acção e procedente o pedido reconvencional:

I - RELATÓRIO (敍述部份):
  "A, LIMITADA", com sede Macau, na XXXXXXXXXX,
  Veio intentar, em 02/05/2000, a presente:
  ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO COM PROCESSO ORDINÁRIO
  Contra
  BANCO B, com sede em Macau, na XXXXXXXXX, com os fundamentos apresentados constantes da P. I., de fls. 2 a 14 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
  Conclui, pedindo que a presente acção seja considerada procedente, por provada, e o Réu condenado a pagar à Autora as quantias correspondentes aos débitos efectuados desde 30 de Dezembro de 1999 nos montantes de USD$253,191.92 (duzentos cinquenta e três mil cento e noventa e um dólares americanos e noventa e dois cêntimos), HKD$15, 272.10 (quinze mil duzentos e setenta e dois dólares de Hong Kong e dez cêntimos) e MOP$681.11(seiscentas e oitenta e uma patacas e onze avos), ou seja, no montante global em patacas de:
  a) MOP$2,020,751.00 (dois milhões vinte mil setecentas e cinquenta e uma patacas), com o acréscimo dos respectivos juros bancários, vencidos desde aquela data, bem como de juros moratórios à taxa legal de 11.5% desde, pelo menos, a data em que foi notificada ao Réu a medida cautelar decretada e sobre o montante deste;
  b) e, ainda, o montante indemnizatório, a título de lucros cessantes, de MOP$l,000,000.00 (um milhão de patacas) - que, com a quantia anterior, sem os juros mencionados, perfaz MOP$3,020,751.00 (três milhões vinte mil setecentas e cinquenta e uma patacas) .
  Requer-se, ainda, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 333º do Código Civil, seja o Réu condenado a pagar à Autora a quantia diária de MOP$5, 000.00 (cinquenta mil patacas) ou outra julgada conveniente, a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso até efectivo e integral cumprimento.
  Subsidiariamente, caso V. Exa. não atenda os pedidos anteriores, o que não se espera, requer-se seja o Réu condenado a devolver à Autora o cheque referido supra, no artigo 3º deste petição.
***
  Citado, o BANCO B, veio a apresentar a sua CONTESTAÇÃO, com os fundamentos constantes de fls. 20 a 26 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais.
  Concluiu, pedindo que a acção seja julgada improcedente por não provada, absolvendo-se o Réu de todos os pedidos, com as legais consequências, e, por outro lado, condenar-se a Autora a pagar ao Réu a quantia de USD$298,249.37, acrescida de juros legais contados desde 30 de Dezembro de 1999 até efectivo e integral pagamento, ou a quantia de USD$300,298.25, igualmente acrescida desses juros, a título de restituição da parte do valor do cheque que foi levantada pela Autora, e ainda nas custas, selo e procuradoria do pedido reconvencional.
***
  Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
  As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam" .
  O processo é o próprio.
  Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis" .
***
II - FACTOS (事實部份):
  Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
  Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a prestação de serviços de consultoria e apoio técnico à realização de investimentos financeiros (alínea A da Especificação).
- A Autora é titular da conta bancária nº XXXXXX-XXX, aberta aos balcões do banco Réu (alínea B da Especificação).
- Em 26 de Novembro de 1999 a Autora entregou para depósito na mencionada conta o cheque nº XXXX, sacado sobre o D Bank, de Londres, no montante de GBP345,000.00 (alínea C da Especificação).
- Em 16 de Dezembro de 1999 o Réu creditou a aludida conta da ora Autora no montante de USD$553.490,17, por conversão para esta moeda do montante em libras do cheque supra referido (alínea D da Especificação).
- Decorrido algum tempo, a ora Autora procedeu a alguns movimentos a débito, sobre a referida conta (alínea E da Especificação).
- Em 30 de Dezembro de 1999 o Réu procedeu ao débito da conta da ora Autora, no montante total que a mesma na altura apresentava, i. e., USD$253.191,92, colocando a conta com saldo zero (alínea F da Especificação).
- Nesse mesmo dia 30/12/99 o banco réu procedeu ao débito de outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora, com os nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, nos montantes respectivos de HK$15.272,10 e MOP$681,11, saldos que as mesmas apresentavam e que assim ficaram, também, a zero (alínea G da Especificação).
- O banco réu comunicou, ainda, à ora Autora que esta devia repor o montante de USD$298.249,37, correspondente à parte necessária para perfazer o total do supra mencionado cheque, cujo montante foi creditado à Autora em 16 de Dezembro (alínea H da Especificação).
- O banco réu não devolveu o cheque à Autora (alínea I da Especificação).
- O Réu tem por correspondente, em Londres, o C Bank, sediado em XXXXXXXXXX, United Kingdom, que executa as suas instruções de cobrança de cheques sacados sobre outros bancos da praça de Londres (alínea J da Especificação),
- Mediante a apresentação desses títulos a compensação (alínea K da Especificação).
- No dia 26 de Novembro, o Réu remeteu o cheque ao C Bank, solicitando-lhe que diligenciasse a respectiva cobrança e creditasse o valor do cheque na sua conta junto daquele seu correspondente, após pagamento final do mesmo (alínea L da Especificação).
- O C Bank lançou na conta do Réu os fundos equivalentes ao valor do cheque em 13 de Dezembro (alínea M da Especificação).
- Seguindo um procedimento de rotina, ditada por razões de cautela, o Réu deixou passar dois dias sobre esse lançamento (alínea O da Especificação).
- Não tendo entretanto recebido aviso em contrário do C Bank, veio a creditar a conta da Autora em 16 de Dezembro, informando-o de tal facto na mesma data (alínea P da Especificação)
- o Réu só creditou a conta da Autora e avisou o crédito à Autora porque o C Bank o notificou da boa cobrança, chegando ao ponto de abonar a própria conta que o Réu mantém junto dele, em Londres, com o montante do cheque (alínea Q da Especificação).
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Da Base Instrutória:
- Em 28 de Dezembro, o C Bank enviou uma mensagem swift ao Réu a comunicar que o cheque fora devolvido sem ter sido honrado (resposta ao quesito 8º).
- O cheque fora devolvido sem pagamento por o D Bank ter sido encerrado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10º).
- Em 25 de Fevereiro de 2000, o Réu recebeu uma carta do D Bank PLC que avisava que o D Bank estava fechado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10°-A).
***
III - FUNDAMENTOS (理據部份):
  Cumpre analisar os factos, a matéria que vem alegada e aplicar o direito.
  As questões essenciais que o Tribunal tem de resolver são as seguintes:
(1) Natureza jurídica da relação estabelecida entre a Autora e o Réu (Banco B) e, por outro lado, a entre a Autora e a Ex-Banco Inglês D Bank de Londres;
(2) O significado da cláusula "salvo boa cobrança" inserida no acordo;
(3) Direitos assistidos à Autora e ao Réu.
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  Ora, são os seguintes factos provados:
- A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a prestação de serviços de consultoria e apoio técnico à realização de investimentos financeiros (alinea A da Especificação).
- A Autora é titular da conta bancária nº XXXXXX-XXX, aberta aos balcões do banco Réu (alínea B da Especificação).
- Em 26 de Novembro de 1999 a Autora entregou para depósito na mencionada conta o cheque n° XXXX, sacado sobre o D Bank, de Londres, no montante de GBP345,000.00 (alínea C da Especificação).
- Em 16 de Dezembro de 1999 o Réu creditou a aludida conta da ora Autora no montante de USD$553.490,17, por conversão para esta moeda do montante em libras do cheque supra referido (alínea D da Especificação).
- Decorrido algum tempo, a ora Autora procedeu a alguns movimentos a débito, sobre a referida conta (alínea E da Especificação).
- Em 30 de Dezembro de 1999 o Réu procedeu ao débito da conta da ora Autora, no montante total que a mesma na altura apresentava, i. e., USD$253.191,92, colocando a conta com saldo zero (alínea F da Especificação).
- Nesse mesmo dia 30/12/99 o banco réu procedeu ao débito de outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora, com os nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, nos montantes respectivos de HK$15.272,10 e MOP$681,1l, saldos que as mesmas apresentavam e que assim ficaram, também, a zero (alínea G da Especificação).
- O banco réu comunicou, ainda, à ora Autora que esta devia repor o montante de USD$298.249,37, correspondente à parte necessária para perfazer o total do supra mencionado cheque, cujo montante foi creditado à Autora em 16 de Dezembro (alínea H da Especificação).
- O Réu tem por correspondente, em Londres, o C Bank, sediado em XXXXXXXXX, United Kingdom, que executa as suas instruções de cobrança de cheques sacados sobre outros bancos da praça de Londres (alinea J da Especificação).
- Mediante a apresentação desses títulos a compensação (alínea K da Especificação) .
- No dia 26 de Novembro, o Réu remeteu o cheque ao C Bank, solicitando-lhe que diligenciasse a respectiva cobrança e creditasse o valor do cheque na sua conta junto daquele seu correspondente, após pagamento final do mesmo (alínea L da Especificação).
- O C Bank lançou na conta do Réu os fundos equivalentes ao valor do cheque em 13 de Dezembro (alínea M da Especificação).
- Seguindo um procedimento de rotina, ditada por razões de cautela, o Réu deixou passar dois dias sobre esse lançamento (alínea O da Especificação).
- Não tendo entretanto recebido aviso em contrário do C Bank, veio a creditar a conta da Autora em 16 de Dezembro, informando-o de tal facto na mesma data (alínea P da Especificação).
- O Réu só creditou a conta da Autora e avisou o crédito à Autora porque o C Bank o notificou da boa cobrança, chegando ao ponto de abonar a própria conta que o Réu mantém junto dele, em Londres, com o montante do cheque (alínea Q da Especificação).
***
- Em 28 de Dezembro, o C Bank enviou uma mensagem swift ao Réu a comunicar que o cheque fora devolvido sem ter sido honrado (resposta ao quesito 8º).
- O cheque fora devolvido sem pagamento por o D Bank ter sido encerrado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10º).
- Em 25 de Fevereiro de 2000, o Réu recebeu uma carta do D Bank PLC que avisava que o D Bank estava fechado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10º-A).
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  1) - Natureza jurídica da relação estabelecida entre a Autora e o Réu (Banco B) e, por outro lado, a entre a Autora e a Ex-Banco Inglês D Bank de Londres:
  Antes de mais, importa distinguir a relação estabelecida entre a Autora e o Réu Banco B por um lado; por outro, a relação entre a Autora e o extinto Banco Inglês D Bank de Londres, banco sacado do cheque.
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  A) - Relação estabelecida entre o extinto "Banco Inglês D Bank de Londres" (sacado do cheque), o Banco B e a Autora, endossado do cheque:
  
  
  CHEQUE
  
  
  
  
  
  
  
  
  Não resta dúvida entre esses 3 sujeitos estabelece-se uma relação cartular, em que o sacado é o extinto "Banco Inglês D Bank de Londres",e o portador ou beneficiário desse cheque era a Autora que, depois, endossou ao Réu Banco B para efeitos de cobranças.
  Nesta relação tipicamente cartular não intervêm o emissor do cheque, nem é possível identificá-lo nestes autos.
  De seguida, quando a Autora entregou o cheque em causa ao sacado Banco B, importa saber a natureza jurídica desse "acto de entrega" e as suas possíveis consequências.
  Nesta óptica, o portador de títulos, para transmitir os direitos inerentes, só pode utilizar o meio de "endosso" previsto na Convenção de Genebra de 13/9/1931, que estabelece uma Lei Uniforme em Matéria de Cheques (publicado em Suplemento ao B.O.M. n° 6, de 8/2/1960), caso contrário, não se produziriam os efeitos típicos cartulares.
  Ficou provado que a Autora endossou o cheque ao Réu para cobrança do cheque nas condições internacionalmente convencionais.
***
  Com o que, passemos a ver outra relação existente entre os outros sujeitos .
  B) - Relação estabelecida entre a Autora e o Banco B:
  A Autora alegou que "depositou" o cheque e como tal tinha direito a dispôr das quantias neles indicadas, defenderido também que, fracassada a cobrança, o Réu não podia "reter" os fundos já depositados por erro na conta da Autora.
  Vejamos então se procede ou não este raciocínio.
  Efectivamente ficou provado que a Autora detinha várias contas abertas na Autora, numas quais a Autora depositou um cheque, objecto deste processo.
  Dispõe o artigo 1111º do CCM (corresponde ao artigo 1185º do Código Civil de 1966) que depósito é o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde, e restitua quando for exigida,
  A esta luz, o depósito do cheque no banco não integra o contrato de depósito ali definido, pois o cheque não se destinava a ser restituído. Mas também não se integra no disposto no artigo 1131º do CCM (corresponde ao artigo 1205° do Código Civil de 1966), segundo o qual se diz irregular o depósito que tem por objecto coisas fungíveis.
  E que a entrega do chegue pela Autora no banco constituiu um depósito de valor destinado a transformar-se em depósito de numerário, isto é, visava produzir o efeito de ficar depositada na conta da Autora a quantia em dinheiro correspondente ao valor inscrito no cheque.
  Se produzisse tal efeito, integraria um depósito irregular, a que seriam aplicáveis, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo (artigo 1132° do CCM) (corresponde ao artigo 1206° do Código Civil de 1966).
  Mas não o produziu. Com efeito, o documento de fls. 53 dos autos do procedimento cautelar [(十二)凡經本行接受存入之票據,雖已入帳,仍需經本行收妥後方能作實。如遇退票,本行有權在存款人帳內扣回。], que a Autora preencheu, quando entregou o cheque no Réu/Banco, implicitamente aderindo ao nele estipulado, contém a seguinte indicação expressa: "Este depósito só se torna efectivo após boa cobrança dos documentos que o constituem". O mesmo é dizer que o depósito do cheque só produziria efeitos como tal, tomando-se então um autêntico depósito irregular em sentido jurídico, a cuja constituição tendia, se e quando tivesse boa cobrança, seja esta cobrança doméstica ou interna, seja internacional ou intra-territorial.
  Aquela estipulação integra, assim, uma condição suspensiva, posta pelo embargado e aceite pela embargante, ao preencher o documento referido, nos termos definidos no artigo 263º do CCM (corresponde ao artigo 270º do Código Civil de 1966), segundo o qual as partes podem subordinar a um acontecimento futuro e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico, caso em que se diz suspensiva a condição.
  Daqui resulta que o negócio jurídico visado era um depósito irregular, mas que, por não se ter entretanto verificado, dado o insucesso de cobrança, a condição suspensiva estipulada, não produziu efeitos como tal antes do depósito no banco.
  É certo que o Réu chegou a acreditar quantias correspondentes ao valor do cheque na conta das Autora irregularmente e antes de o cheque ter sido efectivamente pago pelo sacado, não é menos certo que, depois o Réu veio a saber que o banco sacado já está encerrado desde 1974, então a única conclusão possível é a de que tal depósito de quantia foi mal feito, obviamente pode o banco corrigir tal operação errada. Nestes termos, não há questão de compensação, porque a Autora nunca pode afirmar que já tinha direito sobre a quantia da conta que o Réu nela depositou erradamente.
  No caso, alguns efeitos produziu, como se vê dos artigos 265º e segs. do CCM (corresponde ao artigo 272º e segs. do Código Civil de 1966), desacando-se no essencial e com interesse para a questão dos autos o que se dispõe naquele artigo 265º do CCM (corresponde ao artigo 272º do Código Civil de 1966):
  Aquele que contrair uma obrigação ou alienar um direito sob condição suspensiva deve agir, na pendência da condição, segundo os ditames da boa fé, por forma que não comprometa a integridade do direito da outra parte.
  Recaía, assim, sobre o Réu/Banco B, a obrigação de actuar de boa fé por forma a não comprometer a integridade do direito da Autora, e assim ele fez.
  O direito desta, porém, se viesse a concretizar-se o depósito irregular, seria o de obter a quantia igual à constante do cheque (artigos 1132°, 1070° e 1072° do CCM)((corresponde ao artigo 1206º ,1142° e 1145° do Código Civil de 1966); mas nada imputa a Autora ao Réu que pudesse impedir ou comprometer a formação ou satisfação de tal eventual direito, que dependia de actuação e da posição do banco socado "Banco D Londres", enquanto sacado.
  Dado o fecho do Banco, sacado do cheque, desde 1974, nem sequer havia fundos de que o Réu Banco B pudesse receber.
  Sem dúvida que, em situação normal, quanto mais depressa o Réu informasse a Autora da falta de "cobrança", mais depressa este poderia providenciar por forma a fazer surgir o direito de depositante, mas o prazo que o réu demorou a tratar da tramitação, atendendo à possibilidade de esperar da notícia pelo Banco representante de Londres e o tempo necessário, não pode deixar de se considerar razoável.
  Pois, o cheque foi entregue pela Autora ao Réu para este último proceder à cobrança através do circuito internacional, que demorava uns dias.
  Não ocorre, assim, a violação do imperativo de boa fé, nem dos dispositivos dos artigos 1111 ° e seguintes do CCM (corresponde ao artigo 1185° e segs. do Código Civil de 1966), dado não ter chegado a haver contrato de depósito no Banco/Réu. Não se tendo formado, nesse período, depósito irregular, e não sendo possível retrotrair à data do endosso do cheque e do preenchimento do respectivo impresso para este efeito junto do Réu, os efeitos da posterior cobrança do cheque para este efeito por tal ir contra a natureza do acto entretanto praticado, ou seja, a declaração de falta de cobrança, por extravio, que, reportada ao momento em que foi aposta, correspondia à realidade, não podendo ser pagada (artigo 269° do CCM) (corresponde ao artigo 276° do Código Civil de 1966), não é aplicável sequer a disposição do artigo 1132° do CCM (corresponde ao artigo 1206° do Código Civil de 1966), que remete para as normas reguladoras do mútuo; mas, mesmo que estas fossem aplicáveis, não impõem ao Réu pagar o cheque com o dinheiro próprio.
  Tal obrigação de informação existe nas hipóteses de comodato (artigo 1063° do CCM) (corresponde ao artigo 1135° -g) do Código Civil de 1966), e depósito regular (artigo 1113°/-b do CCM) (corresponde ao artigo 1187°/-b do Código Civil de 1966), do mesmo Código). Mas, na hipótese do depósito irregular, a lei remete apenas para o mútuo, e não para as normas reguladoras do comodato; e, por outro lado, não houve depósito regular, além do que o cheque não era ameaçado por qualquer perigo externo, sendo ele próprio que enfermava do vício da falta de provisão.
  Não se detecta ainda qualquer outra disposição que imponha ao Réu a aludida obrigação de, fracassada a cobrança do cheque, ele ter de assumir todos os riscos daí decorrentes; nem sequer a disposição genérica, respeitante à boa fé, do artigo 265º do CCM (corresponde ao artigo 227º do Código Civil de 1966), se mostra violada.
  Caso diferente é o em que, face à referida regra da boa fé na formação dos contratos (artigo 265º do CCM) (corresponde ao artigo 227º do Código Civil de 1966), se poderia atribuir ao Réu um dever jurídico de prestar pontualmente uma informação correcta à Autora, eventualmente geradora, se incumprido, de obrigação de indemnizar nos termos do artigo 478º do CCM (corresponde ao artigo 485º do Código Civil de 1966). Mas não é o caso dos autos.
  Desta forma, os danos que a Autora tenha sofrido não foram causados pela conduta do Banco B/Réu, mas de uma circunstância estranha à vontade de todos os sujeitos intervenientes.
* * *
  De realçar que a autonomia do contrato de cheque está bem patente na circunstância de o Banco depositário nem ser parte na relação cartular que se estabelece entre o sacador e o tomador do cheque.
  Esta é uma nota fundamental que, por isso, se repete, o contrato de cheque, embora tenha um alcance sobre uma entidade sacada, que é o depositário, estabelece-se tal relação entre o sacador e o tomador do cheque.
  O sacado está antes e depois do contrato de cheque, mas não está na relação jurídica específica do contrato de cheque.
  Está antes, porque o contrato de cheque pressupõe o depósito, a provisão e a própria disponibilização do cheque, que é feita pelo depositário, a favor do depositante, justamente porque este continua com domínio sobre o valor depositado. E está depois, na medida em que, se o usar legitimamente, o detentor do cheque pode sacá-lo do depositário.
  Mas, insiste-se, o contrato de cheque estabelece-se entre o sacador e o tomador, ainda que obrigue o sacado a pagar o cheque, na medida da provisão e das regras do outro contrato, o de depósito e, ainda, conforme certo tipo de mandato em causa.
  Aliás, a própria relação de provisão, embora esteja próxima e até seja um pressuposto do contrato de cheque, também, em rigor, não se confunde com este contrato.
  Isto é tão fácil de considerar quanto nos lembremos que pode haver provisão e ter sido convencionada a não emissão de cheques. E pode haver contrato de cheque sem provisão, apesar disto, pagável a descoberto, se assim foi convencionado e (ou) o sacador merece confiança ao sacado, ou não pagável como, malfadadamente, acontece em alguns casos conhecidos pelo Tribunal.
  O depositário não é, pois, parte no contrato de cheque; mas é seu executante, na medida em que, por via da provisão ou do convencionado, deva pagar ao tomador ou portador do cheque.
  A ser assim, está o depositário ou sacado tão sujeito como as partes do contrato de cheque aos princípios nucleares do Direito contratual e, em particular, do contrato de cheque: princípios da boa fé e da confiança.
  E, isto, por uma razão também simples e segura: embora, conceitualmente, o sacado não seja parte no autónomo contrato de cheque, ele é uma peça nuclear na execução deste contrato.
  Nas palavras lapidares de Sofia Galvão, o Banco sacado tem «a obrigação de cumprir as ordens do Cliente e de zelar pelos seus interesses» (obra citada, pág. 45).
  É por isso que, designadamente, alem do mais, o Banco sacado tem o dever de verificar, cuidadosamente os cheques que lhe são exibidos, sob pena, quando assim não proceda, de trair a confiança do depositante e sacador, confiança que está na raiz do próprio contrato de depósito (v.g. Ac. deste Supremo de 16.5.69, in R.T. 87,219).
  Caso contrário, será violado o principio da boa fé, que é essencial à realização e a execução dos contratos (v.g. arts. 227 nº, 1,762 n°. 2 e 334 do C. Civil; Coutinho de Abreu, «Do abuso do direito», 58/59). Claro que o principio da boa-fé não decorre do regime do abuso do direito; a situação deve ser vista justamente ao contrário: porque a boa fé enforma o regime civilistico «lato sensu») portugues, reflecte-se, como não pode deixar de ser, no instituto do abuso do direito, como se reflecte no entendimento das cláusulas contratuais gerais.
  E que vem ser, no meio disto tudo, o próprio cheque?
  Este é um meio de pagamento, no qual se reflecte o contrato de cheque, por sua vez com base no contrato de depósito.
  Daí que, neste entrelaçar de relações jurídicas, e na medida em que o cheque reflecte uma ordem de pagamento dada ao depositário (Prof. A. Varela, M. Bezerra e S. Nora, «Manual de Processo Civil») 2ª. ed., pág. 87), se possa dizer que a emissão do cheque se compagina com um mandato sem representação, por isso que deve ser o sacado a pagar ao tomador ou portador do cheque. É que, na vivência destes actos jurídicos, é o sacado quem paga, não o sacador, embora por força do direito do sacador ao valor do seu depósito.
  Esta linha de pensamento tem importância para se entender o que ocorre ou deve ocorrer em matéria de responsabilidade do sacado, designadamente e para o efeito que importa, na hipótese da revogação do contrato de cheque e, portanto, de insubsistência do mandato de pagamento.
  É que, se não existir ou não subsistir uma ordem eficaz de pagamento, o sacado não tem o direito de debitar a conta do sacador, Mas. se isto é assim, também nessa hipótese, não tem o direito - logo, age ilicitamente, se o fizer - se disser que não paga por não haver provisão porque, se não subsistir ou não houver ordem de pagamento, não paga, desde logo, por falta dessa ordem.
***
  Por outro lado, a Autora tinha uma conta aberta no Réu e pediu a este último cobrar o respectivo cheque.
  Ora, a abertura de conta é um negócio especificamente bancário; porventura, o negócio bancário nuclear. Não é fácil defini-la em termos jurídicos rigorosos e esgotantes, já que, pode afirmar-se sem receio de errar, ela funciona como uma espécie de ponto de partida, de "invólucro" dentro do qual cabem e se desenvolvem múltiplas operações bancárias, que correspondem, as mais das vezes, a outras tantas figuras negociais, típicas ou não.
  À medida que a actividade bancária se intensifica e que aumenta a concorrência - nos dias de hoje raras são as pessoas capazes e economicamente activas que não dispõem de conta aberta num ou vários bancos - a concretização deste negócio implica um elenco mínimo de prestação de serviços a cargo do banqueiro: o dever de aceitar depósitos, uma convenção quanto ao uso de cheques, o acesso a cartões de pagamento e de crédito, o direito ao extracto ou ao uso de caderneta, o chamado "serviço de caixa", etc.
  Referindo-se à abertura de conta como um "contrato-quadro" ou "relação contratual global", o Dr. José Simões Patrício, numa síntese feliz, escreveu que, através dela, o banco reconhece ao cliente o poder de lhe dirigir ordens correspondentes aos serviços oferecidos, procedendo como que a sua "investidura" nessa qualidade 1.
  E, logo adiante, conclui:
  "Daquela relação global resultam, naturalmente, direitos e obrigações gerais para ambas as partes, sendo de frisar, quanto ao banco, o dever de ocupar-se dos interesses do cliente como um amigo e, em especial, adverti-lo de algum risco grave em que por inconsideração esteja a incorrer" (o sublinhado é nosso).
  Aberta uma conta, a sua movimentação, a crédito e a débito, pode fazer-se de muitas formas.
* * *
  Na hipótese dos autos, a respectiva importância foi creditada na conta da Autora, por lapso e boa fé, porque o banco não recebeu informação contrária ao sucesso de cobrança, não conseguiu porque o banco sacado já está encerrado desde 1974 logo a "boa cobrança" não sucedeu.
  A efectivação da cobrança - a realização, por parte da ré, das diligências adequadas ã sua concretização - além de se inserir no funcionamento normal da conta aberta pela Autora, na dinâmica própria desse contrato-quadro, é um serviço em cuja execução o embargado agiu no âmbito de um verdadeiro contrato de mandato sem representação: perante o depositante do cheque (a Autora), obrigou-se a diligenciar pelo respectivo pagamento, e, obtido este, a creditar a conta pelo respectivo valor.
  Ora, na execução do mandato o mandatário está obrigado, além do mais, a comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato, ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu (art. 1161°/-c), do Código Civil).
  Mesmo que não houvesse esta disposição estabelecendo um dever legal específico de comunicação de tudo o que houvesse sucedido no processo de cobrança, seria sempre perfeitamente possível extrair a sua obrigatoriedade a partir das regras gerais dos artigos 219°, 752°/2 do CCM (corresponde ao artigo 227° e 762°/2 do Código Civil de 1966), que submetem todo e qualquer contrato, antes, durante e após a sua execução, ao princípio geral de boa fé. E, no caso, o Réu cumpriu este dever.
  E que no âmbito da actividade bancária, cujas operações repousam de forma essencial na confiança recíproca entre o cliente e o banco, a boa fé concretiza-se desde logo nos múltiplos deveres de informação, de comunicação e de esclarecimento que vinculam as partes entre si, especialmente o banco em face do cliente,
  Na verdade, grande número de operações bancárias envolvem frequentemente outros bancos e terceiras pessoas, numa complexa teia de interesses e de riscos que se renova diariamente e a que os clientes são totalmente alheios, por desconhecimento dos respectivos contornos e implicações.
  Daí que a criteriosa observância dos aludidos deveres por parte do banco seja absolutamente essencial para que a "gestão" dos interesses dos clientes que leva a cabo no quadro negocial descrito se desenvolva com clareza e com rigor – em suma, verdadeiramente por conta deles, como é próprio do mandato (artigo 1083º do CCM)(corresponde ao artigo 1157° do Código Civil de 1966).
  Das breves considerações que antecedem podem já extrair-se as consequências relevantes para o caso em exame.
  Primeira: Estando em causa, não o depósito de numerário, mas de um cheque sobre um banco subordinado à cláusula "salvo boa cobrança", não parece que seja rigoroso tratá-lo como um simples depósito irregular, e submetido, por isso, na medida do possível, às normas do mútuo(artigo 1131° do CCM) (artigo 1205° do Código Civil de 1966);
  Segunda: Uma vez que o Réu/banco, aceitando o mandato de cobrança, nada adquiriu (não adquiriu, designadamente a propriedade sobre o cheque), não se justifica apelar para as normas dos artigos 796° e 1206°, responsabilizando o Réu, com base nelas, pelo risco do fracasso da cobrança do cheque;
  Terceira: A circunstância de o banco ter eventualmente observado o que se estatui nas Regras Uniformes relativas às cobranças de cheques, nomeadamente nos artigos 1° e 4°, que é aplicável porque resulta do acordo, ainda tácito, das partes e pode justificar exonerar da responsabilidade do Réu perante a Autora.
  No caso, em nenhum lado a Autora conseguiu provar a culpa do Réu na execução do mandato.
  Quarta: Tendo em atenção o significado da cláusula "salvo boa cobrança", o que está em questão é a verificação da condição que não produziu, pelo que não há "boa cobrança".
  Por último: sublinhe-se que, é do entendimento quase uniforme que depositar ou entregar um cheque nunca significar que o depositado ter logo direito sobre as quantias respectivas, pelo que, é manifestamente improcedente o argumento da Autora à luz da qual ela tinha esse direito, que ela tinha com as quantias indicadas no cheque.
  Com o que fica expendido, é-nos legítimo e com convicção concluir da seguinte forma:
1) - Julgar improcedentes os pedidos da Autora formulados nas alíneas a) e c) da P.I.;
2) - Julgar igualmente improcedentes o pedido da indemnização pelo danos morais, por não haver nenhum facto assente que permite sustentar esta pretensão;
3) - Relativamente ao pedido da alínea b): compensação de dívida feita pelo Réu através de outras contas da Autora, eis a questão de saber se o Banco pode não compensar a sua dívida, directamente com o dinheiro que o seu cliente mantem na conta aberta no mesmo Banco.
  Em primeiro lugar, assente na doutrina e jurisprudência de forma absolutamente pacífica a natureza de irregular do depósito bancário, tem-se como preferível- por caber na previsão exclusiva dos artigos 1205° e 1206°, CC de 1966 (correspondem aos artigos 1131° e 1132° do CCM) - a tese de que ele tem a caracterizá-lo o traço que Galvão TELLES (Contratos Civis, 76) descrevia (questionando a qualificação) como "finalidade de custódia ou guarda que anima o depositante confiado na honorabilidade e solvabilidade do depositário", diferenciando-o assim do mútuo. Acompanhando a exposição de Pires de LIMA e Antunes VARELA (CC Anotado, 2°, 541), "como critério geral, deve atender-se, para a qualificação do negócio, no mútuo a disponibilidade da coisa por parte do accipiens constitui o fim principal do contrato: empresta-se para que esta se sirva da coisa. No depósito irregular, inversamente, o fim principal continua a ser a guarda da coisa, a sua segurança económica, portanto a satisfação dum interesse do tradens".
  Sendo esse, segundo se afigura, um elemento essencial da definição do depósito à ordem, deverá entender-se cum grano salis a obrigação de restituição em género, no sentido de que a disponibilidade do depósito é meramente fisica, e não jurídica: corolário da natureza do dinheiro, o que o banqueiro deve restituir quando solicitado pelo depositante não é, evidentemente, a mesma realidade física que este lhe entregou, definida na espécie; mas, corolário da natureza jurídica do depósito, o banqueiro não tem poderes jurídicos de disposição sobre o valor depositado. Daqui que se propenda a entender que a guarda da coisa depositada, a sua segurança, prevalecem sobre a fungibilidade que a caracteriza, limitando correspondentemente a aplicabilidade ao caso das regras privativas do contrato de mútuo.
  Fungibilidade que aliás, e continuando a seguir na esteira dos autores citados por último (ibid., 1º, 133, e 2º 540), depende não da sua natureza mas de convenção das partes "porquanto se trata de uma categoria jurídica e não física".
  Assumindo-se esta posição como certa, falhando a fungibilidade stricto sensu, então o banqueiro não tem o direito de dispor do depósito em seu beneficio através do mecanismo extintivo da compensação, que supõe justamente a verificação desse requisito (artigo 847°/l-b), CC de 1966) (actual, artigo 838°/l-b) do CCM).
  Nem impressiona que assim seja, sabido que o banqueiro - colocado por via de regra em posição contratual dominante (potencial de abuso) - pode convencionar livremente com o seu cliente a chamada compensação contratual ou voluntária (Antunes VARELA, Obrigações, 2º 161, e Almeida COSTA, Obrigações, 3§ ed, 806), que lhe permite facilmente abrir a porta da fungibilidade do depósito efectuado à ordem, sem surpresa da contraparte.
  Desta concepção partiram de vários arestos, particularmente o Ac. RP 1989-10-12. Mesmo assim, no Ac. STJ 1979-07-19 (BMJ 289, 345-349, explicita-se com toda a clareza que" ... ao contrato de depósito bancário como depósito irregular que é, não são aplicáveis todas as regras do mútuo (artigo 1206° diz que são na medida do possível) de modo a haver-se como transmudada a sua natureza e sem ficarem resquícios do depósito regular. Deste fica, sem dúvida, a obrigação de restituir por parte do depositário. Embora a este possa ser reconhecido o direito de antecipar o vencimento, pagando os juros por inteiro, o que não pode é deixar de restituir o capital. E que o depositante não tem só interesse na percepção de juros mas o de confiar os seus dinheiros à guarda do Banco depositário. Estes interesses estão ínsitos na convenção do depósito de que se trata. Não se poderá deixar de considerar mesmo nesta espécie de depósito irregular que o Banco assume a obrigação denominada "de custódia". A aqui observável obrigação de restituir a coisa (artigos 1185° e 1187°, alínea e) do citado Código Civil) quando esta coisa lhe for exigida, impede enquanto o contrato vigora, que se opere a compensação, causa de extinção das obrigações que opera além do cumprimento. Não trata aqui, propriamente, do problema da exigibilidade do crédito do Banco que, na terminologia usada, seria o principal, inexigibilidade que não seria de considerar como pressuposto (Prof. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II vol., pág. 187) mas de um problema anterior qual é o da natureza do mesmo crédito que, pelas razões de ordem legal e doutrinal atrâs expostas, é insusceptível de compensação não sendo, consequentemente, aplicâveis os artigos 847° e seguintes do Código Civil."
  Mas, importa sublinhá-lo, dela não decorre automaticamente a exclusão da possibilidade da compensação - tudo dependerá do contexto negocial em que se queira vê-la operar efeitos, tanto quanto seja revelador da intenção das partes de estabelecer a apontada fungibilidade como regra.
  No caso dos autos, não há acordo entre a Autora e o Réu nesse sentido. Pelo que, não podia haver lugar à compensação em sentido ténico-jurídico.
  Assim, o que o Réu verdadeira fez não foi uma compensação, mas sim, a nosso ver, uma "retenção" de fundos, enquanto a Autora não procedesse à restituição da quantia, o Réu não restituiria também as quantias da Autora nas contas abertas no Réu.
  Importa realçar que, nesta situação, a Autora devia exigir responsabilidade a supor por quem lhe entregou o respectivo cheque ou por quem emitiu o cheque, porque este que é o devedor principal.
***
  Relativamente aos pedidos reconvencionais do Réu:
  Em face das considerações acima tecidas, é de julgar procedente o pedido do Réu, porque efectivamente a quantia é do Réu e sobre ele a Autora não tem nenhuma legitimidade para dispôr. Como tal, o Réu tem de devolver as quantia por ela levantadas no valor indicado pela contestação.
***
  Tudo visto, resta decidir.
***
IV -- DECISÃO (裁判):
  Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal decide:
  【據上論結,本法庭裁決如下:】
  1). ─ Julgar improcedentes os pedidos da Autora, deles absolvendo-se o Réu.
  【裁定原告之請求理由不成立,駁回其對被告提起之全部訴求。】
***
  2) ─ Julgar procedente a reconvenção e condenar a Autora "A LIMITADA" a restituir ao Réu "BANCO B" a quantia de USD$298,249.37 (convertível em Patacas à luz da taxa de câmbio do dia em que o Réu executar esta sentença), acrescida de juros legais contados desde 30 de Dezembro de 1999 até efectivo e integral pagamento, a título de reposição da parte do valor do cheque que foi levantado pela Autora.
  【裁定被告之反訴求理由成立,判原告"A, LIMITADA"向被告"BANCO B"支付美元貳拾玖萬捌仟貳佰肆拾玖元叁角柒分(USD$298,249.37)(澳門幣之金額則按被告執行本判決之日之匯率折算),附加由1999年12月30日起按法定利率計算之利息,直至全數支付,作為償還原告之前提取屬被告之款項。】
***
  3) ─ Caso a Autora cumprir o decido no n° 2, o Réu tem de devolver à Autora o respectivo cheque e devolver ao mesmo as quantias das contas nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX.
  【如原告履行上述第二項之裁決,被告須向原告返還有關支票及原告在銀行帳戶(nºs XXXXXX-XXX及XXXXXX-XXX)內之款項。】
* * *
  Custas pela Autora.
  【訴訟費用由原告支付。】
* * *
  Notifique e Registe.
  【依法作出通知及登錄本判決。】


Inconformada, a Autora recorre da sentença para esta segunda instância, concluindo e pedindo:

A. Houve erro de percepção da prova produzida quanto aos quesitos 1.° a 3.° e 5.° a 7.° da Base Instrutória, pelo que as respectivas respostas deverão ser alteradas de "não provado" para "provado" ou "provado apenas"
B. Como o Banco B só creditou a conta da A. depois de ter recebido do "C Bank" o valor titulado pelo cheque nº XXXX, tal facto obsta à conclusão do Tribunal a quo de que o Banco B creditou a conta da A. por lapso e boa fé.
C. Se alguém cometeu um lapso, chamemos-lhe assim, então foi o "C Bank", mas isso é um problema entre o Banco B e o "C Bank " , conforme resulta do incidente da intervenção acessória requerido nos artigos 66.° e ss. da Contestação e admitido a fls. 91.
D. Se, o "C Bank" depositou o valor do cheque nº XXXX sacado sobre o "D Bank" na conta do Banco B sem ter procedido à sua boa cobrança junto à câmara de compensação (clearing house), ou se foi induzido em erro por essa câmara de compensação, isso é um problema que respeita apenas às relações internas entre banco correspondente e banco respondente, não podendo o banco respondente ressarcir-se à custa do património da A por actos e/ou omissões exclusivamente imputáveis a si e/ou ao seu banco correspondente.
E. Assim, a pretensão do Banco deveria ter sido movida contra o "C Bank" e não contra quem nada lhe deve, pelo que há ilegitimidade substantiva geradora de improcedência quanto ao mérito de tal pedido.
F. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão da ilegalidade da cláusula 12.a do "Regulamento de Contas-Poupança em Moeda Estrangeira" de fls. 53 do Apenso arguida nos artigos 42.°, 49.°, 51.° e 52.° da Réplica, com o que a sentença recorrida incorreu na nulidade da última parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 571.°, do CPCM ex vi do disposto no art.º 563.°, n. ° 2 do mesmo diploma.
G. Se assim não se entender, sempre tal cláusula será cláusula juridicamente inexistente ou nula, o que acarreta a revogação da sentença recorrida.
H. No caso "sub judice" não ficou provado que o Banco B antecipou ou colocou à disposição da A qualquer crédito por tempo determinado, nem que houve qualquer acordo nesse sentido, pelo que se mostra inaplicável a cláusula 12.a do "Regulamento de Contas-Poupança em Moeda Estrangeira" .
I. Ao notificar o Banco B da boa cobrança do cheque n° XXXX e ao depositar montante desse mesmo cheque na conta que o Banco B mantém em Londres [cfr. alínea L) e M) dos Factos Assentes e artigos 12.° e 68.° da Contestação], o "C Bank" transferiu para o Banco B o domínio do valor titulado pelo cheque nº XXXX, passando, desde esse momento, a correr por conta do Banco B o risco inerente a tal domínio (art.° 785.°, n.º 1do CCM).
J. Isto porque o Banco B instruiu o C Bank para que cobrasse o cheque e creditasse o respectivo valor na sua conta, após pagamento final do mesmo (alínea L) da Especificação) e só creditou a conta e avisou o crédito à A. porque o C Bank o notificou da boa cobrança e lhe depositou o montante do cheque na conta de Londres (alínea Q) da Especificação).
K. O que significa, que o Banco B não quis, em momento nenhum assumir o risco da cobrança do cheque, nem consentir que a A sacasse para além do saldo existente na conta de que era titular - "descoberto em conta".
L. Resulta da factualidade assente nas alíneas M) e D) da Especificação que Banco B só lançou o valor do cheque na conta da A. depois de ter obtido esse valor do seu banco correspondente (cfr. alíneas M) e D) da Especificação), pelo que o valor do cheque se consolidou como um valor firme na conta da A.
M. Os movimentos a débito referidos na alínea E) da Especificação não foram feitos sobre um qualquer saldo contabilístico positivo (virtual) mas sobre um valor já firme, porque consolidado na conta bancária da A.
N. A confissão expressa nos artigos 26.° a 30.° da Contestação de que o Banco B debitou a conta n.º XXXXX-XXX colocando-a a "descoberto" e compensado esse "descoberto" (saldo negativo) com o saldo que a A dispunha noutras duas contas com os números XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, inviabiliza a (douta) tese da "retenção" de fundos sufragada pelo Tribunal a quo., que, ao não tomar essa factualidade em consideração na fundamentação da sentença acabou por não observar o disposto no artigo 562.°, n.º 3 do CPCM.
O. O comportamento descrito nas alíneas F) e G) da Especificação do Banco configura um reprovável exemplo de justiça privada, ou seja, um exercício de autotutela daquilo que o Banco B julga serem os seus direitos contra a A., donde resultou a escusada violação do disposto no artigo 1.º, n.º 2 e do artigo 2.° do CPCM, pelo não pode manter-se a sentença recorrida.
P. A conclusão de que o comportamento descrito nas alíneas F) e G) da Especificação configura uma "retenção" de fundos enquanto/a Autora não procedesse à restituição da quantia referida em D) viola o disposto no artigo 744.° do CCM, porque o "crédito" do banco não resulta de despesas feitas por causa da "coisa" que o banco está obrigado a entregar nem de danos por ela causados, nem o comportamento do Banco cai na previsão de nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 745.° do CCM.
Q. O Tribunal a quo não se pronunciou sobre a questão dos usos invocada nos nos artigos 41.° e 61.° da Contestação, com o que a sentença recorrida incorreu na nulidade da última parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 571.°, do CPCM ex vi do disposto no art.º 563.°, n.º 2 do mesmo diploma.
R. O que resulta do procedimento descrito pelo Banco B nas alíneas L) a Q) da Especificação, segundo os usos do comércio bancário, o banco respondente não disponibiliza como «dinheiro» ou «valor firme» qualquer importância na conta do seu depositante sem que tal importância tenha sido objecto de boa cobrança, ou seja, sem que o banco respondente tenha efectivamente sido pago pelo banco correspondente do valor titulado pelo cheque sacado sobre o banco estrangeiro.
S. E foi esta prudente prática bancária que o Banco B observou no caso "sub judice" conforme vem alegado nos art.os 8.° a 10.° e 12.° a 14.° e 68.° da Contestação e ficou provado nas alíneas M), L), O), P) e Q) da Especificação.
T. Da assimilação que se faz do depósito bancário aos contratos de depósito irregular e de mútuo - em qualquer caso sendo sempre o regime deste último aplicável, ou directamente na medida em que ao respectivo tipo se reconduza aquele depósito, ou por remissão feita pelo art.º 1132.° do CCM, resulta que o Banco B se tornou dono do valor do depósito feito pela A. através do cheque nº XXXX sacado sobre o "D Bank", de Londres, no montante de GBP345.000,00, quando em 13 de Dezembro o "C Bank" lançou na sua conta os fundos equivalentes a esse montante [cfr. alínea L) e M) dos Factos Assentes e artigos 12.° e 68.° da Contestação].
U. E por ocasião dessa cobrança o depositante ficou sendo, também correlativa e efectivamente, credor da respectiva restituição, pelo que não poderá manter-se a sentença que absolveu a Ré dos pedidos.
V. No caso dos autos, ocorreu, portanto, para efeitos do disposto no art.º 785.°, n.º 1 do CCM, a transferência do domínio para o Banco B da importância representada no cheque nº XXXX sacado sobre o "D Bank"
W. Ao não tomar em consideração na fundamentação da sentença o facto admitido nos artigos 34.° e 44.° da Contestação, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 562.°, n.º 3 do CPCM.
X. Segundo o Tribunal a quo: «No caso, em nenhum lado a Autora conseguiu provar a culpa do Réu na execução do mandato.»
Y. Mas não vemos o que o Banco B ganhou ou que interesse próprio quis acautelar ao decidir não devolver o cheque (alegadamente não pago) à A para que esta não pudesse proceder à sua cobrança coerciva contra o sacador.
Z. O Banco violou não deu cumprimento ao dever que impende sobre si nos termos do artigo 1087.°, alínea e) do CCM e constituiu-se na obrigação de indemnizar a A dada a a presunção de culpa prevista no art.º 788.°, n.º 1 do CCM.
AA. Isto porque incorreu na prática de dois actos ilícitos: colocação a descoberto da conta da A e omissão do dever de devolver ou restituir o cheque n.º XXXX à A depositante, daí que tenha de responder pelos danos que a sua conduta (culposa) tenha causado à A, e que, em primeira linha, se reconduzem ao valor titulado pelo cheque e depois ao valor da perda da clientela, e que resultam inequivocamente da sua conduta (vide art.os 563° e 787.° do CCM).
BB. Saber se o "C Bank" actuou por negligência ou quis assumir o risco do insucesso da cobrança quando creditou a conta do Banco B com o valor do cheque nº XXXX sacado sobre o "D Bank", de Londres, ou se foi enganado pela E, é uma questão de responsabilidade contratual entre o banco correspondente (o "C Bank") e o banco respondente (o Banco B) que não desculpabiliza ou exonera o Banco B da sua responsabilidade para com A.
CC. Neste quadro, o Banco B não pode exigir da A uma compensação por conta de um prejuízo que lhe foi infligido pelo "C Bank", conforme confessou nos artigos 12.° e 68.° a 71.° da Contestação.
DD. Assim, no caso "sub judice", tendo o Banco B confessado que recebeu do "C Bank" a importância titulada pelo cheque n.º XXXX na sequência da sua boa cobrança [cfr. alínea L) e M) dos Factos Assentes e artigos 12.º e 68.º da Contestação], e militando contra si a presunção de incumprimento contratual estabelecida no artigo 788.°, n.º 1 do CCM, improcede necessariamente a reconvenção.
EE. SUBSIDIARIAMENTE, mesmo a entender-se que o Banco tinha o direito de colocar as contas da A. a zero e de exigir à A. que lhe restituísse o valor integral do cheque, nunca poderia ter nascido para a A. a obrigação de restituir a quantia que lhe foi adiantada a coberto da cobrança futura desse cheque.
FF. Isto, enquanto o Banco B não cumprisse a sua obrigação de restituir à A. o cheque n.º XXXX, sacado sobre o "D Bank", de Londres, no montante de GBP345.000,00.
GG. Assim, improcede necessariamente a reconvenção, por força do artigo 426.º, n.º 2 do CCM.
  NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências.
  Assim, mais uma vez, farão V. Ex.as a costumada Justiça.
  Vão as cópias legais.


O Réu respondeu ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo – cf. fls. 381 a 403 dos presentes autos.

II

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).

Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.

Pela presente acção pretende a Autora que o Réu seja condenado a pagar-lhe a quantia correspondente aos montantes que o Réu debitou, alegadamente sem autorização nem fundamentos, nas contas bancárias que abriu no Réu e a quantia de MOP$1.000.000,00, a título de indemnização na modalidade de lucros cessantes, pelos alegados prejuízos resultantes da paragem das suas actividades originada pela impossibilidade de movimentação nas respectivas contas, por actuação do Réu que consiste no procedimento de débitos e de bloqueamento de todos os movimentos a débito nas suas contas.

Por sua vez, o Réu formulou o pedido reconvencional pedindo a condenação da Autora a restituir-lhe a quantia a mais levantada no valor de USD$298.249,37, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.

O Tribunal a quo julgou totalmente improcedente a acção e procedente a reconvenção.

Para tentar conseguir a alteração da decisão na parte que diz respeito à indemnização a título d lucros cessantes, a recorrente começa por impugnar a matéria de facto e pretende, com a versão fáctica pretensamente alterada na sequência do esperado sucesso da impugnação, ver que seja alterada a decisão nessa parte a seu favor.

Em regra, devemos debruçar-nos primeiro sobre as impugnações da matéria de facto.

Todavia, conforme se pede na petição inicial, a pretendida condenação do Réu na indemnização a título de lucros cessantes pressupõe o juízo da ilicitude das actuações por parte do Réu que consistem nos débitos a que procedeu nas contas da Autora.

Assim, em vez de entrar na apreciação da impugnação da matéria de facto, entremos primeiro na apreciação das questões de direito suscitadas pela recorrente que se prendem precisamente com a alegada ilicitude dos débitos efectuados pelo Réu nas contas da Autora.

Assim, são as seguintes questões de direito que constituem o objecto da nossa apreciação, para além da impugnação da matéria de facto que por razões supra relegamos para a final:

1. Da arguição da nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a invocada ilegalidade da cláusula de salvo boa cobrança;

2. Do direito da Autora ao valor do cheque e da legitimidade passiva da Autora no pedido reconvencional;

3. Da legalidade dos débitos efectuados nas contas bancárias da Autora;

4. Da impugnação da matéria de facto;

5. Do pedido reconvencional; e

6. Da devolução do cheque.

Vejamos.

1. Da arguição da nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a invocada ilegalidade da cláusula de salvo boa cobrança

A primeira questão de direito que se coloca é uma arguição da nulidade da sentença por omissão da pronúncia sobre a questão da alegada ilegalidade da cláusula de salvo boa cobrança, prevista no Regulamento de Contas-Poupança em Moeda Estrangeira, junto a fls. 53 do Apenso de procedimento cautelar, arguida nos artºs 42º, 49º, 51º e 52º da réplica.

É verdade que na réplica, a Autora, ora recorrente, questiona a legalidade dessa cláusula de salvo boa cobrança, dizendo que se enquadrando na categoria das chamadas cláusulas contratuais gerais e não tendo sido objecto da comunicação por parte do banco Réu sobre o seu alcance, a tal cláusula é nula e portanto inaplicável nas relações entre a Autora e o Réu.

Lida a sentença, verificamos que efectivamente o Tribunal se limitou a fazer apoiar a fundamentação de direito nessa cláusula de salvo boa cobrança, sem que todavia se tivesse pronunciado sobre a sua legalidade.

É portanto nula a sentença recorrida na parte em que omitiu a pronúncia sobre a legalidade da cláusula de salvo boa cobrança.

Procede assim a arguição da nulidade.

Por força da regra de substituição consagrada no artº 630º/1 do CPC, passe este Tribunal de recurso conhecê-la.

Para o efeito, convém recapitular aqui os factos provados na primeira instância.

Ficou provado que:

  Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora é uma sociedade comercial por quotas que tem por objecto a prestação de serviços de consultoria e apoio técnico à realização de investimentos financeiros (alínea A da Especificação).
- A Autora é titular da conta bancária nºXXXXXX-XXX, aberta aos balcões do banco Réu (alínea B da Especificação).
- Em 26 de Novembro de 1999 a Autora entregou para depósito na mencionada conta o cheque nº XXXX, sacado sobre o D Bank, de Londres, no montante de GBP345,000.00 (alínea C da Especificação).
- Em 16 de Dezembro de 1999 o Réu creditou a aludida conta da ora Autora no montante de USD$553.490,17, por conversão para esta moeda do montante em libras do cheque supra referido (alínea D da Especificação).
- Decorrido algum tempo, a ora Autora procedeu a alguns movimentos a débito, sobre a referida conta (alínea E da Especificação).
- Em 30 de Dezembro de 1999 o Réu procedeu ao débito da conta da ora Autora, no montante total que a mesma na altura apresentava, i. e., USD$253.191,92, colocando a conta com saldo zero (alínea F da Especificação).
- Nesse mesmo dia 30/12/99 o banco réu procedeu ao débito de outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora, com os nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, nos montantes respectivos de HK$15.272,10 e MOP$681,1l, saldos que as mesmas apresentavam e que assim ficaram, também, a zero (alínea G da Especificação).
- O banco réu comunicou, ainda, à ora Autora que esta devia repor o montante de USD$298.249,37, correspondente à parte necessária para perfazer o total do supra mencionado cheque, cujo montante foi creditado à Autora em 16 de Dezembro (alínea H da Especificação).
- O banco réu não devolveu o cheque à Autora (alínea I da Especificação).
- O Réu tem por correspondente, em Londres, o C Bank, sediado em 1 XXXXXXXXXX, United Kingdom, que executa as suas instruções de cobrança de cheques sacados sobre outros bancos da praça de Londres (alínea J da Especificação),
- Mediante a apresentação desses títulos a compensação (alínea K da Especificação).
- No dia 26 de Novembro, o Réu remeteu o cheque ao C Bank, solicitando-lhe que diligenciasse a respectiva cobrança e creditasse o valor do cheque na sua conta junto daquele seu correspondente, após pagamento final do mesmo (alínea L da Especificação).
- O C Bank lançou na conta do Réu os fundos equivalentes ao valor do cheque em 13 de Dezembro (alínea M da Especificação).
- Seguindo um procedimento de rotina, ditada por razões de cautela, o Réu deixou passar dois dias sobre esse lançamento (alínea O da Especificação).
- Não tendo entretanto recebido aviso em contrário do C Bank, veio a creditar a conta da Autora em 16 de Dezembro, informando-o de tal facto na mesma data (alínea P da Especificação)
- o Réu só creditou a conta da Autora e avisou o crédito à Autora porque o C Bank o notificou da boa cobrança, chegando ao ponto de abonar a própria conta que o Réu mantém junto dele, em Londres, com o montante do cheque (alínea Q da Especificação).
***
Da Base Instrutória:
- Em 28 de Dezembro, o C Bank enviou uma mensagem swift ao Réu a comunicar que o cheque fora devolvido sem ter sido honrado (resp.osta ao quesito 8º).
- O cheque fora devolvido sem pagamento por o D Bank ter sido encerrado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10º).
- Em 25 de Fevereiro de 2000, o Réu recebeu uma carta do D Bank PLC que avisava que o D Bank estava fechado desde 1974 e que nem o nome do sacador do cheque nem o número da conta sacada tinham sido localizados (resposta ao quesito 10°-A).

Sinteticamente falando, o litígio in casu surge na execução de um mandato consistente na cobrança de um cheque sacado sobre um banco estrangeiro e a creditação do valor do cheque na conta de depósito à ordem, aberta pela Autora mandante no banco Réu mandatário.

Para o efeito, a Autora entregou ao banco Réu um cheque, aparentemente emitido por um banco estrangeiro.

Sucede que esse banco estrangeiro sacado se encontrava já encerrado desde 1974 e antes da efectiva cobrança do cheque e que a Autora já procedeu, por várias vezes, levantamento da parte do valor do cheque entretanto já creditado na sua conta bancária pelo Réu.

E o banco Réu, informado só mais tarde do inêxito da cobrança por encerramento do banco sacado desde 1974, procedeu ao débito da conta da Autora no montante correspondente ao saldo existente na conta, no valor de USD$23.191,92, e ao débito das outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora e abertas no Réu, nos valores de HKD$15.272,10 e MOP$681,11, também correspondentes aos saldos existentes nas respectivas contas.

Ante a fisionomia da relação controvertida acima configurada, assim como a forma como se redigiu a fundamentação da sentença recorrida, verificamos que existe um facto, para nós essencialíssimo e indispensável à boa decisão da acção e do pedido reconvencional, que tendo sido embora alegado pelo Réu na sua defesa e não impugnado pela Autora, não foi levado nem à especificação nem à base instrutória.

É o facto de existirem, no documento nº 8 junto com a oposição deduzida pelo Réu no apenso de procedimento cautelar, as seguintes menções expressas, em chinês e em inglês:

上述票據淨值俟收妥後將進入尊賬
Net proceeds will be credited your Acc. only after the above-mentioned item(s) is cleared.
如有錯誤或退票則本銀行有權勾銷該項進賬
We reserve the right to debit your Acc. if the item(s) is retured unpaid”.

Ou seja, uma cláusula estipulando que a creditação do valor do cheque na conta bancária da Autora é feita sob reserva de boa cobrança.

Apesar de a Autora vir questionar quer na réplica quer em sede do presente recurso a validade ou os efeitos jurídicos a extrair dessa cláusula de salvo boa cobrança, o certo é que nunca impugnou o simples facto de existir um tal documento, que lhe foi entregue pelo Réu, no momento de depósito do cheque, contra a entrega do cheque, nem o seu teor.

Tratando-se de um facto não impugnado e provado por documentos não impugnados, o facto de que “em 26NOV1999, data em que a Autora entregou o cheque ao Réu para ser depositado na conta bancária, o Réu emitiu-lhe, contra a entrega do cheque, um documento, ora junto aos autos de apenso a fls. 113 (doc. nº 8 da oposição apresentada pelo banco)” pode ser tido em conta para a fundamentação de direito, nos termos autorizados pelo artº 562º/3 do CPC.

Passemos então a analisar a legalidade dessa cláusula constante do documento.

Para a Autora, ora recorrente, a tal cláusula enquadra-se na categoria das chamadas cláusulas contratuais gerais, e na sua óptica, não tendo sido objecto de comunicação por parte do banco Réu, sobre o seu alcance e as suas implicações, essa cláusula não pode ser invocada pelo banco Réu para agir como agiu.

Então vejamos.

Como se sabe, os bancos são entidades legalmente habilitadas a praticar, profissional e lucrativamente, por meio de contratos celebrados com o cliente, uma multiplicidade de actos bancários e prestar uma multiplicidade de serviços bancários a favor ou em nome dos seus clientes.

Entre os quais, temos a abertura da conta bancária e aceitação do depósito de cheque na conta bancária já aberta, que precisamente são os actos em causa na presente acção.

Indubitavelmente quer a abertura da conta bancária quer o depósito de um cheque sacado sobre outro banco fazem-se mediante a celebração de um contrato, permanente ou isolado, entre o banco e o cliente.

Pois uma conta bancária, para além da sua função tradicional de possibilitar movimentações de depósito e levantamento de fundos, em não poucas vezes serve-se de um importante instrumento ao serviço de outras actividades bancárias, nomeadamente para a disponibilização do valor de um cheque após a efectivação da sua cobrança por conta e por risco do seu cliente, como in casu sucede.

Na maioria de casos, por razões da celeridade e da eficiência, tais contratos bancários são contratos de adesão.

A propósito de contratos utilizados pelos bancos nas suas actividades profissionais, escreve José Maria Pires que:
“……na maioria dos contratos bancários, não existe, ou existe em termos muito limitados, a referida fase negociatória, em que os contraentes participam, em pé de igualdade, no estabelecimento das respectivas cláusulas. Pelo contrário, o cliente sujeita-se a aceitar um texto inteiramente elaborado pelo banco. Apenas fica com a possibilidade de rejeitar em bloco a fórmula contratual que lhe é oferecida: a formação do contrato, no que respeita à participação do cliente, depende somente da sua adesão.
……
Os contratos bancários, quando celebrados por adesão, assentam num conjunto de condições gerais, fixadas de modo inalterável pelo banco (o contraente aderido), cabendo apenas a cada um dos interessados (aderentes), para que o contrato se forme, aprovar, em bloco, as cláusulas que lhes são apresentadas de forma unilateral. Raramente, o cliente consegue introduzir modificações nestas cláusulas gerais e, na prática, ele é constrangido a aceitar as condições unilateralmente impostas pelo banco. Resta-lhe a liberdade de não celebrar o contrato.
Como medida de protecção de abusos na redacção das cláusulas gerais dos contratos de adesão, algumas legislações, entre as quais a portuguesa, têm procurado estabelecer regras respeitantes não só à clareza e simplicidade dessas cláusulas, mas também ao respeito da boa fé e do equilíbrio das prestações.” – in Direito Bancário, 2º vol. As Operações Bancárias, pág. 63 a 64.

Paralelamente em Macau, temos o regime jurídico das cláusulas gerais contratuais definido na lei nº 17/92/M de 28 de Setembro, que sendo lei geral, se aplica aos contratos bancários.

Como se sabe, por força do princípio da autonomia privada e da liberdade contratual, no seu colorário da liberdade de estipulação, as partes são livres de fixar o conteúdo dos contratos para compor os seus interesses.

Se é verdade que hoje em dia a lei não pode proibir, por ser irrealista senão impossível, a utilização dos contratos padronizados com cláusulas pré-dispostas por uma das partes, o certo é que a lei deve estabelecer as condições da sua utilização de modo a que a autonomia privada e a liberdade de estipulação possam ser eficazmente exercidas.

Para o efeito, a Lei nº 17/92/M de 28SET impõe nos seus artºs 5º e 6º a quem pretende utilizar cláusulas contratuais gerais nas suas actividades o cumprimento dos deveres de comunicação e de informação.

Rezam ai que:

Artigo 5.º (Dever de comunicação)
1. As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra àqueles que se limitem a subscrevê-las ou aceitá-las.
2. A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3. O ónus da prova da comunicação das cláusulas contratuais gerais, efectuada nos termos dos números anteriores, incumbe ao contratante que delas se prevaleça.

Artigo 6.º (Dever de informação)
O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais no âmbito da sua actividade deve informar a outra parte dos aspectos nelas compreendidos, prestando-lhe, ainda, os esclarecimentos solicitados.

Por força desses normativos, a utilização válida das cláusulas contratuais gerais no contrato singular deve ser sempre precedida do cumprimento por parte de quem as pretende utilizar, de certos deveres específicos, que consistem na comunicação e na prestação de informação à parte aderente, sobre o seu alcance, o seu significado e as suas implicações, e de todos os esclarecimentos razoáveis solicitados, tendo em conta as particularidades do caso concreto.

O não cumprimento desses deveres conduzirá à exclusão da cláusula inserida no contrato singular e portanto à não vinculação da parte aderente – cf. o artº 8º da mesma lei.

Por cláusulas contratuais gerais entende-se as que são previamente formuladas para valer num número indeterminado de contratos e que uma das partes apresenta à outra, que se limita a aceitar, para a conclusão de um contrato singular – cf. o artº 1º/2 da mesma lei.

In casu, não temos dúvidas de que, face essa definição legal, a cláusula de salvo boa cobrança constante do Rules and Regulations Governing Foreign Currency Savings Accounts (vide o documento junto pela Autora no apenso de procedimento cautelar a fls. 46) é integrável na categoria de cláusulas contratuais gerais.

E interessa saber se foi dado cumprimento aos deveres de comunicação e de informação.

Reza o artº 5º/3 da Lei nº 17/92/M que incumbe ao contratante que delas se prevaleça o ónus da prova da comunicação das cláusulas contratuais gerais.

Analisados os autos, verificamos que, para além da fotocópia autenticada da caderneta da conta em causa, junta pela própria Autora no apenso de procedimento cautelar a fls. 46, da qual consta o regulamento do depósito de moedas estrangeiras, cuja cláusula 12ª estabelece que “all cheque and monetary instruments accepted by the Bank for deposit are credited subject to final payment. The bank reserve the right to charge the depositor´s account with items which are subsequently returned unpaid.”, ficou também assente por não ter sido impugnado o facto de que “em 26NOV1999, data em que a Autora entregou o cheque ao Réu para ser depositado na conta bancária, o Réu emitiu-lhe, contra a entrega do cheque, um documento, ora junto aos autos de apenso a fls. 113 (doc. nº 8 da oposição apresentada pelo banco)”.

Pela leitura do teor desse documento, sabemos que se trata de uma declaração emitida pelo banco Réu contra o recebimento do cheque para ser depositado na conta titulada pela Autora, da qual constam as seguintes menções expressas, redigidas em chinês e em inglês:

上述票據淨值俟收妥後將進入尊賬
Net proceeds will be credited your Acc. only after the above-mentioned item(s) is cleared.
如有錯誤或退票則本銀行有權勾銷該項進賬
We reserve the right to debit your Acc. if the item(s) is retured unpaid”.

Ora, essas menções expressas, de que “o depósito do valor titulado pelo cheque só se torna efectivo após a boa cobrança e que a creditação poderá vir a ser anulada caso ocorram erros ou inêxito da boa cobrança, e se for caso disso o banco terá direito de anular a creditação”, constantes da declaração de recebimento do cheque emitida pelo banco Réu, não podem deixar de valer como a comunicação em observância dos moldes prescritos no artº 5º/1 e 2 da Lei nº 17/92/M, à luz dos quais “as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra àqueles que se limitem a subscrevê-las ou aceitá-las e a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.”.

Pois perante uma declaração do tal teor, emitida pelo banco Réu no momento em que a Autora se dirigiu ao seu balcão solicitando o serviço de cobrança do cheque sacado sobre uma instituição bancária sediada no estrangeiro e o subsequente depósito do valor do cheque na conta bancária aberta no Réu, caso venha a ser bem cobrado o cheque, o seu destinatário, ora Autora, enquanto sociedade comercial por quotas dedicada à prestação de serviços de consultoria e apoio técnico à realização de investimentos financeiros (cf. alínea A da especificação), com certeza dotada do pessoal suficientemente qualificado para compreender o alcance e o significado dessas expressões e as suas implicações, não pôde não ficar a saber que o cheque foi recebido sujeito a boa cobrança e as consequências em caso do inêxito da boa cobrança.

Por outro lado, para além de se não integrar em qualquer das situações de proibição absoluta e relativa, exemplificadas nos artºs 12º e 13º da citada Lei nº 17/92/M, não nos parece que a tal cláusula de salvo boa cobrança se mostre contrária ao princípio da boa-fé ou susceptível de prejudicar inadequadamente a Autora aderente por afectar o equilíbrio das prestações – artº 11º da mesma lei.

De facto, por razões múltiplas que estão fora do seu controlo, tais como a falta de provisão, a falsidade do cheque, o encerramento do banco sacado, etc., o banco pode obviamente não ter a capacidade de cumprir com êxito o mandato de cobrança.

Assim, entendemos que o banco tem toda a legitimidade e justificação para inserir no contrato celebrado com a Autora uma tal cláusula.

Tendo in casu sido dado cumprimento aos deveres de comunicação e de informação a que se referem os artºs 5º e 6º da citada lei nº 17/92/M, é de concluir com segurança que estamos perante uma cláusula válida que vincula a Autora, enquanto aderente.

Não procedem assim as razões avançadas pela recorrente para questionar a validade da cláusula de salvo boa cobrança.

Improcede assim essa parte do recurso.

2. Do direito da Autora ao valor do cheque e da legitimidade passiva da Autora no pedido reconvencional

Sendo válida que é a cláusula de salvo boa cobrança, a creditação do valor do cheque na conta da Autora não pode deixar de ser provisória e a Autora deveria contar que, se a condição de boa cobrança não se verificasse, a creditação seria anulada e ela teria de reembolsar o banco Réu por via de procedimento a débito da mesma conta ou de compensação. Pois o comprovado inêxito da cobrança do cheque conduz necessariamente à anulação da creditação do valor na conta bancária da Autora, pura e simples por força do funcionamento da tal cláusula.

Não é exacto, como pretende a recorrente, que como o banco Réu
Creditou o valor do cheque na conta da Autora depois de ter obtido a notificação da boa cobrança feita pelo C Bank, o valor do cheque já se consolidou como um valor firme na conta da Autora.

Tendo ficado provado que o banco sacado já foi encerrado desde 1974, a notificação da boa cobrança é necessariamente feita por lapso.

E o lapso nunca pode ser constitutivo do direito.

Também não procede o argumento invocado pela Autora de que a pretensão do banco Réu deveria ter sido movida contra o C Bank, e não contra quem lhe nada deve e de que ela não tem legitimidade passiva no pedido reconvencional, pois tendo a Autora, depositante, sacado do depósito para além dos fundos depositados, para tal não estava justificada, já se constituiu perante o banco Réu na obrigação de restituir o montante a mais levantado.

Assim sendo, a Autora não pode deixar de ser parte legítima no pedido reconvencional.

3. Da legalidade dos débitos efectuados nas contas bancárias da Autora

Passemos então a apreciar a legalidade dos débitos efectuados pelo banco nas contas nºs XXXXXX-XXX, XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX para a compensação dos valores entretanto já levantados pela Autora.

In casu, está em causa uma conta bancária de depósito à ordem.

Tradicionalmente falando, o depósito bancário à ordem tem sido entendido pela doutrina como um depósito irregular – cf. António Menezes Cordeiro, in Direito Bancário, 5ª edição, revista e actualizada, pág. 613.

Diz-se irregular o depósito que tem por objecto coisas fungíveis, a que a lei manda aplicar, na medida do possível, as normas relativas ao contrato de mútuo.

Mas também há quem defende que o depósito bancário é um contrato misto, com elementos do depósito e do mútuo, normalmente determinado por cláusulas contratuais gerais e pelos usos e que não corresponde, precisamente, a nenhuma figura preexistente, sendo uma figura unitária, típica, autónoma e próxima do depósito irregular – op.cit., pág.608 e 614.

Ora, independentemente da opção por uma ou por outra tese doutrinária, parece ser de afirmar que com a celebração do contrato de depósito à ordem entre o banco e o seu cliente, o banco adquire a titularidade do dinheiro que lhe é entregue e torna-se devedor do valor do dinheiro, ao passo que o cliente passa a ser credor do mesmo valor que é exigível a todo o tempo ao banco.

Tendo em conta os elementos que em abstracto caracterizam um contrato de depósito bancário à ordem, podemos concluir que in casu, a Autora, na veste de depositante, nunca está legitimada a sacar do depósito o valor do cheque cuja cobrança a final fracassou por o banco sacado ter sido encerrado desde 1974.

Com os movimentos a débito a que procedeu na sua conta bancária nº XXXXXX-XXX, a Autora sacou para além dos fundos depositados na sua conta bancária, tendo-se portanto tornado devedor em relação ao banco no valor que excede o saldo existente e constituído na obrigação de restituir o montante a mais levantado.

Ora, ficou provado que

Em 30 de Dezembro de 1999 o Réu procedeu ao débito da conta da ora Autora, no montante total que a mesma na altura apresentava, i. e., USD$253.191,92, colocando a conta com saldo zero; e

Nesse mesmo dia 30/12/99 o banco réu procedeu ao débito de outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora, com os nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, nos montantes respectivos de HK$15.272,10 e MOP$681,1l, saldos que as mesmas apresentavam e que assim ficaram, também, a zero; e

O banco réu comunicou, ainda, à ora Autora que esta devia repor o montante de USD$298.249,37, correspondente à parte necessária para perfazer o total do supra mencionado cheque, cujo montante foi creditado à Autora em 16 de Dezembro.

O Réu procedeu assim para reaver o valor do cheque não cobrado e entretanto já levantado pela Autora.

Então, interessa saber se o Réu pode operar movimentos nas contas da Autora de modo a fazer funcionar o instituto da compensação com vista à recuperação da perda.

O instituto de compensação comum se encontra previsto no Código Civil.

Ora, para António Menezes Cordeiro, na falta de renúncia expressa no contrato do depósito, a compensação comum prevista na lei geral funciona sempre, dependendo somente da verificação dos seus requisitos – op. cit. pág. 591.

O instituto de compensação é uma das causas das obrigações para além do cumprimento e previsto no artº 838º do CC que reza:

1. Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio da compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos cumulativos:
a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material;
b) Terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
2. Se as duas dívidas não forem de igual montante, pode dar-se a compensação na parte correspondente.
3. A iliquidez da dívida não impede a compensação.

In casu, verificam-se os requisitos da exigibilidade judicial dos créditos e da fungibilidade dos créditos.

Pois tal como afirmámos supra, a Autora é por um lado o simples credor dos saldos existentes em todas as contas bancárias, e por outro está obrigado a restituir ao Réu o montante a mais levantado.

O Réu é devedor dos saldos positivos existentes nas contas da Autora e é obrigado a assegurar, a todo o tempo, à Autora a disponibilidade dos saldos.

A Autora e o Réu obrigam-se reciprocamente às prestações homogeneamente pecuniárias.

Estando verificados assim todos os requisitos exigidos no artº 838º do CC para o instituto de compensação, resta saber se se verifica também o requisito operativo da eficácia da compensação a que se alude o artº 839º/1 do CC.

Em face do disposto no artº 839º/1 do CC, o Réu tem de dirigir uma declaração à Autora.

Lida a matéria de facto provada, verificamos que apesar de ficar provado apenas que:

* Em 30 de Dezembro de 1999 o Réu procedeu ao débito da conta da ora Autora, no montante total que a mesma na altura apresentava, i. e., USD$253.191,92, colocando a conta com saldo zero (alínea F da Especificação);
* Nesse mesmo dia 30/12/99 o banco réu procedeu ao débito de outras duas contas de depósitos tituladas pela Autora, com os nºs XXXXXX-XXX e XXXXXX-XXX, nos montantes respectivos de HK$15.272,10 e MOP$681,11, saldos que as mesmas apresentavam e que assim ficaram, também, a zero (alínea G da Especificação); e
* O banco réu comunicou, ainda, à ora Autora que esta devia repor o montante de USD$298.249,37, correspondente à parte necessária para perfazer o total do supra mencionado cheque, cujo montante foi creditado à Autora em 16 de Dezembro (alínea H da Especificação).

Ou seja, sem que tenha sido feita qualquer referência a tal declaração imposta pelo artº 839º/1 do CC.

Todavia, conjugando esta matéria especificada com o facto confessado pela Autora no artigo 25º da petição de que “no próprio dia 30 de Dezembro, por sua iniciativa, o R. escreveu à A. a carta que constitui o doc. 4 do requerimento da providência”, o tal requisito operativo da eficácia da compensação deve ser considerado verificado.

Pois consta dessa carta, datada de 30DEZ1999, que constitui o documento nº 4 que se juntou pela ora Autora com o requerimento inicial do procedimento cautelar, cuja junção e cujo teor não foi impugnado pelo Réu, o seguinte:

……
In this connection, we have on the date hereof debited your accounts XXXXXX-XXX, XXXXXX-XXX and XXXXXX-XXX of all the outstanding balances fro USD253,191.92, HKD15,272.10 and MOP681,11 respectively and after converted to USD at prevalent exchange rates, there is a shortfall of USD298,249.37 which we demand your immediate repayment with interest.
……

Não tendo embora esta matéria aceite por ambas as partes sido levada à especificação da matéria assente, nada impede que ao abrigo do disposto no artº 562º/3 do CPC, seja tida em consideração para a fundamentação da decisão de direito.

Ora, pelo facto de por via da carta de 30DEZ1999 o Réu ter comunicado à Autora que se tinha procedido aos débitos nas três contas da Autora, já estamos habilitados a concluir que se verifica in casu o requisito operativo da eficácia da compensação por ele efectuada nas três contas bancárias da Autora, nos termos prescritos no artº 839º do CC que faz depender a eficácia da compensação da declaração de uma das partes à outra.

4. Da impugnação da matéria de facto

Pelo que ficou dito supra, concluímos pela legalidade das actuações do Réu por funcionamento do instituto de compensação, não se torna necessária a reapreciação da matéria de facto na parte que exclusivamente tem em vista a demonstração dos danos alegadamente imputados às actuações do Réu e a consequente responsabilização do Réu pelos danos na modalidade de lucros cessantes.

5. Do pedido reconvencional

Em face de tudo quanto que ficou dito supra e tendo em conta que após a compensação operada pelo Réu nas contas bancárias da Autora, esta fica ainda a dever ao Réu a quantia de USD$298.249,37, correspondente à diferença entre o valor entretanto levantado pela Autora e o total dos débitos efectuados em 30DEZ1999 pelo Réu nas três contas da Autora.

Portanto, é de manter a condenação da Autora na restituição ao Réu desse montante, assim como a condenação nos juros de mora nos exactos termos já consignados na sentença recorrida.

6. Da devolução do cheque

A Autora formulou o pedido subsidiário na petição inicial pedindo a devolução do cheque, se os pedidos principais não vierem a ser atendidos pelo Tribunal.

Não se tendo verificado, conforme se vê supra, a boa cobrança do cheque, é exacto que a Autora depositante tem direito à devolução do cheque.

O Tribunal a quo condenou condicionalmente o Réu a devolver o cheque à Autora, ou seja, só será devolvido o cheque caso a Autora venha a cumprir a condenação na restituição do montante de USD$298.249,37, e no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos.

Todavia, não é de manter esse condicionante, uma vez que as eventuais causas de não cumprimento das condenações deverão ser objecto da invocação em sede da execução da sentença.

Procede assim esse pedido subsidiário da devolução do cheque.

Tudo visto, resta decidir.

IV

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em não tomar conhecimento da impugnação da matéria de facto e julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora A, Lda., determinando:

* A revogação da sentença recorrida na parte que faz depender a condenação do Réu Banco B do cumprimento por parte da Autora da condenação na restituição a favor do Réu da quantia de USD$298.249,37, e no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos, passando a condenar tão só o Réu a devolver à Autora o cheque nº XXXX, sacado sobre o D Bank de Londres;

* Manter na íntegra todas as restantes condenações feitas pelo Tribunal a quo na sentença recorrida.

Custas pela recorrente e pelo recorrido, na proporção do decaimento.

Registe e notifique.

RAEM, 22JAN2015

Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng