Processo nº 853/2012-I
Data do Acórdão: 12FEV2015
Assuntos:
Arma de defesa
Conceito indeterminado
Princípio da igualdade
SUMÁRIO
A expressão “necessidade para a sua defesa pessoal ou da sua família, em razão das suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional”, exigido como requisitos pelo artº 27º/1 do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 77/99/M para a concessão da licença de uso de arma, é um conceito indeterminado. Para a captação do seu sentido e do seu alcance e a integração da situação concreta nesses requisitos pressupõe um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 853/2012-I
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
A, devidamente identificado nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Secretário para a Segurança que, em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão do Senhor Comandante da PSP que lhe indeferiu o pedido da concessão da licença de uso e porte de arma de defesa, formulado por ele ao abrigo do disposto no artº 27º do do D. L. nº 77/99/M de 08NOV, concluindo e pedindo que:
1. O recurso Hierárquico do despacho do Sr. Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau que indeferiu a concessão da licença de uso e porte de arma ao recorrente, para do Sr. Secretário para a Segurança, tem natureza hierárquica e não facultativa, porquanto;
2. O acto do Senhor Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau foi praticado no uso ao abrigo de competência própria mas não exclusiva.
3. Ou seja, a competência do Sr. Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau é própria, mas separada.
4. O que significa duas coisas, a primeira é que o que o recurso hierárquico para o Sr. Secretário para a Segurança é um recurso hierárquico necessário uma vez que a definitividade vertical só conclui com a posição do Sr. Secretário para a Segurança.
5. E a segunda é que nos termos do artigo 161º o Superior Hierárquico, tem o poder de reexame do caso concreto à luz da legalidade e da inconveniência do acto.
6. Neste sentido, o Sr. Secretário para a Segurança deveria ter apreciado o recurso enquanto reexame ao acto praticado pelo Senhor Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau, com o claro objectivo do controle da legalidade e da inconveniência da decisão tomada pelos eu subalterno.
7. E não o fez!
8. Ficou-se por uma mera indicação das provas apresentadas e uma descrição dos fundamentos do indeferimento do acto do Senhor Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau, nada mais!
9. O acto o Sr. Secretário para a Segurança enferma dos mesmos vícios que o acto do Senhor Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau.
10. Nos termos do artigo 159º do CPA, o autor do acto apenas deve pronunciar-se sobre o recurso, cabendo ao superior hierárquico a apreciação da legalidade do mesmo, artigo 161º do CPA.
11. Essa apreciação tem de ser feita pelo superior hierárquico no contraponto quer dos fundamentos do recurso, quer dos fundamentos do acto.
12. Assim o acto de indeferimento do Sr. Secretário para a Segurança enferma do vicio de violação de lei e de falta de fundamentação, porquanto;
13. De facto, desde 1986 que o requerente é titular de licença de uso e posse de arma;
14. Tal licença, nº 13/86 foi-lhe concedidada ao abrigo do artigo 26º do Decreto-Lei nº 77/99/M enquanto exercia funções como Inspector Assessor na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
15. Como ficou dito no requerimento inicial, a motivação para a concessão da licença de uso e porte de arma nº 13/86 prendeu-se com exercício do cargo de inspeção de jogos, onde durante estes anos todos até à aposentação foi requisitado como testemunha de acusação em inumeros processos judiciais, (vide processo instrutor), em inúmeros intervenções em procedimentos de notificações administrativas, rusgas de identificação de promotores de jogo ilegais, repressão e apreensão de jogos ilícitos fora dos casinos.
16. È um facto que entre os anos de 1996 e 1999, anos conturbados em Macau devido às chamadas "Guerras das Seitas", o requerente teve intervenção directa em muitos das operações materiais que visaram por cobro as situações acima referidas tais como, combate ao jogo ilícito e identificação dos promotores desses jogos.
17. No cumprimento da lei e do seu estatuto, o requerente foi criado inimizades, persistentemente ameaçado e intimidado pelos infractores com os quais se relacionava no âmbito das suas funções.
18. O requerente recebeu ameaças expressas verbais à sua vida e da sua família relacionadas com o exercício da sua actividade profissional como escritos deixados no pára-brisas do seu automóvel testemunhado por colegas e amigos.
19. Estas ameaças deixaram marcas profundas quer na vida quotidiana do requerente, quer na vida da sua família.
20. O receio sempre latente que qualquer vingança fosse cometida contra ele e sobretudo contra a sua família, foram criando enorme pressão no requerente, até mesmo no seu subconsciente que está sempre alerta para perigos imprevisíveis.
21. Se tal acontecia enquanto o requerente estava no exercício das suas funções, actuando na defesa da legalidade da RAEM, compreender-se-á, que os factores, quer materiais, quer psicológicos de insegurança, de ameaça e de intimidação não de desapareceram, com aposentação do requerente.
22. Por isso continuam actuais.
23. No entender do requerente, não se pode traçar uma linha estanque entre o "antes" e o "depois" da aposentação para estes efeitos.
24. Isto é, o sentimento de insegurança material e psicológica existe quer antes quer depois da aposentação.
25. Ou dito de outra forma, não se pode dizer que antes da aposentação havia sentimento de insegurança e depois da aposentação e por causa da aposentação deixou de haver esse sentimento.
26. Esse sentimento de insegurança é actual.
27. Entende o requerente, que claramente fez prova no seu requerimento inicial do risco concreto para a sua integridade física ou dos seus familiares.
28. Reconhecendo-se que o acto em causa é um acto discricionário da Administração, ele é também é vinculado quanto ao fim.
29. Assim, não pode a Administração prosseguir o interesse público sem uma justa ponderação dos interesses privados em jogo, no caso os do requerente.
30. Se o fim da norma tem em vista a segurança e ordem pública, ela apresenta-se como "duas faces da mesma moeda".
31. Por um lado o fim público da norma visa acautelar a segurança e ordem pública com a proibição do uso e porte de arma sem a devida licença.
32. E por outro, a norma acautela também a necessidade, por segurança e ordem publica de alguns cidadãos obter a respectiva licença, veja-se artigo 272 nº 1 e nº 2 do Regulamento Administrativo de Armas e Munições.
33. Nesta ponderação de interesses, chama-se a colação o princípio da proporcionalidade.
34. No desdobramento deste princípio, há clara violação por parte da Administração do subprincípio da adequação, porquanto, como atrás se disse, não é adequado para a segurança do particular deixa-lo sem licença de uso e porte de arma logo após a aposentação, depois de longos anos de trabalho em contacto com inúmeros infractores que lhe proferiram ameaças atrás referidas.
35. Como se o particular a partir do estatuto de aposentado fica-se automaticamente livre do perigo da insegurança.
36. Por outro lado, há também claramente violação do subprincípio da necessidade, porquanto das várias medidas que visam satisfazer o interesse publico, deve ser aplicada a menos gravosa para o particular.
37. Neste sentido, chama-se a atenção que o interesse público é também prosseguido com a concessão da licença de uso e porte de arma.
38. Face aos pressupostos existentes no procedimento a menos gravosa não pode ser a não concessão da licença como é óbvio.
39. No entendimento do requerente, a menos gravosa poderá passar por uma licença provisória com prazo não inferior a 5 anos.
40. Por outro lado, e por consequência, o subprincípio do equilíbrio também não está a ser respeitado, quando de um momento para outro, e face a imprevisibilidade do perigo, o requerente deixou de ter licença e porte de arma.
41. No fundo, a Administração considerou que para prossecução do interesse público de segurança e ordem pública, após aposentação do funcionário, ficaria assegurado sem a licença de uso e porte de arma do requerente, sem a devida ponderação dos interesses do particular, o que se traduz numa clara violação do equilíbrio da decisão.
42. Por outro lado, não pode a Administração vir refugiar-se no facto do antigo serviço do recorrente, apenas dizer que o mesmo tinha bom comportamento, mas não fazendo qualquer recomendação (vide processo instrutor) para conceder a licença de uso e porte de arma, como conclusão se o recorrente tivesse necessidade o antigo serviço teria recomendado.
43. A conclusão é manifestamente abusiva, e viola claramente a lei.
44. É abusiva, porque não se pode tirar conclusões de declarações que não foram feitas e é ilegal porque não está na lei, em primeiro lugar a obrigatoriedade de se pedir parecer ao antigo serviço do recorrente e em segundo a vinculatividade de tal parecer.
45. Mais, o principio da igualdade previsto no artigo 25º da Lei Básica de Macau e artigo 5º do CPA também não está a ser respeitado, porquanto, outros seus colegas, inspectores aposentados da foi-lhes concedida licença de uso e porte de arma, a saber, os Inspectores B, C, D, E.
46. Veja-se a este propósito o acórdão do TUI de 17.05.2007 - Proc. 544/06
47. Ora, o princípio da igualdade exige um tratamento igual a situações iguais, de modo a que a que a disciplina jurídica e uniformidade seja igual para todos.
48. Trata-se de uma auto-vinculação da própria Administração que visa no âmbito dos seus poderes discricionários adoptar critérios substancialmente idênticos.
49. A tudo isto acresce que, o requerente nada tem no seu cadastro criminal ou disciplinar qualquer registo de desacato ou excesso no uso com a sua arma de defesa pessoal.
50. Pelo exposto, entende o requerente que o despacho de indeferimento do Senhor Comandante do Corpo de Policia de Segurança de Macau, é ilegal por vício de violação de lei e falta de fundamentação;
51. Também por tudo o exposto, o requerente entende também que o acto é inconveniente à luz do interesse publico em jogo e aos pressupostos de facto constantes no procedimento.
Pedido
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V.Exa. requer-se:
Anulação do despacho Sr. Secretário para a Segurança que indeferiu em sede recurso hierárquico a concessão de licença de uso e porte arma ao recorrente, por vício de violação de lei, por falta de fundamentação e por violação do princípio da igualdade.
Citado, veio o Senhor Secretário para a Seguranças a contestar, deduzindo a excepção de irrecorribilidade do acto recorrido e pugnando subsidiariamente pela improcedência do recurso.
Por Acórdão deste TSI de 31OUT2013, foi julgada procedente a excepção da irrecorribilidade do acto recorrido e rejeitado recurso.
Inconformado veio o recorrente recorrer para o Venerando TUI.
Por Acórdão de 09JUL2014, o TUI julgou procedente o recurso jurisdicional interposto pelo recorrente daquele Acórdão deste TSI de 31OUT2013, revogando o Acórdão recorrido e determinando a baixa dos autos a este TSI para conhecer das questões suscitadas em sede do recurso contencioso.
Retomada a tramitação nesta instância e não havendo lugar à produção de provas, foram o recorrente e a entidade recorrida notificados para apresentar alegações facultativas.
Veio apenas o recorrente apresentá-las reiterando grosso modo os mesmos fundamentos já deduzidos na petição do recurso.
Em sede da vista final, o Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer que o recurso merecia provimento – vide as fls. 57 – 58v dos p. autos.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
De acordo com os elementos existentes nos autos, é tida assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:
* O recorrente A era inspector assessor da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos (DICJ) e desligou-se do serviço por aposentação voluntária após 36 anos de serviço em 03JAN2012;
* Era titular da licença para uso e porte de arma de defesa nº 13/86 emitida pela PSP em virtude do exercício das funções como inspector da DICJ que era válida enquanto se mantivesse nas funções;
* Licença essa que caducou no momento da desligação do recorrente do serviço por aposentação;
* Mediante o requerimento em 15FEV2012 dirigido ao Senhor Comandante da PSP, o recorrente requereu a concessão da licença de uso e porte de arma de defesa, ao abrigo do disposto no artº 26º do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 77/99/M;
* Invocou, como fundamento do seu pedido, que “por ter sido requisitado por inúmeras vezes pelo Tribunal de Macau na qualidade de perito de jogos e como testemunhas, ter criado profissionalmente inimizades e receando represálias”;
* Em face do requerimento, a PSP solicitou por ofício à DICJ informações sobre se permaneciam as razões determinativas da concessão da licença anterior em virtude do exercício das funções e informações sobre a classificação do serviço do recorrente nos últimos 5 anos;
* Em resposta ao solicitado, a DICJ informou a PSP de que a cessação das funções do recorrente tornou desnecessária a posse da arma de defesa em virtude do exercício das funções e que se não registou qualquer infracção disciplinar do recorrente nos últimos 5 anos antes de aposentação e obteve a classificação de «Satisfaz Muito» no mesmo período de tempo;
* Por despacho do Senhor Comandante da PSP, foi indeferido o requerido pelo recorrente com fundamento na não reunião do requisito constante no artº 27º/1-c) do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 77/99/M;
* Inconformado com o decidido, interpôs recurso hierárquico para o Senhor Secretário para Segurança;
* Em sede desse recurso hierárquico, para sustentar o fundamento já invocado no requerimento inicial dirigido ao Senhor Comandante da PSP, juntou vários documentos, ora juntos ao p. a. a fls. 25 a 37 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, demonstrativos de que foi requisitado para comparecer no tribunal a prestar declarações como testemunha e como perito num processo correccional, numa acção cível e nos dois processos-crime singular;
* Por despacho do Senhor Secretário para Segurança, foi julgado improcedente o recurso hierárquico; e
* De novo inconformado, do despacho interpôs o presente recurso contencioso de anulação para este TSI.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Assim, de acordo com o alegado no petitório do recurso, são as seguintes questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da violação da lei;
2. Da falta de fundamentação; e
3. Da violação do princípio da igualdade.
Vejamos.
1. Da violação da lei
O recorrente imputa ao acto recorrido o vício da violação da lei, na sua vertente da violação do princípio de proporcionalidade.
Para o efeito, alegou, que
……
12. Assim o acto de indeferimento do Sr. Secretário para a Segurança enferma do vicio de violação de lei e de falta de fundamentação, porquanto;
13. De facto, desde 1986 que o requerente é titular de licença de uso e posse de arma;
14. Tal licença, nº 13/86 foi-lhe concedidada ao abrigo do artigo 26º do Decreto-Lei nº 77/99/M enquanto exercia funções como Inspector Assessor na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos.
15. Como ficou dito no requerimento inicial, a motivação para a concessão da licença de uso e porte de arma nº 13/86 prendeu-se com exercício do cargo de inspeção de jogos, onde durante estes anos todos até à aposentação foi requisitado como testemunha de acusação em inumeros processos judiciais, (vide processo instrutor), em inúmeros intervenções em procedimentos de notificações administrativas, rusgas de identificação de promotores de jogo ilegais, repressão e apreensão de jogos ilícitos fora dos casinos.
16. È um facto que entre os anos de 1996 e 1999, anos conturbados em Macau devido às chamadas "Guerras das Seitas", o requerente teve intervenção directa em muitos das operações materiais que visaram por cobro as situações acima referidas tais como, combate ao jogo ilícito e identificação dos promotores desses jogos.
17. No cumprimento da lei e do seu estatuto, o requerente foi criado inimizades, persistentemente ameaçado e intimidado pelos infractores com os quais se relacionava no âmbito das suas funções.
18. O requerente recebeu ameaças expressas verbais à sua vida e da sua família relacionadas com o exercício da sua actividade profissional como escritos deixados no pára-brisas do seu automóvel testemunhado por colegas e amigos.
19. Estas ameaças deixaram marcas profundas quer na vida quotidiana do requerente, quer na vida da sua família.
20. O receio sempre latente que qualquer vingança fosse cometida contra ele e sobretudo contra a sua família, foram criando enorme pressão no requerente, até mesmo no seu subconsciente que está sempre alerta para perigos imprevisíveis.
21. Se tal acontecia enquanto o requerente estava no exercício das suas funções, actuando na defesa da legalidade da RAEM, compreender-se-á, que os factores, quer materiais, quer psicológicos de insegurança, de ameaça e de intimidação não de desapareceram, com aposentação do requerente.
22. Por isso continuam actuais.
23. No entender do requerente, não se pode traçar uma linha estanque entre o "antes" e o "depois" da aposentação para estes efeitos.
24. Isto é, o sentimento de insegurança material e psicológica existe quer antes quer depois da aposentação.
25. Ou dito de outra forma, não se pode dizer que antes da aposentação havia sentimento de insegurança e depois da aposentação e por causa da aposentação deixou de haver esse sentimento.
26. Esse sentimento de insegurança é actual.
27. Entende o requerente, que claramente fez prova no seu requerimento inicial do risco concreto para a sua integridade física ou dos seus familiares.
……
“A proporcionalidade, enquanto princípio vazado no art. 5º, nº2, do CPA, acolhe a noção de solução plúrima, isto é, transmite a ideia de que só é desproporcional a medida se outra pudesse ter sido tomada com menor gravame ao interesse privado conflituante, se, diferente e com melhor equidade de meios e de resultados, pudesse ser a resolução do caso concreto” – cf. Acórdão do TSI de 05JUN2014 no processo nº 625/2013.
In casu, face ao pedido do recorrente, não está em causa a medida mais gravosa ou menos gravosa da decisão para o recorrente, pois a Administração tem apenas duas alternativas, conceder ou não conceder a licença pretendida pelo recorrente, sendo certo que no caso de concessão, a “medida” e o “conteúdo” do acto não serão doseados pela Administração, mas sim previamente e em abstracto fixados pela lei geral e abstracta.
Portanto, por natureza, não pode estar em causa o princípio da proporcionalidade.
Tendo em conta o alegado pelo recorrente, parece-nos que o recorrente está a imputar ao acto recorrido o vício da violação da lei na modalidade de erro nos pressupostos de facto e de direito, dado que para nós, apesar de ter identificado incorrectamente o vício, o recorrente está no fundo a insinuar que in casu a Administração valorou mal a situação concreta para avaliar a possibilidade do seu preenchimento nos parâmetros delineados pela lei, ou seja, está a insinuar que houve a discrepância entre a situação abstractamente prevista na lei e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta.
Insiste o recorrente que ele reúne o requisito exigido pelo artº 27º/1-d) do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 77/99/M.
Todavia, não pensa assim a Administração.
Pois, de acordo com a informação da PSP sobre a qual o Senhor Secretário para a Segurança lançou o despacho de concordância ora recorrido, a entidade recorrida considerou que inexiste a necessidade de o recorrente andar armado.
O tal juízo baseia-se na falta de uma indicação concreta do responsável da DICJ (que tem conhecimento próximo da carreira funcional do recorrente) e na falta de comprovativos actuais e concretos de que a integridade física do recorrente e dos seus familiares corre sério perigo ao ponto de não ser suficiente a cobertura de segurança providenciada pelas forças da ordem.
O que significa que a entidade recorrida não questionou a veracidade dos factos alegados pelo recorrente para demonstrar o alegado perigo que invocou para sustentar a sua necessidade de ser titular de uma licença de uso e porte de arma de defesa.
Só que a entidade recorrida não aceitou que estes factos, fracos na óptica dela, i. é, a simples circunstância de ter, ao longo da sua carreira de 36 anos, intervindo, nos vários processos judiciais como testemunha e perito, poderia ter a virtualidade de demonstrar o tal perigo determinativo da necessidade de usar arma de defesa.
Então vamos ver se existe a tal discrepância.
O vício de violação da lei, na modalidade de erro nos pressupostos de facto e de direito, produz-se normalmente quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece – Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo II, pág. 391.
Então é de averiguar se estamos perante o exercício de um poder vinculado, ou de um poder discricionário, tal como entende o recorrente.
Ora, reza o artº 27º/1 do Regulamento de Armas e Munições, aprovado pelo Decreto-Lei nº 77/99/M que:
1. Pode ser concedida licença de uso e porte de arma de defesa a quem reúna os seguintes requisitos:
a) Ser maior;
b) Demonstrar ter adequada idoneidade moral e civil;
c) Demonstrar essa necessidade para a sua defesa pessoal ou da sua família, em razão das suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional;
d) Possuir capacidade de manejo de arma de defesa.
Para a entidade administrativa, foi a inverificação do requisito da alínea c) a causa determinativa da não concessão da licença.
Está em causa a alínea c).
Ai a lei exige a existência da necessidade para a sua defesa pessoal ou da sua família, em razão das suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional, como requisitos para a concessão da licença de uso de arma.
Não se tratando de conceitos consistentes em descrições puramente fácticas, cujo sentido e alcance são facilmente captáveis por quem domina mais ou menos a língua utilizada para a redacção da lei, mas sim conceitos cujo preenchimento requer um juízo valorativo da situação concreta, feito pelo aplicador de direito, com vista à sua integração na previsão da norma.
São os conceitos indeterminados, assim denominados pela doutrina.
Pois a captação do sentido e do alcance e a integração desses requisitos previstos no citado artº 27º/1 pressupõe efectivamente um exercício interpretativo e valorativo pelo órgão decisor.
E ao contrário do que sucede com a discricionariedade, que é um poder derivado da lei que se consubstancia na liberdade reconhecida à Administração de escolher uma solução de entre várias soluções juridicamente admissíveis, o legislador, quando empregar conceitos indeterminados na previsão da norma, não está a conferir ao aplicador de direito qualquer liberdade de escolher de entre várias soluções legalmente admissíveis, mas sim fixar-lhe um quadro de vinculação, se bem que mitigado pela possibilidade casuística do seu preenchimento.
O preenchimento do conceito indeterminado constitui portanto a actividade estritamente vinculada à lei, e consequentemente sindicável por via contenciosa.
Então passemos a apreciar a bondade da valoração feita pela Administração dos factos para o preenchimento dos tais conceitos constantes do artº 27º/1-c) do regulamento.
In casu, ao dizer, depois de ter valorado os factos alegados pelo recorrente no recurso hierárquico e os documentos comprovativos das convocações para intervir nos processos judiciais, que o recorrente não reuniu o requisito a que se refere o artº 27º/1-c) do regulamento, a Administração expõe as razões pelas quais refuta o juízo valorativo que o recorrente extraiu daqueles mesmos factos e documentos.
De facto, se estivéssemos colocados perante os factos alegados e o teor dos documentos juntos pelo recorrente, quer no pedido inicial de concessão da licença de uso e porte de arma de defesa, quer no petitório do recurso hierárquico, extrairíamos o mesmo juízo valorativo que a Administração fez, isto é, concluir pela inexistência da necessidade de uma arma de defesa para a sua defesa pessoal do recorrente ou da sua família, em razão das suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional anterior.
Na verdade, para além de serem “curtos” os factos alegados, o recorrente não conseguiu concretizar a actualidade do perigo que justifica a posse de uma arma para a sua defesa ou dos seus familiares.
E pela forma como foi alegado, as alegadas ameaças ou possibilidades de represália não passam de ser meras conjecturas, formada subjectivamente na mente do próprio recorrente e sem alicerce dos elementos objectivos e concretos.
Assim sendo, entendemos que bem andou a Administração ao indeferir como indeferiu o pedido para a concessão da licença de uso e porte de arma de defesa.
2. Da falta de fundamentação
O recorrente entende que o Secretário para a Segurança não fez, em sede de recurso hierárquico, um reexame ao acto praticado pelo Comandante da PSP, com o objectivo do controle da legalidade e da inconveniência da decisão tomada pelo seu subalterno.
Enferma assim o vício da falta de fundamentação.
É verdade que o Senhor Secretário para a Segurança não elaborou ele próprio a fundamentação, mas fê-la por concordância com os fundamentos invocados na informação elaborada pelo Senhor Comandante da PSP.
Mas nada é censurável uma vez que procedeu assim nos termos expressamente permitidos pelo artº 115º/1, in fine, do CPA, à luz do que “a fundamentação deve ser expressa, ……, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.”.
Como é sabido, uma das finalidades da fundamentação é a de dar a conhecer ao administrado as razões da decisão naquele sentido e não noutro de modo a que este possa, se discordar, recorrer aos meios legais ao seu dispor para poder ver alterada a decisão.
No caso concreto resulta dos autos que o recorrente entende perfeitamente as razões do indeferimento do seu pedido, até porque veio atacar todos os fundamentos invocados pela entidade recorrida para justificar a solução consubstanciada no acto recorrido.
O único aspecto susceptível de censura na fundamentação é a omissão da pronúncia sobre a questão do vício de violação do princípio da igualdade, suscitada pelo recorrente, mas não conhecida pela entidade recorrida, no procedimento de 2º grau.
A tal omissão poderá conduzir à deficiência de fundamentação do acto recorrido, geradora da anulabilidade – artºs 115º/2, 122º a contrario, e 124º, todos do CPA.
Todavia, conforme iremos demonstrar infra acerca do vício imputado da violação do princípio da igualdade e dada a peculiaridade do caso em apreço, a tal deficiência se torna inócua e inoperante da anulabilidade do acto recorrido.
3. Da violação do princípio da igualdade
Por força do princípio da igualdade, a Administração tem de tratar igualmente os que estão em situação igual, e tratar desigualmente os que estão em situações desiguais.
O recorrente entende que foi tratado desigualmente uma vez que aos seus ex-colegas, igualmente inspectores aposentados, foi concedida a licença para o uso e porte de uma arma de defesa mesmo desligados do serviço por aposentação.
Para além de identificar esses ex-colegas seus e alegar o estado de serem todos aposentados, o recorrente não adiantou mais para nos convencer de que estes senhores estão em situação idêntica à sua.
Mesmo que o recorrente tivesse demonstrado que esses ex-colegas estavam efectivamente numa situação exactamente idêntica à sua, de per si não implicaria necessariamente a violação do princípio da igualdade, geradora da anulabilidade do acto ora recorrido.
Pois para anular o acto ora recorrido, não basta que o recorrente tenha sido tratado desigualmente, é preciso que tenha sido tratado ilegalmente pelo mesmo acto.
Vimos supra que o acto recorrido não é ilegal, dado que a Administração bem andou na valoração dos elementos fácticos para o preenchimento dos tais conceitos indeterminados “as suas especiais condições de vida ou risco inerente ao exercício da sua actividade profissional” e na formulação do juízo da inexistência da necessidade de o recorrente andar armado para a sua defesa pessoal ou da sua família.
Assim, a única conclusão que poderiamos tirar, caso os ex-colegas do recorrente estivessem efectivamente em situação idêntica à do recorrente, seria necessariamente que as licenças foram mal concedidas aos seus ex-colegas.
Mesmo que assim esteja, o ora recorrente não pode reivindicar aqui o mesmo tratamento.
Isto porque não há igualdade nas ilegalidades.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso do despacho do Senhor Secretário para a Segurança datado de 11SET2012 que, em sede de recurso hierárquico, manteve a decisão do Senhor Comandante da PSP que indeferiu o pedido da concessão da licença de uso e porte de arma de defesa formulado pelo ora recorrente A.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça fixada em 6 UC.
Registe e notifique.
RAEM, 12FEV2015
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Lai Kin Hong Mai Man Ieng
(Fui presente)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng